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RESUMO: Este ensaio resulta da leitura crítica do anúnico publicitário The Sculptor, do
automóvel francês Peugeot 206, com base na hermenêutica de Gadamer e à luz das
idéias pós-estruturalistas de Foucault, Derrida e Bakhtin. O ensaio foca
essencialmente a visão européia sobre os povos do hemisfério sul conforme expressa
pela formação discursiva do texto televisivo estudado, e propõe uma reflexão a
respeito de nossa postura em relação à nossa própria identidade e produção científica,
acadêmica e cultural.
Neste ensaio, apresento uma leitura crítica do filme The Sculptor, anúncio
publicitário encomendado pela fábrica francesa de automóveis Peugeot para divulgar
seu modelo 206 em canais de televisão da Europa em 2002. Partindo do princípio de
que esse anúncio é uma formação discursiva, inspirei-me, neste processo de leitura
crítica, na tríade hermenêutica compreensão–interpretação–aplicação tomadas como
partes inter-atuantes de um processo que é único (GADAMER, 1999) e que tem como
objetivo não apenas o conhecimento do que o texto diz, e da maneira como o faz, mas
o alcance de uma auto-compreensão e de uma verdade que estão além do enunciado,
e que residem na própria experiência hermenêutica.
Para Gadamer, a compreensão do leitor faz parte do acontecimento originado
pelo texto, sempre uma ruptura em relação ao já estabelecido que, como tal, requer
uma interpretação. Ao buscar a compreensão, torno-me, assim, uma crítica do texto,
mas também do contexto histórico em que esse texto se insere e da ideologia que o
fundamenta. Assim, é com o intuito de buscar uma compreensão aprofundada desta
mensagem televisiva – um objeto cultural que se tornou muito popular na Europa e foi
premiado em diversos festivais publicitários – e do âmbito da realidade que o circunda,
que realizo este exercício.
É importante lembrar, no entanto, que a leitura que aqui apresento é uma das
infinitas possibilidades de compreensão desta formação discursiva. Não pretendo
apresentar uma verdade única e total – pois, mesmo que tal verdade existisse, isso
não seria factível – mas uma verdade possível, e talvez apenas parte dela. Escolhi
abordar o filme The Sculptor a partir do ângulo formado pela visão européia sobre os
países do hemisfério sul e do modo como os habitantes de um desses países se
comportam na obra abordada. Não realizo, aqui, uma reflexão sobre a imagem da
mulher – que se deixa seduzir por um simulacro de um bem de consumo europeu –
apresentada no comercial, embora esse aspecto mereça também uma reflexão. Desse
modo, a tríade compreensão–interpretação–aplicação aqui exposta é parcial e
subjetiva, e está aberta a interpelações, que poderão originar debates que só virão a
enriquecer a reflexão.
No filme publicitário, a narrativa tem lugar na área central da pequena cidade
de Madras, no sul da Índia. É dia, e as pessoas passam, em suas roupas
características, a pé, de bicicleta, em burros ou em velhos ônibus, ocupadas de seus
afazeres diários. Essas primeiras imagens do comercial são levemente granuladas e
amareladas, dando a impressão de antiguidade. Ao fundo, escutamos os sons da
cidade – vozes de pessoas, ruídos dos velhos automóveis – e acordes de uma canção
indiana tradicional.
No centro da cena há um jovem solitário sentado em um banco da cidade. Ele
veste camisa e calça de algodão simples e sandálias. Seu olhar é forte e determinado.
Ele fixa os olhos em um velho carro, caminha até ele, se põe ao volante e, para a
surpresa dos transeuntes, começa a bater o veículo contra as paredes das
construções históricas da cidade, destruindo a frente e a traseira. Não satisfeito, faz
um elefante sentar na parte frontal do carro e, por fim, usa uma marreta para destruir o
que ainda está inteiro da carroceria do automóvel.
O garoto trabalha toda a noite, com martelo, talhadeira e soldador, modificando
a forma do antigo carro. Já de manhã, ao finalizar seu trabalho, ele compara o
resultado com a fotografia de um Peugeot 206 – duas páginas arrancadas de uma
revista, com marcas de dobras, que provavelmente estavam em seu bolso – e,
satisfeito, vê que seu produto final é muito semelhante. Sua postura muda
imediatamente. Ele passa a se mover com mais desenvoltura e seu olhar se torna
mais provocativo e espirituoso.
Na próxima cena é noite. Há uma festa popular no centro da cidade, e o jovem
atravessa o largo em seu veículo remodelado. As imagens, agora, são nítidas,
mostrando contrastes entre o escuro da noite e as luzes da cidade refletidas no carro,
e a música de fundo não é mais a tradicional indiana, mas uma música eletrônica que
ele ouve dentro de seu “novo” carro. Nesta cena, o garoto veste uma jaqueta Adidas e
usa óculos escuros no alto da cabeça. Ele também não está mais sozinho, mas leva
dois amigos em seu carro. As pessoas à sua volta – especialmente uma atraente
jovem indiana – têm seu olhar inevitavelmente aliciado para o homem que dirige um
carro que parece o Peugeot 206. Ele lhes olha com uma combinação de interesse e
superioridade.
A única fala do filme fecha o anúncio: “Peugeot 206: enfant térrible”.
Não há diálogos nesse filme publicitário, apenas imagens: imagens da cidade,
do garoto, de seus movimentos, do carro antigo e da cópia resultante de seu trabalho,
de seus amigos, do homem que o inveja e da jovem que ele quer impressionar. E
essas imagens são fortes e expressivas. A música final, Heaven Is A Place On Earth,
foi composta por Raja Mushtaq, um músico nascido em Delhi, especialmente para o
comercial, com o objetivo explícito de “refletir uma sensação indiana contemporânea”
(Carpages, 2003).
O filme recebeu diversos prêmios em importantes festivais publicitários na
Europa, entre eles o Grand Prix do Eurobest 2002 e o Gold Lion do Cannes Lion 2003,
os maiores troféus concedidos a filmes publicitários do continente. Uma nota publicada
na revista eletrônica Carpages – especializada em automóveis – em fevereiro de 2003
noticiou que o anúncio chegou ao primeiro lugar na lista dos favoritos dos participantes
de uma pesquisa promovida pelo programa You and Yours da estação BBC Radio 4,
de Londres, com 37% da preferência nacional. A nota descreve o comercial do
seguinte modo:
1
Différance é um neologismo francês homófono à palavra différence (diferença), e utilizada no contexto
da desconstrução. A palavra francesa différer significa simultaneamente deferir ou adiar e diferir. Derrida
(1972) indica que a différance aponta para características distintas que regulam a produção de significado
em um texto. A primeira – relacionada com deferição – é a noção de que palavras e sinais jamais podem
evocar o que eles significam, mas podem apenas ser definidos através de sua relação com outras
palavras das quais diferem. Assim, o significado é sempre deferido ou adiado através de uma cadeia
infinita de significantes. A segunda – relacionada com diferença – tem a ver com a força que diferencia os
elementos uns dos outros e, desse modo, engendra oposições binárias e hierarquias que autenticam o
significado em si.
através de modelos autenticamente locais, esculpidos com base no conhecimento de
nossa própria história e de nossa cultura, na consciência de nossas particularidades.
O que devemos buscar é uma alteridade radical e não especular (BAKHTIN, 1990), ou
seja, procuremos não o espelhamento de um modelo, mas o exercício de uma
identidade própria.
Lembremos, no entanto, que o eu, nunca é uma entidade absoluta, unitária ou
isolada, pois é sempre atravessada por diferentes outros, num jogo contínuo de inter-
influências. Não existe, assim, uma identidade plena e acabada, mas um constructo,
um processo permanente de organização de uma imagem. Não devemos buscar
transformar a cultura em uma totalidade homogênea, em que as diferenças e as
especificidades de interesses e necessidades se fundam, mas uma totalidade
complexa, que pressupõe a inter-relação das heterogeneidades e das
contraditoriedades, que não devem ser encaradas como uma ameaça, mas como uma
riqueza. A cultura não deve ser o resultado de um consenso, mas, ao contrário, uma
convivência sempre conflituosa das diferentes concepções e práticas.
Somos efeitos de nossos discursos (FOUCAULT, 1996). Como sujeitos, somos
a instância onde discursos se agregam e, ao mesmo tempo, são os veículos e os
instrumentos de divulgação de nossos conhecimentos. O exercício discursivo, assim, é
um ato de poder, e as relações entre o discurso e o poder são estabelecidas no
mesmo gesto. Toda vez que tomamos a palavra, exercemos nosso poder. E o mesmo
vale para os outros. Nossos discursos interpelam os outros do mesmo modo como
somos inquiridos pelos discursos dos outros. E nesse jogo, tentamos exercer nossa
subjetividade, ao mesmo tempo em que tentamos, não-ingenuamente, neutralizar as
diferenças.
Sou professora da disciplina de Educação e Multimídia no Curso de Pedagogia
da Pontifícia Universidade Católica do Rio Grande do Sul, e uma das unidades de
aprendizagem dessa disciplina envolve a leitura crítica – em uma perspectiva teórico-
prática – do texto televisivo. Acredito que, ao incitar os estudantes de Pedagogia – que
são futuros ou já atuantes educadores nos níveis mais básicos de ensino – a
estabelecer um distanciamento que lhes permita discernir e avaliar as formações
discursivas explícitas e implícitas nos programas e comerciais veiculados em nossas
redes de televisão, posso estar contribuindo para a ruptura e para a construção
identitária que defendo neste ensaio. Com nossa postura crítica, talvez não possamos
impedir que os discursos sejam proferidos, mas podemos ao menos estabelecer
obstáculos à circulação livre e desimpedida das ideologias impostas por eles,
desafiando-as e contrapondo-as com alternativas que nos sejam mais próprias .
John Goodman, diretor de marketing da Peugeot, afirmou que o 206 foi o carro
mais vendido na Inglaterra em 2002. “Esse resultado positivo nos leva a crer que o
comercial auxiliou nas vendas”, disse o executivo (Carpages, 2003). E acrescentou
que as premiações publicitárias recebidas colocam à empresa o desafio de continuar
criando comerciais atraentes para o espectador. Ou seja, o discurso da Peugeot não
se encerrou com o filme The Sculptor. Podemos inferir que a missão civilizatória que
Europa arrogou ainda continua.
Estaremos preparados para o que está por vir?
REFERÊNCIAS:
CARPAGES: UK Motoring Search Engine. 5 fev. 2003. [On line]. Disponível em:
<http://www.carpages.co.uk/peugeot/peugeot_tv_ad_is_nations_favourite_05_02_03.a
sp> Acesso em: 11 jun. 2007.
JABOR, Arnaldo, Somos mendigos à beira da ciberestrada. Folha de São Paulo, São
Paulo, 15 ago. 1995. Ilustrada. p. 7.
PARETO, Vilfredo. Manual de economia política. 2. ed. São Paulo: Nova Cultural,
1987.