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Teologia depois da Shoah: A Critica de Hans Jonas a Teodiceia CRISTINA BECKERT* RESUMO: O presente artigo pretende mostrar até que ponto a teologia judaica ~ aqui protagonizada por Hans Jonas ~ obrigada a rever os ctrbutos divinos depois da Shoah, evento onde 0 mal eclode em ioda a sua positividade e excessvidade. Através de wna narrativa mitica, de uma argumentacdo racional, por um lado, e teol6gico-rligiosa, por ‘outro, Jonas conclui com una afirmacdo da impossiblidade de conciliar a oranipoténcia divina com 0 mal, aptando antes pela imagem de um Deus impotenie, entregue ao devir ‘murdano e a acgdes do homem, vindo este uno a revelarse ericarvente responsive, ‘do s6 pelo seu préprio destino, como pelo futuro do ruundo ¢ até mesmo de Deus. PALAVRAS-Cuave: Atributo; Auschwitc; Bondade; Cabala; Criagéo; Deus; Deus abscon- ABSTRACT: The present paper shows how Jewish theology — here represented by the work of Hans Jonas ~ is compelled to think ever the divin attributes after the Shoa as the event here evil appears in allt positivity and excess. Through a mythic narrative, followed by «rational, on the one hand, ard a theological-religious argumentation on the other, Jonas concludes declaring it impossible to concilate the divine omnipotence with evil, deciding rather in favour of an impotent God, ie. ofa God exposed toa world of becoming and de- livered to the actions of human beings, whereby man becomes ethically responsible not ‘only for his own destiny but also forthe world’s ane even God's ture. Key Woros: Auschwite; Cabala; Creation; Deus absconditus; En-sof; Freedom; God; Goodness; Hillesum, Etty; Holocaust; Immanence; Isoac Luria; Jews; Job; Jonas, H.; Omnipotence; Responsibility; Shoah; Suffering; Theodicy; Transcendence; Tsimtsum. L uando Jonas afirma que 2 teologia judaica contempordnea tem que se confrontar com Auschwitz e no com o terramoto de Lisboa, esti, no s6 a por em causa a teodiceia pela sua ingemuidade — como o fizera dois sScu- los airds Voltaire — mas a denunciar o cariz perverso que esta pode albergar quando ultrapassa a esfera do mal natural para legislar sobre a do mal moral, na su positi- * Faculdade de Letras, Universidade de Lisboa (Lisboa, Portugal). (© Revista Powruavesa 0€ Fosoris, $7 (2001), 733-744 Ta CRISTINA BECKERT vidade extrema’. Nao seri, porventura, ocasional, a referéncia do autor a Kant e aa. modo como este concebe a figura de Deus, negando-the o estatuto de objecto de conhecimento, na medida em que transcende o Ambito da experiéncia posstvel. mas conferindo-Ihe, a0 mesmo tempo, 0 de “abjecto supremo”. sob a forma de horizonte unificader da ¢xperiéncia quer intema quer éxtemna’. O caminho estava aberto a uma progressiva desontologizago do divino que viria a culminar na sua pura e simples negagio com o advento do positivisma ISgico e 0 consequente estreitamento da esfera de sentido, doravante reduzide 20 directamente observavel como facto mundano, de onde € exeluida toda a referéncia a Deus enquanto ex- presso de uma transcendéncia imedutivel a qualquer forma de imanéncia. E este 0 desafio niilista com que Jonas se confronta ¢ de que a questiio da técnica ¢ to-36 uma manifestagao, nio © ceme’, Com efeito, a cisio irremediavel entre ser ¢ valor, a par da identificagao deste Gitimo com o nio-ser, levam, com toda a acuidade, & pergunta pelo sentido da existéncia: se a existéncia exclui de si o valor ou o senti« do, porque raza preferi-la A nio-existéncia, visto que se equivalem”* A denincia Es ist die Tatsache und das Gelingen des gewollt Bose viel mehr als die Heimsu- ‘der blinden Naturkausalitit — Auschwitz und nicht das Erdbeben von Lissabon -, ‘womnit jtidische Theologic heute zu ringen hat.” (H. Jonas, Der Gottesbegriff nach Auschwitt. Eine jdiche Stimme (4933), Frankfur-arn-Main, Subckamp, 1987, p44). CE. H. Jonas, Der Gottesbegriff nach Auschwitz. p.8. * Besta a tese de Dewitte, quando afirma que Jonas enfrenta, “[...] plutét que le défi tech- mologique, ec qu'on peut appeler le def aihliste, que ce soit sous la forme d'un scepticisme ow d'un eynisme raddicaux, ou d'un décuroi et d'un désespoir tout aussi radicau. Si cect est vrai, 8¢ pose alors la question des priorités: ne faut-il pas se conffonter d'abord au défi nihiliste pour [pouvoir aborder le défi eehnologique” (J. Dewitte, “La réfutation da nihilisme. Réflexions sur les fondements métaphysiques de I'éthique de la responsabilité” in Aux fondements dune é ‘que contemporaine. H. Jonas et H. T. Engelhardt, Paris, Vrin, 1993, p-75). A questio da wseni- ‘ca modema que, aparentemente, ocupa o centro das reflexdes jonasianas em Das Prinzip Ver- anhworteng, esconderia uma crise mais profunda, respeitante aos valores € ao fendmeno incon- tomivel da “morte de Deus". a que Jonas pretende dar respasta no presente texto. * E nestes termos - de preferénoia pela exisiéncia ou de dever-ser — que Jonas interpreta a pergunta leibniziana “porque existe algo e noo nada”, na sux obra fundamental, recusande toda a interpretagdo causal, imanente ou transcendente ao mundo, dado que a causalidode imanente aponta seripre para uma resposta relativa, enquanto a transcendente reenvia para urn dominio extrinscoo ao priprio ser, o de um Deus eriador. A respasta s6 poderd advir do valor sda propria existfncia, isto &, da verifieapto que ser é j4 valer, nlo sendo possivel opor os dois dominios de wma forma estanguuc, mas tio-s6 estabelecer uma hicrarquia de mais ou menos ser- -valor, Esta imanéncia do valor a existéneia ou, se quisermos, a objectividade do valor, impe- se a0 prépria Deus no acto criador. de tal modo-que Deus cria algo porque ¢ bom e m0, 20 invés, algo é bom porque Deus o cria, vindo as tarefas da Metafisica ¢ da Teologia a coincidir. Nas palavras do proprio Jonas: “Dic Frage des Seinsollens einer Welt lisst sich rrennen von Jeder These bezuglich ilrer Urheberschaft, eben mit der Anna, dass auch flr einen g0itli- chen Schipfer ein solches Seinsollen gemiiss dem Begriff-des Guten der Grund fiir sein Scha- fen war, er wollte sie, weil er fand, dass sie sein sollie.” (H. Jonas, Das Prinzip Verant- wornang. Versuch einer Ethik fiir die Technologische Zivilisation, Frankfurt-am-Main, Suhr- karnp, 1984, pp, 98-99). O proprio texto biblice da criagiio confirma.o valor emi da existéncia, Revises Postuqwess 06 Finosorin, $7 (2001), 73-744 A TEOLOGIA DEPOIS DA SHoan 735 da circularidade viciosa e tautolégica em que cai 0 procedimento positivista, a0 partir de um conceito predeterminado de sentido, para dele excluir tudo 0 que niio caiba nos seus limites, permite a Jonas romper o circula, mas no resolver o seu cariz vicioso, ou seja, no se trata de fornecer uma nova prova da existéncia de Deus, mas de abandonar a propria nogdo de prova, intimamente ligada ao circulo fontologico da existéncia, uma vez que “é possfvel trabalhar © conceito de Deus, mesmo se no houver prova de Deus”. ‘Ora, trabathar a conceito de Deus, independentemente da sua existéneia ou nto existéneia, tarefa que incumbe ao homem, ndo enquamo receptéculo de uma evidéncia que se Ihe impée, sob a forma intuitiva ou racional, mas como obreiro e criador de uma imagem do divino pela qual se toma inteiramente responsdvel, mediante um elo de natureza ética ¢ no j4 ontoldgica. Porém, tal implica uma total invers3o no sentido da prépria criagSo: no € Deus que cria o homem & sua ima- gem, mas © homem que cria a imagem de Deus para a qual ele proprio é°. Nao & ‘Deus que detém o poder de criar, mas 0 homem, permanecendo Deus impotente dependente do homem quanto ao destino de préprio mundo. Um modo tio arroja~ do de conceber a relagio entre 6 humano € @ divine $6 pode surgir em resposta a um acontecimento de proporpdes ¢ consequéncias inimagindveis no contexto da tradigao ocidental -.a Shoai ou o holocausto =, mas esta, longe de por em causa os alicerces da mundividéncia judaica, vai, antes, reforgd-los ¢ dar-thes novo alcance ‘no que toca aos pressupostos éticos da teologia. Importa, assim, comegar por interrogar o significado mais profundo da Shoah, de modo a clarificar o excesso que representa em relagio a todos os males pratica- dos pelos homens e pelo povo de Israel, em particular, até A sua data. Este excesso representa, antes de mais, uma ruptura com 0 espitita da teodiceia ou coma neces- sidade de justificar o mal que ilibaria a omnipoténcia divina de toda a responsabil dade pela eclosio deste no mundo. Com efeito, as explicagdes tendentes a retirar ao mal a sua malignidade ou o seu cariz injustificdve! aos olhos do préprio Deus sto, para Jonas, essencialmente duas, ambas amplamente utilizadas na economia da hist6ria da Alianga: 0 castigo (veja-se, por exemplo, 08 episédios do "bezerto de ouro”, exemplificativos das infidelidades do povo judaico a0 seu Deus e que mere- ceram a ira Deste) e 0 sacrificio (patente na oferta das suas préprias vidas por mi- Ihares de judeus, na Idade Média, que, recusando a conversio ao cristianismo, independentemente do acto erisdor divino, 20 reparti-ta por 3 etapas: 1. Fiai (Deus diz: “que a...": 2. a realizac3o do fiat (“ fol feito", 3. 0 jutza de Deus (“E Deus viu que era bom”) ‘Analisaremos, de seguida, as consequéncias desta independéneia da eriago em face do eriador para.a tese jonasiana de um Deus impotente que cria, no por poder, mas por auto-abnegago, * “Bs lusst sich also am Gotesbesniff atbelten, auch wenn es keinen Gotteseweis gibt (JH. Jonas, Ber Gonesbegriff nach Auschwitz. p.9). © A ideia de um homem, nao a imagem de Deus, mas para a imagem de Deus, foi-nos su- ‘gerida por C. Chalier, num artigo de comentirio & presente obra de Jonas (cf. C. Chalier, “Diew ‘sans puissance” ir Le concept de Diew aprés Auschwitz, Une voix juive, trad. Ph. Ivernel, Paris, Payot & Rivages, 1994. p.66). RevisT4 PonTucwiesa ne Fixosorsa, $7 (2001), 733-744 736 Caistina BECKERT aicangavam, assim, a santidade como justificagao do seu martirio). Em Auschwitz, porém, no sio o castigo merecide nem o sacrificio livremente assumido as causas do sofrimento atroz infligido ao povo judeu, mas apenas “a mais horrivel transfor- mago da eleigéo cm maldigio"’. E Deus permaneceu silencioso do alte da sua presumivel omnipoténcia, Este siléncio € tanto mais incompreensivel para a tealo- Bia judaica quanto esté dela ausente o estigma do pecado original, principio este que, a ser aceite, atenuaria a responsabilidade de Deus pela sua auséncia num mo- mento tio decisivo para o povo por Ele mesmo eleito. Por outro lado, fenémenos como 0 do messianismo, nas suas verses mais origindrias, fazem da Histéria 0 palco da redengo, 0 lugar onde o homem trava um incessante combate contra as ms inclinagdes até & salvagdo final, ndo permitindo que a vivéncia religiosa se emancipe da acqdo ética ¢ se Ihe sobreponha numa dimensio para além do bem € do mal. A pergunta permanece, pois, em aberto: porque nao interfere Deus? 1 ‘A resposta de Jonas a esta questo reveli-se surpreendentemente simples, mas ousada: Deus nao interfere porque néo pode. A impoténcia seria, assim, a dnica explicagdo cabal para a retirada do divino no momento da Shoah, aquela que nio poria em causa o atributo primeiro de Deus a que nao é possivel renunciar sem desfigurar o seu sentido ético mais profundo: a bondade. Esta rendincia & omnipo- téncia divina, emibora suscitada por um evento recente na histéria do judaismo, tem raizes profundas quer no gnosticismo, profundamente estudado por Jonas, quer na Cabala de Isaac de Luria, aos quais no ¢ certamente alheia, a forma mitica que escolheu dar & sua propria narrativa da criagiio, Comecemos, pois, por reproduzir e analisar 0 néicleo do mite jonasiano: “No comego, por uma escolha insondével, o fundo divino do Ser decidiu abanda- nar-se & contingéncia, ao risco, a diversidade infinita do devir. E isto de uma forma integral: uma vez comprometida na aventura do espago-e do tempo, a divindade no nada reter de si; nlio subsiste dela nenhuma parte preservada, imunizada, para dirigir, corrigir, finalmente, garantir, « partir do slém, a obliqua formaclo do seu des- tina no seio da criagio"* “Und doch ~ Paradox der Paradoxe was es das alte Volk des Bundes, an den fast keiner der Beteiligten, Toter und selbst Opfer, mehr glaubte, aber eben gerade dieses und kein ande- res, das unter der Fiktion der Rasse zu dieser Gesamtvemichtung auserschen war: die griss- lichte Umkehnung der Erwihlung in den Fluch, der jeder Sinngebung spottete.” (H. Jonas, Der Gortesbegriff nack Auschwitz. p. 13). “lm Anfang, aus unerkeanbarer Wahl, entschied der gisttliche Grund des Seins, sich dem Zafall, dem Wagnis und der endloscn Mannigfaltigkeit des Werdens anheimzugeben. Und ‘war gilnzlich: Da sie cinging in das Abenteur von Raum und Zcit, hiclt die Gottheit nichis von sich zurtick: kein unergriffener und immuner Teil von ihr blieb. um die unwegige Ausformung ihres Schiksals in der Schopfung von jenseits her zu lenken, zu berichtigen und letzlich zu garanticren.” (H. Jonas, Der Gontesbegriff nach Auschwitz, pp. 15-16). A importincia deste mito contempordineo da criago, na economia do-pensar jonasiano, é bem manifesta no-cons- Revista Portwavtsa ox Fusasares, $7 (2001), 793-744 A TEOLOGIA DEPOLS DA SHOAM 737 Como se pode observar, o: mundo teria tido origem, nlio num acto afirmative do poder divino, capaz de fazer brotar o ser do nada, mas num movimento de contrac- ‘sf0 de Deus que, abdicando da sua plena autonomia, se dissemina no espago e no ‘tempo, entrando, assim, na aventura de um mundo em devir, sabre o qual nia ten dominio”. O mais surpreendente, nesta narrativa, € que no nos deparamos nem com tum Deus que se recolhe em si mesmo depois do primero impulso criador, a maneira de(sta, nem, inversamente, com uma identificagio plena Deste com o mundo, & maneira pantefsta. Em ambos os casos — a comunicago ae mundo de uma ordem estruturante, no modelo defsta, e a identidade substancial deste com 0 préprio Deus, no modelo pantefsta, no permitem que 0 mundo sogobre no nada, sendo a contingéncia € o risca, bem come a positividade do mal, anuladas em face do poder divino. Ora, a que Jonas nos descreve nado é nem a separagio nem a iden- tidade Deus-mundo, mas aquilo que o préprio autor denomina, na esteira das filo- sofias existencialistas contemporineas, um ser-no-mundo do préprio Deus que, a partir dese abandono primevo, inicia um movimento de autoconhecimento € recu- peragSo de si mediados pela dindmica da natureza c da histéria”. © intento nitidamente cosmogénico deste mito da criago prolonga-se com a emergéncia da vida que constitui o primeiro sinal de transcendéncia da pura inér- cia, caracterfstica da matéria inorginica, com que o divino dé o primeiro passo na recuperagio da sua plenitude, Com efeito, a bipolaridade vida-morte, longe de re- presentar a marca da finitude que separa irremediavelmente o ser vivo da eter- nidade divina, indicia, antes, que esta dltima no pode ser concebida fora de um tante recurso do autor a.esta narrativa. Assim, surge, pela primeira ver, em Jmmortality and the maclem temper (1961) ¢ € retomado, sucessivamente, em Zwischen Nichis und Ewigheit (1963), no texto em anilise (1984) ¢ em Materie, Geist und Schopfung (1988). * A ideia de uma contraceéo divina como primeiro momenta da criagBo consttui 0 nécleo da Cabala luriana. Com o.Jsimisum, Isaac de Luria pretende responder & questo da compatibi- Tidade entre Deus © 0 mando, uma vez que, estando Deus em toda a parte, nBo-cxiste 0 nada a partir do qual seja concebivel a eriapio. A resposta 2 este dilema passa pela afirmagio de que tuma parte infinitesimal da luz do infinito (En-Sof) se extinguiu edeu origem a um espago vari que, Sendo apenas um ponte infimo no infinite, representa, no entanto, o espago cSsmico para a ccriagiio. Jonas ter levado is ditimas consequéncias esta contraorSo divina, transformando-a em. alxlicagdo total e dédiva plena de si propria criagSo (para uma explanagdo exaustiva do con- ceito de rsimisum na tradigio da Cabala, cf. M.-A. Quaknin, Tsimisoum. introduction & ta méditation hébraique, Paris, Albin Michel, 1992), "Auf dieser bedingungsiosen Immanenz besteht der modeme Geist. Es ist sein Mut oder seine Veraweiflung, in jedem Fall seine bittere Ehlichkeit, unser In-der-Welt-Sein emst zu rnehmen. [...] Dasselbe fordert unser Mythos von Gottes In-der-Welt-Sein.” (H. Jonas, Der Gortesbegniff nach Auschwitz, p. 16). A influéncia da concepeio heideggeriana do Dasein como ser-no-mundo € not6ria, mas, embora o prépria Jonas se reconitega em divida para com Heidegger, denuncia, ao mesmo tempo, o cariz excessivamente abstracto do seu pensamento, donde esté ausente 2 reflexdo ética, reduzida a um “vio decisionisma', bem como a dimensio fisica do cuidado, dirigida 8 satisfar3o das necessidades basicas (cf. a este propésito, H. Jonas, Philosophie, Rieckschaw und Vorschau am Ende des Jahrhunderts, Frankfurt-am-Main, Subr- Kamp, 1993). Revista PoxToGuESA DE FicOSOFTA, $7 (2001), 733-744 738 Ceistiwa BecKeRT tempo préprio as mutagdes da vida, sob pena de vir a coincidir, precisamente, com a extensfio e duracSo infinitas da matéria inerte. A presenga da morte intens vida ¢ é esta intensificago que se pode apelidar de divina, na medida em que com- centra em si mais riqueza ontol6gica do que uma extensdo infinita de matéria inor- ganica"'. Por sua vez, o brotar da sensago ¢ da consequente experiéncia da oscila- go entre prazer e dor, mies Vi animal, marcam, de forma indelével, o surgimento do valor ou do “sim ao ser” com que todo o ente capaz de sentir ¢ per- cepcionar 0 mundo enfrenta a exisiéncia, autorizando Jonas a afirmar que, “as suas criaturas, na medida em que se perfazem a elas préprias segundo o sew instinto, justificam a audicia divina. Mesmo o seu sofrimento aprofunda ainda a plenitude ‘sonora da sinfonia. E assim que, aquém do bem e do mal, Deus nao pode perder no ‘grande jogo de acaso que ¢ a evolucio.""” ‘A compatibilidade entre 9 divino ¢ a evolugio biolgica parece, assim, garan- tida, uma vez que lidamos, nJo com um Deus criador, mas com um Deus moral, logo, a dor ¢ 0 softimento ou o mal fisico ndo Lhe podem ser imputados e coexis- tem com Ele de forma pacifica, de tal modo que quase somes levados a falar, pe- rante-essa “plenitude sonora da sinfonia”, numa “teodiceia da natureza’, desde que dela seja excluido © homem. E que 0 aparecimento do ser humano na cadeia evolu- tiva assinala, justamente, um corte na continuidade do process natural, o fim da inocéncia e a introdugio da diferenca entre o beme o mal, momento esse em que 0 préprio Deus “‘se pée a tremer”, pois, pela primeira vez, vé o seu destino ameaga- do, Contudo, este consiste, também, no momento em que um ser vivo ultrapassa a sua condigao de mortal, nllo porque ascenda a um outro nivel de existéncia, mas Porque, através dos seus actos, se tomara responsavel pelo destino da natureza € pela edificagio da propria imagem do divino”. Este valor positive atribuido & morts tem consequéncias biodticas importantes ¢ permite ‘a Jonas fundamentar a sua oposigSo ao prolongamento artificial ds vida humans, previsto pelos ‘avangos registados no dominio da biologia celular. Para além de este avango tecnocientifico ‘contribuir pura a objectivagio do homem, juntamente com 4 manipulagSo genética e compor- ‘amental, hd que levantar a questo: «Wie wiinschenwert ist dies? Wie Wilnschenwert fir das Individuum, und wie fir die Gattung?» (...] Vielleicht ist eben dies die Weisheit in der har- ‘schen Figung unserer Sterblichiceit: dass sic uns das ewig emeute Versprechen bieter, das in ‘der Anfanglichkeit, der Unimimelbarkeit und dem Eifer der Jugend liegt, zusammen mit der igen Zafuhr von Andersheit als solcher." (H. Jonas, Das Prinzip Verantwortng. pp.a8-<9) “the Gesehpfe, indem sic nur ihrem Trieb gemiiss sich selbst erfullen, rechifertigen das -potiliche Wagnis. Selbst ihr Leiden vertieft noch die Tonfille der Symphonie. So kann denn, -diesseits von Gut und Baise, Got im grossen Glicksspiel der Entwicklung nicht verlieren.” (H. Jonas, Der Gottesbegriff nach Auschwitz, p. 21). 8 “Das Bild Gottes (,..J geht [...] in die fragwlirdige Verwahnung des Menschen Ober, um ‘erfill, gerettct oder verdorben zu werden durch das, was er mit sich und der Welt tut. Und in diesem furchterregenden Auftreffen seiner Taten auf das g6ttliche Geschick, ihrer Wirkung auf ‘den ganzen Zustand des ewigen Seins, besteht die menschiiche Unsterblichkeit.” (H. Jonas. Der Gottesbegriff nach Auschwitz, p. 23). E com base nesta peculiar nogdo da imortalidade humana, cuja medida se traduz na responsabilidade do homem por si proprio, pelo munda e por ‘Deus, que Jonas pode formular 0 seu projecto de uma “ética do futuro”, mais propriamente, das Revista Porrucuesa 06 Ficasoria, $7 (2001), 7336744 A TeoLocia DEPoIS DA SHOAH 739 O jogo subtil entre continuidade e ruptura que Jonas utiliza na sua narrativa mi- tica permite-Ihe, como tentimos explicitar, nela compreender o conceito de evolu- ‘$80, mas no a teoria evolucionista tal como Darwin a concebeu. Na verdade, aquilo que apelidémos de “sim ao ser” e que consiste na emergéncia do valor, distingue-se da simples autoconservago cvolucionista porque gera uma reduplica- doda sensagao sobre si mesma que afirmna 0 “valor do Yalor”, ponda-se como fim + ndo-apenas como meio de sobrevivéncia, Por outras palavras, o-uso implica jd um “usu-fruto”, um fruir de... que, na sua grawitidade, se emancipa e sobrepie 20 valor adaptative, meramente instrumental, tornando-se irredutivel a ele. Deste modo, “um dos paradoxos da vida consiste no facto de esta utilizar meios que modificam o fim, tornando-se, eles mesmos, parte do fim, O animal senciente procura preservar-se a si proprio como uma entidade senciente ¢ no apenas meta- bolizante, isto é, procura continuar a prépria actividade de sentir”* A consciéneia nio é, pois, somente um instrumento de. adapta¢io ao meio, mas um sinal de algo que se ird revelar no ser humano como autonomia, liberdade € responsabilidade, sem que, no entanto, a presenca — porventura projectiva — do superior no inferior, consiga superar © hiato intransponivel que entre eles se formou'?, {geragées vindouras, consubstanciado num novo imperative categérico, onde a pura racionali- dade Kantiana ¢ substitida pela dimensio mais abrangente da vida:"

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