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Dossié e Documentos: Avali¢do de Politicas de Economia Soliddria no Brasil [acer Politicas pUblicas de economia solidaria no Brasil: caracteristicas, desafios e vocacdo Genauto Carvalho de Franc¢a Filho Introducao Como avaliar as politicas de economia solidéria no Brasil? Como compreender sua natureza e singularidades? Existe algo efetivamente inédito em matéria de poli- tica ptiblica contido em tais politicas? Quais os limites e desafios que elas apresen- tam para a democratizagao das relagbes entre sociedade civil e Estado? Estas so algumas questes de fundo que o presente capftulo pretende debater. Para tanto, 0 propésito aqui é de oferecer um olhar ampliado sobre a realidade de tais politicas na forma de uma caracterizaeZo posstvel do fenémeno de emergéncia destas politicas. Do ponto de vista da forma, tal caracterizagao apdia-se em nosso proprio relatério final de pesquisa sobre avaliagao de politicas puiblicas de economia solidéria no Brasil ~ convénio Ipea/Ministério do Trabalho e Emprego através da Secretaria Nacional de Economia Solidéria (Senaes). O Presente capitulo reflete um esforgo de sintese deste relatério. Metodologicamente, a construgao deste relatério fundou-se em trés fontes principais de pesquisa. A principal delas foi a prépria pes- quisa empirica de base qualitativa, orientada essencialmente através de entrevistas com gestores piblicos responsdveis pelas polfticas e representantes de entidades da sociedade civil que foram parceiras na construedo e implementagio da politica. Esta investigagao qualitativa compreenden especificamente os municipios de Aracaju, Recife ¢ Sto Paulo. As informagées resultado desta pesquisa foram complementadas através de anélise de documentos e textos de trabalho produzidos nas respectivas gestdes, além da andlise do questiondrio previamente enviado & rede brasileira de gestores piiblicos de economia solidéria Em termos de conteiido, a caracterizago que seré aqui desenvolvida estrutura-se a partir de quatro aspectos ou tracos principais que atribuimos a tais politicas. O primeiro deles possui sentido e abrangéncia mais geral, enquanto que os demais apresentam-se muito mais como vocagées importantes de tais Ppoliticas, refletidos particularmente em dois casos que podemos considerar como embleméticos dessa ealidade pela complexidade e inovagao na construedo ¢ implementagio da politica: as experiéncias de Recife (2000-2004) e Sao Paulo (2000-2004). A construg%o da presente caracterizacdo leva em consideracao alguns elementos basicos para uma anélise ¢ avaliagio de qualquer politica, como sua concepgio, seu nivel de estruturagao, o modo de participagio social dos atores na politica, além do seu modo de execucao, entre outros, Os quatro tragos ou caracterfsticas das politicas de econo- mia solidéria a serem sublinhados a seguir definem ao mesmo tempo a prdpria estru- tura do presente capftulo. Na primeira parte do texto, o propésito ¢ de contextualizar um pouco tais politicas, sublinhando seu cardter recente, Este aponta a dimensto processtal ou de construgéo gue vive tais politicas neste momento, reflexo da auséncia de um quadro institucional € de metodologias definitivas que sirvam de suporte ¢ orientem a construco destas praticas na realidade. Estes elementos sinalizam a questdo do reconhecimento Ago publica e economia soliddria: uma perspectiva internacionat 259.0 coulis D5ubs4 ep CYIDAIDD O}NDUAN | 1!SDIg OU DUDPHOS DIWOUODe ep spanand soonNod ov a institucional como uma das probleméticas centrais da economia solidéria no pais. Mas, como todo processo em construco, indica uma grande diversidade na concepgo € modo de realizagio prética de tais politicas no cenério nacional (0 que comega a ser minimizado mais recentemente através da agdio da rede de gestores puiblicos de formen- to & economia solidéria). Uma tal diversidade relaciona-se as prOprias caracteristicas do tecido organizativo societério local, bem como o padrao de cultura politica prevale- cente na relago entre Estado e sociedade ern cada contexto governamental. Porém, tal diversidade reflete ainda a forma de apropriagao do tema da economia solidéria em cada lugar, que esté relacionado as diferentes concepgies de politica piiblica neste campo servindo de suporte &s praticas efetivas empreendidas nos tertitérios. Os trés momentos seguintes do capitulo exploram trés outras caracteristicas que definem, sobretudo a partir dos casos de Recife e Sdo Paulo, o que poderfamos considerar aqui como trés vocagées de uma politica ptiblica efetiva de economia solidéria em termos de caracterfsticas fortes. A primeira salientando sua dimensio de articulagao como condigdo para sua efetividade. Uma articulagao definida, sobre- tudo, na sua relagao com a sociedade civil, mas que também supde uma dimensio intragovernamental. A segunda afirmando a vocaco indutiva de tais politicas e a terceira, o cardter de uma politica de organizagao da sociedade. Por fim, nas consi- deragées finais € feita uma recapitulagdo da tese fundamental contida neste texto, além da sua estrutura légica argumentativa, e sdo salientadas algumas implicagdes em termos de originalidade de tais politicas na construgao de um novo padrao de relacdo entre Estado e sociedade no Brasil. Uma politica em construcdo: o cardter diverso da realidade atual ‘A nogao de “politica em construgio” afirmada neste momento relaciona-se a0 fato de tratar-se de experiéncias ainda muito recentes no pais, cujas metodologias encontram-se, portanto, em processo de experimentagao. Além disso, essa idéia de uma “polftica em construgao” diz respeito também ao fato da tematica da economia solidaria constituir-se por enquanto num assunto ainda impreciso para muitos, apresentando assim um certo polimorfismo de interpretagao. Ou seja, parecem diversas as formas de compreender o tema, e por conseguinte, seu modo de elaboré-lo na pratica. Alids, em alguns momentos, 0 termo economia soli- daria ganha ares de modismo, deslizando com simpatia no interior das estruturas de governo, sem entretanto apresentar unanimidade quanto ao modo de defini-lo. Tem crescido o numero de gestores sensibilizados com 0 tema, contudo parecem ainda muito poucos os governantes que conhecem efetivamente o assunto. Portanto, enquanto politica em construgao, existe uma heterogeneidade nas for- mas de apreensio de tais politicas. Esta heterogeneidade compreende, ao mesmo tempo, o nivel de estruturagdo e lugar destinado & politica na arquitetura governa- mental, a concepgio e participac&o social na politica, bem como seu modo de implementagéo em relag&o ao conjunto do territério nacional, conforme abordare- mos mais adiante. De politicas de emprego para politicas de geracdo de trabalho e renda As diferengas, portanto, nos modos de pensar e fazer a politica de economia solidéria no Brasil podem, entretanto, ser sintetizadas em duas grandes concepgies gerais de tais politicas. Antes de apresenté-las, no entanto, importa salientar sua herana anterior enquanto politica puiblica voltada para o trabalho, referindo-se 20 que existe de comum a idéia a priori de uma politica piiblica de economia solidéria. De fato, em relagao a tais politicas parece inaugurar-se uma preocupagéo com a questio da geragao do trabalho e renda, para além da nogdo exclusiva de emprego. Com efeito as politicas de emprego anteriores n4o imaginavam possibilidades de geragiio de trabalho e renda fora do paradigma da relagio assalariada cldssica, Neste sentido, a questo fundamental a ser abordada dizia respeito fundamentalmente a0 aspecto da qualificagao profissional. Tal politica baseava-se fundamentalmente em uma disseminagZo massiva de cursos de capacitagao técnica visando a um aumento das condigdes de empregabilidade da mao-de-obra, Existe de modo subjacente a tal pratica, uma crenga nas capacidades do mercado de trabalho formal e do proprio desenvolvimento centrado no crescimento econ6mico em poder absorver 0 conjunto crescente de desempregados. Explica-se, desse modo, o desemprego como exelusi- vamente um problema de baixa qualificagio da méo-de-obra Assim, a entrada em cena da idéia de politicas ptiblicas de economia solidéria, diante de um contexto apresentando sinais muito claros de um processo que Singer chama de “desassalariamento da economia”, parece refletit um salto (em termos de énfase discursiva) da nogdo de politicas de emprego para a idéia de politicas de Beragio de trabalho ¢ renda. Tal salto carrega consigo alguns riscos de interpretagao, como aquele podentio identificar a nogdo de geracao de trabalho e renda, no ingar da idéia de emprego, como uma tendéncia precarizante do mercado de trabalho. Tais riscos tornam-se realidade em alguns casos, quando de fato na prdtica politica enfatiza- se simplesmente a organizagao da economia informal sem maiores conseqiiéncias estratégicas ou uma visdo de desenvolvimento que a acompanhe. Por outro lado, a nogao de gerag2o de trabalho e renda nao parece em si sindnimo de precarizagao das telagdes de trabalho, Mas, ao contrério, ela aponta algumas possibilidades abertas para novas formas de relagées de trabalho também enfatizando a questo da garantia de direitos, num contexto do desenvolvimento do capitalismo em que a norma do contrato de assalariamento perde sua centralidade efetiva e entra em crise, Trata-se aqui de uma discusséo sobre noves paradigmas que devem ser pensados em relagio a0 futuro da chamada sociedade do trabalho, apontando.a importdncia de se pensar novos marcos e sistemas de regulacdo telativos ao funcionamento da economia real. Duas concep¢ées de politicas de gera¢do de trabalho e renda Desse modo, muito embora devamos reconhecer este salto da idéia de politicas de emprego para aquela de polfticas de geraco de trabalho e renda, pelo menos duas grandes concepgées desta ultima podem ser sumarizadas a titulo de ilustragao sobre a heterogeneidade nos modos de consecucio das politicas de economia solidétia, que em geral sao identificadas como politicas de geragao de trabalho e renda, A visdo exclusivamente formativa descrita no inicio, pode-se acrescentar duas outras, que chamaremos aqui de uma concepedo insercional-competitiva e uma concepedo sustentavel-solidaria, A concepc¢éo insercional-competitiva A primeira concepedo insiste ainda na importancia da qualificagao profissional. Porém, critica aquela visto anterior ao considerar a qualificagio n4o como suficien. te em si mesma. Estas devem ser pensadas ¢ elaboradas em fungao de um acompa- nhamento das tendéncias de mercado, devendo assim adaptar-se As demandas reais de qualificago conforme define as caracteristicas e diferentes conjunturas de orga- nizagao do mercado de trabalho. Mas, além desta dimensao de qualificaco, tal con- cepa enfatiza ainda a necessidade de organizaco da economia informal numa perspectiva de insergio socioeconémica, Dissemina-se através dessa concep¢ao os valores de empreendedorismo acoplados a uma visio de negdcio devendo orientar Qs projetos a serem apoiados. Trata-se de uma visio que acredita nas possibilidades Agdo publica e economia solidaria: uma perspectiva internacional 260 ong ESUDIE ap OYNEAIDD O}ADUAD | \ISHIG OU OUPHOS O|WOUODS ep SodNGEd SDINNOd we 0 de promogao do desenvolvimento via insergdo da massa de desempregados e subempregados, sobretudo 0 piblico vivendo precariamente na economia informal, na economia de mercado sob a forma de novos micro e pequenos empreendedores. A visio, neste caso, esté centrada numa maior organizagao ¢ estruturacao da econo- mia informal, sobretudo em termos de reforgar sua I6gica de eficiéncia econdmica enquanto negécio prodativo. Pensa-se, assim, numa politica de geragao de trabalho e renda numa perspectiva inclusiva, entendida no sentido da acomodagao dessa eco- nomia informal nos marcos institucionais regulat6rios de uma economia de merca- do, prescindindo da incorporagdo de uma estratégia efetiva de desenvolvimento di- ferenciado ou inovador em relagao & centralidade dessa mesma economia de merca~ do como mecanismo de desenvolvimento local A concepcdo sustentdvel-solidaria ‘A segunda concepgao reconhece a importancia dessa primeira, ao considerar ne- cessério responder a certas cemandas do mercado formal, bem como, ter uma ago de organizagao da economia informal que se encontra dispersa, fagmentada e muito ptecarizada. Porém, trata-se de uma concepg&o que insiste antes de tudo sobre a construgo de estratégias territoriais de desenvolvimento em torno do fomento de uma outra dinamica econémica, baseada na construgo ¢ fortalecimento de circuitos socioprodutivos locais integrados ao tecido das relagSes sociais, politicas e culturais de um lugar. Mais do que simplesmente uma politica de geragao de trabalho ¢ renda para parcelas marginalizadas da sociedade, trata-se, portanto, de uma concepgao de politica estratégica, na medida em que pensa o desenvolvimento centrado em con- textos tertitoriais especificos. Além disso, tal desenvolvimento nao considerado apenas como simplesmente um fortalecimento de empreendimentos econ6micos lo- cais. Trata-se de pensar a construgao de iniciativas econdmicas articuladas em cit- cuitos socioprodutivos locais ¢ ainda integradas a outras formas de iniciativas lo- cais, visando 20 fortalecimento (além do econémico) das dimensGes social, politica, cultural e ambiental num determinado contexto espacial. Trata-se, neste caso, de pretender inventar novas institucionalidades em certos territ6rios, a fim de fomentar 0 desenvolvimento de uma outra dinamica econémica, baseada na combinagao do potencial das formas nio capitalistas de producao no bojo de iniciativas populares solidétias articulando-as a outras iniciativas no campo da sociedade civil. A nogao de distritos de economia solidéria pode revelar-se particularmente fecundo enquan- to Norte orientador da implementagao de um tal tipo de concepgo. Duas concepgées em debate Essas diferentes concepgdes de politicas de geragao de trabalho ¢ renda refletem a dificuldade mesmo de unanimidade da compreensiio do que seja economia solidé- tia. E verdade que ambas buscam demarcar-se da concepgao anterior fundada no registro de uma politica de emprego, que acredita nas possibilidades do mercado formal poder tudo absorver, respondendo inclusive aos processos de extrema desi- gualdade social. A primeira concepgao jé admite os limites de uma politica de em- prego no contexto atual marcado entre outras caracteristicas por um processo de “desassalariamento da economia”. Diante de um tal cenario afirma-se a idéia de uma politica de geracio de trabalho e renda (sem perder de vista a dimensao da qualificago profissional), voltado principalmente para os setores informais e As for- mas nao capitalistas de produgao. Porém, o horizonte paradigmatico de tal concep- ‘fo permanece aquele de uma economia de mercado, no sentido em que os grupos informais devem investir-se de sua légica e modo de funcionamento, segundo a idéia de empreendedorismo comumente em voga. Neste sentido, os grupos/iniciat vas deverio estar aptos a inserirem-se no circuito convencional da economia, consi- derado como tinico caminho possfvel para produzir e viver socialmente. Isto signifi- ca assimilar a légica mercantil como tnico meio de troca econémica possivel, bem como o interesse utilitério como motivador fundamental para aco empreendedora individual e coletiva. Bm termos metodolégicos, tal concepgdo costuma traduzir-se por ages pontuais de apoio a iniciativas especfficas envolvendo grupos informais no sentido de tornarem-se aptos enquanto empreendimentos produtivos estaveis em certos contextos de mercado ou 0 apoio aos chamados arranjos produtivos locais (APL), que significa fortalecer competitivamente clusters produtivos tertitoriais for- mados por um conjunto de micro e pequenos empreendimentos econémicos sob uma base territorial especifica. Jéa segunda concepgdo assimila o sentido fundamental de uma economia solidé- ria ao sugerir uma dupla insctigao dos empreendimentos a serem construfdos: a pri- meira econémica, no sentido de serem socioprodutivos, gerando trabalho, renda e permitindo circulagao de riquezas num contexto territorial especifico; e, a segunda, politica, no sentido de pensar tais iniciativas como também formas de intervengio num espago puiblico. Isto é, trata-se de incitar uma dinamica associativa devendo participar da aco de tais grupos. Nesse caso, a nogdo de negécio é ressignificada em favor da énfase sobre as dimensdes social, cultural, politica e ambiental que partici- pam da iniciativa, para além do econémico. Ao invés, portanto, de uma énfase em estratégias de insergao competitiva de iniciativas organizadas como modo de pro- mogao do desenvolvimento local, privilegia-se 0 fortalecimento da propria sustentabilidade territorial com base na constituigao de outros circuitos de relagdes de trocas econdmicas em que a solidariedade adquire centralidade. Uma heterogeneidade de agées em nome da economia solidéria Em suma, embora a concepgio sustentavel-solidéria constitua a voca¢o maior enquanto matriz orientadora de uma politica de geragio de trabalho em renda em termos de economia solidéria, ainda parece relativamente comum a disseminagdo de agées de natureza insercional-competitiva em nome de um idedrio de economia so- lidéria, Isto reflete o polimorfismo de interpretagdo que o tema ainda suscita na agenda de diferentes governos, salientando o caréter de “politica em construgio” mencionado anteriormente, Uma ilustrago dessa diversidade interpretativa pr6pria as politicas de economia solidaria hoje é a heterogeneidade de acdes veiculadas em seu nome. Estas envol- vem desde as iniciativas de qualificagio profissional de segmentos de trabalhadores informais como forma de incrementar sua insergo estratégica no mercado de traba- Iho, além de agdes convencionais de disseminagao do microcrédito ou iniciativas de intermediagao de mao-de-obra, passando por programas de incubago de iniciativas populares solidérias, ou ages de fortalecimento & organizacio de redes associativas © grupos socioprodutivos nos préprios territérios, até as agdes de constituigio de centros pliblicos de economia solidédria, entre imimeras outras. Esta heterogeneidade de acGes informa sobre a compreenso e reconhecimento bastante variado que o tema suscita em diferentes governos. Isto pode ser observa- do, inclusive, através do proprio lugar que a chamada politica de economia solidéria ocupa em certas estruturas de governo: em alguns casos trata-se de projetos ou ages pontiiais dentro de uma secretaria especffica, em outros pode-se falar em programas ou na constituigao de diretorias especfficas no bojo de certas secretarias de governo. Assim, o grau variado de estruturago das politicas de economia solidaria no Brasil, pode ser explicado pelo préprio nivel de organizacao de um movimento de econo- mia solidaria em diferentes contextos, Nos casos em que se verifica um tecido social mais organizado e fortalecido é comum haver um maior poder de influéncia no nével da estrutura de governo — levando em certos casos a prpria participaco direta de blica e economia solidaria: uma perspectiva internacional a0 po Ag 2630 atores oriundos dos movimentos sociais como novos gestores ptiblicos de tais poli- ticas. Em resumo, 0 nivel de concepgao ¢ estruturago da politica de economia soli- daria depende diretamente da sensibilidade dos gestores envolvidos, que por sua vez se encontram diretamente influenciados pelo grav de organizaco dos movimentos sociais em seus respectivos contextos. Uma politica fundada em interacées reciprocas Essa é uma segunda caracteristica fundamental das politicas de economia solidé- ria, particularmente emblematicas nos casos de Séo Paulo e Recife. Uma politica fundada em interagGes reciprocas significa dizer que elas nfio so concebidas em gabinetes ou “de cima para baixo” (do Estado para a sociedade, por exemplo), mas, a0 contrario, supde uma relagéo dinamica com a sociedade civil, fundada em articu- lagées ¢ interacées diversas. Porém, a noco de interago aqui supde dois niveis de articulago: a) intragovernamental, eb) com a sociedade civil. A necessidade de articulagdes intragovernamentais Embora tenhamos frisado aqui a nogdo de necessidade, este primeiro aspecto define-se muito mais como uma vocagao de tais polfticas do que como sua realidade efetiva no momento atual. Uma vocacao pois o tema da economia solidéria possui carter transversal, tendendo a mobilizar diferentes éreas de atuagao politica em razo da natureza mesma desse objeto. Ou seja, a economia solidéria nao diz respei- to apenas a um problema econémico, ela envolve outras questdes como a sociabili- dade nos territ6rios, a participagdo politica das pessoas, 0 grau de organizacio associativa, a preservagdo ambiental, a afirmacao de identidades culturais, etc. Isto porque, conceitualmente, em economia solidéria, 2 economia, entendida como as atividades associadas ao trabalho, torna-se um meio para a realizacao de outros ob- jetivos no econémicos: como objetivos sociais, através da melhoria das condigdes de sociabilidade entre as pessoas, bem como 0 fortalecimento dos seus vinculos no territ6rio; ou objetivos politicos, através da consideragHo desses espacos de organi- zagio socioprodutivos como também espacos pUblicos em que os indivfduos discu- tem seus problemas comuns ligados as condicdes de vida no bairro, por exemplo, encaminhando solugGes até sob forma de iniciativas econémicas visando a resolver problemas ptblicos concretos. Além disso, trata-se de iniciativas polfticas também no sentido em que os empreendimentos séo pensados como formas associativas, incitando uma dindmica portanto de ago ptiblica que se combina aquelas acdes mais socioprodutivas. Além de social e politico, as iniciativas de economia solidaria podem também mobilizar uma dimensao cultural e ambiental forte ao investir em iniciativas que contribuem para o resgate e afirmagdo de identidades culturais territoriais ¢ preservagao do meio ambiente, E neste sentido que projetos de economia solidéria podem e séo empreendidos em diferentes secretarias de governo ao envolverem diferentes teméticas, como por exem- plo educagao ambiental, transporte, lazer e esporte, habitago, seguranca alimentar, etc, Ela (economia solidéria) possui, portanto, uma vocagdo de transversalidade en- quanto temética, exigindo assim uma complexidade no seu tratamento. Uma tal vocago nfo se efetiva sempre na realidade em razio da logica mesmo de estruturagao politica e funcionamento dos governos em que na maioria das vezes as secretarias nao dialogam entre si, pelas raz6es as mais diversas, inclusive relaci- onadas a disputas politicas em torno da legitimidade dos diferentes projetos elabora- dos. O mero desconhecimento sobre o que faz um vizinho de secretaria ou o citime pelo projeto alheio, pode ser fator inibidor das possibilidades de um efetivo trata- mento transversal dos assuntos politicos. ‘Além desses fatores, a propria novidade do tema, ligado ao seu pouco entendi- mento efetivo, no confere a ele ainda status suficiente para poder ter um papel de aglutinagao de varias secretarias. As articulagdes com a sociedade civil Se as interagdes intragovernamentais se apresentam hoje muito mais como uma vocagao de tais politicas, as articulagdes com entidades da sociedade civil, por outro lado, representam uma condigdo mesmo para efetividade de tais politicas. E: como se devéssemos afirmar que tais politicas nfo se constroem ou podem ser implementadas prescindindo de um tal nivel de articulagao. ‘As razées devem-se & propria novidade do tema, relacionado ao fato dele repre- sentar uma emanacdo direta da sociedade civil e dos meios populares. Sao sobretudo organizagdes da sociedade civil (as chamadas entidades de apoio e fomento - EAF) que acumularam conhecimento acerca dessa realidade de urna economia popular e Solidaria, bem como dos meios de fomenté-la, que passam a interagir com o poder puiblico na concepgiio e implementagao de tais politicas. Isto explica por que encon- tramos nos casos mais embleméticos de politicas piiblicas de economia solidéria (como foram as experiéncias de Recife ¢ Sao Paulo) a presenga de gestores ptiblicos, principalmente em situagto de coordenagéo, oriundos do préprio campo da econo- mia popular e solidéria, com um perourso de vida e itinerario profissional ligado a uma forte atuagao em entidade de apoio e fomento & economia solidéria. O efeito mais visivel desta articulagao necesséria entre sociedade civil e Estado na constituicao de tais politicas encontra-se no préprio formato prético que elas Costumam assumir enquanto espacos piiblicos de discussao, reflexao, elaboragao ¢ encaminhamento de propostas ¢ idéias. A énfase na constituigao de Centros publicos como estratégia de implementagdo de tais politicas, como particularmente ilustrado nos casos de Recife e Sao Paulo, revela talvez aquilo que exista de mais inovador esse género novo de politica piblica no Brasil, sinalizando novos padroes de defi- nigdo das relagdes entre Estado e sociedade. Embora resida neste aspecto, nitidamente, uma tendéncia de redemocratizagio significativa das relag6es entre Estado e sociedade, elas evidentemente nao ocorrem sem dificuldades no espago da constituigao de tais polfticas. Muitas séo as tenses ¢ fricgdes caracterizando tal relacao 0 que parece apontar um paradoxo constitutivo da sua natureza mesmo, ou seja, 0 de supor um padrao de relagdo que € sempre 0 mesmo de cooperacao conflito. Um paradoxo, alids, que parece inerente & condi- ao e possibilidade do exercicio democratico. Importa salientar também que o grau de consisténcia em tais interac6es varia em fungio do nivel de organizagao do campo da economia popular ¢ solidéria em cada contexto de realidade, bem como das proprias caracteristicas ¢ composi¢ao desse tecido organizativo local. Ou seja, 0 tipo de entidade parceira pode variar significa- tivamente entre uma realidade e outra, com teflexos evidentes sobre a propria con- sisténcia da politica. Uma politica com forte vocac¢ao indutiva Esta caracteristica indica o carater estratégico das politicas de economia solidéria ‘enquanto modo de desenvolvimento. Isto porque trata-se de uma politica nao apenas de resposta as pressdes € demandas, mas de induco de processos de organizagio e desenvolvimento. Tmporta salientar que, enguanto politicas de geragdo de trabalho ¢ renda numa perspective de combate & pobreza e as desigualdades sociais, tals politicas lidam na eenioria dos casos corn Categorias marginalizadas da sociedade. Tal populagio cos- Acao publica e economia solideria: uma perspectiva internacional 265 0 2 g ound 05ub14 ep OUPPAIDD OJNDUED | ISOIG OU CUOPNOS O1WOUEDe Ep sDINaGOd SDD! oz 0 tuma apresentar muito mais caracter(sticas de dispersdo, desmobilizagao ¢ desorga- nizag&io do que o contrério. Atuando, portanto, em tecidos organizativos locais pro- fundamente fragilizados, tais politicas buscam em primeiro lugar estimular proces- sos de auto-organizagao colelivo. Elas induzem & organizagéo dos grupos sociais nos territérios como primeiro passo para uma tentativa de construgao de processos mais sustentaveis de desenvolvimento. E assim, por exemplo, através das agdes de organizago dos grupos informais e redes sociais, além das iniciativas de apoio a0 associativismo e cooperativismo. Reside precisamente neste aspecto a visdo estratégica de mudanga da realidade contida em tais politicas: de passagem de um estado de simples reprodugao das condigdes basicas de vida, para uma possibilidade de reprodugo ampliada do modo de vida, o que permite transformagées institucionais efetivas nas condi¢des mais gerais de existéncia das pessoas num territ6rio. Esta é também a visio estratégica da passagem de um estado de subsisténcia das iniciativas empreendidas para um estado de sustentabilidade, refletindo o salto estratégico necessdrio que induzem tais politi- cas de uma condi¢%o de economia popular apenas, para uma condicao de economia popular e solidaria, Um salto que pode ser ilustrado ainda através da énfase no des- locamento das nogdes de assisténcia e compensago para aquela de emancipacao. F por esta raz40 que as politicas pibblicas efetivas de economia solidéria vao atribuir grande Enfase as dimensdes no econdmicas, como os aspectos de organiza- Gao politica e social dos grupos nos seus tertitérios. Daf também a énfase em dina- micas associativas devendo complementar a visdo exclusivamente econémica de negécios. E assim que agdes muito valorizadas em tais politicas dizem respeito exa- tamente ao apoio e fomento & organizagao dos grupos e constituigéo de redes, se- gundo 0 pressuposto de que primeiro se deve organizar sociopoliticamente esses grupos no seu territério, fortalecendo o seu capital social, para que haja condigdes efetivas de geraco de trabalho e renda. Uma politica de “organiza¢ao da sociedade” Em suma, a vocagio maior de tais politicas parece ser exatamente a idéia de constituir-se como politicas de “organizagio da sociedade”. Isto porque seus beneficiarios diretos no sdo individuos isolados ou assistidos, mas sim coletivos concretos ou entes organizados. Ou seja, a vocagdo de uma politica de economia soliddria nao é de promover safdas individuais, segundo uma légica de empreendedorismo assentada em valores de competicao e sucesso pessoal. Mas, ao contrério, as iniciativas apoiadas s4o pensadas em termos da possibilidade de constituigao de citcuitos socioprodutivos mais amplos que se articulam no espaco de um territ6rio especifico, donde grande importéncia € atribuida a organizagao dos grupos e fortalecimento das redes sociais e politicas, com 0 fomento do associativismo local. Trata-se de buscar operar novas institucionalidades ou marcos regulatérios territoriais, ressignificando 0 sentido das préticas econdmicas que vio se operat em relagdo estreita com a propria vida social, politica, cultural e ambiental nos seus res- pectivos territ6rios. O econémico passa a fazer sentido apenas em relacdo a outras esferas da vida local, assim como, enquanto modo de articulagao associativa entre produtores e consumidores locais a fim de evitar processos de excluséo Enquanto politicas de organizagao da sociedade, seus efeitos e resultados apre- sentam natureza particular e remetem ao médio e longo prazo. A nogao de resulta- do aqui deve ser revista no sentido da construgao de critérios parametros de avaliago que reflitam os avangos substanciais e qualitativos que ocorrem nestes processos: no nivel, por exemplo, da organizacdo politica, das relagdes sociais, das atitudes individuais, etc. Consideracées finais Neste capitulo procuramos mostrar inicialmente que existem diferengas entre as nogdes de politica de geracdo de trabalho ¢ renda e polfticas de emprego. Em segui- da, sugerimos que as politicas de economia solidaria representam uma forma espect- fica de operar agGes de geragto de trabalho ¢ renda, pois esto assentadas em uma concepodo estratégica de desenvolvimento territorial. Porém, tal concepgao e modo de implementar as polfticas de economia solidaria n&o encontra unanimidade em razdo da diversidade de contextos nos quais tais politicas so empreendidas, impli- cando diferentes visdes sobre a concepgio da politica, seu nivel de estruturago, bem como sua forma de implementagio. E ainda, mudangas significativas no pro prio tecido organizativo local que compe a dinamica da economia popular ¢ solidé- ria também afetam a propria configuracao da politica. Assim, diferengas substanci- ais existem nos diferentes casos de implementacao de tais politicas no Brasil, tendo sido as experiéncias de Sao Paulo ¢ Recife particularmente embleméticas, segundo nosso entendimento. Embleméticas precisamente em relago as trés caracteristicas que extraimos da anilise desses dois casos. Ou seja, séo polfticas supondo uma relagdo de parceria com a sociedade civil como condigao para sua efetividade; elas apresentam ainda uma forte vocagao indutiva; e, apontam um horizonte como escopo da politica que é exatamente aquele de organizacao da propria sociedade, relacionado a determinados contextos territoriais numa perspectiva de construgao de novas institucionalidades ou marcos regulatérios. Diante de uma caracterizagao que guarda ares de tanta ousadia na andlise do fenémeno, nada mais coerente do que propor neste momento uma hipétese também ousada acerca da inovagao que o fendmeno suscita. Neste sentido, sugerimos que tais politicas inauguram uma concepgao renovada em termos de geracko de trabalho e renda, bem como apontam novas tendéncias na configuracéo das relagées entre Estado e sociedade no caminho da sua maior democratizagio. Entretanto, uma tal hip6tese apresenta desafios muito grandes para sua efetividade. Eo maior deles diz respeito 4 outra face desta anilise, isto é, 0 nivel de fragilidade institucional sob 0 qual repousa tais politicas. Este tem a ver com a auséncia de um marco institucional que fortalega este campo de praticas, 0 que torna as iniciativas politicas desse género muito vulneraveis em relagao as conjunturas politicas. Deve- se somar a isto 0 préprio reconhecimento institucional ainda limitado do tema e sua incompreensao importante em muitos contextos, ficando 0 éxito institucional relati- vo em alguns casos muito dependente das caracterfsticas e sensibilidade do gestor ptiblico respons4vel pela politica. O paradoxo de um objeto que se revela ao mesmo tempo tio frdgil e inovador aponta 0s horizontes muito incertos dessa problemética, Resta a esperanga de que estejam plantadas af as sementes de uma nova cultura democrética nas relagdes en- tre sociedade civil e Estado. AgGo pGblica e economia sotidéria: uma perspectiva internacional 2670 Conclusdo Jean-Louis Laville Genauto Carvatho de Franca Filho Estas notas finais sfo concebidas como um resumo de constatagGes transversais emanando do conjunto das contribuigées. Conforme indicado no primeiro capitulo, a solidariedade teve um papel motor na construgao dos sistemas de protegao social, especialmente nas sociedades européias. Contudo, sua influéncia foi limitada pela concep¢ao redutora da economia, que se imps tanto no Norte como no Sul. De fato, nesses dois contextos existiram tentativas de criagio de atividades econémicas a partir da solidariedade, mas elas foram progressivamente abandonadas, dado o im- pulso que conheceu o capitalismo. As formas de express&o da sociedade civil, em vez de optarem por um contetido econdmico, tiveram mais como funcao reivindicar um certo ntimero de direitos sociais a fim de enquadrar a economia de mercado. Esses direitos foram completados pela implementagio de uma economia nao mer- cantil. Em relag&o a este aspecto, a intervencao redistributiva do Estado social se exerceu mais completamente nas sociedades européias e, se ela permaneccu limita da nas sociedades latino-americanas, 0 desenvolvimento baseado numa dinamica mercantil emendada por protegdes sociais minimas repousou num mesmo modelo. Esse compromisso socioeconémico conhece uma primeira onda de contestagao com os movimentos dos anos 1960 e 1970, que descobrem os estragos do progresso, 08 efeitos perversos do trabalho alienado e de um consumo de massa. Ele é em seguida profundamente abalado por uma segunda onda, aquela de uma mundializacio gover- nada por politicas neoliberais, sinénimos de desregulamentagio e de mercantilizagso crescente das atividades sociais. E em relagdo a essas duas ondas sucessivas que uma dinamica solidaria no seio da economia reencontra vigor. No Brasil, a economia popu- Jar e solidéria procura ultrapassar modos de sobrevivéncia para caminhar na diregao de atividades promotoras de um desenvolvimento sustentavel; segundo, por exemplo, a idéia de uma economia do trabalho, que, contrariamente & economia do capital, para retomar os termos de J. L. Coraggio (2004), é orientada para a satisfac&o das necessi- dades fundamentais da populagao. Na Franga, a aspirag#o a uma outra Idgica econd- mica é reafirmada como prolongamento das formas de economia social. O que bem evidenciam os estudos de casos reunidos neste volume é uma caracte- rizagao da economia solidéria que nao repousa apenas numa hibridagao de recursos. A partir do momento em que a finalidade & a democratizagao da economia, convém definir a economia solidéria pela dupla dimensio das iniciativas, 20 mesmo tempo econémica e politica (Dacheux; Laville, 2003; Eme; Laville, 2000). A dimensZo politica nao é reduzida & propriedade coletiva, ou seja, a garantia de uma igualdade Juridica entre as partes é estendida a possibilidade de livre expresso (discursiva) de cada um, © que torna possivel falarmos em termos de “espagos piiblicos e proximi- dade” (Eme; Laville, 1996), que parecem inventar-se através destas experiéncias. No Brasil, as observagdes efetuadas revelam percursos e trajetérias de evolucdes pessoais importantes favorecidas pela livre expresso de pessoas que nao tiveram anteriormente acesso a uma qualificagao e a condigdes de trabalho decentes. A pas- sagem de uma atitude passiva para uma postura de maior iniciativa, revelada em Ado publica e economia solidéria: uma perspectiva internacionat 2970 262 0 Ould DSUDIS ap oUIEAIDD O}NDUBO 2 21/407] SINOT-UDEL | OOSMIOUCD muitos casos, sugere @ aparigéo de um perfil de trabalhador engajado diferente da- quele dos militantes operdrios das grandes concentragbes industriais, remetendo a outros percursos ¢ historias de vida. © ganho de confianga pessoal através da aco coletiva aumenta quando os parti- cipantes podem constatar efeitos concretos de sua implicago na mudanga de suas condigoes de vida quotidiana. ‘AS pesquisas ilustraram amplamente como cooperativas criadas num grande ‘eld de fusdo viram sua mobilizagdo se evaporar em raz&o da distancia entre a am- plitude da mudanga anunciada nos discursos ¢ a realidade vivida pelos trabalhado- res. Esse enfraquecimento da adesao interna é particularmente perceptivel em experiéncias onde a modificagao da propriedade da empresa nio se acompanhou de formas de participagao direta, facilitando a intervengao sobre as condigdes ¢ @ organizacdo do trabalho. Com 0 tempo, 0 estatuto cooperativo serve apenas come justificagio de uma tecnocracia gerencial que se apresenta como cemocrata ¢ se isola das outras categorias profissionais das quais ela critica os comportamentos insuficientemente cooperativos, estas tltimas sentindo, por sua vez, uma decep- go crescente com relagao a seu engajamento inicial. As mesmas constatagdes de “degenerescéncia burocratica” (Mandel, 1975; Oppenheimer, 1914; Webb-Webb, 1914) foram, alids, efetuadas em associagGes & organizagdes mutualistas (Meister, 1974; Dreyfus, 2001). ‘Varios exemaplos desenvolvidos nesta obra sugerem um itinerério diferente, A ‘Asmoconp (Banco Palmas) é uma delas (conforme abordado no Capitulo 5): trata- se, antes de tudo, de uma associagao de moradores formada através de uma histéria de luta politica pela melhoria do quadro de vida em seu territ6rio. O fato de ter fomentado mudangas significativas no proprio bairro parece ter contribufdo forte- mente na implicagao dos moradores nos projetos que a associaglo promove. Em resumo, apesar das dificuldades inerentes a uma favela, a intensidade da participa oho se reforgou periodicamente, pois seus efeitos so muito coneretos. Existe em tais iniciativas um entrelagamento entre dimensdes politica e econd- mica, Os espagos piblicos de proximidade apresentam probabilidades cada vez maiores de se manterem na medida em que conseguem engendrar evolug@es positi- vas nas condig6es socioecondmicas de vida dos sujeitos envolvidos. Reciprocamen- te, estas transformagées séo ainda mais inclinadas ao éxito na medida em que suas praticas sejam capazes de gerar espacos puiblicos de proximidade capazes de promo- ver uma abordagem diferente da atividade econdmica ~ onde esta representa mais do que um meio para se alcangar fins solidarios. A nogdo de espaco publico é aqui considerada numa acep¢do original, em que se destaca seu duplo sentido: a0 contrétio de uma dissociagdo entre espagos piblico econémico, sua constituigao € relacionada ao desenvolvimento da atividade econ6- mica e aos atores que se encontram nela envolvidos. O registro habitualmente quali- ficado de infrapolitico (isto 6, relacionado a din&mica de socializag&o dos individuos em seu quotidiano no interior da sociedade civil - e que em geral nfo se considera como fazendo patte de um registro de l6gica politica) € reavaliado, mostrando que at pode acontecer uma publicizagzo da ago coletiva. Neste sentido, a abordagem da democracia econ6mica é igualmente renovada: ao invés de ser abordada numa pers- pectiva de democracia industrial (Martin, 1994), ela 0 é pelo viés dos processos de voice (Hirschman, 1976), isto €, pela énfase na livre expresso discursiva dos atores Em economia solidéria, a capacidade de preservar um espago puiblico de proximida- de, isto é, um espago dedicado & prdpria expresso dos participantes que decidem agir para resolver seus problemas comuns, é, portanto, importante para o devir da dinamica coletiva; entretanto, ela nao parece suficiente para a superagaio completa Ga situagao de marginalidade em que se encontram as iniciativas. Discrimina¢ées negativas persistentes Isto porque existem discriminagdes negativas das quais padecem tais iniciativas. Estas discriminagdes provém dos efeitos sedimentados na historia de uma concepgo dominante da economia que invalida tais iniciativas segundo modalidades empiricamente situdveis, tanto nas regras institucionais que regem as atividades econdmicas quanto nas representagdes sociais das quais elas so objeto. A inadequacio dos quadros legais € as incompreensdes que elas suscitam séo, a esse respeito, elogiientes. Na Franga, nenhum estatuto juridico de organizagdo disponfvel permite comoda- mente a participacao das multiples partes envolvidas. O estatuto de associag4o, por exemplo, confere um lugar preponderante aos voluntérios e admite os usuarios como membros, sem prever a integracZo dos trabalhadores em sua diregao, enquanto as cooperativas privilegiam uma categoria de membros (trabalhadores, consumidores, etc,): € precisamente isto que se esforga em remediar 0 estatuto recentemente criado da chamada sociedade cooperativa de interesse coletivo — SCIC (Gardin, 2004, p. 212- 219). No Brasil, a situagio é ainda pior. A atual lei sobre as cooperativas favorece grandes estruturas cooperativas, como as do agro-business, cujo funcionamento & pra- ticamente o mesmo de outras empresas privadas. O marco legal nao é apropriado nem para integrar o fendmeno do “cooperativismo popular” (Dubeux Gervais, 2004), que diz respeito as cooperativas de pequeno porte, onde se entrecruzam Jagos comunitérios € procedimentos econdmicos, nem para impedir 0 fendmeno das “falsas” cooperati- vas, que representam disfarcadamente empresas, praticando um empreendedorismo absolutamente inescrupuloso ao precarizar o trabalho utilizando o estatuto cooperativista como meio de redugo dos encargos trabalhistas. A auséneia de um quadro juridico obstaculiza também as iniciativas que tém a forma associativa, esta tiltima apresentan- do problemas no que se refere 4 comercializagao de bens e servigos. Na Franga, como no Brasil, a viabilidade econ6mica destas iniciativas é também dificultada pela nao- considerago da sua utilidade social, a despeito dos debates e pesquisas que comecam sobre este assunto (Gadrey, 2005). Os critérios, permitindo as autoridades puiblicas reconhecer as contribuig6es para a coletividade, fornecidas por atividades que im- poem, em primeiro lugar, finalidades de natureza sociais e ambientais, nao so garan- tidos na Franga, e muito menos no Brasil, onde tal debate nem ao menos est4 colocado. Estas diversas inadaptagdes do quadro institucional, na maioria das vezes mal com- preendidas, levam a interpretagdes freqlentes segundo as quais os obstéculos encon- ttados para sair da precariedade sfio devidos a uma falta de profissionalizagao gerencial. Donde comumente resultam presses pela normalizagao, através da adogio de méto- dos gerenciais importados das empresas privadas lucrativas sem nenhuma interroga- gao sobre a pertinéncia de seu contetido. No Brasil, um importante esforgo de pesquisa comega a ser desenvolvido a este respeito em torno da nogo de gestio social (Franca Filho, 2005). A idéia, neste sentido, € de primeiro esclarecer a especificidade de algu- mas dinmicas organizativas oriundas do campo da sociedade civil, em termos da sua racionalidade e ldgica prépria, em relaco ao mundo empresatial e a légica de merca- do. Para, em seguida, trabalhar-se sobre um conhecimento relativo & constru¢ao de ferramentas de gestio adaptadas a realidade de tais praticas, o que nos conduz a uma refundagao do debate sobre tecnologias sociais no momento atual (Franca Filho, 2005). Na Franca, os efeitos perversos dessa importagio de métodos gerenciais oriundos do setor privado para 0 campo associative foi j4 apresentado em Sociologie de l'association (Laville e Sainsaulieu, 1997). Neste trabalho, a questo fundamental colocada tam- bém diz respeito a um rigor gerencial preocupado com a considerago das idgicas institucionais' préprias as experiéncias de economia solidéria, 1, Sobre a importancia das l6gicas institucionais, Laville (2005), Agdo pdblica e economia solidéria: uma perspectiva internacionat 2090 ouis 05uD13 ap OU)DAIDD CINBUED © aN/A07 SINOT-UDAL | CPSM}2UCD aos 0 Assim, a acusac4o de amadorismo recorrente é apenas uma manifestagao da cons- tante deslegitimacao por parte dos decididores ptiblicos acerca do tema, Na Franga, a retrospectiva conduzida em varias cidades e regides evidencia o quanto 6 rduo opor-se a ela. Um dos sinais dessa desvalorizagao reside no tempo necessério para sair de uma confuséo entre a economia social e solidaria, por um lado, e a inserg&o pelo econémico, por outro, mantida pelas separagdes que fazem do desenvolvimen- to econdmico e do emprego-insereaio areas de responsabilidade confiadas a repre- sentantes politicos diferentes. A distingdo é tdo lenta a se impor que certos defenso- res da economia social, perturbados com a irupgao da economia solidaria, quiseram, além disso, destinar esta tiltima ao tratamento da exclusao, atestando, segundo eles, sua falta de credibilidade econémica. A dificuldade para os responsdveis ptiblicos em compreender a multidimen- sionalidade da economia solidéria esté também presente no Brasil, onde a imbricagao entre as dimensées politica e econémica, ja mencionada, é redobrada por importantes aspectos sociais € culturais entrando em conta na imensa economia popular, que pro- porciona recursos a uma parte importante da populacao, A economia solidéria repre- senta um esforco coletivo para que a economia popular, ao mesmo tempo em que se apéie no trabalho cooperativo e nos laos comunitédrios, seja cada vez mais estruturada por impulsos de solidariedade democrética e conquiste seu lugar ao sol, sendo capaz de produzir reais transformag6es no ambito institucional, sobretudo em relagao a con textos territoriais especificos como certos bairros desfavorecidos. O contetido mais comunitério das praticas sociceconémicas, oriundo das solidariedades tradicionais ordinétias tecidas no quotidiano, se mistura a um contetido mais politico onde atores discutem seus problemas comuns e buscam resolvé-los trabalhando diretamente na solugo do problema, a0 mesmo tempo em que reinvidicam seu reconhecimento institucional, a partir de uma relagao de igualdade. Entretanto, a existéncia de um continuum entre esses dois pélos da agio direta € da reinvidicago institucional (su- pondo, no caso brasileiro, uma concepcao estratégica de desenvolvimento caracteri- zada pela passagem de uma dimensio de subsisténcia aquela de sustentabilidade das iniciativas numa determinada base territorial) permanece amplamente incompreendida, ‘Como na Franga, onde iniciativas foram depreciadas sob o pretexto de que elas eram experiéncias comunitarias, ao passo que elas davam prova de uma inegdvel vontade de inscrig&o no espago ptiblico,? no Brasil, a imagem da economia popular é reduzida a de uma economia informal, uma economia de pobres encerrada na gestéo da penti- ria, © amélgama praticado entre trabalho dissimulado, mercado paralelo, contraban- do, trAfico e produgdo doméstica impede de distinguir as caracteristicas da economia popular jé evidenciadas por varios pesquisadores (Coraggio, 2004; Nyssens; Razetto, 1993; Franga Filho, 2002b; Sarria Icaza; Tiriba, 2005; Gaiger, 2004; Kraychette, 2000), ea assimila a uma espécie de subeconomia, cujo estatuto subordinado esté ligado ao primado da economia mercantil oficial. Segundo esta visio, a tinica economia plena- mente reconhecida é assim a economia de mercado, ¢ a economia popular € conside- rada apenas um paliativo, como na Franga a economia de insergao € tratada como um momento de passagem (ou seja, uma espécie de reservatério de ocupagées temporérias, servindo de trampolim aos “verdadeiros” empregos a seem supostamente obtidos em seguida numa economia de mercado ~ 0 que nao ocorre pela capacidade limitada do mercado na geracZlo de empregos). Neste modo de pensar, 0 objetivo permanece 2. Ver 0 exemplo da “Juventude Ativa da Bai cidade de Limoges, of. (Laville; Marchat, 1995). . associago criada por jovens de um bairro da sendo a integragdo numa economia mercantil, que é sacralizada no momento mesmo em que ela se revela incapaz de fornecer postos de trabalho para todos. Curioso para- doxo dos tempos atuais, para nao dizer... Que grande contradigao do nosso sistema econdmico dominante! A esta vis&o redutora da economia se adiciona um olhar restritivo sobre o empreendedotismo. O discurso sobre a criagao de atividades conduz freqiientemente uma supervalorizago da empresa individual mercantil, que, tanto em pafses do Sul quanto do Norte, costuma ser acompanhada de um certo proselitismo do microcrédito, visto como a panacéia de todos os males do capitalismo contempora- neo. E assim que De Soto (1987) mais parece elaborar a apologia de uma espécie de “capitalismo de pés descalgos”. Trata-se, aqui, de um discurso que omite absoluta~ mente a realidade de iniciativas antes de tudo coletivas que marcam a economia popular e solidéria. Coerente, entéo, com esse olhar sobre o empreendedorismo, numerosos projetos de desenvolvimento local conduzidos por diferentes governos em diferentes niveis no Brasil, encontram-se exclusivamente centrados nos chama- dos “arranjos produtivos locais” (APLs), ou seja, em conjuntos de pequenas inicia- tivas privadas mercantis organizadas numa base territorial e setorial para melhorar seu desempenho e produtividade. Tais iniciativas merecem um destaque importante pela preocupagio em repenser o desenvolvimento local a partir da valorizagao da micro e pequena empresa, além das contribuigées em termos de dinamismo, trazida aos tertitérios pelos efeitos conjugados da cooperacio interempresarial que gera, além da inovagio tecnolégica, requalificagao profissional, etc. Contudo, tais inicia- tivas esbarram nos limites prdprios de um paradigma da competitividade, tornando 05 territ6rios reféns da dindmica capitalista mais geral ¢ légicas especificas da eco- nomia de mercado, cujo horizonte, em termos de sustentabilidade consubstanciada na capacidade em gerar postos de trabalho, revela-se sempre muito incerto. Em suma, uma tal exclusividade de vis&o proposta como alternativa para promogo do desen- volvimento local, deixa de reconhecer 0 imenso potencial contido em outras inicia- tivas, a exemplo da economia solidéria presente nos mesmos territérios. Contra as discriminacées, espacos publicos de um segundo nivel ‘A amplitude dos problemas que acabam de ser revelados mostra que a legitimi- dade resta, em parte, a ser conquistada para a economia solidéria. E 0s espacos pi- blicos de proximidade encontram, desse ponto de vista, limites, pois eles so anco- rados em experiéncias singulares. Por isso assiste-se mais recentemente & formago de espacos ptiblicos de um segundo nivel (Eme, 1994; Dacheux, 2003; Roulleau- Berger, 2003). Trata-se af de espacos se estendendo numa escala mais ampla, dedi- cados & reunidio de miiltiplas iniciativas, de origens muito diversas, com um objetivo de deliberagdo e de representacao. Se os atores perceberam como necessério um tal nfvel de organizagio para serem ouvidos pelos poderes piblicos, tanto nas redes brasileiras quanto nas estruturagdes regionais e nacionais na Franga, os responsdveis piiblicos, pelo fato de serem minoritérios no aparelho politico-administrativo, sentiram a necessidade paralela de constituir os espagos de tracas e de elaboragdo, que so, respectivamente, a Rede dos Territérios para a Economia Solidéria, na Franca, e a Rede de Gestores de Poli- ticas Pablicas de Economia Solidéria, no Brasil. Além de constitufrem-se como ins- tancias autonomas, como no primeiro nivel, esses espagos piblicos de segundo nf- vel so também intermediérios, no sentido de que eles se esforgam, tendo em vista contribuir para a regulaco de um campo de praticas através do est{mulo as interacbes entre as iniciativas e os poderes piiblicos. A dimenséo de autonomia na livre expres- sio do discurso articula-se & perspectiva de uma negociagao encarada como indis- Ado publica e economia solidéria: uma perspectiva internacional 3010 ZOE 0 oud DduD/¥ ap oMDAIDD oINDUED 0 ON/A07 S{NoT-UDAr | ORSM\IUED pensdvel para modificar, gradualmente, 0s quadros institucionais e as representa- (Ges sociais que influenciam 0 desenvolvimento da economia solidéria. Os foruns brasileiros, doravante presentes em praticamente todos os Estados da Federagao, combinam assim uma participago democratica, inscrita em sua carta de princfpios € devendo orientar sua dindmica de funcionamento, com a confrontagaio com os res- ponséveis pitblicos, Por outro lado, enquanto espagos de reuniao de atores para dis- cussao € deliberagio de ages, eles sfio lugares onde o conflito politico encontra-se fortemente presente, manifestando-se sobretudo nas divergéncias a propésito das escolhas estratégicas e rumos do movimento. No Brasil, os espagos piblicos intermediérios representam uma emanagao direta dos préprios atores da economia solidéria. Além disso, eles apresentam um grau de estruturagdo no nivel regional mais desenvolvido do que na Franga. O trunfo brasi- leiro reside numa ampla auto-organizagio da sociedade civil, que tem como contrapartida uma fraqueza hist6rica das politicas pablicas. A situagfo € inversa na Franga, onde a tradigao de forte intervengao ptiblica, que tem, entretanto, como re- verso, & separagao entre o econémico e social, coexiste com uma fraca mobilizacio dos atores. Muitos atores da economia solidéria temem a agregacao e os tiscos de manipulagao que, na visto deles prdprios, estaria associado a este tipo de dinamica, conforme assinalado por M. Hersent no Capitulo 4. Em razo da dispersio devida a este déficit de organizagao espontinea - em Nantes e Grenoble, por exemplo -, a implicagao dos atores € claramente impulsionada pelos poderes piblicos. O proce- dimento seguido consiste, primeiramente, em tornar visivel 0 peso da economia social e solidéria no conjunto da economia local, através de um diagnéstico participativo, para, em seguida, encadear-se com jornadas de estudo e de comunica- G40, permitindo o encontro entre representantes da economia social e iniciativas emergentes da economia solidéria, nfio sem sucesso, pois 1.650 participantes foram recenseados em Grenoble, ¢ 980, em Nantes. Através desses diferentes vieses, trata- se de combater as légicas de encerramento, filtragem e assimetria tipicas das prati- cas politicas governamentais. A entrada em cena piiblica esté destinada a se opor aos mecanismos de defesa implementados pelas redes notabilidrias tradicionais, para abrir as politicas econémicas dos governos locais a uma economia social e solidéria que nao seja abordada sob 0 tinico angulo da insergao. A busca de um reconheci- mento no campo econdmico é uma estratégia 4 qual, segundo Yvergnaux (ver Capi- tulo 8), inscreve-se a cidade de Rennes, como outras na Franga, em razao da falta de poder dispor de um espaco institucional no qual o desenvolvimento social € 0 eco- némico sejam verdadeiramente concebidos juntos. ‘A evolugio das dotagdes orgamentérias obtidas para as iniciativas de economia social e solidéria constitui um indicador confidvel do progresso alcangado, bem como do caminho que resta a percorrer para se chegar a uma igualdade de tratamen- to com outros componentes da economia. A esse respeito, as experiéncias francesas e brasileiras apresentam uma certa tendéncia convergente, uma vez que se pode inferir que o crescimento das margens de manobras econémicas apenas parece pos- sivel se “as experiéncias ultrapassarem seu isolamento econdmico e se tornarem igualmente iniciativas sociopoliticas”, conforme sublinham A. Schwengber, Praxedes e Parra tratando do programa “Oportunidade Solidaria” de Sao Paulo (Capitulo 7). A mesma constatagdo observa-se na andlise do caso de Recife, onde A. Medeiros e A. Dubeux Gervais mostram (no Capitulo 9) como 0 apoio & economia popular e soli- daria faz sentido, ndo em agées pontuais, mas numa politica em favor do fortaleci- mento do associativismo local, como através da organizagao de centros piblicos de economia solidéria que sfo vistos como “espacos piiblicos de construgao de uma politica publica”. O objetivo maior nao é contratar servigos, mas fortalecer o tecido s6cio-econdmico-politico da sociedade. A pressao politica do movimento de economia solidéria para superar uma viséo redutora da economia, que privilegia a dinamica do mercado e a sociedade de capi- tais, encontra obstdculos considerdveis. A. M. Sarria Icaza (no Capftulo 10) sublinha 0 risco de constituigao de “feudos” a partir das correntes politicas, particularmente sensfvel no caso do Rio Grande do Sul, onde uma fracao do Partido dos Trabalhado- res promoveu uma politica impregnada de uma viso industrialista em que se privi- legiou um segmento da economia popular solidéria em detrimento de outros. A eco- nomia solidéria, pela sua fragilidade, € 4s vezes conduzida a se proteger através de um apoio partidario que acentua sua sensibilidade nos momentos eleitorais. Os res- ponsdveis pela politica piiblica de Sao Paulo tentaram escapar dessa légica subme- tendo a Camara de Vereadores um projeto de lei, cujo propésito era de instituir a politica publica de economia solidéria como uma agdo publica de governo, indepen- dente de partido politico (tal iniciativa nao foi exitosa, pois com a sucessao do man- dato municipal em 2004, o novo governo Serra acabou por “entetrar” este projeto). De todo modo, muito embora as ameagas de desvio, as iniciativas sé podem pesar na concepgdo das politicas piiblicas intervindo no seio de espagos piiblicos em diferentes niveis, redefinindo as relagSes entre sociedade civil e poder politico, numa abordagem ampliada da ago piiblica. A caminho de novas problematicas Os processos de mudanga que foram estudados neste volume no poderiam ser apreendidos apenas a partir da conceituagio da economia social. Em outras pala- vras, seu exame ajuda a precisar vias de pesquisas suscetiveis de ultrapassar os limi- tes desta tiltima, evocados por Chanial e Laville no Capitulo 2. Importa substituir uma interpretagdo das iniciativas em termos de empresas cole- tivas por uma anélise que permita perceber a confrontagao muitua das dimensdes politica e econémica da agdo coletiva. A nogio de espaco piblico de proximidade, conferindo uma originalidade as dinamicas econémicas, pode servir para interrogar arealidade de tais préticas do ponto de vista do seu fundamento democratico, ques- tionando a assimilagao entre igualdade formal na propriedade coletiva e funciona- mento democritico. Por outro lado, a dimensdo politica das iniciativas nao se reduz 0s espagos ptiblicos de proximidade. O alcance da mudanga institucional efetiva depende de uma articulagao desses espagos puiblicos de proximidade com espagos ptiblicos intermediérios. As experiéncias de economia solidaria sé podem sair de seu confinamento com a introdugao de politicas piblicas opondo-se as discriminagdes hegativas as quais elas sao confrontadas. Por outro lado, os responsdveis piiblicos s6 podem confortar sua ago legitimando-a através da pressao exercida por forgas or- ganizadas no seio da sociedade civil. Na confluéncia dessas duas exigéncias, os espacos piiblicos intermedidrios contribuem para reconfigurar o quadro institucional e desconstruir as representagGes dominantes sobre a economia. £ assim que as Ses- ses do Trabalho e Emprego da regiao Nord-Pas-de-Calais, na Franga, ou a Senaes, no Brasil, conseguiram iniciar novas politicas somente apoiando-se na participagio aberta aos cidadaios, no primeiro caso, e na dinamica do Forum Brasileiro, no segun- do caso. Quanto ao orgamento participative de Porto Alegre, convém notar que, entre seus revezamentos nos baitros, numerosos foram os militantes da economia popular e solidéria que também solicitaram que as questées tratadas integrassem uma politica neste campo. Intervencao politica e aco econdmica estao imbricadas e a versio da mudanga social que se 1é nestes exemplos é bem diferente daquela de- fendida precedentemente pela economia social, que apostava na difusao das experi- éncias a partir do seu sucesso econdmico no mercado, ‘A observagiio dos espagos pulblicos intermediérios conduz, por outro lado, a situ- ar o lugar que podem ter estes “féruns hfbridos” numa “democratizagao da democra- Agao publica e economia sotidaria: uma perspectiva Internacional 303.0 ouls BdUDIY Bp OU;DAIDD OYNDUED @ eNIAB"] S]NET-UDEL | ORSMIDUOD we 0 cia” (Callon; Lascoumes; Barthe, 2001). Quando as desigualdades na livre expresso discursiva dos cidadaos so particularmente importantes, como é a evidéncia em ma- téria de economia, estes foruns s6 podem ser vetores de mudanga, em termos de um novo arranjo institucional, se eles forem uma complementagao de espacos puiblicos auténomos sem os quais as “palavras menos legitimas” no podem se tomar audfveis, A questo polftica, ao mesmo tempo em que € integrada, no se reduz as formas de organizagio dos mercados, enquadrando-o também. O enquadramento dos mercados 86 € efetivo e realmente discutido se ele for concebido através de uma visio da econo- mia como constitufda por uma pluralidade de principios econémicos. Os féruns hibri- dos nao podem, sozinhos, reorganizar os mercados, porque os problemas que eles engendram nao se limitam as externalidades, mas incluem os efeitos de uma concep- cao “atomista” do social inerente & assimilacdo entre troca econ6micae troca contratual, como mostra “a critica comunitaria do liberalismo” (Walzer, 1990). J. Gadrey tem Tazo ao insistir sobre 0 fato de que os mercados concretos sao diferentes da figura abstrata do mercado auto-regulado. Porém, esta afirmacdo nao invalida o argumento de B. Perret, segundo o qual esta diversidade na realidade nao impede que a figura do mercado exista “enquanto representacdo cultural performativa desta mesma realida- de” (Le Velly, 2004, p. 89). A internalizacao das externalidades nao € o tinico mecanis- mo de regulagaio da economia, como pesquisas comparativas o mostraram (Laville; Nyssens, 2001). Se as formas hfbridas se contentassem em regular a questio das externalidades, disso resultaria uma funcionalizagao da democracia em relagao & eco- nomia. Neste sentido, tais espacos s6 so capazes de alimentar o debate democratico se varias ldgicas econdmicas podem af ser defendidas. Donde a importancia de uma perspectiva de economia plural (Franca Filho e Laville, 2004; Laville, 2005). Em suma, o estudo das interdependéncias entre esfera econdmica e politica su- pée atravessar as fronteiras estabelecidas pelas especializag6es disciplinares. No que tange disciplina sociolégica, 0 campo especifico da sociologia econémica é fre- qtientemente reduzido a uma espécie de sociologia dos mercados, apesar de pesqui- sadores (Borghi; Magatti, 2002) se interessarem pelos efeitos das formas assumidas pelas economias contemporaneas sobre o espaco piiblico. Quanto A sociologia poli- tica do engajamento puiblico, ela tende a se desviar de tudo o que é da alcada da economia. Assim, andlises tratando da altermundializagao (Agrikoliansky; Sommi- er, 2005) subestimam ao mesmo tempo o papel que nela desempenha, ha varios anos, a economia solidaria e a influéncia que tiveram encontros internacionais sobre a propria estruturacao deste campo em nfvel nacional. Neste sentido, a Inter-redes de economia solidéria francesa nao teria sido formada sem o encontro de Lima, em 1997 (mais conhecido como I Simpésio Internacional pela Globalizagao da Solida- tiedade), e os respectivos intercambios com seus interlocutores latino-americanos que nele aconteceram. Em seguida, o Village da Economia Social e Solidéria no Férum Social Europeu de Paris-Saint-Denis constituiu uma etapa importante para o que havia se tornado o Movimento de Economia Solidéria. Do lado de c4, 0 Férum Brasileiro de Economia Solidéria, antes de se multiplicar através dos féruns estadu- ais, encontra sua origem nos debates sobre a economia solidéria no seio do Férum Social Mundial ¢ foi pela sua demanda que o governo Lula aceitou criar uma Secre- taria Nacional no interior do Ministério do Trabalho. A consideragdo destes aspectos nos leva a analisar os processos de institucionalizago de maneira mais fina, ou seja, na complexidade de suas diferentes escalas, A institucionalizagao nao pode ser abor- dada como o desfecho de passos coletivos prévios no interior da sociedade civil, a hist6ria evocada no capitulo sobre a economia social e solidéria na Franga basta para lembrar que 0 reconhecimento de quadros juridicos distintos no século XIX signifi- cou selegao e fragmentagao das iniciativas anteriores. Nem por isso a institucionali- zacao pode ser reduzida & reprodugo do instituido: encard-la somente como uma instrumentalizagao das experiéncias é criar um impasse sobre o encaminhamento sinuoso da mudanga democrética. A institucionalizagao é, antes, o resultado de inte- rages marcadas pelas desigualdades de poderes entre atores sociais “cuja legisla- 40 reflete, em um ou outro momento, 0 peso respectivo num pracesso de negocia- gao” (Bouchard, 1995, p. 214). As configuragdes examinadas, do local ao internaci- onal, participam da delimitagao do campo das possibilidades democraticas, porque elas formulam “a questio da articulago, da mediago, da jungao do politico nao institucional, dos espacos ptiblicos de proximidade com os espacos politicos de de- legacao, da sociedade civil ao Estado” (Maheu, 1991), suscetiveis de confortar uma visio plural da economia. ‘A invengo politica, que nao é “monopélio dos movimentos sociais”, é “situada no coragao do agir”, que “consiste precisamente em problematizar o existente para promover 0 novo” (Dodier, 2003, p. 340). A acdo publica em matéria de economia solidéria participa dessa invengAo pelo questionamento do predominio dos poderes econémicos que paradoxalmente se exprimiu no momento do retorno da utopia de uma “sociedade de mercado” (Polanyi, 1983), Acdo publica e economia solidaria: uma perspectiva internacional 305.0

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