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discurso (24), 1994: 57-127 A Idéia de Parte da Natureza em Espinosa Marilena Chauf* Resumo: Desde o século XVII, cria-se uma tradi¢ao interpretativa da obra de Espinosa afirmando a irrealidade dos seres finitos, 4 maneira dos pantefsmos orientais. Tomando as versdes antigas e recentes do suposto orientalismo espinosano, procuramos apontar seus equivocos. Para isto, toma- mos as inovagdes de Espinosa na definigdo das idéias de substéncia ¢ modo e o papel central da idéia de parte da Natureza para a compreensdo dos modos finitos como realidades individuais e suas relagdes com a substincia infinita. Palavras-chave: Espinosa — substéncia — mado — parte da Natureza — infinito — finito — relagao parte-todo ~ Natureza Naturante — Natureza Naturada I. Eco das Terras Orientais A idéia de uma subtancia tinica absolutamente infinita, causa imanente da Natureza e, nesta, de todas as coisas singulares como modificagées finitas do ser infinitamente infinito, tem sido respons4vel pela interpretagao da filo- Sofia de Espinosa como pantefsmo mistico ou, segundo a expressdo famosa de Novalis, como pensamento do “homem ébrio de Deus”. * Professora do Departamento de Filosofia da Universidade de Sao Paulo. 58 Chaui, M., discurso (24), 1994: 57-127 Recentemente, autores como Paul Wienpahl e Jon Wetlesen, Huston Smith e Siegfried Hessing, Claude Piguet e Erwin Reinnisch enfatizam nao sé 0 que consideram misticismo de Espinosa, mas também seu parentesco com 0 pensamento oriental. Wienpahl identifica a unidade-unicidade subs- tancial espinosana e a nogio budista de aniquilamento do ego: “A compreensio de Espinosa de que, no plano dos individuos huma- nos, nao ha substancias é 0 equivalente 4 budista de que o ego € uma ilusdo, pois, na linguagem do budismo, a palavra “ego” corresponde 4 palavra ‘substAncia’, na linguagem de Espinosa... Além disso, na Parte I e nas tltimas 21 proposigdes da Parte V da Etica, Espinosa oferece duas alongadas descrigdes da nulidade do ego” (Wienpahl 29, p. 93). Wienpahl aproxima a Carta 37 (de Espinosa a Bowmeester), na qual 0 fil6sofo afirma que 0 método para 0 conhecimento da verdade exige a dis- tingdo entre imaginagio, memG6ria e entendimento, o afastamento das duas primeiras pelo terceiro e sobretudo “meditagio assidua”, “forga de propési- to” e “um certo modo de vida”, e o método budista do Zazen, “pratica que enyolve o corpo e a alma” para alcangar 0 esvaziamento de sie a nulificagio do ego. Wetlesen, por seu turno, parte da abertura do De Emendatione para demonstrar que podemos “com seguranga caracterizd-lo [Espinosa] como mfstico, no sentido de haver penetrado profundamente na experiéncia mfsti- ca’, a prova disso estando na afirmag4o espinosana da iluminagdo que lhe foi trazida pelo conhecimento “da uniao da mente com o todo da natureza”. O intérprete reconhece que nao existem elementos empiricos que possam comprovar que Espinosa estivesse familiarizado com o budismo, no entan- to, diz ele, sio surpreendentes as coincidéncias terminolégicas entre as pro- posigdes do Livro V da Erica e a linguagem da meditagio budista, particularmente a palavra sinscrita yoga (meditagao ascética para libertar- se da dispersio e do automatismo da consciéncia profana e chegar a um estado de integrag¢do que é a unido com Deus) e 0 verbo latino jungere, ‘Chauf, M., discurso (24), 1994; 57-127 39 empregado por Espinosa para caracterizar 0 amor intelectual da alma por Deus. “Parece haver sempre 0 perigo, quando nos aproximamos da filoso- fia de Espinosa, de nos envolvermos excessivamente com 0 aparato técnico e académico de definigdes, axiomas, proposigdes ¢ demons- tragdes, numa aproximagdo excessivamente intelectualista. Se qui- sermos evitar isto, precisamos indagar que experiéncia viva serviu de fonte para a filosofia de Espinosa. Supomos que na base dela encon- tra-se uma experiéncia mfstica e, dessa maneira, podemos penetrar mais profundamente nela ¢ ver suas implicagdes para nossas vidas, tanto na teoria quanto na pratica” (Wetlesen 28, p. 492). Smith, partindo dos rom@nticos alemaes, de Renan e sobretudo de George Eliot — “Spinoza says from his own soul what all the world is saying by rote” —, aproxima a metafisica espinosana do gnosticismo Veda e do bu- dismo, da imagem do mundo como “véu de Maya” ¢ da beatitude como entrega de si ao Nirvana, escrevendo: “Espinosa foi a prova viva de que € poss{vel vislumbrar algo mais, algo majestoso — um Bem além de todos os bens —, cuja mera visao faz com que alguém abandone completamente desejos pessoais, es- que¢a-se de si mesmo em sua contemplagao e acrescente novas di- mensées ao tesouro de sua alma” (Smith 26, p. xiii). Por sua vez, Hessing menciona uma série de addgios e aforismos de “descobridores de caminhos” para uso dos “buscadores de caminhos” com 0s quais relaciona textos espinosanos, colocando Espinosa na posi¢do de profeta, guru e cabalista. Reinnisch, partindo da carta de Espinosa a Burgh — “Nao pretendo haver encontrado a melhor filosofia, mas sei que conhego a verdadeira” —, indaga 0 que seria a “verdadeira filosofia” e responde, docu- Mentos em m4o, que se trata da Cabala, cuja origem nio € judaica, mas 60 Chauj, M., discurrso (24), 1994: 57-127 persa, datando da época em que os judeus enfrentaram o primeiro exilio na Babil6nia, quando Zoroastro difundia a nova religiosidade na regido do Eufrates. E esse ensinamento que é absorvido pelos exilados, vindo a cons- tituir-se como o fundo cifrado e secreto da Lei. Aluno de Menasseh ben Israel, mfstico cabalista, Espinosa teria conhecido 0 Livro do Esplendor —o Zohar -, bem como o pensamento esotérico da tradigdo cabalfstica, fato reconhecido na obra do fildésofo, desde o século XVII, por Wachter e Leibniz (Hessing 12). Numa outra linha interpretativa, Piguet considera 0 misticismo espi- nosano resultado da confluéncia de trés tradi¢des: a judaica, da viagem- alianga Deus-homem — a Etica, dizele, é 0 relato de uma alianga que mede a distfncia entre homem e Deus e de uma viagem da alma para libertar-se das paixdes, reencontrando Deus na beatitude -; a do misticismo espanhol das “moradas”, A maneira de Santa Tereza d’ Avila e de San Juan de la Cruz (as “moradas” espinosanas sendo os modos finitos, os modos infinitos mediatos e imediatos, os atributos e a substancia), herdeiro préximo do gnosticismo de Valentim (donde a natureza gnoseolégica das “moradas” espinosanas, isto €, dos graus de conhecimento e graus de realidade) e do Zohar, portan- to, como passagem de uma perfeigado menor a outra, maior, gragas ao co- nhecimento da “esséncia intima dos seres” (o papel da oragdo seria, em Espinosa, substitufdo pelo percurso através dos graus de conhecimento); ea tradigao cabalfstica, que recusa os “signos” pelas “figuras”, pois € Deus quem dé sentido a todas as demonstragGes da Erica, e ndo o contrdrio, como pen- sariam os racionalistas: “E © préprio Deus que ‘dé sentido’ a todas as demonstragées da Etica, quando se poderia imaginar, inteiramente ao revés, que si0 os dédalos l6gico-matemiAticos do ‘sistema’ explicito da filosofia de Es- pinosa que confeririam sentido a Deus, construindo-o do exterior” (Piguet 23, p. 43). Afirmagio que, certamente, surpreenderd um leitor do primeiro capitulo do Theologico-Politicus, no qual Espinosa, numa fina andlise filolégica, Chai, M., diseurso (24), 1994: 57-127 61 examina os varios sentidos em que a expresso “de Deus” é usada nas Escrituras, assinalando que a imaginagdo hebraica a empregava por estar habituada a referir todas coisas “imediatamente a Deus” e, particularmente, para indicar tudo quanto parecesse superlativo e estupendo, porque as causas naturais eram ignoradas. “Vento de Deus”, “montanha de Deus” ou “sono de Deus”, explica Espinosa, indicavam vento fortissimo, montanha altfssima, sono profundissimo. E assim que as Escrituras também falam no “‘espirito de Deus” que pairava sobre as Aguas — vento extremamente forte e seco —, que habitava Gededo e Sansio — forga cheia de auddcia e pronta para tudo. 0 profeta imaginava-se habitado misteriosamente pelo “espirito de Deus” e era designado como “mente de Deus” porque os hebreus acreditavam que Jeovd lhes enviava diretamente seus decretos e sua vontade, falando através do nabi, orador ou intérprete. Em suma, o entusiasmo profético é efeito da imaginagao, pois “os homens ignoravam as causas do conhecimento profético e, por isso, admiravam-no e atribufam-no a Deus, como faziam com qualquer outro prodfgio, chamando-o conhecimento de Deus” (Espinosa 8, p. 134). Ao lado dessas interpretagGes, existem as que poderfamos chamar de “cautelosas”, como as de Hubbeling e Kolakowski. Hubbeling, opondo-se a Wetlesen, comega distinguindo experiéncia mistica e estrutura mistica de pensamento. Se, escreve ele, mistico significar ter experi€ncias misticas, entdo Espinosa nio poderé ser chamado de mfsti- co; porém, se com tal expressio procura-se indicar uma filosofia que “de- fende certas doutrinas que ocorrem freqiientemente no misticismo, entao, sem divida, Espinosa é um mfstico” (Hubbeling 14). De fato, entre os varios aspectos que caracterizam uma estrutura mfstica de pensamento, dois, pelo menos, encontram-se na filosofia espinosana: em primeiro lugar, a participa- ¢do da mente humana no pensamento divino e, em segundo lugar, 0 contem- plar o mundo e o eu humano do ponto de vista de uma totalidade inclusiva sub specie aeternitatis. Para deixar claro que nio se refere a experiéncias misticas, Hubbeling contrasta Espinosa e 0 holandés Ruusbroeck, considerado um dos maiores misticos de todos tempos, tendo influenciado os mfsticos espanhdis e, sob certos aspectos, Geulincx, o filésofo contemporaneo de Espinosa e também autor de uma Erica. Diferentemente de Ruusbroeck, Espinosa nao oferece 62 Chaui, M., discurso (24), 1994: 57-127 ensinamentos morais que preparem a alma para 0 éxtase mistico, ndo escre- ve exercicios espirituais preparatorios 4 submersao do eu na divindade, es- tdgios de quietude e recolhimento que antecedam 0 momento final do arrebatamento e de dissolugao no seio de Deus. No entanto, a filosofia de Espinosa possui, em termos Idgicos, uma estrutura mistica, ou como escre- ve Hubbeling, uma “dialética da infinitude” (dialética no sentido platénico) e uma “estrutura mfstica da participagdo”. A introdugdo a ambas se faz pelo Axioma | do Livro I= “Tudo o que é, € em si ou em outro” —e pela Propo- sigio 7 do Livro Il — “A ordem e conex4o das idéias é a mesma que a ordem e conexiio das coisas” —, cujo fundamento se encontra no Axioma 4 do Livro 1-“O conhecimento do efeito depende do conhecimento da causa e 0 envol- ve”. Assim, a Proposigao 1,1, preparando a demonstragdo da unidade e uni- cidade substancial e da esséncia modal do homem (como pars Dei), e a Proposigao 7,II, introduzinde o paralelismo entre pensamento ¢ ser, isto é, que as coisas devem ser inferidas do quadro do pensamento porque suas idéias esto envolvidas na idéia de Deus e devem incluir-se realmente em Deus porque sido parte de Deus, estabelecem “a estrutura mistica da filosofia espinosana”. N&o &, como em geral tem sido 0 caso, 0 terceiro género de conhecimento (a ciéncia intuitiva, tal como aparece no Livro V da Etica) que leva Hubbeling a falar num misticismo espinosano, mas a estrutura 16gi- ca do sistema. 7 Kolakowski desenvolve aspectos de uma tradigio interpretativa que yé Espinosa dilacerado entre 0 racionalismo mecanicista cartesiano e a he- tanga dos cristéos sem igreja que, durante os séculos XVI e XVII (com anabatistas, quakers e outros “iluminados”), impuseram 0 espirito mistico plebeu contra a nova ordem social e cientffica triunfante. Expulso da comu- nidade judaica, Espinosa conviveu intensamente com 0s cristdos sem igreja, tendo seu cfrculo de amigos mais préximos entre os colegiantes holandeses, a cujo misticismo teria acrescentado 0 legado da mistica judaica, isto é, “o sentimento informuldvel da unidade, mais do que isto, da unidade do homem com a natureza inteira”. O dilaceramento — que, para Kolakowski, se torna- rd, ao fim e ao cabo, incoer€ncia — é perceptivel na incapacidade de Espino- sa para formular, nos quadros de sua prépria doutrina, “o princfpio de (Chauf, M., discurso (24), 1994: 57-127 63 individualidade do mundo corporal” , incapacidade que “se estende ao mun- do da inteligibilidade, em virtude do isomorfismo e da identidade dos dois atributos”. Nem 0 corpo nem a alma conseguem ser justificados como in- dividualidades e, portanto, nao hd justificativa metaffsica para sua existén- cia. Espinosa “se revolta contra tal conseqiiéncia” , revolta que se exprime com a introdugao do conatus como esforgo das coisas particulares para per- severar na existéncia, mas que sua metaffsica no consegue justificar. O es- pinosismo 6, assim, atravessado por contradigées insoliveis: “A contradigdo entre o ponto de vista da substancia e 0 dos madi, entre o universo-Deus e 0 universo-modus infinitus penetra em to- das as dobras da doutrina: contradicdo entre a parte e o todo, na metafisica; contradigdo entre a intuigdo e a dedu¢do, na metodologia; entre a moral contemplativa e a moral da autoconservagao, na ética; entre 0 liberalismo e 0 poder autoritario, na politica; entre 0 espirito trégico e o realismo, no estilo literdrio; entre o maquiavelismo e€ 0 estoicismo, na vida. A contradigao interna do espinosismo revela a oposigdo de duas forgas contraditérias e heterogéneas a partir das quais ele nao consegue completar a sintese: a fonte cartesiana e a fonte mfstica, 0 espirito do racionalismo cientifico e individualista, enraizado nas tendéncias do terceiro estado ascendente, ¢ 0 espirito do misticismo plebeu, distante do progresso cientifico. Com efeito, € desta segunda fonte que nasce a tendéncia, viva hd séculos, de consi- derar toda individualidade como uma espécie do patoldgico, de bus- car a desalienagio do homem fora da vida particular, privada de grandes esperangas, numa comunhdo com o absoluto, em que 0 ho- mem pode encontrar a terra prometida que nao lhe podem revelar nem ‘a vida social, nem’a ortodoxia petrificada das igrejas existentes. E em sua teoria da substincia indivisivel, que ultrapassa e aniquila toda individualidade das coisas — conseqiientemente, também a do homem como indivfduo —, que 0 espinosismo se constitui como trans- posic¢fo filoséfica da consciéncia pequeno-burguesa desencorajada; em seu racionalismo e sua lei da autoconservagdo que mostra seu 64 Chauf, M., discurso (24), 1994: 57-127 rosto otimista ¢ confiante na vida cientifica de sua época, florescente no seio do progresso econémico” (Kolakowski 15, pp. 292-293). Oespinosismo seria, pois, o resultado incoerente da mescla absurda e irresolvida entre a “desesperan¢a pequeno-burguesa”, espontaneamente irracionalista, 0 “comunismo plebeu” pessimista, espontaneamente mistico- entusiasta, e o otimismo racionalista na nova classe dominante em ascensio. Finalmente, opondo-se a essas varias interpretagdes, mas aceitando a tese da dualidade de inspiragdo do espinosismo, encontramos Negri, que enfatiza a “anomalia selvagem” do pensamento de Espinosa: “Coexistem, na parte V da Etica, duas linhas tedricas incompativeis € essencialmente contraditérias — em primeiro lugar, uma linha misti- ca, proveniente de uma primeira fundagdo do pensamento espinosista e que se distingue da orientagdo profundamente materialista da se- gunda fundacdo [elaborada e desenvolvida entre a redag4o do Trata- do Teolégico-Politico e os Livros Il e IV da Etica]. A segunda linha de pensamento, a que chamei ascética, eu a via desenvolver-se e re- forgar-se sobretudo no Tratado Politico, em outras palavras, eu a via apresentar-se ali numa forma totalmente desdobrada enquanto filosofia da constituigdo do real e teoria democratica da multitude” (Negri 21, p. 126). Para Negri, a utopia neoplaténica renascentista — Bruno e Leio Hebreu — € dos circulos entusiastas dos amigos de Espinosa, presente no Tratado da Reforma e no Breve Tratado, oferece a “primeira fundagdo” do espinosis- mo, isto é, a face mfstica do sistema que se mantém em certas partes do Livro V da Etica. Em contrapartida, 0 racionalismo cartesiano e 0 materia- lismo hobbesiano, criticos e ndo-ut6picos, preparam a interpretagio espinosana que, na “segunda fundagao”, os suplantar4, ao mesmo tempo que suplanta a heranga neoplaténica. Trata-se, neste segundo momento, do pensamento espinosano no Tratado Teolégico-Politico, nos Livros II e IV Chaut, M., discurso (24), 1994: 57-127 65 da Etica e no Tratado Politico. Por que “anomalia selvagem”? Porque, ao passar da heranga mfstico-pantefsta de estilo renascentista ao racionalismo, Espinosa nao se identifica com a marca da modernidade racionalista, qual seja, 0 pensamento das mediagGes, indispensdvel a burguesia ascendente. Negri indaga: haveria dois Espinosas? E responde afirmativamente: “Existem efetivamente dois Espinosas... O primeiro representa a mais alta consciéncia produzida pela revolugio cientifica e pela civiliza- ¢do do Renascimento. O segundo produz uma filosofia do porvir...O primeiro é 0 ponto final do mais alto desenvolvimento do idealismo. O segundo participa da fundagao do materialismo revolucionario” (Negri 21, p. 31). Em que consiste a “anomalia selvagem”? No fato espantoso de que Espinosa s6 é contemporaneo de seu tempo por ser duplamente anacrénico: € renascentista e “sua filosofia se apresenta como uma filosofia pés-burgue- sa”. E um mistico pré-moderno e um materialista p6s-moderno. O parentesco com 0 neoplatonismo renascentista, particularmente com Bruno, também € mencionado por Serres, mas, diferentemente de Negri, a menc¢do agora é feita para enfatizar a incapacidade espinosana paraelaborar instrumentos de modernidade e de superacdo da cultura renascentista, fonte comum do pensamento de Espinosa e Leibniz. O pantefsmo animista de Bru- no, porém, produz dois resultados diferentes em seus pésteros. Leibniz nao € monista, pantefsta e imanentista como Bruno, mas associa a unidade bruniana (a ménada aritmética ou o uno, a ménada geométrica ou o ponto, e amOnada fisica ou 0 individuo) com a légica do infinito, a filosofia monddica com a arte combinat6ria para chegar ao pluralismo substancial. Em outras Palavras, Leibniz ultrapassa a heranga renascentista e bruniana, gragas As técnicas de dominio do infinito. Espinosa, ao contrario, permanece herdeiro direto da Renascenga e de Bruno, dando aos conteddos antigos a forma geométrica cartesiana: 66. Chauf, M., diseurso (24), 1994: 57-127 “Se o espinosismo pode ser encarado como tentativa de'dar coerén- cia geométrica.a um contetido monista e pantefsta, recebido em parte da cultura renascente, o leibnizianismo pode ser considerado um en- saio para dar consisténcia matemdtica a uma forma problematica do pensamento renascente... para ele [Leibniz], tratava-se de formalizar o formal de uma cultura, enquanto Espinosa pretendia, de algum modo, formalizar o informal e, talvez, 0 nado formalizdvel” (Serres 25, p. 292). De que se trata nessa heranga da cultura renascente? Retomando uma idéia de Boutroux, para quem a questao leibniziana é a da relagdo entre unidade e infinito (Boutroux 2), Serres considera 0 tema renascentista a relagdo entre o uno e o multiplo, resolvida por Leibniz, gragas ao dominio das técnicas de formalizagao da infinitude, e nado resolvida por Espinosa por falta dessa formalizagao. No entanto, Serres observa que a matematizagio da m6nada como lugar metaffsico no qual sujeito e objeto, interior e exteri- or, unidade e multiplicidade sao reversfveis e entrelagados, no qual a m6nada € espelho e eco do universo (ordem dos objetos e ordem das relagées), re- poe-a idéia de comunhao universal, “uma experiéncia amorosa, de amor puro ou de comunhio panteista de estilo renascente ou neoplaténico. O entusiasmo amoroso acom- panha passo a passo a matematizagio escrupulosa das relagdes que essa comunhao instaura; a compreensio total de um mundo que me compreende é a relagdo mesma do amor: ‘Encontrar minha alegria na alegria que © outro encontra em mim’” (id., ibidem, p. 389). Se Leibniz chega, como Espinosa, ao panteismo, dizer que Espinosa, diferentemente de Leibniz, nfo conceitualizou o pensamento renascentista porque apenas herdou a cultura renascente significa sugerir que nele perma- neceu apenas o entusiasmo amoroso e, portanto, a tendéncia mfstica, Ora, Alexandre Mathéron considera que Espinosa segue um percurso matemati- Chaut, M., diseurso (24), 1994: 57-127 67 co-demonstrativo tal que permite interpretar 0 Livro V da Erica como indi- cagao da possibilidade de uma vida eterna inter-humana ou intersubjetiva que nao est4 reservada apenas a alguns sdbios, mas é virtualmente destinada a toda a humanidade. Essa comunidade existe em si, bastando reveld-la a seus membros, Essa revelagdo é a obra espinosana, que pretende chegar a um “comunismo dos espjfritos”: “Fazer existir a Humanidade inteira como totalidade consciente de si, microcosmo do Entendimento infinito, no seio do qual cada alma, permanecendo ela mesma, tornar-se-4 ao mesmo tempo todas as ou- tras. Perspectiva escatolégica que seria um pouco andloga a de cer- tos cabalistas... Caminhamos para uma solugdo parcial do drama ontolégico que estd na origem do drama humano: o Entendimento infinito, separado de si pela necessidade em que se encontra de pen- sar os modos da Extensdo em sua existéncia hic et nunc, ultrapassard essa separagdo quanto mais a Humanidade reconciliar-se consigo mesma” (Mathéron 19, pp. 612-613). Neste caso, a articulagdo entre geometria, polftica e ética daria um sentido rigoroso e novo & heranga renascentista, e o pantefsmo seria tudo menos uma experiéncia mistica de perda de si no infinito e muito mais, a maneira leibniziana, uma outra conceituacdo da relagdo uno-miltiplo ou unidade ¢ infinitude. Poderfamos multiplicar exemplos de interpretagdes que vao desde a afirmagao da existéncia de vdrios Espinosas até a assimilagao total do filé- ~sofo aos quadros do misticismo panteista. Nio é necessdrio fazé-lo, mas vale a pena mencionar quais os temas e conceitos espinosanos, ou atribuf- dos a Espinosa, que suscitam esse tipo de interpretagao. Unidade e unicida- de da substAncia infinitamente infinita, imanéncia da Natureza Naturante 4 Natureza Naturada (e vice-versa), paralelismo entre pensamento e extensio © entre alma e corpo, concepedo emanatista e fenoménica das coisas singu- lares, terceiro género de conhecimento como ciéncia intuitiva ou amor inte- lectual de Deus sao alguns dos conceitos ¢ temas que exporiam a estrutura 68 Chau, M., discurso (24), 1994: $7-127 mistica da filosofia espinosana, seus lagos com o hermetismo renascentista, com 0 misticismo da elite judaica — a Cabala mfstico-gnéstica que busca a salvacdo através da purificagdo espiritual —, e néo com a Cabala militante ou messianica popular (segundo a distingao feita por Scholem), com o plebefsmo dos entusiastas cristaos (estudados por Kolakowski, e, neste caso, ao con- trério da distingdo de Scholem, terfamos que colocar Espinosa do lado po- pular ¢ pequeno-burgués), com 0 zoroatrismo, 0 budismo e as cosmologias acosmistas orientais. No cerne dessas interpretag6es (sejam elas positivas ou pejorativas), 0 que estd em jogo é 0 estatuto ontoldgico da Natureza Naturada, isto é, da ordem natural constitufda pelos seres finitos ou, na linguagem espinosana, pelas coisas singulares determinadas, existentes na duragdo. Trata-se da re- alidade ou irrealidade dos modos finitos, mas também dos modos infinitos, uma vez que sao estes os mediadores entre a substancia absolutae a finitude. O deslizamento do pantefsmo ao acosmismo (portanto, para a irreali- dade dos modos finitos e infinitos) é perceptfvel nas discussdes alemas de Espinosa. E assim que a referéncia a Espinosa comega, por exemplo, nas Cartas de Schelling sobre a diferenga entre dogmatismo e criticismo, como expressio acabada da filosofia dogmatica, na qual aspira-se 4 dissolugado do sujeito num objeto absoluto (em contraposiciio ao desejo criticista de disso- lugao do objeto num sujeito absoluto). Essa imagem é reforgada pelas Car- tas sobre a Filosofia de Espinosa de Jacobi a Mendelsohn tratando do espinosismo de Lessing, que se diz espinosista porque, apds a cisdo eu-natu- reza e a separag ao Deus-eu-mundo postas pela filosofia critica, a tnica filo- sofia possivel é aquela que volte a reafirmar “a poesia do hen kai pan” (um todo; ou tudo uno). A via romantica da reconciliagdo, buscada por Lessing, € reafirmada com maior intensidade por Hilderlin, que comega por reconhe- cer que essa “bem-aventurada unicidade” est4 perdida, mas que era preciso perdé-la-enquanto inocéncia infantil — a “mais alta simplicidade em que nos- sos carecimentos concordam mutuamente consigo mesmos, pela mera orga- nizagdo da natureza, sem nossa interveniéncia” — para reconquist4-la — num “estado da mais alta cultura, onde 0 mesmo ocorreria... pela organizagio que nés mesmos estamos aptos a dar a néds mesmos” -, reconciliando ho- mem e mundo, liberdade e necessidade, cultura e natureza: Chaui, M., diseurso (24), 1994: 57-127 69 “Indagaste pelo homem, natureza?... Teus homens haveriio de che- gar, natureza! Um povo rejuvenescido também haveré de te tejuve- nescer e serds como sua noiva, e, contigo, renovar-se-d a antiga alianga dos espfritos. Haver de ser uma tinica beleza. Humanidade e natu- reza haverdo de reunir-se em uma divindade tudo abrangente” (Hélderlin 13, p. 107). A reconciliagao romantica — a unidade refeita gracas a beleza, & poesia, ao “sentido estético” -, essa “paz de todas as pazes” de que fala Hélderlin, exalta Espinosa porque, nele e com ele, a identidade Deus-Natureza € a reconquista do equilibrio entre imaginacio ¢ entendimento, sentimento e razdo, liberdade e necessidade, natureza e cultura, a s{ntese entre substancialidade ¢ atividade. Ora, essa reconciliagdo, dir4 Hegel, é muito rdpida, abstrata e, finalmente, impossivel nos quadros da filosofia espinosana, Pois se o panteismo de Espinosa nfo é, de mancira nenhuma, como tolamente supusera Jacobi, um atefsmo vulgar, é um acosmismo, forma superior do atefsmo, que nfo reconcilia nem pode reconciliar as divisées postas pelo idealismo transcendental e, desse ponto de vista, o Schelling da Filosofia da Natureza esta to equivocado quanto Jacobi, ainda que por motivos opostos. Sem dtvida, reconhece Hegel, a filosofia moderna deve admitir a afir- mac¢do romantica — “ou Espinosa ou nenhuma filosofia” —, mas justamente porque para comegar a filosofar é preciso ser espinosista é que ndo se pode terminar como espinosista: “Para Espinosa, alma e corpo, pensamento e ser cessam de ter exis- téncia separada independente. A profunda unidade de sua filosofia, a manifestagdo do Espirito como identidade do finito e do infinito em Deus, em vez de Deus aparecer relacionado com eles como um Ter- ceiro — tudo isto € um eco das terras orientais. A teoria oriental da absoluta identidade foi trazida ao pensamento europeu de maneira muito mais direta por Espinosa, primeiro com 0 pensamento euro- peu tradicional e depois com 0 concurso da filosofia européia e cartesiana, 710 Chauf, M., diseurso (24), 1994: 57-127 CO puro pensamento de Espinosa, tomado como um todo, € 0 que 0 td dnera para os eleatas. Essa idéia €, no principal, verdadeira e bem fundada; a substAncia absoluta € a verdade, mas nao € toda a verda- de; para sé-lo também precisa ser pensada como ativa e vivente em si mesma e, para isto, precisa determinar-se a si mesma como Espirito. No entanto, em Espinosa, a substancia é apenas 0 universal e conse- qiientemente a determinagdo abstrata do Espirito. Pode-se dizer que este pensamento € a fundacdo de todas as verdades, nao, porém, como suas bases absolutamente determinadas € permanentes, mas como a unidade abstrata do Espfrito em si mesmo... Ser um seguidor de Es- pinosa é o comeco essencial de toda filosofia, pois quando se come- gaa filosofar a alma deve necessariamente banhar-se no éter da substancia una, na qual tudo 0 que foi tido por verdadeiro desapare- ceu; essa negacdo de todo particular, a que todo filésofo deve ter chegado, €a liberagdo da alma e sua absoluta fundagao... O que cons- titui a grandeza de Espinosa € sua capacidade para renunciar a tudo o que é determinado e particular, restringindo-se ao Uno” (Hegel I1, pp- 252 e 257). Na Ciéncia da Légica, a primeira critica dirige-se 4 definigdo espinosana de Deus: Espinosa nao definiu Deus como unidade Dele e do mundo, mas como unidade do pensamento ¢ da extensdo, e, por conseguinte, 0 mundo é apreendido apenas como fendmeno ao qual.nao pertence qualquer realidade efetiva. A erftica prossegue, enderegando-se ao esbogo defeituoso da catego- ria da efetividade, uma vez que a subst@ncia mantém a exterioridade entre 0 absoluto da reflexfo e o diverso das determinagGes das quais a reflexio é 0 principio. A determinagao —a omnis determinatio negatio espinosana — per- manece como nega¢So externa, mera determinidade ou qualidade, fracas- sando por apreender-se como negatio negationis; a relagéo pensamento ¢ extensio é um dado imével. Destarte, a substdncia nado se efetua nem se efetiva porque ndo realiza o movimento de safda de sie de retorno a si, isto é, nfo € sujeito; conseqiientemente, os atributos permanecem formas ‘Chauf, M., diseurso (24), 1994: 57-127 71 inessenciais de uma identidade im6ével; os modos sdo imediatamente dados, nao sao Nichtigkeit, estao desprovidos de reflexao dialética, nio sendo ge- nuinamente reais (nicht warhfat wirklich). A Natureza Naturada, por conse- guinte, € 0 mundo da indeterminag4o abstrata, a diferenga est4 ausente e os modos sio irreais. A substincia é puro Dasein fechado sobre si mesmo, totalidade vazia e indiferente, incapaz da inversdo dialética: a exposigdo do absoluto, embora completa (substancia, atributo, modo), reduz-se & enume- racdo sucessiva e externa dos trés momentos, pois a negagao est ausente e com ela a reflexao cujo ponto culminante deveria ser 0 modo, onde ela deve- ria completar-se e cumprir-se. A substincia, unidade abstrata morta, aniquila os modos no porque estes tenham poténcia propria, mas porque nao tém nenhuma, faltando-lhes 0 principio da singularidade como auto-afirmagao, ja que Ihes falta ojogo da negacdo da negacdo pelo qual o absoluto se realiza ou se efetua. Nao se revela. E seus efeitos, os modos, nao sao o ser-posto. Eis por que o pantefsmo espinosista ndo é senfo um acosmismo: “A censura de atefsmo dirigida 4 filosofia espinosista se reduz, con- siderada de perto, ao fato de que nela o principio da diferenga ou da finidade nao acede ao seu direito e, por conseqiiéncia, nela nao se pode falar propriamente em mundo, no sentido de alguma coisa que €um ente positivo, e por isso esse sistema deveria ser designado nao como atefsmo, mas, ao contrério, como acosmismo. Isto indica 0 que sc deve pensar da censura de panteismo. Se se entende por pantefsmo, como acontece freqiientemente, uma doutrina que consi- dera as coisas finitas enquanto tais e 0 complexo formado por elas como Deus, entéo nao hé como lavar a filosofia espinosista da cen- sura de pantefsmo, visto que, de acordo com ela, As coisas finitas ou ao mundo em geral nao cabe verdade alguma. Essa filosofia é segu- - ramente pantefstica precisamente por causa de seu acosmismo” (Hegel 10, pp. 585-586). 72 Chaui, M., discurso (24), 1994: 57-127 O Nascimento da Tradi¢ao Interpretativa A imagem mistico-pantefsta de Espinosa nao € sendo sua imagem atéia posta diante do espelho. Porque misticismo panteista ¢ ateismo sao insepa- rfveis para 0 pensamento europeu do século XVII ao XIX, a figura atéia de Espinosa foi construfda, j4no século XVII, através de sua imagem pantefsta “oriental”. Quando surge essa imagem? E dificil determinar 0 momento exato de seu surgimento. Podemos, porém, localizar os primeiros instantes em que se manifesta publicamente: anuncia-se como possibilidade nas cartas de Tschirnaus a Espinosa, na leitura da obra espinosana como cabalistica, por ‘Wachter, na critica de Leibniz (a partir do livro de Wachter) a unicidade substancial e no opiisculo inacabado de Malebranche, Didlogo entre um Espinosista e um Fildsofo Chinés (que retoma teses malebranchistas expos- tas na correspondéncia do oratoriano com Dortous de Mairan). Sabe-se, hoje, que Tschirnaus considerava-se um discfpulo de Espino- sa, defendendo-o dos ataques de Oldenburg e Bayle; sabe-se, também, que, acuado por Christian Wolff e por Thomasius, que lhe atribuiam 0 ateismo panteista espinosano, defendeu-se da acusagao oscilando entre a defesa de Espinosa e a afirmagao de que mal conhecera 0 fil6sofo e sua obra. Sabe- mos, finalmente, que Tschimnaus era amigo de Schuller. Este procurara esta- belecer o contato entre Espinosa e Leibniz, do qual Tschirnaus também se aproximara. Essses dados histéricos, aparentemente irrelevantes, ganham sentido quando lemos as cartas de Tschirnaus a Espinosa, pois nelas obser- va-se, de um lado, a preocupacdo do missivista com 0 risco do pantefsmo e, de outro lado, que a diivida apresentada a Espinosa reaparecerd como eriti- ca ao filésofo em Leibniz. Em suma, Tschirnaus tem uma atitude ambigua para com Espinosa, e podemos inferir que, entre v4rias, uma das razes para isto encontra-se justamente na quest4o formulada nas Cartas 80 € 82, colo- cando em dtivida a validade da Proposigao 16 do Livro I da ‘Etiea - “Da necessidade da natureza divina deve-se seguir uma infinidade de coisas em uma infinidade de maneiras (infinita infinitis modis), isto €, tudo quanto possa cair sob um intelecto infinito”. Chau, M., discurso (24), 1994: 57-127 73 Tschirnaus considera impossfvel deduzir a existéncia de todos os cor- pos e todos os efeitos dos corpos apenas do conceito de extensdo: na Carta 80, invoca a auséncia de figura e movimento na extensado “quando conside- rada absolutamente”; na Carta 82, invoca 0 procedimento dos geémetras, no qual “da definigdo de uma coisa s6 podemos deduzir uma tinica proprie- dade”, sendo necess4rio aproximar a coisa definida de muitas outras para que novas propriedades sejam deduzidas: “Por isso nfo posso ver como, de um atributo considerado com a exclusiio de todos os outros e, por exemplo, da extensao infinita, possa sair a variedade dos corpos. Se acreditais que esta variedade nao pode ser conclufda da consideragao de um s6 atributo, mas antes da de todos os atributos tomados juntamente, eu gostaria de sabé-lo de vés mesmos e, a9 mesmo tempo, como essa dedugdo deve ser concebida” (Espinosa 7). Nao é o momento de discutirmos a dificuldade de Tschirnaus nem a resposta que lhe envia Espinosa. Aqui, nos interessa 0 fato de que a questao houvesse sido formulada, pois nela exprimem-se duas dtividas: a primeira refere-se 4 possibilidade de oferecer um fundamento metafisico a fisica — dedugao, a partir do atributo divino extensao, da variedade dos corpos dota- dos de figura e movimento; a segunda, a possibilidade de que tal fundamento Possa ser a relagdo entre as propriedades do infinito (no caso, as proprieda- des da extensdo infinita em seu género) e os modos como seus efeitos finitos (no caso, os modos corporais). Em fevereiro de 1678, ao receber de Tschirnaus a edigio da Opera Posthuma, Leibniz anotou e comentou a Erica, propos melhorias nas defini- ges e nas demonstragGes e, numa carta a Justel, declarou: “Nela encontro muitos belos pensamentos, conformes aos meus’. No entanto, algum tempo depois, redigiu notas criticas sobre o Livro I, afirmando nao ser Espinosa um bom matematico nem um bom fildésofo e a Justel: “Julgo este livro peri- g0so para os que neles irao aprofundar-se, pois os demais no conseguirado €ntendé-lo”. Entre as varias erfticas, duas nos interessam aqui: aquela 74 Chaui, M., discurso (24), 1994: 57-127 enderegada contra -Proposigao 14 — “Afora Deus; nado pode dar-se nem ser concebida nenhuma substincia” — e aquela enderecada a uma passagem do escélio da Proposig4o. 17, quando Espinosa retoma o que demonstrara na Proposicdo 16 —“Da suma poténcia de Deus, ou, por outras palavras, da sua natureza infinita, dimana necessariamente, ou resulta sempre com a mesma necessidade, uma infinidade de coisas numa infinidade de maneiras, isto 6, tudo; do mesmo modo que da natureza do triangulo resulta de toda a eterni- dade e para a eternidade que seus trés Angulos sao iguais a dois retos”. No caso da Proposigao 14, Leibniz contesta a unicidade da substancia (depois de haver criticado, em notas precedentes, 0 conceito espinosano de substAncia como confuso e impreciso, e “muitas outras coisas inadmissf- veis”). Todavia, a nota prossegue com a seguinte observacao: “Ainda nao me parece certo que os corpos sejam substancias. Mas 0 caso é outro no que respeita aos espiritos”. Temos, aqui, a indicagdo do que serd demonstrado e posto como acabamento monumental da filosofia leibniziana: a Monadologia e, portanto, a natureza puramente fenomenal dos corpos (0 agregado exten- so tem fundamento real, mas nado € real em si mesmo, isto 6, nao € substan- cia) e a natureza substancial das mOnadas espirituai: Numa carta a Arnauld, Leibniz é mais explicito do que nas anotagdes sobre a Erica. O erro de Espinosa est4é em deduzir de Deus a natureza do préprio mundo, fazendo com que as coisas criadas desaparegam enquanto meras modificagdes da substancia inica. Substincia, escreve Leibniz, é 0 que age por ter em si mesmo o principio interno de sua agio. Os modos, sendo in alio, nio sio apenas causados por outro, mas existem por outro & agem por meio deste outro. Por conseguinte, esto despojados de atividade, sendo passivos e inertes e, portanto, inexistentes. E sintomatico que a erftica da unicidade substancial em favor da plura- lidade das substancias coincida com a observagiio sobre a dtivida (em 1678) quanto a substancialidade corporal, dirimida 4 medida que a metafisica monddica vai-se constituindo. Ora, é a fenomenalidade dos corpos que ex- plica a carta de Leibniz a Bourget (em: 1714), respondendo & acusagio de que a Monadologia seria um espinosismo: Chauf, M., discurso (24), 1994; 57-127 75 “Da maneira como defino percep¢io e apetite, € preciso que todas a monadas assim sejam dotadas, pois percepgdo é a representacio da multidao no simples e 0 apetite, tendéncia de uma percep¢do a outra. Estas duas coisas estéo em todas as ménadas, pois do contrério uma m6nada nio teria nenhuma relacdo com 0 resto das coisas. Nao vejo como disso podeis retirar algum espinosismo; pelo contrario, € justa- mente por essas ménadas que 0 espinosismo & destrufdo. Pois hé tantas substncias verdadeiras e, por assim dizer, espelhos vivos do universo sempre subsistentes, ou um universo concentrado, quantas m6nadas houver; enquanto, segundo Espinosa, hé apenas uma tnica substincia. Ele teria razio se ndo houvesse mOnadas, e entao tudo, fora de Deus, seria passageiro e se evaporaria em simples acidentes ou modificagdes, pois nao haveria a base das substancias nas coisas, base que consiste na existéncia das ménadas” (Leibniz 16, p. 720). O ponto que aqui nos interessa € a conclusao leibniziana: se nao hou- vesse ménadas e se houvesse apenas uma substancia, entao tudo seria mera- mente fenoménico, 4 maneira dos corpos leibnizianos; tudo “seria passageiro e€ se evaporaria em acidentes ou modificagdes”, pois modo, em linguagem leibniziana, significa acidente, afecg¢ao passageira (o corpo € mens momentanea). Se a pluralidade substancial é a garantia da organicidade e perseveragéo do mundo, infere-se que, em Espinosa, ndo hé fundamento para isto e, portanto, est4 preparada.a tese sobre o “acosmismo espinosista”. Quanto A critica ao escélio da Proposigao 17, no exato momento em que nele se repete o argumento da Proposigdo 16 (as coisas resultam da natureza de Deus com a mesma necessidade eterna em que as propriedades resultam da natureza do tridngulo), vemos nela recolocada a questdo de Tschirnaus, mas, agora, com resposta do pr6éprio Leibniz. Este enderega duas crfticas a Espinosa: a primeira concerne a identificagdo entre a natureza de Deus e a do triangulo, pois, como j4 observara Tschirnaus, da esséncia do tridngulo nfo podem ser deduzidas as esséncias de outras coisas, mas ape- nas as simples propriedades do préprio triangulo (em termos leibnizianos, uma dedugdo geométrica nao pode ser metaffsica); a segunda concerne a 76 Chauf, M., diseurso (24), 1994: 57-127 essa mesma identificagado, mas agora criticada porque 0 triangulo nao pensa, ndo se pensa e nao € concebido por si mesmo, exatamente 0 contrario de Deus, que pensa, se pensa e é concebido por si mesmo. Deus é sujeito dota- do de intelecto e vontade, que escolhe o melhor (qualitativamente) e 0 mAxi- mo (quantitativamente). Do Deus de Espinosa — que noutro local Leibniz critica porque “nao é como 0 nosso Deus, nfo possui intelecto nem vonta- de” — nao pode surgir um mundo nem a Natureza. Deus se conhece com necessidade, mas cria por escolha livre dos possfveis, pois hd diferenga entre esséncias ¢ existéncias (Deus é inclinado por uma razdo determinante a es- colher 0 que cria, mas nao € determinado por necessidade alguma). Ao iden- tificar Deus e 0 tridngulo, Espinosa destri tanto a diferenga entre inclinagdo e necessidade, quanto a diferenca entre ess@ncia e existéncia, nao tendo como passar da necessidade geométrica das esséncias & possibilidade das criaturas existentes. Em suma, Espinosa erra ao identificar a relago 16gico-matematica de implicagao (de x resulta como conseqiiéncia y), valida para as idealidades, e a relagao ontoldgica de causalidade (x é causa do efeito y), valida para as realidades ou existéncias. Mas nao s6 isto. Comentando a Proposi¢ao 28 do Livro I, na qual Espinosa demonstra que a existéncia determinada das coisas singulares finitas na duragdo nao pode resultar direta e imediatamente da esséncia de Deus, mas resulta de séries causais infinitas entre coisas finitas, Leibniz afirma que, desta maneira, ndo s6 as coisas deixam de ser determina- das e causadas por Deus, como ainda deixam de resultar da natureza divina, de sorte que Espinosa também erra por nio compreender a operagio da causalidade de Deus. Ora, para que a Monadologia pudesse ter sido acusada de “espinosis- mo”, para que Leibniz julgasse necess4rio explicitar o significado da acusa- ¢4o a fim de melhor refutd-la e que 0 contetido dela fosse a imputagio a Leibniz da inexist@ncia (ou a existéncia to infundada quanto a esséncia) das coisas singulares, tudo isto atesta que, em 1714, a imagem pante(sta acosmista jA se tornara um instrumento de identificagao da filosofia de Espinosa. Vinda de diferentes procedéncias — do biégrafo Colerus, das acusa- s6es de Limborch, Kortholt e Mansvelt, das criticas de Oldenburg e Henry More, das suspeitas de Velthuysen e das dificuldades de Tschirnaus, entre Chaui, M., discurso (24), 1994: 57-127 a outras —, a imagem serd desenhada com contérno nitido por Bayle que a obtém decalcando-a de uma outra que permanecera na sombra: a imagem (positiva e sublime) elaborada por Wachter no Elucidarius Cabalisticus (Wachtero 27, pp. 39-78). - No capitulo VI do Elucidarius, “De consensu Cabalae et Spinozae”, Wachter desenvolve 25 pontos de coincidéncia entre a filosofia de Espinosa ea “verdadeira Cabala” dos antigos sdbios hebraicos. As proposigées prin- cipais da Opera Posthuma sao examinadas, e sua conformidade com 0 espi- rito da Cabala estabelecida a partir da definigio espinosana de Deus — “O ente absolutamente infinito, isto é, uma susbtAncia que consta de infinitos atributos, cada um dos quais exprime uma esséncia eterna e infinita”-, que, segundo Wachter, é a definigdo especulativa do En Soph, o Uno inefavel de onde emana 0 universo. Mais do que isto. Wachter analisa a expressio usada por Espinosa — “Os que seguem a ordem correta para filosofar” -, identifi- cando-a como 0 comego a Deo, que é, para a Cabala, 0 tinico e verdadeiro comego do ser e do pensar. Seré a partir dessa observagdo de Wachter que Leibniz repetiré a formula célebre, atribufda a Tschirnaus: “O vulgo comega a creaturis, Cartesius comecga a mente, ele comega a Deo” (Vulgus Philosophicum incipere a creaturis, Cartesium incepisse a mente, se incipere a Deo). Dentre as varias coincidéncias entre o sistema espinosano e a Cabala, apontadas por Wachter, mencionaremos apenas aquelas que servirio aos criticos para o desenho do acosmismo ateu, isto é, pantefsta: Espinosa, se- guindo a Cabala, nega que a matéria tenha a realidade de uma massa divisf- vel, finita e local (a extens4o cartesiana) e afirmaa espiritualidade do material, identificando matéria e espfrito (extensdo espiritual ou puramente inteligi- vel); imanéncia de Deus ao mundo por meio do intelecto infinito imediato, primeira emanagdo divina, correspondendo exatamente ao que a tradigao cabalista homeava como Adio Kadmon e Messias ou Cristo, a partir da tra- dicdo gnéstica, neoplaténica e joanina da pré-existéncia do Logos A criacao do mundo por Deus, isto €, 0 Verbo como Filho Unigénito, Homem Celeste, Pastor, Mediador, etc.; diferenga de esséncia entre Deus e 0 mundo, pois a imanéncia nao identifica Natura Naturans e Natura Naturata porque Deus, absoluto inefavel (substancia absolutamente infinita), En Soph, € poténcia 78 Chaui, M., discurso (24), 1994: 37-127 absoluta que engendra o mundo por emanagao sem coincidir com ele, embo- ra dele nio se separe; o mundo como ser vivo ou animado — “Todas as coisas so animadas em graus diversos”, lemos no segundo livro da Etica —, Deus dando impacto A matéria gragas 4 Alma do Mundo, isto €, ao intelecto infi- nito mediato. Wachter faz corresponder os atributos espinosanos aos sephirots da Arvore césmica cabalfstica, admitindo, porém, uma dificuldade para estabe- lecer a perfeita coincidéncia entre a Etica e a Cabala: esta fala em dez sephirots, e a obra de Espinosa, em dois atributos conhecidos por nds e em infinitos atributos infinitos em seu género, mas cuja esséncia desconhece- mos. De toda maneira, escreve Wachter, € possfvel reencontrar a Arvore Sefirética através das emanagoes principais do Deus espinosano: atributo pensamento, atributo extensao, intelecto infinito imediato (Logos, Filho de Deus), intelecto infinito mediato (Alma do Mundo), movimento € repouso (modo infinito imediato da extensio), facies totius universi (modo infinito mediato da extensio espiritual), séries causais infinitas de almas finitas e séries causais infinitas de corpos finitos. O intérprete conclui que a diferenga numérica entre os sephirots ¢ as realidades espinosanas € irrelevante, pois 0 que importa é a esséncia infinita dos sephirots ¢ dos atributos, ¢ que expri- mam a esséncia de Deus. Muito da linguagem cabalfstica, escreve Wachter, se deve a intiteis e confusas imaginacGes dos antigos que Espinosa purifi- cou, gragas 4 demonstragdo matemitica, tinica adequada para a verdadeira exposicio cabalistica. O terceiro modo de conhecimento —a scientia intuiti- ya -, chamada de “amor intelectual de Deus”, no Livro V, € aproximada por Espinosa do que “os livros santos chamam de gléria”. Esta, kabad em hebraico, é 0 sinal da Presenga Divina, a Shekinah, de que falam os verda- deiros cabalistas”. Assim, se nao hé como determinar o instante preciso em que a imagem pantefsta e mistica de Espinosa foi formulada, podemos, em contrapartida, conhecer 0 momento em que se consolida e constitui uma verdadeira tradi- cdo interpretativa que ndo cessaré de ser retomada, vindo a alimentar a ma- neira como romAnticos e idealistas alemaes lero Espinosa e, a partir deles, instaurando um modelo de leitura consagrado até nossos dias: o verbete “Spinoza”, do Dictionnaire de Pierre Bayle, que inaugura a figura de Espi- Chauf, M., discurso (24), 1994: 57-127 79 nosa como “ateu de sistema’. Nao por acaso, Leibniz mencionaré 0 verbete do Dictionnaire, Jacobi citaré Bayle, Wienpahl considera Bayle como 0 pri- meiro a reconhecer o parentesco do espinosismo com o budismo (“a seita chinesa de Foe Kiao”, lemos no Dictionnaire), e, por seu turno, Kolakowski iniciard seu ensaio partindo da critica bayliana ao espinosismo. III. O Verbete “Spinoza” O verbete “Spinoza” inaugura a imagem de Espinosa como “ateu de sistema”. Face a longa tradi¢do atéia, escreve Bayle, a posi¢do espinosista é inovadora porque, agora, ndo mais estamos diante de um conjunto disperso e fragmentado de opinides, mas perante “um corpo de doutrina ligado ¢ tecido segundo a maneira dos geémetras”’. Eis por que é tao dificil refuté-lo, e muitos dos que o tentaram terminaram seduzidos pela “maquina infernal” do mos geometricus, sucumbindo a obra ou incapazes de atacd-la nos pon- tos vulnerdveis. Todavia, prossegue Bayle, “son sentiment n'est pas nouveau”. Por inserir-se na longa tradic&o atéia, o espinosismo, diz Bayle, nao faz sendo transformar em doutrina matematicamente demonstrada uma “seita conhe- cida dos chineses”, opinides de “certos maometanos conhecidos como ho- mens da verdade”, a “Cabala dos sufis”, idéias de alguns “letrados persas”, certos “dogmas conhecidos dos hindus”, o hermetismo dos egipcios, tam- bém defendido por Fludd, mas, felizmente, refutado por Gassendi e a posi- cio dos saduceus maometanos, para os quais “tudo o que se vé, tudo o que esté no mundo, tudo o que foi criado é Deus”. O atefsmo espinosano é um orientalismo transcrito em linguagem cartesiana, e bem vira Leibniz que o germe ateu j4 se encontrava potencialmente em Descartes. Quais sido as idéi- as € opinides orientais? Com variantes, resumem-se a trés afirmagées: iden- tidade entre Deus e 0 mundo, irrealidade dos individuos, meras aparéncias na superficie da matéria, e recusa da imortalidade individual da alma, com a conseqiiente recusa de uma Providéncia divina que julga os homens segundo 80 Chauf, M., diseurso (24), 1994: $7-127 o bem e o mal definidos por Sua lei. A este orientalismo devem-se acrescen- tara Cabala judaica, o averrofsmo maometano, a lista dos hereges cristéos, adeptos da idéia de uma Alma do Mundo, isto é, os neoplaténicos de vdrias tonalidades e, evidentemente, Abelardo, “acusado de haver dito que todas as coisas estavam em Deus e que Deus era todas as coisas”. O que é 0 orientalismo? Bayle o apresenta sob duas formas, aquelas que, em sua opinido, encontram-se em Espinosa: a doutrina “dos pandetas hindus” ea “teologia da seita chinesa de Foe Kiao”, descrita pelos missiond- tios jesuftas. A doutrina hindu afirma a existéncia de um tinico Ser Soberano espiri- tual de cuja substancia sao produzidas ou arrancadas as coisas singulares espirituais, de sorte que nao hé no mundo coisas singulares corp6reas reais, mas simples aparéncias materiais ilusérias® — “O mundo é uma espécie de somho ou pura ilusio”. Duas imagens desenham a divindade: Deus € “como a aranha que produz teiaa partir de seu préprio umbigo””, ou é “como um oceano imenso no qual se movem frasquinhos cheios d’4gua e que, onde quer que estejam e para onde quer que se dirijam, esto sempre mergulhados nesse oceano”™, A doutrina de Foe Kiao “ensina 0 quietismo, porque todos os que bus- cam a salvagio devem absorver-se em profundas meditagGes, sem usar 0 intelecto e em estado de total insensibilidade”, procedimento que permite “submergir no repouso e na inagao do primeiro princ{pio”™. Dessas duas doutrinas antigas, como das cinzas, nasce 0 espinosismo. Unidade substancial, irrealidade individual, imanéncia de Deus ao mundo, auséncia de imortalidade individual e animismo universal constituem 0 atefs- mo espinosano, uma vez que ateu nao € aquele que nao cré em Deus, mas quem ndo cré no nosso Deus, transcendente, pessoal, dotado de intelecto e vontade, providencial, separado das criaturas ou substancias finitas indivi- dualizadas. O que é 0 espinosismo? Responde Bayle: “A mais monstruosa ..., ..~Se que se possa imaginar, a mais absurda ea mais diametralmente oposta as nogdes mais evidentes de nosso espfrito... Supde que hd apenas uma substincia na Natureza e que Chaui, M., discurso (24), 1994: 57-127 81 esta substéncia tinica é dotada de uma infinidade de atributos e, entre outros, a extensdo e o pensamento, Na seqiiéncia disto, assegura que todos os corpos que se encontram no universo sao modificacées des- ta substancia enquanto extensa e que, por exemplo, as almas dos homens sao modificagGes desta substancia enquanto pensamento. De sorte que Deus, ser necessdrio e infinitamente perfeito, é bem a causa de todas as coisas que existem, mas nao difere delas. Nao h4 sendo um ser e uma natureza e esta natureza produz nela mesma e por uma agao imanente tudo o que ele chama de criaturas. Deus é, conjuntamente, agente e paciente, causa eficiente e sujeito e nada produz que nao seja Sua modificagao. Eis af uma hipétese que ultra- passa toda extravagancia que se possa proferir. O que os poetas pa- gos ousaram cantar de mais infame contra Jdpiter ¢ contra Vénus nao chega perto da idéia horrivel que Espinosa nos d4 de Deus, pois Os poetas, pelo menos, nao atribufam aos deuses todos os crimes que se cometem nem todas as fraquezas do mundo, mas, segundo Espi- hosa, no ha outro agente nem outro paciente sendo Deus com rela- ¢ao a tudo o que chamamos de mal de pena e mal de culpa, mal fisico e mal moral” (Bayle 1, p. 618). “Uma hip6tese que ultrapassa toda extravagdncia que se possa imagi- nar.” Extravagancia, na linguagem do século XVII, significa loucura. No Caso, trata-se do que Robert Burton, em Anatomy of Melancholy, designa como “melancolia religiosa”, doenga da alma pr6pria dos epicuristas, here- 8es, libertinos e ateus, isto €, de todos aqueles que “imaginam toda a reali- dade explicdvel apenas por causas naturais”. Espinosa, ultrapassando todas as extravagincias, vai além do simples naturalismo, pois a unicidade subs- tancial e sua conseqiiéncia, isto é, a identidade entre Deus e Natureza des- troem 0 ser divino e desordenam os seres naturais. Atefsmo sistemdtico é Msanidade absoluta. . i Além de ser inaceitdével a existéncia de uma tinica substancia, Impossibilitando a multiplicidade real dos seres individuais, também & Maceitdvel que a extensfo (que Bayle chama de “matéria”) possa ser um 82 Chaut, M., discurso (24), 1994: 57-127 atributo da substancia divina, pois a divisibilidade.e a corruptibilidade, proprias da matéria, so incompatfveis com a esséncia una ¢ incorruptivel de Deus. Mais inaceit4vel ainda é que tal atributo possa modificar-se em corpos finitos ou “pedagos materiais”. Também ¢ inadmissfvel que as almas dos homens sejam modificagdes do atributo pensamento ou, como escreve Bayle, “que todos os sentimentos de todos os homens estejam numa s6 cabega”, Expresso retomada por Leibniz ao escrever que 0 Deus de Espinosa “pensa, cré e quer uma coisa em mim, mas pensa, cré e quer exatamente 0 oposto em um outro”. Do ponto de vista fisico, 0 espinosismo € um “prodigioso absurdo”, porque ou a extensio se divide e se compée tornando-se, portanto, corrup- tivel, ou teria que ser simples ¢-indivisfvel, mas entdéo nao poderia haver corpos, pois a existéncia de corpos supe divisao e composigao da matéria e cada e todo corpo é composto e divisfvel. No primeiro caso, ou a corruptibilidade invade o ser de Deus, ou € preciso admitir que hd duas subs- tancias extensas, a divina e a material, o que ¢ contrério A hip6tese espinosista da unicidade substancial. No segundo caso, 0 mundo ffsico dos corpos tor- na-se impossivel ou porque a substincia extensa é matemética (imaterial, simples, sem dimensées) ¢ nao poderia produzir a materialidade composta, ou porque, para admitir a existéncia dos corpos, seria preciso admitir uma distingao real entre a extenso atributo-divino ea extensdo substancia-maté- tia fisica.Ora, visto que os espinosistas afirmam que 0 mundo fisico € real, que h4 uma tnica substincia, deve-se concluir que Deus é materialidade extensa, composta, divisfvel e corruptivel. Do ponto de vista moral, o espinosismo é “uma abominagdo execravel”, porque, antes de mais nada, Deus teria perdido a simplicidade e 4 imutabilidade, composto por um nimero infinito de partes, reduzido ao que hd de mais vil, a matéria, “teatro de todas as mudangas, campo de batalha de causas contrérias, sujeito de todas as corrup¢des e geragdes”. Absurdos “mais monstruosos”, porém, tornam-se patentes quando Deus € considerado “o sujeito de todas modificag6es do pensamento”, pois, agora, Ele seriaagente e paciente de todos os pensamentos ¢ sentimentos humanos, de todas as nossas impurezas e imundicies, do mal fisico e do mal moral, abismo de perversio. Deus seria oposto e contrario a si mesmo, pois sentiria, ao mes Chaui, M., discurso (24), 1994: 57-127 83 mo tempo, amor e édio, alegria e tristeza, num mesmo momento afirmaria e negaria as mesmas coisas. No mundo espinosano, um alem&o matando um turco deve ser traduzido por Deus matando Deus: “No sistema de Espinosa, exprimem-se mal e falsamente os que dis- serem que os alemies mataram dez mil turcos, a menos que enten- dam por isso que Deus modificado em alemaes matou Deus modificado em dez mil turcos ... Deus odeia-se a si mesmo, pede a si mesmo gragas, e as recusa a si mesmo; persegue-se a si mesmo, mata- se, come-se, calunia-se, envia-se ao cadafalso” (Bayle 1, p. 619). Por que ninguém conseguiu refutar Espinosa? Responde Bayle: por- que ninguém examinou o centro vulnerdvel de sua doutrina, a unidade e unicidade da substincia. As Proposigées 1,5 (“Na natureza nao podem dar- se duas ou mais substancias de mesma propriedade ou de mesmo atributo”), 1,14 (‘‘Afora Deus, nao pode ser dada nem concebida nenhuma substancia”) e 1,15 (“Tudo o que existe, existe em Deus e sem Deus nada pode existir nem ser concebido”’) sao “o calcanhar de Aquiles de Espinosa”. Bastard refuta- las rigorosamente para que todo 0 edificio do sistema venha abaixo, A refu- tagdo bayliana concentra-se em dois pontos principais: na Proposi¢ao 1,5 (Bayle procura mostrar que “é impossfvel que o universo seja uma substan- Cia tinica”) e nas conseqiiéncias do atributo extensdo (Bayle procura mos- trar que a extensdo necessariamente pdssui partes reais e realmente distintas, de sorte que cada uma delas € substancia). No centro da discussdo encon- tram-se, portanto, os conceitos espinosanos de substancia e modo, que, diz Bayle, foram definidos na “doutrina geral dos fildsofos” — a escolastica —e na “doutrina dos novos fildsofos” — Descartes, Hobbes e Gassendi. A doutrina geral dos filésofos afirma que o ser contém duas espécies: 4 substancia — 0 ser que subsiste por si (es per se subsistens) —e 0 acidente > que subsiste em outro (ens in alio). Subsistir em si e por si, prossegue ayle, significa “nao depender de um sujeito de iner€ncia”; subsistir em ou- tro € “depender de seu sujeito de ineréncia”, sem o qual 0 acidente nao pode Subsistir, O sujeito de ineréncia é independente, o acidente, dependente. Como 84 Chaui, M., discurso (24), 1994: 57-127 a independéncia de um sujeito de ineréncia convéma matéria, aos anjos ¢ 4 alma dos homens, admitem-se dois tipos de substAncia: a incriada, Deus, e as criadas. Disputas escoldsticas “41a Romaine” em torno da Eucaristia trans- tornaram a concep¢do aristotélica, pois os romanos sao obrigados a admitir 0 mistério da transubstancia¢ao, levando alguns a admitir dois tipos de aci- dentes: aqueles que podem subsistir sem 0 seu sujeito de ineréncia, distin- guindo-se realmente dele (como os acidentes do p&o e do vinho que permanecem quando seu sujeito desapareceu na transubstanciagdo), e aque- les que sé podem subsistir na presenga de seu sujeito de ineréncia. A este segundo tipo foi dado o nome de modo para indicar uma maneira de ser insepardvel do sujeito e sem distingao real entre ambos. Os novos filésofos, porém, negam a distingio real e a separabilidade entre substancia e acidente e, para marcar sua posi¢4o, chamam os acidentes de modos, modalidades e modificagdes, afirmando que h4 apenas substancias e modos. Modos nao sdo partes de um sujeito ou de uma substincia, mas maneiras de ser que se relacionam com a substancia, como a figura e o movi- mento se relacionam com a matéria, o amor, o sofrimento, a afirmagio e a negagao se relacionam com a alma. Modo é 0 que nao pode existir sem seu Sujeito, mas este pode existir sem aquele e pode perder modos ou acidentes sem perder sua natureza. Examinemos, escreve Bayle, se Espinosa é fiel aos escoldsticos, que distinguem perfeitamente género, espécie ¢ individuo. Deste ponto de vista, a “maquina espinosista” pode ser paralisada num s6 golpe, bastando escre- ver, no lugar da Proposigio I,5: “Nao podem dar-se na Natureza substAncias de mesmo niimero ou atributo, concedo; nao podem dar-se na Natureza v4- rias substancias de mesma espécie ou atributos, nego”. Espinosa ndo pode- ria recusar essa distingdo, pois ele a faz no que respeita aos modos. Todavia, Bayle sabe que Espinosa no segue os escolasticos e nio opera com a iden- tidade especifica nem com a identidade numérica, os individuos sendo par- tes de um todo, e nao espécies de um género. Espinosa é um cartesiano: Assim sendo, espera-se que use os concei- tos de substancia e modo a maneira cartesiana. Ora, prossegue Bayle, tendo definido a substancia como o que existe por si mesmo, independentemente de toda.causa eficiente, de toda causa material e de todo sujeito de ineréncia, Chavi, M., discurso (24), 1994: 57-127 85 evidentemente, para Espinosa matéria e almas humanas nao poderiam ser substancias em sentido estrito. Por outro lado, como afirma a existéncia de uma tinica substancia (Erica, I, Proposigdes 5 e 14), nega a criagao do mun- do (Etica, I, Proposig4o 15), afirma a imanéncia de Deus ao mundo (Erica, I, Proposi¢do 18), para ele ndo poderé haver o que os cartesianos chamam de substancias criadas ou substancias em sentido lato. Conseqiientemente, conclui Bayle, sob as designagdes de modo, modalidade e modificagao Es- pinosa designa tanto o que os novos fildsofos chamam de substancias cria- das quanto o que chamam de modos. Um modo caracteriza-se no s6 por no poder existir sem seu sujeito de ineréncia, mas também por nao se distinguir dele in fieri, in esse e in operare, isto €, depende de seu sujeito quanto & produgao, ao sere a opera- ¢4o. Em outras palavras, os modos nao se distinguem realmente de Deus, nig existem fora Dele nem subsistem sem Ele, nao atuam fora Dele, pois fora de Deus nada hd. Deus é 0 sujeito de ineréncia dos modos ou das modifcacdes. Visto que Deus é simples e sem partes, cada modo ou modifi- Cag ao nao poderd ser uma parte divina, mas cada um deles € Deus por intei- to e inteiramente Deus: ' “O movimento dos corpos e os pensamentos dos homens estiio em Deus como os acidentes dos peripatéticos estZo na substancia cria- da; sio entidades inerentes ao seu sujeito, que nado sao compostas dele nem fazem parte dele. Com a diferenga de que os acidentes dos peripatéticos sio realmente distintos de seu sujeito de ineréncia, en- quanto Espinosa nao pode dizer 0 mesmo das modificagées da subs- tancia divina; pois se fossem distintas dela sem serem compostas dela, Seriam feitas de nada” (Bayle 1, p. 618). ___ Osistema espinosista € construfdo sobre duas pilastras que, bem exa- Minadas, revelam-se “sofisminhas que qualquer aluno que tenha estudado L6gica Menor owas cinco vozes de Porfirio” reconheceré: a unicidade subs- tancial, o que significa admitir a contradigdo como prinefpio da realidade (um Deus espiritual, extenso, finito, infinito, agente, paciente);ea distingdo 86 Chauf, M., diseurso (24), 1994: $7-127 modal, o que significa abolir a identidade como condigdo da naturezae exis- téncia dos indivfduos. O melhor caminho para provar tais sofismas € exami- nar, como Bayle julga haver feito, as conseqiiéncias extravagantes do atributo extensdo e as abominagées resultantes do atributo pensamento. Dentre essas conseqiiéncias, Bayle se alongaa respeito das mudangas a que esto sujeitas as coisas naturais — corpos ¢ almas. Os espinosistas afirmam que Deus é imutdvel por ser uma substincia infinita e necessdria. No entanto, negam que Deus seja causa transitiva, afirmando ser Ele causa imanente de todas as coisas e que estas sio Seus modos. Neste caso, hd duas € apenas duas alter- nativas: ou as mudangas que vemos nas coisas corporais e nas almas dos homens sao ilusdes e 0 mundo nao existe, ou sao reais e Deus sofre mudan- ¢as. Ora, os espinosistas nao aceitam tais conseqiiéncias légicas, 0 que pro- va que nfo sabem raciocinar e que o sistema de Espinosa é um tecido de contradigées. Eis por qué: “Os que quiserem examinar as objegGes que propus perceberio facil- mente que tomei a palavra modalidade no sentido que deve ter e que as conseqiiéncias que tirei, assim como 0s prinefpios que empreguei para combater tais conseqiiéncias esto de acordo com as regras cor- retas do raciocfnio... varias pessoas me asseguraram que sua doutri- na, considerada mesmo independentemente dos interesses da reli gio, pareceu bem desprezfvel aos maiores matematicos de nosso tempo (entre outros, os senhores Huygens, Leibniz, Newton, Bernouilli, Fatio)” (Bayle 1, p. 630). Bayle vai mais longe. Por mais que fagam, os espinosistas nio podem impedir a verdade do principio que declara que “dois termos contraditérios nio podem convir ao mesmo sujeito ao mesmo tempo”. Poderiam, entao, aproveitar-se da doutrina da Transubstanciagdo e das sutilezas dos escolasticos espanhdis para provar que uma coisa podé ser e nao ser 0 que ela 6 Isto, porém, os langaria no mistério da Trindade, com 0 qual poderiam dizer que as modificagdes da substincia divina sdo personalidades que, em- Chauf, M., diseurso (24), 1994: 57-127 87 bora identificadas com a mesma substancia, possuem cada qual um princfpio determinado, particular e distinto das outras. Nao podem fazé-lo, porém, porque, como dizem os préprios escoldsticos, ninguém pode pretender re- ceber duas proposigées contraditérias sem arruinar a filosofia, pretendendo transpor para as coisas naturais 0 que nos é ensinado pela revelagio sobre a natureza de Deus, “pois seria abrir 0 caminho para provar que nao ha dife- renga real entre as criaturas’, Demonstrar que a unicidade e a imanéncia substanciais sao contradité- rias e que 0 espinosismo faz dessa contradigao realidade, impossibilitando a idéia mais clara e distinta que possui o espirito humano, a de identidade, gragas 4 qual estabelecemos diferengas, semelhangas, ordem e diversidade entre os seres da natureza e fazemos a distingdo entre 0 natural e 0 sobrena- tural, é demonstrar que Espinosa, matem4tico medfocre e metafisico incon- seqiiente, estd refutado. A critica bayliana delineia, a contrapelo, trés exigéncias para a existéncia das coisas individuais. A primeira delas ¢, evidentemente, a pluralidade substancial (uma vez que para Bayle a distingio numérica é considerada disting{o real) e a identificagdo entre substancia e sujeito de ineréncia de predicados, A segunda é a imortalidade da alma, que exige no s6 a pluralidade substancial, a distingao real entre Deus ¢ a almae entre esta € 0 corpo, mas ainda que a alma nao seja definida, 4 maneira espinosana, como idea corporis nem idea ideae, porque essas nogdes instauram 0 mortalismo e a inexisténcia de um princfpio puramente espiritual de individuagao, A terceira exigéncia deriva das anteriores, isto é, da existéncia de um prinefpio metafisico para a diferenga entre bem ¢ mal, virtude e vicio de sorte que se garanta que a individualidade humana seja identificada com 0 sujeito da vontade. Visto que a filosofia de Espinosa nio atende a nenhuma dessas exigén- Cias, comprova-se a impossibilidade do indivfduo como ente real, 0 que, segundo Bayle, decorre da definigdo das coisas singulares como modos numa filosofia que afirma haver apenas duas maneiras de existir — como substancia © como modo — e que ha uma tinica substancia, da qual todo o restante é apenas modificagdo. 88 Chaui, discurso (24), 1994: 57-127 IV, Substancia e Modo O descontentamento de Bayle com as idéias espinosanas de substancia e modo reaparecem em outros contemporaneos, como Henry More e Leibniz. O primeiro escreve (Morus 20) uma Confutatio Atheismi contra “as duas colunas do espinosismo”: que a existéncia necessdria pertenga a substancia (Etica I, 7) e que haja uma tinica subst4ncia no mundo (Etica 1, 14). Contra a primeira, alega haver substancias perecfveis, como a matéria, ¢ substancias cuja existéncia € apenas possfvel, como os anjos, os espiritos e as almas humanas. Contra a segunda, afirma que Espinosa torna impossivel a existén- cia dos individuos. Para nosso assunto, interessa um dos argumentos de More contra a unicidade substancial. Criticando a afirmagao de Espinosa de que duas substdncias que tenham atributos diversos nada ttm em comum entre si, More toma o triangulo e o cfrculo, que, escreve ele, tm em comum 0 predicado de “serem ambos figuras”. Da mesma maneira, duas substancias diferentes tém em comum os predicados: em si, por si e ndo ser modo. Em suma, tém em comum seja o género (figuras), seja a espécie (em si, por si). Leibniz anota duros comentarios 4 Erica, particularmente ao Livro I. Com relagio 4 Definig&o 2, escreve: 0 que é ser limitado por outro? Uma coisa (pensamento ou corpo) limita outra quando & maior do que ela? O que hd de ser um pensamento maior do que outro? Quanto 4 Definigao 3®, 0 comentario é mais 4spero: o que é ser em si? Qual a relagio entre ser em sie ser por si: € conjuntiva ou disjuntiva? Nao parece demonstravel que uma substancia seja sempre em si e por si, pois “hd coisas que sao em si, mas podem nao ser concebidas por si”. Além disso, prossegue, hd contradigao entre a Definigdo 3 e a Definigdo 4, pois se a substancia € aquilo cujo conceito ndo precisa do conceito de outra coisa para ser concebido e se 0 atributo é 0 que o entendimento percebe como constituindo a esséncia da substancia, esta precisa do conceito de outra coisa, a menos que se demons- tre que 0 atributo ndo é uma outra coisa. O que € 0 atributo? “Todo predica- do recfproco ou todo predicado essencial, recfproco ou nao, ou todo predicado essencial primeiro ou indemonstravel da substancia?” Leibniz nao Chaui, M., diseurso (24), 1994; 57-127 89 tem objegdes 4 Definicdo 5 e julga que com ela talvez seja possfvel escla- recer 0 conceito de atributo, que “é bem o que esté numa substancia, embora concebido por si”. As erfticas mais duras estdo reservadas & definigio de Deus". Ao colocar um “isto é” no centro da defini¢do, Espinosa indica que oferece duas definigGes de Deus sem demonstrar que sejam equivalentes, isto €, substitufveis reciprocamente, pois, para tanto, precisaria demonstrar que hé na Natureza varios atributos ou predicados concebidos por si e com- pativeis entre si, Além disso, a definigdo possui um defeito gravfssimo, por- que, mesmo que seja verdadeira, seu enunciado é defeituoso, na medida em que deixa pairar dtividas quanto a possibilidade da coisa coisa definida: em primeiro lugar, porque se pode duvidar da compatibilidade dos atributos e admitir uma contradigo entre eles”); em segundo lugar, porque se pode duvidar que uma esséncia simples seja expressa por varios atributos diferen- tes, uma vez que a pluralidade de atributos é a marca da esséncia composta. Sabemos, pelo Discours de Métaphysique, que a definigdo que permite di- vida sobre a possibilidade do definido é, para Leibniz, uma simples definigio nominal, contraposta por ele a definigao real causal, que, além de garantir a Possibilidade a priori do definido, “contém a geragao possfvel da coisa”,e A definigdo real essencial, “que leva a andlise até o limite das nogdes primiti- vas © nao precisa de qualquer suposi¢io que exija prova a priori de sua possi! ‘lidade” (Leibniz 18, pp. 62-63). As criticas as definigdes repercutem sobre os axiomas: 0 primeiro é obscuo, porque ndo foi demonstrado o que é ser em si; 0 sexto & inttil, Pois € 6bvio que uma idéia verdadeira corresponde ao seu objeto"; o ter- Ceiro, 0 quarto eo quinto podem ser demonstrados, nao sendo axiomas, e sim proposigdes. A conseqiiéncia dos defeitos apontados surge nas proposicées cujo hunciado e cuja demonstragdo sio obscuros e equivocados, a comegar pela Proposigio 148, pois, indaga Leibniz, “o que € ser anterior por natureza”? No caso da Proposi¢do 2", 0 contetido sé sera admissivel “se se entender Por atributos os predicados concebidos por si e que sejam postas duas Substdncias, A e B, nas quais 0 predicado c é 0 predicado de A, ed, 0 predi- Cado de B. Mas no, se essas duas substdncias t¢m alguns predicados em Comum e outros diferentes”. 90 Chauf, M., discurso (24), 1994: $7-127 As objegGes de Leibniz concentram-se, portanto, nas expresses in se, per se, anterior por natureza e atributo. Se acompanharmos a hist6ria do conceito de substancia, atributo e acidente, partindo da Metafisica e das Categorias, passando por Boécio, Tomas de Aquino, Ockham — a “doutrina geral dos filésofos” -, chegando 4 “doutrina dos novos filésofos” (nela in- cluindo Locke) e dela rumando para a Critica da Razdo Pura-e para a Cién- cia da Légica, notaremos que, com variantes importantes, 0 centro permanece o-mesmo: a substancia é definida pela relag4o sujeito-predicado. Seja para _estabelecer que a substancia é 0 que nao pode ser predicado de outro (Aris- toteles) até expd-la como efetividade pelo movimento de inversao dialética dos predicados do ¢ no sujeito (Hegel), o conceito de substancia (e, com ela, os de acidente, modo e afecgao) é insepardvel da nogao de hypokeimenon, da ineréncia e da predicagio. E por isso sintomatico que Leibniz nao tenhaa menor hesitagdo em usar indiferenciadamente “atributo” e “predicado” quan- do comenta a Erica e nao tenha reparos a fazer A definigdo do modo". Ora, o que torna Espinosa extravagante (Bayle), entusiasta melancéli- co (More), demonstrador medfocre (Leibniz) ou acosmista eledtico-oriental (Hegel) é exatamente uma concepgao da substancia e do modo que rompe a continuidade da tradigGo metaffsico-teolégica. Se compararmos as defini- gGes e proposigées da Erica com os Principia Philosophiae, as Respostas as Objecdes e 0 Discours de Métaphysique essa diferenga se mostrard com evidéncia. Vinda sobretudo das Categorias (2 a 11), a idéia de substancia encon- tra duas formulagées escolasticas classicas: a de Tomas de Aquino(subsistere in se et per se, et non in alio existere) e a de Suarez (essendi in se et per Se, et sustentandi accidentia). Substncia &€ 0 ente que existe em si ou € subsistente, isto 6, ndio pode ser predicado de nada; e € 0 ente existente por si, diferentemente do acidente que, além de existir num sujeito, sé existe peloe no sujeito. Descartes partird dessas formulages para transform4-las. No Artigo 51 da primeira parte dos Principia, Descartes nao mencio- na o ens in se, mas enfatiza 0 ens per se escrevendo: Chau, M., discurso (24), 1994: 57-127 91 “Quando concebemos a substancia, concebemos somente uma coisa que existe de tal modo, que tem necessidade apenas de si mesma para existir. Pode haver obscuridade tocante a explicagao dessa ex- pressdo ‘ter necessidade apenas de si mesma’ porque, falando pro- priamente, sé ha Deus que seja assim e nao hd uma tinica coisa criada que possa existir um sé momento sem ser sustentada e conservada pela poténcia Dele. Por isso tem-se razdo na escola ao dizer-se que 0 nome substancia nao € unfvoco com relagio a Deus e as criaturas, isto é, no hé nenhuma significagao dessa palavra que concebemos distintamente que convenha a Ele e a elas; mas, entre as coisas cria- das, como algumas sao de tal natureza, que nio podem existir sem outras, para distingui-las daquelas que necessitam apenas do concur- so ordindrio de Deus, nomeamos estas como substincias e aquelas, qualidades ou atributos dessas substancias” (Descartes 6, I, 51). No Artigo 52, porém, a definigdo pela auto-suficiéncia ou pela auto- subsisténcia (per se) € considerada insuficiente quando se trata ndo mais de saber o que é uma substancia, mas de saber se uma substancia existe verda- deiramente: “Quando se trata, porém, de saber se alguma dessas substancias existe verdadeiramente, isto é, se est4 presente no mundo, nao basta dizer que ela existe dessa maneira para que dela nos apercebamos, porque isto ndo nos leva a descobrir nada que excite algum conhecimento particular em nosso pensamento. E preciso, além disso, que ela pos- sua alguns atributos que possamos notar; e nado hd nenhum que nao seja o bastante para isto, porque uma de nossas nogdes comuns é que 0 nada nao pode ter atributos, nem propriedades, nem qualidades. Por isso assim que deparamos com algum, temos razdo de concluir que é 0 atributo de alguma substincia e que esta substncia existe” (id., ibidem, I, 52). 92 Chauf, M., discurso (24), 1994: 57-127 Finalmente, o Artigo 53 introduz a grande inovacdo cartesiana, isto 6, a idéia de atributo principal como co-extensivo a subtancia de que é atribu- to, afastando, portanto, a definig&o por género e diferenga especffica: “Ainda que cada atributo seja suficiente para dar a conhecer a subs- tancia, hé, porém, em cada uma, um que constitui sua natureza e sua esséncia, e do qual todos os outros dependem” (Descartes 6, I, 53). Na Exposigio Geométrica das Respostas as Segundas Objecdes, po- rém, voltamos a reencontrar a definigdo cldssica da substAncia como sujeito de ineréncia de predicados, ainda que estes sejam, como nos Principia, os atributos principais, enquanto os modos sao, aqui como 14, maneiras de ser das substancias criadas e incompatfveis com a substincia divina, uma vez que esta é imutdvel e ndo poderia ter modificagdes: “Toda coisa em que reside imediatamente como em seu sujeito, ou pela qual existe, algo que concebemos, isto 6, qualquer propriedade, qualidade ou atributo, de que temos em nés real idéia, chama-se Subs- tancia. Pois ndo possuimos outra idéia da substancia precisamente tomada, salvo que é uma coisa na qual existe formal, ou eminente- mente, aquilo que concebemos ou aquilo que est4 objetivamente em alguma de nossas idéias, posto que a luz natural nos ensina que 0 nada nao pode ter nenhum atributo real’ (id., 5, p. 235). A substancia “na qual reside imediatamente 0 pensamento” € 0 espfri- to; aquela “que € 0 sujeito imediato da extensao e dos acidentes da exten- 840” chama-se corpo; e, finalmente, “a substdncia que entendemos ser soberanamente perfeita” chama-se Deus. Face 4 escoldstica, Descartes opera trés mudangas profundas: em pri- meiro lugar, desliga a substancia da légica da extensio, isto é, do universal esse, motivo pelo qual, embora mantenha a formula “ens per se subsistens”. Chauf, M., discurso (24), 1994: 57-127 93 nao invoca a diferenca entre per se e per accidens, mas trabalha com a distin- do entre independéncia e dependéncia para existir; em segundo lugar, como conseqiiéncia daquele desligamento, a concepgdo da substAncia nao se faz mais por género e espécie, nem pelo esse como pressuposto de predicados, mas pelo conhecimento de sua esséncia, gragas ao atributo principal, de tal maneira que a relag4o de ineréncia entre sujeito e predicado seja uma relagado analftica entre substancia e atributo, este sendo 0 instrumento para 0 conhe- cimento da esséncia e existéncia daquela (entre a substncia e€ o atributo a distingdo € apenas de razao); em terceiro lugar, e como conseqiiéncia, altera as nogées de in se e per se quando referidas 4 substancia em sentido estrito ou absolute, isto €, a Deus, que serd definido nas Respostas ds Segundas e Quartas Objecdes como causa sui. Em outras palavras, Descartes identificara em Deus a causa formal (ens in se et per se) e a causa eficiente (ens a se) porque a substancia divina é auto-subsistente por ser causa de si. No entanto, como 0 objetor Caterus nao deixara de observar, uma causa eficiente € fisica e anterior ao efeito, de sorte que seria absurdo aplicd-la a Deus, motivo pelo qual Descartes afirma que Ele 6 causa de si em razio da “imensidao de sua esséncia ou de sua poténcia”’, por superabundancia de sua poténcia. No Discours de Métaphysique, Leibniz oferece uma defini¢do nominal € uma definigdo ldgica da substancia que sero seguidas de uma definigio real essencial com a reintrodugdo modificada do conceito medieval de forma substancial: “Quando varios predicados sao atribufdos a um mesmo sujeito e este sujeito nfo é atribuido a nenhum outro, chama-se substancia indivi- dual” (Leibniz 18, p. 43). Oferecida a definig&o nominal cldssica, imediatamente Leibniz a com- pleta com a definigao légica, isto &, substincia & aquilo que d4 a priori a Tazdo de todos os seus predicados, sendo por isso uma nogdo completa do Sujeito: 94 Chaui, M., diseurso (24), 1994: 57-127 “Isto [a definigdo anterior] nfo € o bastante e tal explicagdo € apenas nominal. E preciso considerar o que é ser atribufdo verdadeiramente a um certo sujeito. Toda predicagdo verdadeira tem algum funda- mento na natureza das coisas e quando uma proposigao nao é idénti- ca, isto é, quando o predicado € alguma coisa que nio esta compreendida expressamente no sujeito, é preciso que ele af esteja compreendido virtualmente, e ¢ isto que os filos6fos chamam de in esse, dizendo que 0 predicado estd no sujeito. Assim, é preciso que 0 termo sujeito englobe sempre 0 do predicado, de sorte que aquele que compreendesse perfeitamente a nogao do sujeito, julgaria que o predicado Ihe pertence. Assim sendo, podemos dizer que a natureza de uma substancia individual ou de um ser completo € de ter uma nocao tao cumprida(accomplie), que seja suficiente para compreen- der e para deduzir todos os predicados do sujeito ao qual essa nogdo é atribufda” (Leibniz 18, p. 43). Na medida em que duas substAncias nao diferem apenas solo numero, que uma substancia s6 pode comegar por criagdo ¢ terminar por aniquilagio, que uma substincia é indivisfvel e nao se forma por soma de outras, que toda substancia é espelho de Deus ou de todo o universo e, finalmente, que cada substancia se exprime e exprime todas as outras, a metaffsica nao pode dispensar 0 recurso 4 nogio escoldstica das formas substanciais, ainda que nado devam ser empregadas A maneira escoldstica como espécies e “para exX- plicar os efeitos particulares das coisas”. As formas substanciais sdo indivi- duais e necessdrias para explicar: a atividade das substéncias (so as naturezas ativas das substdncias), a unidade ¢ individualidade das substancias como entia per se, a diferenga entre os corpos, como agregados mortais, ¢ as al- mas como substancias individuais propriamente ditas, ¢, por fim, para expli- car a individualidade do homem como unidade do agregado corporal e da alma. A forma susbtancial garante, portanto, a distingdo real entre as subs- tancias; a completude da defini¢do de uma substncia e as razOes internas de suas atividades e mudangas. Chauf, M., diseurso (24), 1994: 57-127 95 Substancia, sujeito de ineréncia de seus predicados e que nao pode ser predicado de nenhum outro ser, é 0 que subsiste em si mesmo e tem em si mesmo 0 princ{fpio interno de sua agdo e, gragas & forma substancial, consti- tui-se sempre como uma nogdo completa @ priori que dé a raz@o de sua esséncia e de sua agado. Donde a conclusao necessdria, anunciada no Discours e explicitada por completo na Monadologia: ha pluralidade de substancias, as substancias sao individuais, toda substancia é simples e uma substancia é um ente espiritual. Ou, como lemos no Systéme Nouveau: “Se ndo houvesse verdadeiras unidades nada haveria de substancial ou de real numa colegdo... Mas os dtomos de matéria sdo contrérios a razio... Hd apenas os dtomos de substancia, isto &, unidades reais ¢ absolutamente destituidas de partes, fontes das agdes e primeiros principios absolutos da composigio das coisas € como que os tlti- mos elementos de andlise das substAncias. Poderfamos chamé-los pontos metafisicos... ¢ sem eles nada haveria de real” (Leibniz 17, p. 640). Como para Descartes e Leibniz, também para Espinosa a substancia nao é género, os atributos ndo so espécies nem os modos, acidentes. Como para seus dois contemporaneos, também para ele a poténcia ou forga interna para existir e agir é o centro da substancia. Diferentemente de Descartes, porém, Espinosa considera a poténcia da substancia plenamente inteligivel Porque idéntica A sua esséncia. Diferentemente de Leibniz, Espinosa nao define a substancia pela ineréncia dos predicados atuais e virtuais. Diferen- temente de ambos, Espinosa demonstraré que a esséncia inteligivel da subs- tAncia exige que haja uma tnica substincia infinitamente complexa e que os modos nao sao qualidades ou maneiras de ser, mas entes reais. Enfim, dife- Tentemente de ambos, a substincia é 0 ens realissimum que contém formal- Menteem si toda a realidade e, portanto, somente a ela pode ser atribufdo Univocamente 0 ser. 96 ‘Chauf, M., diseurso (24), 1994: 57-127 A definigdo da substancia, na Etica, retoma e remaneja 0 que fora de- monstrado na Korte Verhandeling. Ali, Espinosa partira diretamente da idéia de Deus, afirmando que Ele é porque 4 sua natureza pertence a existéncia, porque esta, sendo eterna, é Sua esséncia e porque Ele é causa de si. Prosse- guia expondo o que Deus é — 0 ser do qual tudo ou atributos infinitos sao afirmados—e que um verdadeiro atributo é 0 que permite conhecer Deus em si mesmo, € ndo extrinsecamente. Finalmente, afirmara que Deus, causa de tudo, podia ser conhecido porque Seus atributos sAo conhecidos por si mes- mos € porque Sua existéncia podia ser demonstrada a priori (isto 6, pela esséncia), porque Ele € causa sui. Na Etica, porém, Espinosa comega pela substancia e pelos atributos nao s6-para poder afirmar, contra a escoldstica (como jd fizera no Breve Tratado), que Deus & substancia, mas também porque 0 mos geometricus exige que a idéia de Deus seja geneticamente construfda. A definigio da substancia, porém, situa-se entre duas outras: a da causa de si e a do atribu- to, enquanto a definigGo de Deus situa-se entre a da substincia e a da eterni- dade. Essa disposigio é necessdria. A definigao da causa sui afirma a existéncia necessdria como envolvida pela esséncia, a definigdo da substan- cia afirma a exist@ncia em si e concebida por si, e a defini¢do do atributo afirma 0 que constitui a esséncia de uma substancia. A luz da Korte Verhandeling, a disposigao das definigdes torna-se clara: a da causa de sie a do atributo garantem que a substAncia é nfo apenas auto-subsistente, mas também inteligivel imediatamente por sua esséncia (atributos) e por sua exis- téncia necessdria (causa de si). Com isto, a posi¢do ocupada pela definigao de Deus também se esclarece: as definigdes anteriores garantem que Deus é a substancia absoluta absolutamente inteligivel e a definigdo da eternidade garante que a existéncia de Deus decorre imediatamente de sua esséncia. Essa cuidadosa disposigdo geométrica prepara 0 encadeamento das onze primeiras proposig6es do Livro I. As seis primeiras definigdes da Etica I nao sio nominais, tornando-se reais e.essenciais (no sentido leibniziano) ou adequadas (isto 6, genéticas, no sentido espinosano) quando fossem retomadas pelas proposigdes, mas so definigdes reais ou genéticas, apesar de enunciadas com a f{6rmula “por... entendo”. Nao se referem a verdades eternas (este € 0 papel dos axiomas), Chavi, M., diseurso (24), 1994: $7-127 oF nao exigem demonstragio (este € o papel das proposigGes), nio sio apenas designag6es ou nomes, mas sio definigées de entes reais, corretamente de- nominados e definidos de tal maneira, que sejam imediatamente conhecidos pelo intelecto. O motivo ¢ simples: algo, por ser verdadeiro como idéia, acarreta, como conseqiiéncia, ser conveniente ao ideado (por Etica I, Axio- ma 6), de sorte que a verdade intrinseca da idéia (ou esséncia objetiva) & insepardvel da sua conveniéncia ao seu objeto (ou esséncia formal), uma vez que. como estabelecido pelo De Emendatione, “a boa definicao é aquela que nos oferece a esséncia fntima da coisa”, isto é, sua causa ou razio interna e sua inteligibilidade plena. Eis por que as definigdes da causa sui, da substan- cia e do modo introduzem a expressdo “ser concebido”, estabelecem uma relagdo entre ess€ncia e existéncia (no caso da substincia, isto é feito pela Defini¢do 4), e diferem da tradigdo escoldstica tanto quanto das definigdes oferecidas pelos “novos fil6sofos”. A definigGo da causa de si nao se refere, como em Descartes, & potén- cia absoluta do ser que se causa a si mesmo, mas 4 esséncia de um ser cuja existéncia é necessdria e s6 pode ser concebida como necessiria— “Por cau- sa de si entendo aquilo cuja esséncia envolve a existéncia; ou, por outras palavras, aquilo cuja natureza ndo pode ser concebida sendo como existen- te”. Desta maneira, Espinosa, que desde o Breve Tratado recusara a tradi- ¢d0 escoldstica de Deus como incausado ou sem causa, também se afasta da tradic¢do e da primeira prova cartesiana da existéncia de Deus, isto é, da existéncia necessdria de um ser decorrente da perfeigdo de sua natureza. Para que a existéncia, juntamente com a perfeicdo, nfo seja mera proprieda- de ou predicado de um sujeito, é preciso um vinculo interno necessdrio entre €lae a esséncia. Este vinculo é a causa sui. A causalidade de sie a existéncia necessdria-indicam, em primeiro lugar, que a substancia nao é substrato (subjectum, hypokeimenon) de predicados, mas atividade absoluta; em se- gundo lugar, que a esséncia do que é causa de si e existe necessariamente funda a inteligibilidade de sua prépria agdo e de seu existir, isto 6, hd um lago inteligfvel entre ser, ser causa de si e existir. De fato, pelo ‘Axioma 3 — De uma causa determinada segue-se necessariamente um efeito; se nao existe qualquer causa determinada, é imposs{vel seguir-se um efeito” —acausa sui identifica causa (eficiente) e razio (formal), ens a se e ens in se, causalidade |

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