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A relação assimétrica médico-paciente:

ARTIGO ARTICLE
repensando o vínculo terapêutico

Asymmetric doctor-patient relationship:


rethinking the therapeutic bond

Andrea Caprara 1
Josiane Rodrigues 1

Abstract Doctor-patient relationship encoun- Resumo A relação médico-paciente é uma te-


ters a renewed interest in scientific production, mática que hoje encontra um renovado interesse
medical education, and clinical practice, with the na produção cientifica, na formação e prática clí-
application of communication techniques that nica com a aplicação de técnicas comunicacionais
improve the quality of communication. The pre- que podem proporcionar uma melhor qualidade
sent article discusses about factors affecting the na relação. O presente artigo, por meio de uma
relationship through a literature review and the revisão da literatura e da apresentação dos resul-
research results on doctor-patient relationship in tados de uma pesquisa que realizamos sobre a re-
the Family Health Program of the Ceará State. A lação entre médicos e pacientes no Programa de
better doctor-patient relationship doesn’t have Saúde da Família no Estado do Ceará, se propõe
only positive effects on users’ satisfaction and a refletir sobre quais os fatores que estão na raiz
health services quality, but it influences directly desta problemática. Uma melhor relação médico-
the health state of patients. This demand requires paciente não tem somente efeitos positivos na sa-
the introduction of changes seeking the acquisi- tisfação dos usuários e na qualidade dos serviços
tion of competences in doctors’ training. de saúde, mas exerce também uma influência di-
Key words Medical humanities, Doctor-patient reta sobre o estado de saúde dos pacientes. Esta
communication, Medical education, Family health demanda exige a implementação de mudanças
visando à aquisição de competências na formação
dos médicos.
Palavras-chave Humanidades médicas, Rela-
ção médico-paciente, Formação médica, Saúde
da família

1 Universidade Estadual
do Ceará, Centro de
Ciências da Saúde,
Departamento de Saúde
Pública.
Av. Paranjana 1700, Itaperi,
60740-000, Fortaleza CE.
a.caprara@flashnet.it
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Caprara, A. & Rodrigues, J.

Introdução manuais práticos de referência (Lloyd e Bor,


1996; Neighbour, 1996; Pendleton et al., 1997;
O tema da relação entre médicos e pacientes Silverman et al., 1999; Maguire, 2000; Tatarelli
não é novo para a profissão médica. Na metade et al., 1998). Essa vasta produção sobre o tema
do século 20 este aspecto foi abordado por au- no contexto anglo-saxônico se contrapõe a um
tores como Jaspers (1991), Balint (1988), Par- número ainda limitado de pesquisas no Brasil
sons (1951), Donabedian (1990), mas é a pró- (Sucupira, 1982; Schraiber, 1993; Caprara e
pria história da medicina que traz no seu bojo Franco, 1999; Goulart, 1998).
esta questão, como um indicador dos proces- Inicialmente, o presente artigo pretende,
sos de mudanças a que vem se submetendo. através de uma revisão da literatura, analisar
Edward Shorter enfatiza como a descoberta alguns fatores que acreditamos estar na raiz
dos sulfamídicos e da penicilina, nos anos 30- desta temática. Apresentando, em seguida, os
40, influenciou uma importante transformação resultados de uma pesquisa que realizamos so-
seja na prática, seja na formação médica. O de- bre a relação entre médicos e pacientes no Pro-
senvolvimento da bioquímica, da farmacologia, grama de Saúde da Família no Estado do Cea-
da imunologia e da genética também contri- rá, tentaremos identificar as principais caracte-
buiu para o crescimento de um modelo biomé- rísticas da relação definindo os principais pro-
dico centrado na doença, diminuindo assim o blemas e algumas possíveis soluções. Por fim,
interesse pela experiência do paciente, pela sua abordaremos alguns programas de formação
subjetividade. As novas e sempre mais sofisti- que mostram a importância dessa temática não
cadas técnicas assumiram um papel importan- somente para a melhoria da qualidade dos ser-
te no diagnóstico em detrimento da relação viços de saúde, mas também pela influência di-
pessoal entre o médico e o paciente. A tecnolo- reta sobre o estado de saúde dos pacientes.
gia foi se incorporando no exercício da profis-
são, deixando-se de lado o aspecto subjetivo da
relação. As raízes da problemática
Enquanto os avanços tecnológicos mostra-
vam-se significativos, não se percebiam mu- Assim como apresentado por Le Fanu (2000),
danças correspondentes nas condições de vida, uma série de paradoxos acompanha a história
como também, não se verificava o aperfeiçoa- recente da medicina. Por exemplo, espera-se
mento das práticas de saúde, como práticas que os sucessos da medicina sejam acompa-
compostas pela comunicação, pela observação, nhados por um aumento do grau de satisfação
pelo trabalho de equipe, por atitudes funda- dos médicos que escolhem a carreira de medi-
mentadas em valores humanitários sólidos. cina; estudos recentes, no entanto, mostram
Atualmente, existem recursos para lidar com que um número crescente deles está mais desi-
cada fragmento do homem, mas falta ao médi- ludido e insatisfeito. Um segundo paradoxo es-
co a habilidade para dar conta do mesmo ho- tá ligado aos benefícios derivados da prática
mem em sua totalidade (Jaspers, 1991). médica que poderiam reduzir os medos e an-
Hoje, a temática sobre a relação médico-pa- siedades das pessoas. Mas, ao contrário, elas es-
ciente encontra um renovado interesse na pro- tão sempre mais preocupadas por uma série de
dução cientifica, na formação e prática clínica riscos atrelados ao estilo de vida, em um pro-
buscando proporcionar uma melhoria da qua- cesso de procura obsessiva de um estado de
lidade do serviço de saúde. Um trabalho publi- perfeita saúde (Healthism), sempre mais preo-
cado recentemente mostra que cerca de 1.000 a cupante. Outro paradoxo está associado ao fato
1.200 das publicações científicas por ano são de que a eficácia e os sucessos da medicina mo-
referentes ao tema (Tagliavini e Saltini, 2000), derna teriam de ser acompanhados pelo desa-
com a aplicação de técnicas comunicacionais parecimento das outras formas de medicina. O
que podem proporcionar um melhor atributo que acontece é o oposto, observa-se um au-
na relação. A maior parte da produção apresen- mento impressionante em todo o mundo oci-
ta resultados de pesquisas empíricas (Fallow- dental da utilização das medicinas não-con-
field et al., 1990) e a aplicação de instrumentos vencionais. Enfim, apesar dos sucessos da me-
de observação e avaliação (Brown et al., 1994). dicina moderna, os custos da saúde continuam
Outras publicações tocam a necessidade de for- aumentando em um verdadeiro processo de
mular programas de formação (Branch et al., explosão dos gastos da assistência sanitária (Le
1991; McManus et al., 1993), constituindo-se Fanu, 2000).
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Entre os fatores determinantes desta situa- dade física, psíquica e social e não somente de
ção, apresenta-se a necessidade de melhorar a um ponto de vista biológico. Para esses auto-
qualidade dos serviços de saúde, o ponto de res, o desenvolvimento dessa sensibilidade e
vista dos usuários, e da população que em geral sua aplicação na prática médica constituem o
é considerado um elemento fundamental deste mais importante desafio para a biomedicina do
processo (Lewis et al., 1995; Rosenthal et al., século 21. No momento em que nos encontra-
1997; Gattinara et al., 1995). A partir dos estu- mos, a medicina não está preparada para en-
dos de Donabedian, nas décadas de 1970 e frentar este novo desafio (Caprara & Franco,
1980, se conhece que a qualidade dos serviços 1999).
de saúde, assim como percebida pelos pacien-
tes, depende de 30 a 40% da capacidade diag-
nóstica e terapêutica do médico, e de 40 a 50% Os problemas que enfatizam a assimetria
da relação que se estabelece entre profissionais na relação: médicos e pacientes no
de saúde e usuários, em particular entre médi- Programa de Saúde da Família no Estado
co e paciente (Donabedian, 1990). Hoje não é do Ceará
mais suficiente organizar os serviços de saúde
mais eficientes, e sim considerar, como afirma Em 1994 foi realizado um encontro que teve
Spinsanti em seu recente trabalho: o respeito como foco da discussão a relação médico-pa-
dos valores subjetivos do paciente, a promoção de ciente e suas dificuldades, concluindo-se com
sua autonomia, a tutela das diversidades cultu- uma declaração de consenso conhecida inter-
rais (Spinsanti, 1999). nacionalmente como Toronto Consensus Sta-
Um segundo aspecto se refere à racionali- tement (Simpson et al., 1991). Entre os dados
zação científica da medicina moderna, baseada apresentados podemos destacar que 54% dos
numa mensuração objetiva e quantitativa, bem distúrbios percebidos pelos pacientes não são
como, na visão dualista mente-corpo (Helman, tomados em consideração pelos médicos du-
1984). Esse modelo subestima a dimensão psi- rante as consultas (Stewart et al., 1979), bem
cológica, social e cultural da relação saúde- como 50% dos problemas psiquiátricos e psi-
doença, com os significados que a doença assu- cossociais não são considerados (Schulberg et
me para o paciente e seus familiares. Os médi- al., 1988; Freeling et al., 1985). Em 50% das
cos e pacientes, mesmo pertencendo à mesma consultas, médicos e pacientes não concordam
cultura, interpretam a relação saúde-doença de sobre a natureza do problema principal (Star-
formas diferentes. Além dos aspectos culturais field et al., 1981), e 65% dos pacientes são in-
temos de enfatizar que eles (médicos e pacien- terrompidos pelos médicos depois de 15 se-
tes) não se colocam no mesmo plano: trata-se gundos de explicação do problema (Beckman
de uma relação assimétrica em que o médico et al., 1984).
detém um corpo de conhecimentos do qual o Seguindo esses dados, apresentaremos os
paciente geralmente é excluído (Arrow, 1963). resultados de uma pesquisa que realizamos so-
Enfim, propomos analisar que, no processo bre a relação entre médicos e pacientes no Pro-
diagnóstico e terapêutico, a familiaridade, a grama de Saúde da Família no Estado do Ceará
confiança e a colaboração estão altamente im- mostrando os principais problemas no contex-
plicadas no resultado da prática médica. O mé- to da atenção primária no Brasil (Caprara et
dico não é ativamente estimulado a pensar o al., 2001).
paciente em sua inteireza, como um ser bio- Essa pesquisa foi realizada no período de
psicossocial, e a perceber o significado do adoe- 1999 a 2001, tendo o apoio do CNPq, como
cer para o paciente. parte do Programa Nordeste de Pesquisa e Pós-
Diferentes autores, como Gadamer (1994) graduação, projeto no 52.1228/98-0. Foram uti-
e Wulff, Pedersen e Rosemberg (1995) expres- lizados métodos qualitativos como entrevistas
sam a necessidade de um processo de humani- abertas, observação participante, e métodos
zação da medicina, em particular da relação quantitativos: observações estruturadas da re-
entre médicos e pacientes, reconhecendo a ne- lação médico-paciente utilizando uma guia de
cessidade de uma maior sensibilidade diante observação. Nas fases iniciais da pesquisa fo-
do sofrimento da doença. Esta proposta aspira ram analisados alguns instrumentos observa-
pelo nascimento de uma nova imagem profis- cionais da relação médico-paciente que eram
sional, responsável pela efetiva promoção da utilizados em nível internacional, e depois de
saúde ao considerar o paciente em sua integri- uma análise atenta, foi decidido utilizar o ins-
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Caprara, A. & Rodrigues, J.

trumento desenvolvido por Grol e Lawrence (ibidem). Como enfatizado pela literatura, o es-
(1995). Este instrumento é dividido em 4 cate- paço terapêutico teria de facilitar a comunica-
gorias: a) estrutura da consulta; b) condução ção, mantendo a privacidade, evitando inter-
da relação médico-paciente; c) performance rupções, sendo um espaço o mais confortável
clínica; d) ação psicossocial. Para cada uma possível (Lloyd, 1996). A proxêmica entre mé-
dessas categorias foram observados diferentes dico e paciente, a distância entre eles, a coloca-
períodos da consulta: a) investigação do pro- ção das cadeiras, da mesa, são todos fatores im-
blema; b) esclarecimento do problema; c) defi- portantes a serem considerados, fatos não pre-
nição do problema; d) formulação de um pla- sentes na maioria de estruturas físicas no con-
no. Decidiu-se adaptá-lo para ser utilizado no texto da saúde da família no Ceará.
contexto do Ceará. Foi adotada uma metodo- Pelo que se refere à comunicação entre mé-
logia de tradução e adequação do instrumento, dicos e pacientes, a pesquisa mostra que no co-
seguindo em parte as guias da Organização meço da consulta quase todos os médicos ten-
Mundial da Saúde na tradução de instrumen- tam estabelecer uma relação empática com o
tos (Sartorius e Kuyken, 1994). paciente. Apesar disso uma série de problemas
A amostra foi composta por 400 consultas surge de forma evidente: 39,1% dos médicos
realizadas por 20 médicos: 200 foram realiza- não explicam de forma clara e compreensiva o
das em áreas rurais e 200 na área urbana de problema, bem como em 58% das consultas, o
Fortaleza, a capital do Estado (Caprara et al., médico não verifica o grau de entendimento do
2001). Os dados em área urbana se referem aos paciente sobre o diagnóstico dado. Os médicos,
consultórios de PSF de Fortaleza. Entre a po- em 53% das consultas, não verificam a com-
pulação total de 47 equipes de PSF foram esco- preensão do paciente sobre as indicações tera-
lhidos aleatoriamente 10 médicos que traba- pêuticas (Caprara et al., 2001).
lham em área urbana e foram observadas 20 Dados estes que poderiam estar interferin-
consultas por médico (total 200). Pelo que se do em uma melhor relação médico-paciente,
refere à área rural, foi considerado não factível cuja natureza da interação irá depender de co-
(do ponto de vista econômico e tempo neces- mo acontece o encontro de ambos. Encontro
sário de disponibilidade) trabalhar com uma que está sendo influenciado por vários fatores
amostra aleatória das 1.039 equipes cadastra- como: o setting terapêutico, os aspectos psicos-
das, porém, foram consideradas 883 unidades sociais do paciente com seu adoecer (suas ex-
funcionando. Decidiu-se, então, escolher a pectativas, medos, ansiedades, etc.), suas expe-
amostra de 10 médicos diferenciando três gran- riências anteriores de outros médicos, bem co-
des áreas sociodemográficas: serra, sertão, cos- mo, pelos próprios profissionais, com a sua
ta litorânea. Nesses três contextos foram obser- personalidade, seus fatores psicológicos (es-
vadas 200 consultas médicas. tresse, ansiedade, frustração, etc.) e seu treina-
Foi constituído um banco de dados utili- mento técnico (experiência profissional e habi-
zando o programa SPSS. Uma análise descriti- lidades comunicacionais).
va das principais variáveis foi acompanhada Nesse momento, enfocamos como os médi-
por uma análise comparativa buscando asso- cos pesquisados não reconhecem o seu pacien-
ciações entre variáveis independentes e depen- te como sujeito capaz de assumir a responsabi-
dentes através de testes estatísticos (odss ratio, lidade com o cuidado pela sua própria saúde; e
chi-quadrado). Os dados não-estruturados fo- também não desenvolvem a autonomia e parti-
ram elaborados a partir de transcrições de en- cipação do paciente no seu processo de adesão
trevistas com informantes-chave e codificação ao tratamento, e suas práticas de prevenção e
dos dados e da análise, como também de ob- promoção da saúde.
servações inseridas no contexto de aplicação do O tempo médio da consulta é de 9 minutos
instrumento. Todas as entrevistas abertas fo- com uma ampla variação de 2 até 24 minutos.
ram gravadas e transcritas. O material foi su- É importante enfatizar que um maior tempo de
cessivamente codificado, classificando as res- consulta está associado a uma melhor qualida-
postas por categorias em relação a cada tema. de do atendimento: como uma melhor anam-
Primeiramente, os aspectos organizacio- nese (p<0.01), uma melhor explicação do pro-
nais, como a alta rotatividade dos médicos, a blema e dos procedimentos diagnósticos e te-
falta de estruturas físicas adequadas, os proble- rapêuticos, assim como a verificação do médi-
mas na organização dos serviços, afetam a rela- co sobre a compreensão do paciente (<0.01) e
ção, bem como os fatores culturais e sociais a participação do paciente na consulta (<0.01).
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O tempo de atendimento das médicas é 11.85 Esses resultados estão em sintonia com ou-
superior ao dos colegas médicos que é de 7.71 tros trabalhos mostrando que a maioria das
(p<0.01). queixas dos pacientes fazem referência a pro-
Na pesquisa, em relação aos aspectos psicos- blemas comunicacionais com o médico e não a
sociais, na maioria das consultas (91,4%), os sua competência clínica (Ley, 1988), sendo es-
médicos não exploram os medos e ansiedades tas queixas os efeitos de uma má relação. As
dos pacientes, considerando-se que abordar es- percepções diferenciadas entre médicos e pa-
se aspecto envolve também compreender as di- cientes no relacionamento são influenciadas
ferentes visões de doença e saúde, vinculando-a por questões que enfatizam a assimetria e difi-
à escala de valores daquela comunidade atendi- cultam o estabelecimento de uma melhor rela-
da, bem como, o referencial próprio de doença ção. Essa diferença é reafirmada pela com-
que cada sujeito constrói ao longo de sua histó- preensão da doença por parte do paciente, que
ria pessoal e coletiva (Caprara et al., 2001). perpassa por caminhos diversos daqueles do
A diversidade cultural é uma realidade com médico. A experiência da doença pelo paciente
a qual os médicos de Saúde da Família preci- envolve os aspectos culturais, familiares, emo-
sam administrar em sua prática. Essa mesma cionais. Na literatura anglo-saxônica é chama-
diversidade exige que o médico seja capaz de da illness e poucas vezes é explorada pelo mé-
aprender novos valores e desenvolver outras dico (Eisenberg, 1977)
percepções de saúde-doença. Trata-se de uma
aprendizagem indispensável para uma inter-
venção médica eficiente, que perceba o proces- Propostas de mudança
so do adoecer para aquele paciente que se inse-
re numa experiência de fragilidade e ameaça ao Uma melhor relação médico-paciente não tem
seu estado de ser saudável e ativo. Consideran- somente efeitos positivos na satisfação dos
do-se que a não concordância entre médico e usuários e na qualidade dos serviços de saúde.
paciente quanto ao diagnóstico e tratamento Vários estudos mostram que influencia direta-
proposto, uma conseqüência da divergência de mente sobre o estado de saúde dos pacientes.
valores e crenças, pode implicar a não adesão à Por exemplo, no estudo de Fallowfield, a inci-
terapêutica. Não significa, entretanto, que o dência de ansiedade e depressão depois de 12
médico do PSF tenha de abdicar do saber téc- meses do diagnóstico de câncer de mama é in-
nico-científico que dispõe, mas sim buscar a ferior entre as pacientes que tiveram uma boa
articulação do conhecimento biomédico ao sis- informação em comparação a um outro grupo
tema de representações populares referentes a mal-informado (1990). Outros estudos têm
saúde-doença, de forma a garantir adesão ao confirmado que uma melhor relação médico-
tratamento. Um exemplo dessa parceria é ob- paciente interfere no sucesso do tratamento,
servada entre as equipes de saúde do Ceará e como salientado por Dixon e Seweeny: A im-
rezadeiras locais, que objetivava fazer com que portância da relação terapêutica explica por que
as informações sobre prevenção e tratamento a adesão ao processo terapêutico depende mais
de algumas doenças cheguem mais compreen- do médico do que das características pessoais do
síveis à população. Dentre as dificuldades em paciente, em particular, o paciente é muito mais
lidar com os aspectos psicossociais, destacamos inclinado a atender a prescrição se ele pensa que
a limitação em lidar com a dinâmica familiar e conhece bem o médico que está prescrevendo
suas relações, bem como os medos e ansieda- (Dixon e Sweeney, 2000).
des acerca da doença e seus sintomas. Segundo White (1992), 25% dos benefícios
Muitas vezes os pacientes fazem referências derivados da prática médica não estão ligados
a aspectos sociofamiliares, evidenciando a im- às capacidades técnicas do médico, aos efeitos
portância destes na sua condição de saúde. No terapêuticos dos medicamentos, ou aos efeitos
entanto, os médicos, em sua maioria, escutam placebos. Eles seriam o resultado terapêutico
e até reconhecem a pertinência da questão apre- da própria palavra do médico sobre uma série
sentada, mas não a exploram com o paciente, de sintomas que surgem como eventos ligados
da mesma forma e profundidade como fazem aos fenômenos de estresse (cefaléia, cansaço,
com relação aos sintomas e sinais da doença constipação, problemas gástricos, modificações
como efeito, a investigação sobre os aspectos de peso etc.). Observamos isso também com
sociofamiliares, bem como as reações da famí- relação aos seus efeitos em termos de melhor
lias e amigos. adesão ao tratamento, o que influencia um me-
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lhor controle, por exemplo, de diabetes e hiper- cas e das situações, visto que os elementos co-
tensão. municacionais são analisados primeiro em for-
Essas considerações nos convidam a abor- ma separada (no primeiro ano) e depois pro-
dar a questão da formação médica. Nos cursos gressivamente integrados entre eles (Dalen et
tradicionais para médicos e enfermeiros, os es- al., 1995). Durante as etapas sucessivas do cur-
tudantes adquirem uma série de conteúdos e so, os conteúdos adquirem passo a passo uma
capacidades práticas que levam a considerarem maior elaboração, passando de temas mais
somente os aspectos físicos, excluindo as carac- simples, como “formulação de perguntas” e
terísticas culturais e socioeconômicas. Segundo “capacidade de escuta” a aspetos mais comple-
Anne Scott (1998), durante a formação os es- xos como “a comunicação de más notícias” e a
tudantes adquirem a consciência do que deve “assistência de pacientes em fase terminal”.
ser ignorado, excluído, reforçando a lógica bio- Com o transcorrer do tempo, cada estudante
médica. Na realidade, o conto do paciente mui- identifica as próprias capacidades e dificulda-
tas vezes não contém somente elementos de des, escolhendo o percurso formativo mais
história da doença, mas também elementos de adequado às suas necessidades.
história social (Skultans, 1998). Há algumas Como resposta a essa necessidade é impor-
décadas, nas universidades européias e norte- tante enfatizar a introdução das “humanidades
americanas estão sendo desenvolvidos cursos médicas” na formação universitária e na edu-
sobre o tema da relação médico-paciente. Qua- cação continuada. Por exemplo, a abordagem
se todos esses cursos têm uma característica co- das humanidades médicas prevê a incorpora-
mum: a duração acompanha todo o processo ção de elementos das ciências humanas (filoso-
de formação do estudante desde os primeiros fia, psicologia, antropologia, literatura) na for-
até os últimos anos. mação e na prática dos profissionais de saúde
Apesar dessa característica comum, ainda (Gruppo CPR, 1996; Dawnie et al., 2000). As
existe uma alta variabilidade na qualidade dos humanidades médicas se constituem como um
cursos (Whitehouse, 1991). Para que o currí- espaço para repensar a prática em medicina,
culo tenha um perfil adequado, observamos intervindo na qualidade da assistência com a
que é importante que o tema da relação médi- personalização da relação, a humanização das
co-paciente esteja presente durante todo o pro- atividades médicas, o direito à informação, o
cesso formativo; bem como a inserção impres- aperfeiçoamento da comunicação médico-pa-
cindível da abordagem interdisciplinar (clíni- ciente, diminuindo o sofrimento do paciente,
ca, psicologia, ciências sociais). O processo vai repensando as finalidades da medicina, au-
progressivamente se aprofundando: de uma mentando o grau de satisfação do usuário. Tra-
maior simplicidade até uma maior complexi- ta-se de um campo que precisa de investigações
dade; tendo que formar os médicos para sabe- de novas elaborações conceituais e empíricas e
rem lidar com situações críticas, como diag- que são objeto de interesse deste trabalho.
nóstico de doenças graves e terminais; e tam-
bém organizar um processo de formação dos
docentes desses cursos, visto que os programas Conclusão
mais estruturados são mais efetivos.
Na Escola de Medicina de Harvard, por Observa-se uma necessidade crescente em de-
exemplo, o curso prevê alguns elementos bási- senvolver uma comunicação mais aberta entre
cos como a aprendizagem que se inicia no pri- médicos e pacientes que possibilite uma maior
meiro ano com um procedimento no qual o qualidade na relação. Em face dessa questão, o
aluno examina a própria experiência, as moti- primeiro ponto a ser apresentado para reflexão
vações que o levaram a se inscrever no curso de é relativo ao comportamento profissional do
medicina. No programa de formação está in- médico. Este deve incorporar aos seus cuidados
cluída a compreensão de como a percepção da a percepção do paciente acerca de sua doença,
doença por parte do paciente influencia o pro- que possivelmente diverge do modelo clínico,
cesso de cura, e como a aprendizagem está diri- visto que são valores e compreensões próprias
gida à compreensão de aspectos éticos da me- daquele caso. Isto não significa que os médicos
dicina e das ciências humanas (Branch et al., tenham de se transformar em psicólogos ou
1991). Na Universidade de Maastricht, os as- psicanalistas, mas que, além do suporte técni-
pectos comunicacionais são abordados aumen- co-diagnóstico, necessitam de sensibilidade pa-
tando gradualmente a complexidade das práti- ra conhecer a realidade do paciente, ouvir suas
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queixas e encontrar, junto com ele, estratégias não apenas na doença. Consideramos que, com
que facilitem sua adaptação ao estilo de vida essa abordagem, poder-se-ia diminuir a assi-
influenciado pela doença. metria da relação.
Observamos que os modelos comunicacio- Esta demanda exige a implementação de
nais estão relacionados ao espaço terapêutico, a mudanças visando à aquisição de competên-
aspectos do paciente (sintoma, expectativa, cias na formação dos médicos. Por enquanto
medos e ansiedades, etc.) e também aspectos restrita ao modelo biomédico, impossibilita
do médico (habilidade comunicacional, expe- considerar-se a experiência do sofrimento co-
riência profissional, stress, ansiedade, etc.) que mo integrante da sua relação profissional. Des-
assim vão constituindo uma relação. Cada con- se modo, é importante considerar criticamente
sulta é uma nova relação que se estabelece, mas o desenvolvimento do modelo biomédico co-
que habilidades são esperadas do médico como mo contexto no qual se configuram as possí-
detentor do saber? A ele cabe o papel de possi- veis formas de relação médico-paciente e assim
bilitar que a relação seja centrada no paciente e ter uma posição ativa e crítica na busca de uma
nova prática.

Agradecimentos

Gostaríamos de agradecer aos revisores anônimos pela


leitura atenta e crítica deste texto. Nossos reconhecimen-
tos também a Jorge Montenegro Braga, Anamelia Lins e
Silva Franco, Dower Barroso, Vileimar Azevedo e aos alu-
nos do Provimp da Faculdade de Medicina da UFC pela
participação na pesquisa, e a discussão aberta e constru-
tiva de diferentes idéias expressas neste texto, mesmo
afirmando que as considerações aqui apresentadas são de
nossa exclusiva responsabilidade.

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Artigo apresentado em 3/2/2003


Aprovado em 11/4/2003
Versão final apresentada em 9/10/2003

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