IMPASSES, AVANGOS E DESAFIOS DA ACAO
PUBLICA EM ECONOMIA SOLIDARIA:
UMA PERSPECTIVA COMPARADA BRASIL-FRANCA
Jean-Louis Lavitte
NAM
GENAUTO CARVALHO DE FRANCA FILHO.
UFBA.
InTRoDucAo
A solidariedade teve um Papel motor na construgio dos sis-
temas de protesao social, especialmente nas sociedades européias,
conforme salienta Laville (2006). Coritudo, sua influéncia foi limi-
tada pela concepeéo redutora da economia, que se impés tanto no
Hemisfério Norte como no Sul. De fato, nesses dois contextos, exis-
tiram tentativas de criagdo de atividades econémicas a partir da so-
lidariedade, mas elas foram Progressivamente abandonadas, dado o
impulso que conheceu o capitalismo, As formas de expresso da so-
ciedade civil, em vez de optarem por um contetido econémico, tive-
ram mais como fungio reivindicar certo ntimero de direitos sociais
a fim de enquadrar a economia de mercado, Esses direitos fexan
completados pela implementacio de uma economia néo mercentil.
Em relagio a este aspecto, a intervengao redistributiva do Estado
social se exerceu mais completamente nas sociedades européias e, se
cls permaneceu limitada nas sociedades latino-americanae,o dese.
volvimento baseado numa dindmica metcantil emendad, por pro-
tegGes sociais mfnimas repousou num mesmo modelo.
Esse compromisso sécio-econdmico conhece uma primeira
onda de contestacio com os movimentos dos anos 1960 e 1970,
que descobrem os estragos do progresso, os efeitos perversos do
trabalho alienado e de um consumo de massa. Ele , em seguida,profundamente abalado por uma segunda onda, aquela de uma
mundializacio governada por politicas neoliberais, sinénimos de
destegulamentacZo ¢ de mercantilizagéo crescente das atividades
sociais. E em relagéo com essas duas ondas sucessivas que uma di-
nAmica soliddria no seio da economia reencontra vigor. No Brasil,
a economia popular e solidéria procura ultrapassar modos de sobre-
vivéncia para caminhar na direcdo de atividades promotoras de um
desenvolvimento sustentavel, segundo, por exemplo, a idela de uma
economia do trabalho que, contrariamente 4 economia do capital,
para tetomar os termos de Coraggio (2004), ¢ orientada para a sa-
tisfacdio das necessidades fundamentais da populacao. Na Franca, a
aspirago a uma outra légica econdmica é reafirmada como prolon-
gamento das formas de economia social.
Os vatios estudos de caso reunidos na obra Apdo publica e Econo-
mia soliddria (LAVILLE, FRANCA FILHO, MEDEIROS & MAGNEN, 2006)
evidenciam uma caracterizagao da Economia soliddria que nao re-
pousa apenas numa hibridacao de recursos. A partir do momento em
que a finalidade é a democratizagao da economia, convém definir a
Economia solidéria pela dupla dimensio das iniciativas, ao mesmo
tempo econdmica e politica (DacHEux & Lavute, 2003; Ewe &
Lavittz, 2000). A dimensio politica nao € reduzida 4 propriedade
coletiva, ou seja, a garantia de uma igualdade jurfdica entre as partes
€ estendida & possibilidade de livre expresso (discursiva) de cada
tum, o que torna possivel falarmos em termos de “espagos piiblicos de
proximidade” (Ewe & Lavitie, 1994) que parecem inventar-se atra-
vés dessas expetiéncias. No Brasil, as observag6es efetuadas revelam
percursos ¢ trajetdrias de evolucées pessoais importantes favorecidas
pela livre expresso de pessoas que nao tiveram, anteriormente, aces-
so. uma qualificagao ea condigées de trabalho decentes. A passagem
de uma atitude passiva para outra de maior iniciativa, revelada em
muitos casos, sugere a apatigio de um perfil de trabalhador engajado,
diferente daquele dos militantes operérios das grandes concentrac6es
industriais, remetendo a outros percursos e histérias de vida.
378 Impastes, avangos e deta da agio publica em economia solidbiaO ganho de confianga pessoal através da aco coletiva aumenta
quando os participantes podem constatar efeitos concretos de sua
implicagéo na mudanga de suas condigées de vida quotidiana.
As pesquisas ilustraram, amplamente, como cooperativas criadas
num grande ela de fus4o viram sua mobilizagao se evaporar em razo
da distancia entre a amplitude da mudanga anunciada nos discursos €
a realidade vivida pelos trabalhadores. Esse enfraquecimento da ade-
so interna é particularmente perceptivel em experiéncias nas quais
a modificagéo da propriedade da empresa nfo foi acompanhada de
formas de participacdo direta, faciliando a interveng&o sobre as con-
digdes e a organizacao do trabalho. Com o tempo, 0 estatuto coopera-
tivo serve apenas como justificaggo de uma tecnocracia gerencial que
se apresenta como democratica e se isola das outras categorias pro-
fissionais, nas quais ela critica os comportamentos insuficientemente
cooperativos, estas tiltimas sentindo, por sua vez, uma decepgao cres-
cente com relaco a seu engajamento inicial. As mesmas constatagdes
de degenerescéncia burocrdtica (MANDEL, 1975; OPPENHEIMER, 1914;
‘Wesp-Wess, 1914) foram, alids, efetuadas em associagées e organiza-
ges mutualistas (MEISTER, 1974; Drevrus, 2001).
Varios exemplos desenvolvidos na obra Agdo piiblica e Economia
solidéria (LAVILLE, FRANGA FILHO, Mspetros & MAGNEN, 2006) suge-
rem um itinerdrio diferente. A ASMOCONP (Banco Palmas) é um
deles, conforme salientam Franga Filho ¢ Silva Jr. (2006): trata-se,
antes de tudo, de uma associacio de moradores formada através de
uma histéria de luta politica pela melhoria do quadro de vida em seu
territério. O fato de ter fomentado mudangas significativas no pré-
prio bairro parece ter contribufdo fortemente na implicac4o dos mo-
radores nos projetos que a associacéo promove. Em resumo, apesar
das dificuldades inerentes a uma favela, a intensidade da participagao
se reforgou periodicamente, pois seus efeitos séo muito concretos.
Existe, em tais iniciativas, um entrelagamento entre dimens6es
politica e econdmica. Os espacos publicos de proximidade apresen-
tam probabilidades cada vez maiores de se manterem, na medida
em que conseguem engendrar evolugées positivas nas condi¢des
sécio-econdmicas de vida dos sujeitos envolvidos. Reciprocamente,
Jean-Louis Lavile & Genauto Carvalho de Franga Filho 379estas transformag6es so ainda mais inclinadas ao éxito, na medida
em que suas prdticas viabilizam a gera¢ao de espagos publicos de
proximidade capazes de promover uma abordagem diferente da ati-
vidade econdmica, esta representando mais do que um meio para se
alcangar fins solidérios.
A nogio de espaco piiblico ¢ aqui considerada numa acepgio
original, em que se destaca seu duplo sentido: ao contrério de uma
dissociagio entre espagos ptiblico e econdmico, sua constituigao é
relacionada ao desenvolvimento da atividade econdmica e aos atores
que se encontram nela envolvidos. O registro habitualmente quali-
ficado de infrapolitico (isto ¢, relacionado a dindmica de socializa-
40 dos individuos em seu quotidiano no interior da sociedade civil,
e que, em geral, nao se considera como fazendo parte de um registro
de légica politica) ¢ reavaliado, mostrando que af pode acontecer
uma publicizacao da aco coletiva. Neste sentido, a abordagem da
democracia econémica é igualmente renovada: ao invés de ser abor-
dada numa perspectiva de democracia industrial (Martin, 1994),
ela o € pelo viés dos processos de voice (HIRSCHMAN, 1976), isto é,
pela énfase na livre expresso discursiva dos atores. Em Economia
soliddria, a capacidade de preservar um espago ptiblico de proximi-
dade, isto ¢, um espago dedicado & prépria expresso dos partici-
pantes, que decidem agir para resolver seus problemas comuns, é,
portanto, importante para o devir da dinamica coletiva; entretanto,
ela nZo parece suficiente para a superagdo completa da situagao de
marginalidade em que se encontram as iniciativas.
DISCRIMINAGOES NEGATIVAS PERSISTENTES
Isto porque existem discriminages negativas, das quais pade-
cem tais iniciativas, Estas discriminagdes provém dos efeitos sedi-
mentados na histéria de uma concep¢fo dominante da economia
que invalida tais iniciativas, segundo modalidades empiricamente
situdyeis, tanto nas regras institucionais que regem as atividades
econdmicas quanto nas representagées sociais das quais elas so ob-
380 Impastes, avangos ¢ desafios da agio ptblica em economia sobdiisjeto. A inadequacéo dos quadros legais e as incompreensées que elas
suscitam s4o, a esse respeito, eloquentes.
Na Franga, nenhum estatuto juridico de organizagao dispontvel
permite, comodamente, a participacao das miiltiplas partes envolvi-
das, O estatuto de associacéo, por exemplo, confere um lugar pre-
ponderante aos voluntétios ¢ admite os usudtios como membros,
sem prever a integragao dos trabalhadores em sua dire¢do, enquanto
as cooperativas privilegiam uma tinica categoria de membros (tra-
balhadores, consumidores, entre outros). E precisamente isto que
se esforga em remediar o estatuto, recentemente criado, da chama-
da sociedade cooperativa de interesse coletivo, SCIC (Garni, 2004).
No Brasil, a situagio é ainda pior. A atual lei sobre as cooperativas
favorece grandes estruturas cooperativas, como as do agro-business,
cujo funcionamento é praticamente o mesmo de outras empresas
ptivadas. O marco legal nao ¢ apropriado nem para integrar o fend-
meno do cooperativismo popular (DuBeux & Gervais, 2004), que
diz respeito &s cooperativas de pequeno porte, onde se entrecruzam
lagos comunitdrios e procedimentos econdmicos, nem para impe-
dir 0 fendmeno das falsas cooperativas que representam, disfarga-
damente, empresas praticando um empreendedorismo absoluta-
mente inescrupuloso ao precarizar o trabalho, utilizando o estatuto
cooperativista como meio de reducao dos encargos trabalhistas. A
auséncia de um quadro juridico obstaculiza também as iniciativas
que tém a forma associativa, esta apresentando problemas no que se
refere A comercializagao de bens ¢ servicos. Na Franga como no Bra-
sil, a viabilidade econdmica destas iniciativas é também dificultada
pela nao consideracao da sua utilidade social, a despeito dos debates
€ pesquisas que comecam a ser feitas sobre este assunto (GaDREY,
2005). Os critérios que permitem as autoridades piiblicas reconhe-
cer as contribuig6es para a coletividade resultantes de atividades que
priorizam finalidades de natureza sociais e ambientais nao so ga-
rantidos na Franga, e muito menos no Brasil, onde tal debate nem
sequer esté colocado.
Estas diversas inadaptac6es do quadro institucional, na maioria
das vezes mal compreendidas, levam a interpretac6es frequentes, se-
Jean-Louis Lavile & Genauto Carvalho de Franga Filho. 381gundo as quais os obstéculos encontrados para sair da precariedade
so devidos a uma falta de profissionalizagao gerencial. Donde co-
mumente resultam pressdes pela normalizagéo através da adogo de
métodos gerenciais importados das empresas privadas lucrativas, sem
nenhuma interrogacio sobre a pertinéncia de seu contetido. No Brasil,
um importante esforgo de pesquisa comega a ser desenvolvido a este
respeito em torno da nogao de gestfo social (FRANCA FILHO, 2005).
A ideia, neste sentido, é, primeiro esclarecer a especificidade de algu-
mas dindmicas organizativas oriundas do campo da sociedade civil,
em termos da sua racionalidade e légica prépria, em relacdo ao mundo
empresarial ¢ & légica de mercado. E, em seguida, trabalhar sobre um.
conhecimento relativo & construgao de ferramentas de gestdo adapta-
das & realidade de tais praticas, 0 que nos conduz a uma refundagio
do debate sobre tecnologias sociais no momento atual (FRANCA FILHO,
2005). Na Franca, os efeitos perversos dessa importacio de métodos
gerenciais oriundos do setor privado para o campo associativo fora
j4 apresentado em Sociologie de l'association (LAVILLE & SAINSAULIEU,
1997). Neste trabalho, a questo fundamental colocada também diz
respeito a um rigor gerencial preocupado com a consideracao das Ié-
gicas insticucionais! préprias as experiéncias de Economia solidaria.
Assim, a acusacao recorrente de amadorismo é apenas uma ma-
nifestacdo da constante deslegitimagao por parte dos gestores pi-
blicos. Na Franga, a retrospectiva conduzida em varias cidades ¢
regides evidencia 0 quanto € 4rduo opor-se a ela. Um dos sinais
dessa desvalorizagéo reside no tempo necessdrio para sair de uma
confusio entre a economia social ¢ soliddria, por um lado, ¢ a in-
sergio pelo econémico, por outro, mantida pelas separacbes que
fazem do desenvolvimento econémico ¢ do emprego-insers&o, areas
de responsabilidade confiadas a representantes politicos diferentes.
A distingao ¢ tao lenta a se impor que certos defensores da economia
social, perturbados com a irrupgao da Economia solidaria, quise-
ram, além disso, destinar esta ultima ao tratamento da exclusao,
atestando, segundo eles, sua falta de credibilidade econdmica.
1. Sobre a importancia das légicas institucionais, ver Laville (2005).
382 Impasses, avangos e desafios da aco piblice em economia solidérieA dificuldade para os responséveis publics em compreender a
multidimensionalidade da Economia soliddria esta também presen-
te no Brasil, onde a imbricagao entre as dimens6es politica ¢ econé-
mica, j4 mencionada, é redobrada por importantes aspectos sociais
¢ culturais, entrando em conta na imensa economia popular, que
proporciona recursos a uma parte importante da populagao. A Eco-
nomia solidéria representa um esforgo coletivo para que a economia
popular, ao mesmo tempo em que se apéie no trabalho cooperative
€ nos lagos comunitétios, seja, cada vez mais, estruturada por im-
pulsos de solidariedade democrética e conquiste seu lugar, sendo
capaz de produzir reais transformag6es no Ambito institucional, so-
bretudo em relaco a contextos territoriais espectficos, como certos
bairros desfavorecidos. O contetido mais comunitdrio das prdticas
sécio-econdmicas, oriundo das solidariedades tradicionais ordind-
rias tecidas no quotidiano, se mistura a um contetido mais politico,
no qual atores discutem seus problemas comuns e buscam resolvé-los
trabalhando diretamente na solugao do problema, ao mesmo tempo
em que reivindicam seu reconhecimento institucional, a partir de
uma relacao de igualdade. Entretanto, a existéncia de um continuum
entre esses dois pdlos da agdo direta e da reivindicagao institucional
(supondo, no caso brasileiro, uma concepgao estratégica de desen-
volvimento caracterizada pela passagem de uma dimensio de sub-
sisténcia aquela de sustentabilidade das iniciativas numa determina-
da base territorial) permanece amplamente incompreendida. Como
na Franga, onde iniciativas foram depreciadas sob o pretexto de que
eram experiéncias comunitétias, ao passo que elas davam prova de
uma inegdvel vontade de inscrigo no espaco piiblico®, no Brasil a
imagem da economia popular é reduzida & de uma economia infor-
mal, uma economia de pobres encerrada na gestio da pentiria. O
amalgama praticado entre trabalho dissimulado, mercado paralelo,
contrabando, tréfico ¢ produgdo doméstica, impede de distinguir
as caracteristicas da economia popular, j4 evidenciadas por vitios
. Vero exemplo da “Juventude Ativa da Bastide”, associacéo criada por jovens
de um bairro da cidade de Limoges, na Franga (LaviLLE, MaRcHAT, 1995).
Jean-Locis Lavile & Genauto Carvalho de Franga Filho 383pesquisadores (Coraccio, 2004; Franca Fitxo, 2002b; Sarria Ica-
ZA, 2005; e Tirta & Picanco, 2005; Gatcer, 2004; KRaYcHETTE,
2000) ¢ a assimila a uma espécie de sub-economia, cujo estatuto
subordinado est ligado ao primado da economia mercantil oficial.
Segundo essa visdo, a tinica economia plenamente reconhecida ¢ a
economia de mercado, e a economia popular é considerada apenas
um paliativo, como na Franga a economia de insergao é tratada
como um momento de passagem (ou seja, uma espécie de reserva~
tério de ocupagées tempordrias, servindo de trampolim aos verda-
deiros empregos a serem, supostamente, obtidos em seguida numa
economia de mercado — 0 que nao ocorre pela capacidade limitada
do mercado na geragao de empregos). Neste modo de pensar, o ob-
jetivo permanece sendo a integraso numa economia mercantil, que
€ sacralizada, no momento mesmo em que ela se revela incapaz de
fornecer postos de trabalho para todos. Curioso paradoxo dos tem-
pos atuais, para nfo dizer uma grande contradi¢fo do nosso sistema
econémico dominante!
Asta visio redutora da economia, adiciona-se um olhar restri-
tivo sobre o empreendedorismo. O discurso sobre a criagao de ativi-
dades conduz, frequentemente, a uma supervalorizagao da empresa
individual mercantil que, tanto em pafses do Sul quanto do Norte,
costuma ser acompanhada de um certo proselitismo do microcrédi-
to, visto como a panacéia de todos os males do capitalismo contem-
poraneo, E assim que De Soto (1987) parece elaborar a apologia de
uma espécie de capitalismo de pés descalcos. Trata-se, aqui, de um
discurso que omite, por completo, a realidade de iniciativas antes
de tudo coletivas, que marcam a economia popular e solidétia. Coe-
rente, entZo, com esse olhar sobre o empreendedorismo, numerosos
projetos de desenvolvimento local conduzidos por diferentes gover-
nos, em diferentes nfveis, no Brasil, encontram-se exclusivamente
centrados nos chamados atranjos produtivos locais (APLs), ou seja,
em conjuntos de pequenas iniciativas privadas mercantis, organiza-
das numa base territorial e setorial para melhorar seu desempenho
e produtividade. Tais iniciativas merecem um destaque importante
pela preocupagdo em repensar o desenvolvimento local a partir da
384 Impaises, avangos e desafios da agéo pibiice em economia soldériavalorizacéo da micro ¢ pequena empresa, além das contribuigdes em
termos de dinamismo trazidas aos territérios pelos efeitos conjuga-
dos da cooperacio inter-empresarial que gera, ademais da inovagéo
tecnolégica, requalificagao profissional. Contudo, tais iniciativas es-
barram nos limites préprios de um paradigma da competitividade,
tornando os territérios reféns da dindmica capitalista mais geral e de
Idgicas especificas da economia de mercado, cujo horizonte, em ter-
mos de sustentabilidade, consubstanciada na capacidade em gerar
postos de trabalho, revela-se sempre muito incerta, Em suma, uma
tal exclusividade de visdo, proposta como alternativa para promocao
do desenvolvimento local, deixa de reconhecer o imenso potencial
contido em outtas iniciativas, a exemplo da Economia solidétia pre-
sente nos mesmos territérios.
CONTRA AS DISCRIMINAGOES, ESPACOS PUBLICOS DE
UM SEGUNDO NIVEL
Amplitude dos problemas que acabam de ser revelados mostra
que a legitimidade resta, em parte, a ser conquistada para a Eco-
nomia solidéria. E os espagos piiblicos de proximidade encontram,
desse ponto de vista, limites, pois cles so ancorados em experiéncias
singulares. Por isso, assiste-se mais recentemente & formagio de es-
pacos puiblicos de um segundo nivel (Eme, 1994; DacuEux, 2003;
ROULLEAU-BERGER, 2003). Trata-se de espacos que se estendem
numa escala mais ampla, dedicados 4 reunido de multiplas iniciati-
vas, de origens muito diversas, com um objetivo de deliberagéo e de
representagao.
Se os atores perceberam como necessdtio um tal nivel de or-
ganiza¢’o para serem ouvidos pelos poderes puiblicos, tanto nas
redes brasileiras quanto nas estruturagées regionais e nacionais na
Franga, os responsdveis publicos, pelo fato de serem minoritérios
no aparelho politico-administrativo, sentiram a necessidade paralela
de constituir os espagos de trocas ¢ de elaboracao que s4o, respec-
tivamente, a Rede dos Territérios para a Economia solidéria, na
Jean-Louis Levile & Genauto Carvalho de Frango Filho 385Franga, e a Rede de Gestores de Politicas Publicas de Economia
solidétia, no Brasil. Além de se constitufrem como instAncias auté-
nlomas, como no primeito nivel, esses espacos ptiblicos de segundo
nivel sio também intermediérios, no sentido de que eles se esfor-
gam, tendo em vista contribuir para a regulagéo de um campo de
prdticas através do estimulo as interagdes entre as iniciativas e os po-
deres publicos. A dimensao de autonomia, na livre expresso do dis-
curso, articula-se A perspectiva de uma negociacéo encarada como
indispensdvel para modificar, gradualmente, os quadros institucio-
nais e as representacées sociais que influenciam 0 desenvolvimento
da Economia soliddria, Os féruns brasileiros, doravante presentes
em praticamente todos os estados da Federac4o, combinam assim
uma participagio democrética, inscrita em sua carta de principios,
€ devendo orientar sua dinamica de funcionamento no confron-
to com os responsdveis puiblicos. Enquanto espacos de reuniao de
atores para discussio e deliberacao de ages, eles siio lugares onde o
conflito polftico encontra-se fortemente presente, manifestando-se,
sobretudo, nas divergéncias a propésito das escolhas estratégicas e
tumos do movimento.
No Brasil, os espagos ptiblicos intermedidrios representam
uma emanagéo direta dos préprios atores da Economia solidétia,
Além disso, eles apresentam um grau de estruturaco, no nfvel re-
gional, mais desenvolvido do que na Franca. O trunfo brasileiro
reside numa ampla auto-organizagio da sociedade civil, que tem
como contrapartida uma fraqueza histérica das politicas puiblicas,
A situagio € inversa na Franca, onde a tradigéo de forte interven-
s4o ptiblica, que tem, entretanto, como reverso, a separacao entre o
econémico ¢ social, coexiste com uma ftaca mobilizacao dos atores.
Muitos atores da Economia solidéria temem a agregacao e 0s riscos
de manipulagio que, na visdo deles préprios, estariam associados a
este tipo de dinamica, conforme assinalado por Hersent (2006). Em
razio da dispersio devida a este déficit de organizacio espontinea
—em Nantes ¢ Grenoble, por exemplo -, a implicacao dos atores é
claramente impulsionada pelos poderes pablicos. O procedimento
consiste, primeitamente, em tornar vistvel 0 peso da economia so-
386 Impasses, avangos e dessfos de agio pablics em economie soidéacial ¢ solidéria no conjunto da economia local através de um diag-
néstico participativo para, em seguida encadear-se com jornadas de
estudo e de comunicagao, permitindo 0 encontro entre represen-
tantes da economia social e iniciativas emergentes da Economia so-
lidétia, nao sem sucesso, pois 1.650 participantes foram recenseados
em Grenoble e 980, em Nantes. Através desses diferentes vieses,
trata-se de combater as légicas de encerramento, filtragem e assi-
metria tipicas das préticas pol{ticas governamentais. A entrada em
cena publica est destinada a se opor aos mecanismos de defesa im-
plementados pelas redes sociais tradicionais, para abrir as polfticas
econdmicas dos governos locais a uma economia social e solidéria
que no seja abordada sob o tinico Angulo da insercio. A busca de
um reconhecimento no campo econémico é uma estratégia 4 qual,
segundo Yvergnaux (2006), inscreve-se a cidade de Rennes, como
Outras na Franga, em razdo da falta de poder dispor de um espago
institucional no qual o desenvolvimento social € econdmico sejam,
verdadeiramente, concebidos juntos.
A evolugao das dotacées orcamentérias obtidas para as iniciati-
vas de economia social e solidéria constitui um indicador confidvel
do progresso alcangado, bem como do caminho que resta a per-
correr para se chegar a uma igualdade de tratamento com outros
componentes da economia. A esse respeito, as experiéncias france-
sas ¢ brasileiras apresentam certa tendéncia convergente, uma vez
que se pode inferir que o crescimento das margens de manobras
econdmicas apenas parece possivel se “as experiéncias ultrapassa-
rem seu isolamento econdmico e se tornarem igualmente iniciativas
sécio-politicas”, conforme sublinham Schwengber, Praxedes e Parra
(2006:145) tratando do programa Oportunidade Solidéria de Sto
Paulo. A mesma constatacio observa-se na andlise do caso de Recife,
na qual Medeiros e Dubeux-Gervais (2007) mostram como o apoio
A economia popular e solidéria faz sentido, no em agbes pontuais,
mas numa politica em favor do fortalecimento do associativismo
local, como através da organizagio de centtos ptiblicos de Econo-
mia solidétia, que so vistos como espacos piblicos de construco
Jean-Louis Lavlle & Genauto Cervalho de Franca Filho 387de uma politica piblica. O objetivo maior ido € contratar servigos,
mas fortalecer 0 tecido sdcio-econdmico ¢ politico local.
A pressio politica do movimento de Economia solidéria para
superar uma visio redutora da economia, que privilegia a dindmica
do mercado ea sociedade de capitais, encontra obstdculos consideré-
veis. Sarria Icaza (2006) sublinha o risco de constituigao de feudos,
a partir das correntes politicas, particularmente senstvel no caso do
Rio Grande do Sul, onde uma fracao do Partido dos Trabalhadores
promoveu uma politica impregnada de uma visao industrialista, em
que se privilegiou um segmento da economia popular solidaria em
detrimento de outros. A Economia solidaria, pela sua fragilidade, é,
4s vezes, conduzida a se proteger através de um apoio partidario que
acentua sua sensibilidade nos momentos eleitorais. Os responsdveis
pela politica publica de S40 Paulo tentaram escapar dessa légica,
submetendo 4 Camara de Vereadores um projeto de lei, cujo propé-
sito era instituir a politica publica de Economia solidéria como uma
acio ptiblica de governo, independente de partido politico (tal ini-
Ciativa nao foi exitosa, pois, com a sucesséo do mandato municipal
em 2004, o novo governo Serra acabou por enterrar este projeto)
De todo modo, muito embora as ameacas de desvio, as inicia-
tivas s8 podem pesar na concepsao das politicas puiblicas, intervin-
do no seio de espacos publicos em diferentes niveis, redefinindo
as relagdes entre sociedade civil e poder politico, numa abordagem
ampliada da aco pablica.
CONCLUSAO: A CAMINHO DE NOVAS PROBLEMATICAS:
Os processos de mudana que foram estudados na obra Apdo
publica e Economia soliddria (LAVILLE, FRANCA FILHO, MEDEIROS 8
‘MAGNEN, 2006) no teriam podido ser apreendidos apenas a partir
da conceituacdo da economia social. Em outras palavras, seu exame
ajuda a precisar vias de pesquisas suscet{veis de ultrapassar os limites
desta tiltima, tal como evocados por Chanial e Laville (2006).
388 Impesses, avangos € desafios da aio piblica em economia solidériaImporta substituir uma interpretago das iniciativas em termos
de empresas coletivas por uma andlise que permita perceber a con-
frontac4o muitua das dimensées politica e econdmica da acao cole-
tiva. A nogéo de espaco piiblico de proximidade, conferindo uma
otiginalidade as dindmicas econdmicas, pode servir para interrogar
a realidade de tais préticas do ponto de vista do seu fundamento
democrético, questionando a assimilagéo entre igualdade formal
na propriedade coletiva e funcionamento democritico. Mas, a di-
mens&o politica das iniciativas no se reduz aos espacos piiblicos
de proximidade. O alcance da mudanga institucional efetiva de-
pende de uma articulagio desses espagos piiblicos de proximidade
com espagos ptiblicos intermedidrios. As experiéncias de Economia
soliddria s6 podem sair de seu confinamento com a introdugio de
politicas puiblicas opondo-se as disctiminagées negativas as quais
elas séo confrontadas. Por outro lado, os responsaveis piiblicos sé
podem confortar sua ago legitimando-a através da pressio exercida
por forcas organizadas no seio da sociedade civil. Na confluéncia
dessas duas exigéncias, os espacos publicos intermedidtios contri-
buem para reconfigurar quadro institucional e desconstruir as re-
presentagées dominantes sobre a economia. E assim que as Sessdes
do Trabalho e Emprego da regio Nord-Pas-de-Calais, na Franca,
ou a Senaes, no Brasil, conseguiram iniciar novas politicas somente
apoiando-se na participacao aberta aos cidadaos, no primeiro caso,
ena dinamica do Férum brasileiro, no segundo caso. Quanto ao
otgamento participative de Porto Alegre, convém notar que, entre
seus revezamentos nos bairros, numerosos foram os militantes da
economia popular e solidéria que também solicitaram que as ques-
tes tratadas integrassem uma politica neste campo. Intervengio
politica ¢ agéo econdmica esto imbricadas ¢ a versio da mudanga
social que se Ié nestes exemplos é bem diferente daquela defendida,
precedentemente, pela economia social, que apostava na difuséo das
experiéncias a partir do seu sucesso econémico no mercado.
‘A observagao dos espasos piblicos intermedidrios conduz,
por outro lado, a situar o lugar que podem ter estes foruns hibri-
dos numa democratizag’o da democracia (CALLON, Lascoumes,
Jean-Louis Lavile & Genauto Carvalho de Franca Filho 389BARTHE, 2001). Quando as desigualdades na livre expressio discur-
siva dos cidadaos so particularmente importantes, como é a evi-
déncia em matéria de economia, estes foruns s6 podem ser vetores
de mudanga, em termos de um novo arranjo institucional, se eles
forem uma complementacao de espagos ptiblicos auténomos sem os
quais as palavras menos legitimas nado podem tornar-se audiveis. A
questo politica, ao mesmo tempo em que é integrada, ndo se reduz
as formas de organizacao dos mercados, enquadrando-o também.
O enquadramento dos mercados sé é efetivo ¢ realmente discutido
se ele for concebido através de uma visto da economia como cons-
titufda por uma pluralidade de principios econémicos. Os féruns
hfbridos nZo podem, sozinhos, reorganizar os mercados, porque os
problemas que eles engendram nao se limitam as externalidades,
mas incluem os efeitos de uma concepgao atomista do social, ine-
rente & assimilacdo entre troca econémica € troca contratual, como
mostra “a crftica comunitaria do liberalismo” (WaLzER, 1997). Ga-
drey (2005) tem razo ao insistir sobre o fato de que os mercados
concretos sao diferentes da figura abstrata do mercado auto-regula-
do. Porém, esta afirmagio no invalida 0 argumento de Perret, se-
gundo o qual esta diversidade na realidade nao impede que a figura
do mercado exista “enquanto representagao cultural performativa
desta mesma realidade” (Le Vetty, 2004: 89). A internalizagio das
externalidades nao € 0 tinico mecanismo de regulagao da econo-
mia, como pesquisas comparativas 0 mostraram (LavILLE & NyssENs,
2001). Seas formas hibridas se contentassem em regular a questo das
externalidades, disso resultaria uma funcionalizagao da democracia
em relacdo & economia. Neste sentido, tais espagos sé so capazes de
alimentar o debate democratico se varias Iégicas econdmicas podem
af ser defendidas. Donde a importancia de uma perspectiva de econo-
mia plural (Franca Fino & Lavitte, 2004; Lavitz, 2005).
Em suma, o estudo das interdependéncias entre esfera econd-
mica e politica supde atravessar as fronteiras estabelecidas pelas es-
pecializag6es disciplinares. No que tange & disciplina sociolégica, 0
campo especifico da sociologia econdmica é frequentemente redu-
zido a uma espécie de sociologia dos mercados, apesar de pesqui-
390 Impasses, avangos ¢ desfios de agéo publica em economia solidéasadores (BoRGHI, Macarrt, 2002) se interessarem pelos efeitos das
formas assumidas pelas economias contemporineas sobre 0 espaco
piiblico. Quanto a sociologia politica do engajamento puiblico, ela
tende a se desviar de tudo 0 que é da algada da economia. Assim,
andlises tratando da altermundializagdo (AGRIKOLIANSKY & SOM-
MIER, 2005) subestimam ao mesmo tempo o papel que nela de-
sempenha, hé varios anos, a Economia solidéria ¢ a influéncia que
tiveram encontros internacionais sobre a prdpria estruturacao deste
campo em nfvel nacional. Neste sentido, a Inter-redes de Economia
solidéria francesa nao teria sido formada sem o encontro de Lima,
em 1997 (mais conhecido como J Simpésio internacional pela globa-
lizagao da solidariedade), e os respectivos intercambios com seus in-
terlocutores latino-americanos que nele aconteceram. Em seguida,
0 Village da Economia Social e Solidéria no Forum Social Europeu
de Paris ~ Saint-Denis constituiu uma etapa importante para o que
havia se tornado o Movimento de Economia solidaria. Do lado de
c4, 0 Férum brasileiro de Economia solidéria, antes de se multipli-
car através dos féruns estaduais, encontra sua otigem nos debates
sobre a Economia solidaria no seio do Férum Social Mundial e foi
pela sua demanda que o governo Lula aceitou criar uma Secretaria
Nacional no interior do Ministério do Trabalho. A consideragao
destes aspectos nos leva a analisar os processos de institucionalizacso
de maneira mais fina, ou seja, na complexidade de suas diferentes
escalas. A institucionalizacao néo pode ser abordada como o des-
fecho de passos coletivos prévios no interior da sociedade civil. A
histéria da economia social ¢ soliddria na Franga, tal como evocada
por Chanial ¢ Laville (2006), basta para lembrar que o reconhe-
cimento de quadros juridicos distintos no século XIX significou
selecio e fragmentagao das iniciativas anteriores. Nem por isso a
institucionalizagéo pode ser reduzida & reprodugéo do instituido:
encaré-la somente como uma instrumentalizagao das experiéncias €
ctiar um impasse sobre o encaminhamento sinuoso da mudanca de-
mocratica, A institucionalizagao ¢, antes, 0 resultado de interacées
marcadas pelas desigualdades de poderes entre atores sociais “cuja
legislacao reflete, em um ou outro momento, peso respectivo num
Jean-Louis Leville & Genauto Carvalho de Franga Fiho 301ptocesso de negociagao” (BOUCHARD, 1995: 214). As configuracdes
examinadas, do local ao internacional, participam da delimitacao
do campo das possibilidades democréticas, porque elas formulam
“a questéo da articulagao, da mediagio, da jungio do politico néo
institucional, dos espagos piblicos de proximidade com os espagos
politicos de delegacao, da sociedade civil 20 Estado” (MaHBU & SA-
LBs, 1991), suscettveis de confortar uma viséo plural da economia.
A invengio politica, que nao é “monopdlio dos movimentos
sociais”, ¢ “situada no coragao do agir”, que “consiste precisamen-
te em problematizar o existente para promover 0 novo” (Dopigr,
2003: 340). A aco piiblica em matéria de Economia solidéria parti-
cipa dessa inven¢&o pelo questionamento do predominio dos pode-
res econdmicos, que paradoxalmente se exptimiu no momento do
retorno da utopia de uma sociedade de mercado (PoLany, 1983).
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