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teccccy Cc creo Ta Oque | mene OBR sobrea | PT Sa Lara Humberto | DECLARAGAG rir nares : uy Sa etree _ Oe a ey @ THOT publcsto do opal a Go os. TH 970-1099 ogi 3 000 egies STRAT is 900 ores: esti Poo Gorgas, Huta Mii iden, ime Aug Geral, Uo Ani [gine THOT ciel Cina 1, Aaa, Jor Flat Joa Roma Tye de Auer, lode Been Merges, Mar Nowa Geet, ina inn, Tharenis Suis Compo, or bee Celahoraderes: Coloyo ri, Dole Mor, ors Se Set es, eet Menten Raber Sep Mores peo Geis sietestoa les Sarees misenierel se Connae Indice 1 Editorial 2 Entrevista com Elisabet Sahtouris 22 Integracdo e tolerdincia: 0 desafio do século 21 Maria Alice Figueiredo 35 Aspectos éticos e legais da doagdo de érgaes Marcos de Almeida 43° Oque aprendi com o Dalai Lama sobre 0 judaismo Rodger Kamenetz 51 Painel: Favela espelho Atilio Avancini 61 Humberto Maturana e a psicoterapia Alfredo Retiz 7O Sobre a beleza: Enéada 1, Tratado 6 Plotino 78 Consciéncia e diversidade cultural Maria Kamenetzity 92 Declaracéo do Parlamento das Religides do Mundo para uma ética global Hans Kiing 108 Mahatma Gandhi e a Policia Militar de Sao Paulo Suzete Carvalho Epifonia: Uma tarde no lago oculto. George Barcat Jociaule pages emia « epecdgio, clan 3 a Gham tala de prep ads ela Eéxora Palaw hens, Peaadicklade camera. Asta pe ec: eriacan Palas Athena do fra, no endo ala cle pon bilepn Sediewton cile sen vere Matec ot 006 DOC? de Deparanerto de Policia Federal sab ar 135 #0 ‘Associacéo Palas Athena do Brasil Bua Ledncio de Carvalho, 99» Paraise ‘0003-010 - Sto Foes: (011) 238.7356 - Pax: (OLY 2 Intemet py ‘sewer palasathons en Editorial Pscs pela Associacao Palas Athena desde 1975, THOT chega a sua 70? edicio. Tamanha longevidade de um periddico dedicado & cultura sO tem uma causa: acreditamos na importincia de fazer © pensamento circular Teceu-se uma rede de miltiplas aproximacdes dis- ciplinares, que aspira renovar os mados de ne espécie habitar o planeta e tomar consciéncia de mesma-e da interdependéncia que existe entre to- dos 08 seres, assuntos © coisas, Novos tempos exi- gem novos modos de compreensiio e acdo. Sem cles, Tiscamo-nos a perder 0 rume sem ao menos su: peitar dos motivos de nassa desorientacao. Estamos, portanto, diante de uma decisis crucial: come orga- nizar a convergéncia de todos esses conhecimen- tos? E, mais importante do que isso, como aprox mar esses conhecimentos das reais necessidades da vide? Dizenda de outro. modo: como transformar a superalbundancia de conhecimentos em sabedoria, em pritica ¢ estilo de vida? Entendemos que o ciminho pas: mente, pelo incentivo de uma forma de entendi- mento do munca ancorada no didlogo, amplo.e sem fromeiras, entre todas as formas de racionalidade, arte ¢ desenvolvimento espiritual. Este é 0 valor que temos dado ao conceito de transdisciplinaridade. Em suma, para nds, a transdisciplinaridade € muito mais uma ética do que uma epistemologia ou coisa semelhante. Depois de 23 anos rodando pelo pais, a grande motivagao da THOT continua a ser despertar em seus Ieitores 0 gosto pelo Cultivo do pensamento, da sensibilidade ¢ do exercicio dos direitos ¢ deve- res da cidadania, bem como o gosto pela “biodiver- sidade” das idéias e praticas sociais. Vocés sempre serac bem-vindos A nossa boléia ‘Obrigado a todos os que viajam ¢ viajaram conosco. te ) MECESSaL George Barcat Geobiclogisie, ecologista pesquisedara de eatudos do futuro. Em 1989, publicou Goia: do ‘e005 00 cosmos! E também consultors da ONU pora povos indigenas, fellow da Fundagée Findhorn, 2 frabolha no conselho consultive do Institute for Susioinable Develoament and Alternative Futures, Aivalmente, elo vive # trabalho nos Andes peruonos, onde é corfundadores de um centro para o estude das evlturos andlina & ‘omazénica, PARA UMA . VISAO ORGANICA DO MUNDO oje em dia ouvimos falar muito em “novo i paradigma”, empowermentlenergizacaol, “ecossistemas”, “redes globais” ¢ “comunid de”. Esses termos acabaram se tornando cha- voes de nossa cultura emergente. Mas o que eles significam ¢ por que sao tao importantes? Segundo Elisabet Sahtouris, essas expres- sées S40 parte de uma mudanga que est ocor- rendo em noss; ao ocidental de mundo Essa modificacao estd se dirigindo, segundo ela, do “mecdinico” para o “organico”. Os cien- tistas © comegando a conceber de novo a natureza, ndo como um sistema de meca- nismos, como foi ensinado 4 maioria de nds, mas Como um sistema complexo € auto-orga- nizado. Essa mudan¢a tem implicagées pro- fundas, nao apenas para a ciéncia moderna vii e mas também para a nossa realidade social politica ¢ econémica. SCOTT LONDON — Vamos comecar pelo co- meco, como se diz. Como foi o inicio de seu trabalho sobre a evolucdo e a teoria de Gate? ELISABET SAHTOURIS ~ Estudei primeiro arte, porque meus pais achavam que ciéncia era assunto para meninos. Assim, graduci-me em artes antes de ir para a ciéncia. Recebi depois meu Ph.D em ciéncia e fiz um pos-doutorado no Museum of Natural History, em Nova York, justamente na época em que surgiu o primeiro artigo de Jim Lovelock sobre a hipétese de aia. Fstava fazendo pesquisas comparativas sobre a evolucao do eérebro, mas as minhas grandes questoes — © que somos? De onde viemos? © que estamos fazendo aqui? Para onde estamos indo? — permaneciam sem resposta. Fiquei muito desencorajada com a ciéncia, porque cla nao tinha resposta para esses grandes problemas. Ninguém parecia estar queren- do chegar a uma visao global, ou universal, sobre a humanida- de como espécie. LONDON — Quando vocé co- megou a se dar conta de que @ ciéncia tradicional nao era o meio mais adequado para respon- der a essas grandes per- guntas? SAHTOURIS = Acho que foi durante a mi- nha bolsa de estudos pdés-doutorado, quando eu estava em Manhattan, Nova York, e vi tantos problemas sociais — pes- soas sendo despejadas, res- pirando um ar poluido. Cau- sei um certo desconforto no Museum of Natural History. Isso aconteceu por volta de 1969. Eles haviam gasto muito dinheiro para fazer uma exposicdo sobre poluicio, enquanto o museu expelia uma fumaca negra sabre a regiao norte de Manhattan, impedindo as mulheres da vizinhanea de estender a roupa que lava- vam. Entao mostrei a contradicao entre a ex- posigao e€ 0 que eles préprios estavam fazendo. ‘Dessa mancira, foram muitas as pequenas ligdes que me levaram a perceber que a ciéncia tem os olhos ven- dados, e por isso nao vé que o que faz nao tem relagio com a sociedade. “Ey queria saber quem éramos dentro do contexto da natureza” a Poucos anos depois, tive oportunidade de discutir com pro- fessores do Massachusetts Institute of Technology sobre como funciona a nossa sociedade. Na mesma época estive numa pri- si, conversando sobre as mesmas questoes com interes ne- gros. Ficou Sbvio para mim que os negros haviam entendido melhor que os cientistas a estrutura e a fungao da sociedade em que vivemos. Quanto aos professores do MIT, sempre que tinham um insight sobre como funciona o processo social, logo am publici-lo como uma nova teoria sobre, digamos, a s necessidades industriais que! relagao entre a educagio publica € dos trabalhadores [risos]. Como se isso fosse muito familiar para as pessoas que cresceram nas rua: Entio comecei a pensar: como pode a ciéncia responder as grandes que: quando na verdade nao d4 qualquer atengio ao que esta acontecendo no mundo? Decidi que era muito mais importante preocupar-me com a transigao e 0 desenvolvimento de novas alternativas para uma humanida- de em deterioragao, do que ficar num laboratério fazendo pes- quisas Wiviais. Quando fui para a Gréci ver romances para explicar a mim mesma a condi Tornei-me amiga de Henry Miller e acabei compreendendo por que ele dizia odiar a linha reta. O que ele queria realmente dizer era que nao gostava das coisas artificiais, geométricas, abstratas, que ndo fazem parte do mundo organico. Assim, quan- do cheguci as ilhas gregas, ld vivendo nos bosques € na digua, 1, poucos anos depois, decidi escre- o humana. com os pescadores, as mesmas velhas questOes retornaram a minha mente. Fu queria saber quem éramos dentro do contexto da natu- reva, Desejava uma explicacgio cientifica que fosse melhor que que me haviam ensinado. Atribui-me a tarefa de tentar des- crever a evolucdo da Terra dentro do contexto de um cosmos vivo, autocriador, e entéo olhar para a hist6ria humana dentro desse Ambito. Fiz isso de uma forma apressada e um tanto nebulosa, mas o qué eu queria mesmo era ver como as pes- soas, através das idades, véem a si proprias em relagao a esse sistema vivo mais amplo do qual dependemos. “Para mim, o planeta é vivo por definigao” = LONDON — Sev livro € ma reflexdo sobre a teoria de Gaia, desenvolvida par James Lovelock e Lynn Margulis. Como voce caracterizaria esse teoria? SAHTOURIS — Jim Lovelock é um cientista ambiental inglés, que props que a Terra ¢ uma entidade viva ¢ auto-organizada Chamou-a de Gaia, com base no nome grego da deusa primor dial da criacio, que acabou se transformando no nosso planeta. Discordo um pouco de Lovelock e Margulis, sobre como falar de Gaia, porque jamais a vi como uma hipétese (como eles inicialmente a chamaram) ou teoria. Para mim, trata-se da conceitualizagio da Terra como um ser vivo, que surgiu para substituir o nosso entendimento do planeta como um Conjunto de mecanismos, Ver o mundo como um ser viv faz parte da grande transicdo da visio de mundo mecinica para a organica Para mim, 6 planeta é vivo por definigdo. Uso a definicao de vida proposta por dois bidlogos da América Latina, Humberto Maturana e Francisco Varela, que se tornou conhecida como “qutopoiese”. Trata-se de uma palavra grega que significa, lite- ralmente, “autocriagao”. Eis a definicdo: entidade viva € aquela que cria a si mesma de modo constante. Estabelece-se assim a distingdo entre um sistema vivo e¢ um mecanismo, porque uma maquina no cria a si prépria de mode constante. Com efeito, se ela mudar é porque provavelmente esta quebrada, e€ gosta- riamos que isso nado acontecesse. O ser vivo, no entanto, ou muda constantemente ou esti morto. Dessa maneira, estou falando de autoconceitualizagao, nao de uma hipotese ou teoria, Nessa conceitualizagao, ou quadro de referéncia cientifico, poderiames propor hipéteses ou ela- borar teorias. sobre © seu funcionamento, LONDON — Quando Lovelock propés inicialmente essa hipo- tese, disse que estava utilizando uma linguagem poctica e me- taforica, Assim, além de apresentd-la como umet hipdtese cien- iffica, cle estava também metaforizando. Hoje, a teoria ou hipé- iese de Gaid é descrita como ume bela metdfora, ou é levada a sério pela comunidade cientifica? SAHTOURIS — Uma das coisas que aconteeeram foi que as identificadas com a “Nova Bra” (€ essa expressao tem pessoa muitos significados) entusiasmaram-se pela hipdtese de Ga tal como proposta por Lovelock, porque todos sabiam intuiti vamente que a natureza é viva, que a Terra vive. Na verdade, nossa cultura ocidental e industrial 6 a Gnica na hist6ria que nao ficou sabendo disso, o que fez com que os cientistas, por sua vez, se distanciassem do planeta real. Entretanto, quando alguém fala em “apenas uma metifora”, temos que ficar atentos, porque a ciéncia inteira é também uma metdfora. Quando dizemos que a natureza é um conjunte de mecanismos, isso é tao metaf6rico quanto dizer que cla é uma entidade viva. Nao hé meios de falar sobre qualquer coisa S: nova sem invocar metéforas. A ciéncia inteira se baseia nel Se falamos do atomo como um pequeno sistema solar com elétrons girando em torno de um micleo, ou como redemoi- nhos de energia (nas descrigdes mais recentes), estaremos também usando metaéforas. Uma metifora significa simplesmente que tomamos algo que é familiar e © utilizamos como uma imagem do que estamos tentando deserever € ainda n4o en- tendemos bem. LONDON — Por que é tio dificil para nos, ocidentais, pensar @ Terra como um sistema vivo? SAHTOURIS — Acho que isso remonta & vi cartesiana. Descartes propds que Deus era um grande arquitete © que suas criagGes eram mecanismos. Isso significa que a n: lureza inteira era um conjunto de mecanismos criados por Ele, © arquiteto, que num dado momento pés um pouco de sua mente divina em seu rob favorito — 0 homem — para que este também fosse capaz de criar maquinas. Gostemos ou nao, €: era uma visto de mundo bastante completa, que dava conta de tudo. Quando os cientistas decidiram que nao precisavam mais de Deus para enxergar o mundo, eles o ¢liminaram da visio cartesiana, mas conservaram a idéia do conjunto de mecanis- mos. Mas como explicar a origem desses mecanismos sem um criador? Por definicao, uma maquina ndo pode existir sem um criador. Se elas existem, e nao podem ter sido montadas e agrupadas por alguém, a tnica alternativa & dizer que foram agrupadas por acidente. E assim se chegou a teorias estranhas, como a que diz, literalmente, que se suficientes pegas de um Boeing 747 forem arrebatadas por um redemoinho num ferro velho, existe a possibilidade de que um desses avies monte asi mesmo. ao de mundo Acredito que logo vamos achar que essa é a concep¢ao mais bizarra de como. as coisas funcionam jamais proposta na histo- ria do mundo. E penso que ela serd vista dessa forma num futuro muito préximo, porque se trata de um ponto de vis fundamentalmente ilégico. G problema foi que os cientistas se sentiram obrigados a escolher entre Deus, o inventor intencio- nal, € a. acaso, é nao dispunham de nenhuma teoria que expli- casse a autocriacaa come um processo perfeitamente natural, biolégico € universal. Agora temos essa teoria e portanto nao mais precisamos invocar hipéteses. LONDON — Fd um irecho interessante do sen Hivro, 10 qual vocé fala sobre a visdo de mundo cientifica como sendo talvezo produto de um aniigo debate entre os fildsofos gregos. De um ladlo, estavam pensacdores como Platéo e Aristételes, que achea- vam que a razdo era algo que deveria ficar afastada do mundo tal como 6 experienciamos. De outra parte, fildsofos como Heraclito e Anaximandro tinham um ponto de vista mais orgd- nico, é viam o cosmos como uma entidade viva. Acho que nao precisamos especular sobre quem ganhore essa discissdo SAHTOURIS [risos] — Certo. Entre os fildsofos organicos, meu favorito é Anaximandro. Apenas uma frase de seus escritos chegou até nds, o resto € tradigao oral, transmitida por seus discipulos. Mas essa nica frase, em minha traducao do grego, & “Tudo que se forma na natureza contrai um débito, que alvendo-se de modo que outras coisas possam deve pagar di se formar”. Eis uma bela teoria da evolucao por meio da reci- clagem, expressa numa Unica frase. Ela mostra que © conceito ivo desde a antigitidade. Entio os ocidentais — ava bem v seguidores de Platio e assim por diante — moveram o foco para a légica e a matematica, que nos leva direto aos maquinismos como modelo de natureza. LONDON - Par falar em antigitidade, aleins antropélogos e historiadores estéto hoje reconsiderando algumas das primeiras provas que remontam é era paleolitica, e descobrindo que mui- las culturas daquele tempo tinham tma visdo de mundo mais holistica AHTOURIS — Sim. De fato, o holismo cra natural a todos os povos untigos ¢ indigenas, incluindo os que ainda sobrevivem. Nossa obsessio ocidental é dividir o mundo e por os pedagos em caixas, separar a ciéncia da politica, da religido e das artes, por ¢xemplo. Nao era 6 caso de outras culturas, é isso as ajudava “I “Criamos @ nossa propria realidade” 5 a ver as de modo global, simplesmente porque nao se- paravam as coisas. Na verdade, eles siio capazes de ver outras dimensdes — que relegamos ao ambito da religiio — como parte da realidade ordinaria, Nao estio obcecados em tacar frontei- ras entre os fatos € ao Tsso me faz lembrar uma conversa que tive com David Abram. a respeito de suas experiéncias na Indonésia, onde trabalhou com a medicina local. Ele estava certo de que suas habilidades de magico e prestidigitador poderiam ajudd-lo a penetrar no universo médico daqueles povos €, com efeito, isso funcionou. David costumava dizer que todos os que exercem a medicina sabem um pouco de prestidigitacdo. Entao eu 0 pressionei para onde estava a fronteira entre a prestidigi ¢A0, a magia ¢ a realidade no mundo daquela gente. EF ele dizia sempre o mesmo: “Nao existem fronteiras entre magia e reali- dade. A nanureza é profundamente magica em seu fimago”. Le- vei muito tempe para compreender o que ele queria dizer com isso. Foi s6 por meio de meus préprios anos de experiéncia com povos indigenas de varios lugares que pude finalmente entender. Ha uma afirmacio coma qual vocé se depara na literatura esotérica. Ela diz que criamos a nossa propria realidade. Em nossa cultura, ha livros como os de Jane Roberts e sua entidade Seth, por exemplo, que apéiam essa noc&o. Para os poves na- tives, faz parte da concepgie comum das coisas dizer que as pessoas criam a realidade, seja cerimonialmente seja em con- versa direta com Arvores, animais, com toda a natureza. Eles dam com a natureza de uma maneira co-criadora e esto c6ns- cios disso. Em nossa cultura fazemos 0 mesmo, mas sem ter que ele me di 2S essa. consciéncia. LONDON — Isso 6 mutita interessanie. Par falar em culturas nativas, vocé acrescentou um capitulo chamado A mancira in- digena, na nova edigdo de seu livro. Quando vocé sentiu que era necessdrio fazer esse acréscimo? SAHTOURIS — Quando terminei a primeira versia do livro, conclui que se os seres humanos nao come¢arem a se compor- tar como um sistema vivo dentro de um sistema maior, e tam- bem vive, que chamamos de natureza, planeta ou Cosmos, logo. "Qs povos indigenas sabem mais do que a nossa cultura ocidental” estaremos caminhando para a extingdo, Uma vez tendo decidi- do que nossa tarefa era viver como um sistema dentro.de ou- tro, tornou-se Gbvio para mim que os povos indigenas sabem mais de que a nossa cultura ocidental. Esta tomou como ner- ma separar a si mesma do resto na natureza, vendo-a objetiva- mente € controlando-a Um indio tewa amigo meu, 0 Dr. Greg Cajete, que escreveu um livro chamado Olhe para a montanha; uma ecologia da educacdo indigena, me disse: “A diferenca entre 0 modo como © indio faz ciéncia e a maneira como o homem branco a faz é interessante. O branco isola um pedago da natureza ¢ a leva ao laboratério para estudd-la, porque quer controla-la. © ind porque seu propésito é integrar-se nela”. Essa é uma diferenca fundamental entre a nossa cultura e as outras: nosso objetivo é usar a natureza e transformé-la para finalidades hu- manas — ou seja, o controle. A deles é viver harmoniosamente no mundo natural, reconhecendo que somos completamente dependentes dele, do mesmo modo que qualquer célula ou 6rgao do corpo depende por completo do resto do organismo. LONDON — Parece que hd uma grande necessidade de saabe- doria tribal nos dias cttuais. Essa situercdo se refleliu em mossas listas de bestsellers, que mostram livros como A profunda men- sagem do mutante, de Marlo Morgan. Acho quite deve haver, em algum nivel. um entendimento de que as culturas indigenas tém algo que evidentemente nds perdemos. SAHTOURIS — Sim. Acho que o movimento ecolégico nos con- duziu a isso, porque nos alertou para a natureza e para como nés nos haviamos isolado tanto em nosses ambientes urbanos, Uma vez que comecam a desenvolver-se esses sentimentos intui- tivos de profundo respeito e amor ao mundo natural, penso que todes chegarao a conclusio que possivelmente devemos nos apro- ximar das culturas indigenas para entrar em contato com sua sabedoria, porque elas nao se separarim da natureza como nds. Costumo usar dicdaticamente uma hist6ria dos indies hopi Nela, 0 Grande Espirito e a Mae Terra dao duas tarefas diferen- tes a seus filhos, o irmao vermelho € 0 irmao branco. Dizem ao irmao branco para ir ao estrangeiro, escrever e inventar coisas. Ao irmio vermelho, recomendam ficar em casa ¢ conservar a terra em sagrada confianca por meio de cerimGnias. Um dia, a irmio branco volta e eles Ihe dizem que deve partilhar suas invencdes com © irmao vermelho e ouvir deste a sabedoria que acumulou: se fizerem isso, poderio criar juntos um mundo melhor, Mas se o ego do irmao branco, durante @ proceso em que faz suas invencOes, crescer tanto que ele nao possa mais ouvir a sabedoria do irmao vermelhe, tudo estar perdido ¢ este mundo, tal como o conhecemos, acabara Gosto de usar essa histGria em aulas, porque ela diz que a tecnologia € uma coisa boa, desde que seja utilizada no con- texto da sabedoria sobre os sistemas vivos nos quais estamos embutidos ¢ dos quais dependemos. Hoje em dia chamamos isso de “tecnologia adequada”. Eis exatamente para 0 que pre- cisamos olhar: como devemos desenvolver nossas tecnologi de modo a que elas sejam inofensiv natureza € pos- sam ajudi-la, o que € uma possibilidade. as para LONDON — Fr seu livro, vacé também fala sobre os indios kogi, que t@m algumas semelhancas com os hopi. SAHTOURIS — Sim. Os kogi sao conhecidos pela mensage do documentirio de Alan Ereira, chamado Mensagem do cora- ¢ao do mundo: a palavra do Velho Irmdo. Eles falam sobre Aluna como sendo a criadora do mundo, ¢ dizem que antes de ela o ter criado vivia errando em todos os mundos possiveis, vivendo em grande angistia. Assim, ela é chamada memoria € possibilidade, o que considero uma bela frase, Ela criou nove mundes, na hist6ria criacional dos kogi. No nono pés as pes- soas, inclusive dois irmaos, um velho ¢ um jovem, Essa € uma histéria muito semelhante 4 dos irmaos vermelho e branco da historia hopi. O irmao jovem estava sempre perturbando o mais velho. Entao Aluna The deu o conhecimento da tecnologia e 0 mandou para longe, para o além-mar, onde cle nao pude ser importuno. Segundo os kogi, ha 300 anos ele atravessou o oceano € voltou para continuar sendo destrutivo € impertinen- TeSKe im, se nao parar de retalhar © figado de sua mie ¢ de cortar © seu coragao, acabara destruindo o mundo que conhe- cemos. Os indios estio, evidentemente, se referindo aos garim- pos ¢ ao deflorestamento que véem na Amaz6nia, no sopé de suas grandes montanhas colombianas LONDON — Quer dizer que eles viveram isolactos durante cerca de 500 anos? 10 SAHTOURIS — Todo esse tempo. Segundo o documentario, eles constituem os Gltimos sobreviventes das culturas pré- colombianas. Mas isso nao € bem verdad ir uma aldeia andina que nao havia recebido a visita de ninguém an- les, mesmo arquedlogos. Quando esses aldedes vieram a Cuzco, tive oportunidade de mostrar-lhes esse filme sobre os kogi. A maioria adormeceu porque nunca tinham sentado em so- fas antes, vendo um video. Eu estava junto com eles, alerta, © ouvi os que continuavam acordados fazer comentdrios sobre como a lingua dos hopi parece semelhante 4 sua rune (ou, como os éspanhdis a chamam, a lingua Quichua), o que mostra que eles também cram sobreviventes de uma culty pré-colombiana. Fui_ visi isi LONDON = O que aconteceu quando vocé viajou pela mon- tanha até essa aideia? SAHTOURIS — Bem, alguns deles vieram a pé da aldeia até 0 passo da montanha, a 5000 metros, na neve, para Cuzco, o que para cles no demora mais do que o mesmo percurso feito por caminhao Volvo de 40 toneladas, naquelas estradas tortuosas e de curvas fe das. E li chegaram, com s sandilias de sola de pneu (elas estio por toda parte nos Andes, e vém desses mesmos Volvos, cujos pneus estouram nas trilhas), trazendo sacos de batatas para alimentar-se na cidade. porque nao tinham dinheiro. Encontraram alguns amigos mi Sicos, que os deixaram ficar em suas casas € cozinharam para eles. A medida que Ihes daévames comida ¢ cuidados, pergun- taranvse nao gostariamos de ir visité-los, porque ninguém até entao havia feito isso. Assim, fomos apresentados a eles por esses musicos da cidade, nativos urbanizades. udo corria amigavelmente, stavam cheios de alegria por saber que fariamos © esforeo de ir até a sua aldeia para uma comemoragao de tr a, tive a oportunidade de preparar um cozido de Ihama na fogueira. A maioria desses aldedes se alimenta apenas de batatas. Suas praticas agricolas sao tio eficazes que, se plantam um campo num ano, dao a terra um repouso de mais seis anos antes de plantar outra vi Ha muita gua nos Andes, vinda da neve, ¢ tude é muito ver- de. O solo é negro, ¢ é realmente possivel viver daquelas ma- ravilhosas batatas, de diferentes cores ¢ variedades. e rumaram direto les Zi LONDON ~ O que vocé aprendeu ao viajar entre a nossa sociedade e as culiuras inedigenas? il “Ha uma percep¢ao completamente oposta da riqueza material nas culturas nativas” SAHTOURIS — Eu poderia ilustrar uma das coisas interessan- diferenga falando sobre uma amiga chama- da Sarah James, que € india Gwich'n ¢ mora numa das cidades mais setentrionais do Ala Sarah estava na Conferéncia da Terra, no Rio de Janeiro, em 1992, tocando © seu grande tam- bor de pele de caribu e balangando as abas da abertura de sua cabana de pele para dar boas-vindas as pessoas. Falava de como sua cultura era rica ¢ opulenta antes da chegada do ho- mem branco. Faziam qualquer coisa a partir do caribu. Além de comer a carne do animal, aproveitavam a pele € os ossos para a fabricacdo de botes, cabanas, tambores, instrumentos musicais ¢ utensilios de cozinha. Quando o homem branco chegou, olhou para as pessoas € disse: “Olhem para essa pobre gente, que vive a quarenta graus. abaixo de zero sem quase nada. ‘Temos de fazer alguma coisa por ela € trazé-la para 0 nosso mundo moderno’”, “E chamaram de selvagens”, dizia Sarah. E, enquanto batia em seu tambor, continuava: “Bem, vamos continuar sendo selvagens do Alasca!” Estava mostrando que a autopercepedo era uma de suas grandes riquezas. E disse mais: “Temos casas aqueciclas e roupas quentes, bastante comida, tempo f nossa cultura, histérias e uma bela religizio. Somos um povo feliz. Agora estamos sendo chamados de primitives, retrogra- dos © pobres. Hoje somos pobres de verdade, porque empo- brecemos com as coisas que 6 homem branca nos trouxe” — desde doencas até casas inadequadas e alimentos enlatados, continuando com « falta de oportunidades de trabalho, alcool e outras drogas. Sdo essas as coisas que empobrecem os poves natives que antes eram auto-suficientes. No noroeste, ouvimos falar com frequéncia da cerim6nia india do potlach, cujo objetivo é distribuir os bens materiais acumulados. Isso acontece porque existe uma percepcao com- pletamente oposta da riqueza material nessas culturas. As tr: bos se mudavam com freq carregar muitas coisas, que 4 erage lava por isso eram colo- cadas no caminho. Assim, para essas culturas a idéia de riqueza tinha a ver com poucas posses materiais. A fortuna era espiri tual, artistica, ¢ estava ligada a outras formas de vida que tes a respeito de: S NOS © as pessoas nao queriam aio a “Sq extinguimos metade das linguas faladas na terra” posse material, embora as pessoas fizessem pintu codes & coisas semelhantes. Trata-se de uma percepgio muito diferente da materialidade, que fariamos bem em aprender. Fiz o meu poilach pessoal ha mais de vinte anos, quando mudei para a Grécia e me desfiz de uma casa inteira de objetos Jurei entao que jamais juntaria tantas coisas outra vez, € que me reduziria ao que pudesse caber em um ou dois metros poder me ctibicos de espaco a cada poucos anos, de mode concentrar em outras espécies de riqueza. LONDON = Vocé conseguiu? SAHTOURIS = Funcionou muito bem, embora seja duro acumular coisas. Vocé tem de estar constantemente se de: endo delas. Nao consegui resolver o problema da papelada. Penso qué os computadores deveriam fazer isso [risos], mas parece que nao fazem, Tento agir assim porque sou muito mais feliz com poucas coisas. No Peru, gosto de viver em um quarto com muito menos objetos do que teria aqui nos BUA. 2 ‘a= LONDON — isso ajteda a mudar, também. Mas voce estava Jalando a respeito da chegada do homem branco no Alasca. Ao ‘que parece, essa chegada da aldeia global trouwe realmente mui- to sofrimento para os povos nativos. SAHTOURIS — Sem dtivida, Jd extinguimos metide das lin- guas faladas na Terra, ¢ estamos acabando rapidamente com as remanescentes. AS pessoas nao reconhecem que os tesouros culturais dessas diferentes nagdes indigenas ¢ grupos menores estio se perdendo, a um custo muito mais alto de que o da perda de uma pirimide ou templo. A sabedoria ¢ as perspecti- vas, as visoes de mundo dessas diversas culturas, tudo isso € muito importante. A li¢io numero um da natureza é a diversi- dade. O mundo natural nao gosta de monoculturas A tragédia de nossa agriculuura é a monocultura. O lado irigico da nossa cultura é que pensamos que queremos clonar ands mesmos — “monoculturar” a nds mesmos —, e dessa for- ma nao respeitamos os varios grupos éinicos que temos neste pais, por exemplo. Se quisermos planejar o futuro do mundo, pre- mos convidar pessoas de todos os matizes € localizagoe: porque assim a discusso seri muito, muito se media gcogrificas possive mais rica do que seria se Chamassemos apenas a cl branca dos EUA. Para nés & absolutamente essencial compar tilhar as idéias criativas de pessoas que falam linguas diferentes e, portant, véem o mundo de modo diverso. LONDON — Gostaria de vollar a algumas das idéias de seu livre. Voce faz a afirmativa um tanto assusiadora de que des- cendemos das bactérias. E verdade? SAHTOURIS — Bem, ou somos descendentes ou fomos por elas construidos [risos]. Lewis Thomas, que escreveu As vidas de uma célula, e outros maravilhosos livros de ensaios, propos uma vez que somos taxis gigantes que as bactérias construiram. para se deslocar em seguranga. E verdade que cada uma de nossas células € um coletivo de tipes bacterianos antigos que viveram antigamente. Lynn Margulis rastreou a maior parte de: hist6ria de cooperacao das células nucleadas das quais so- feites. No mundo de dois bilhdes de anos atras havia ape- nas bactérias. A mudanca de um estilo de vida explorador, destrutivo, para o modelo de cooperacio entre as bactérias é um maravilhoso paralelo do que acontece no mundo humano de hoje. Escrevi um artigo sobre esse assunto na revista Context, hd cerca de um ano ¢ meio. As bactérias que chamo de “borbu- lhadoras”, as azuis-verdes, e “respiradoras” (¢ mais facil lembra- las por esses nomes do que como “respiradoras”, “fermenta- doras” e “fotossintetizadoras”) estavam em guerra umas com as outras de muitas manciras. Exploravam-se mutuamente. As que dispunham de mais energia podiam comer as entranhas das “borbulhadoras”, que eram mais lentas, mais inertes, porque tinham consumido os estoques disponiveis de alimento. Essas bolsas cheias de “borbulhadoras” se transformavam, por fim, em empreendimentos de cooperagio nos quais cada tipo bacte- riano doava um pouco de seu DNA para o que chamo de “biblioteca central’ (hoje, acho que seria melhor a denomina= cao de “disco rigide”), onde se estocava a informacao. E entio elas viviam em cooperacio, num regime de divis entre as diferentes espécies. A invencao dessa comunidade re- presentou a tinica vez em que uma nova espécie de céhula se formou na evolucao da vida da Terra — dige da Terra e nao na ‘Terra, porque o planeta inteiro est Entao, o que somos nds? Se somos comunidades de bacté- rias que encontraram um estilo de vida melhor porque unimos me o de trabalho 14 nossas forgas, entio talvez sejamos, como diz Lewis Thomas, tixis gigantes que servem para que elas se desloquem de mo- do seguro. LONDON — Esiivemos discutindo a hipdtese de Gaia e a idéia gerat das metdforas na ciéncia. Bem, uma das metdforas mais bersistentes de nossa visao cientifica de mundo é o darwinismo — selegdo natural, sobrevivéncia dos mais aptos e assim por diante. Essa teoria teve um impacto monumental na nosse met- neira de pensar a evolucdo eo lugar que ocupamos no mundo natural. Ainda esta semana, por exemplo, a reportagem de capa da revista Time foi escrita por um darwinista, que fala sobre a pbsicologia evolutiva. Ainda assim, em seu livro vocé sugere que precisamos reavaliar as teorias de Darw SAHTOURIS — Sim, acho que teoria de Darwin era boa para a sua época, mas lembre-se de que naquele tempo 0 quadro de referéncia era a visio mecinica do mundo. Para mim, a teoria de Darwin é muito mecanica. Ele diz que ocorrem “aci- denies” na evolugao. Nao se esqueca de que estévamos falan- do-sobre explicagao de um mundo natural maquinico por meio do dese nvolvimento fo acaental Assim, a lentes se encaixassem nas rodas do meio ambiente, poderiam sobreviver © a maquina funcionaria, Se o ajuste nao acontecesse, elas morreriam. Ocorreu-me que a vida parece ser muito inteligente para que sua evolucao se processe por acidente. Parei para pensar nisso ha cerca de dez anos. Achava que os erros genéticos que aconteciam cram provavelmente reparados. Arthur Koestler pensou de modo semelhante, ¢ foi a fonte de minhas idéias esse respeito. Hoje, os geneticistas esto se tornando cientes disso tudo no plano microscépico. Podemos ebservar o que acontece com a relacao entre proteinas, genes ¢ membranas celulares, ¢ parece que € como se a vida nado ocortesse por acidente, mas por de- signio. E, como disse em meu livro, o nticleo celular é realmen- te uma biblioteca gigante de genes acumulados através da evo- lugao, que podem ser acessados em caso de estresse. Criaturas como os tubardes ou as baratas sao muito bem adaptadas e nao precisam mudar (chamo-as de “bicicletas na idade do jato”, porque ainda funcionam muito bem, embora outras especies jd tenham desaparecido). Em outras palavras, a vida muda a si a 25 “Q que queremos é entender a dinamica dos sistemas vivos” mesma apenas quando precisa fazer isso. Fla sabe como con- servar 0 que funciona bem e como mudar 0 que nao funciona. LONDON — Na ciéncia had movimentos que agora esto co- mecando a questionar alguns pressupostos fundamentais. A teo- ria do caos me vem a mente. Vacé esté acompanhando esses temas? SAHTOURIS — Sim, estou. Penso que tudo isso faz parte de nossa mudunca — como ¢y a chamo — do mecinico para o orginico, que vem sendo bem acompanhada por muitos cien- tistas. E claro que nem todos os lideres nesse campo esto Gientes de que estamos falando sobre a natureza e que o que queremos é entender a dinamica dos sistemas vivos € nado a estrutura ¢ a funcao de mecanismos. Assim, nossos matemati- cos esto se tornando muito mais criativos, com pessoas como Ralph Abraham fazendo teoria dindmii inteligivel para pessoas comuns. O mesmo vale para todas as repercussdes da teoria do caos, que trata de sistemas vivos auto-organizados. Do meu ponto de vista, o conccito de sistemas vives deveria englobar todos ©8 outro: Ss institigées educacionais. Em outros termos, deveriamos estar ensinando a politica e a economia dos sistemas vivos. Todas essas coisas deveriam es- tar unidas num conceito central e isso poderia ajudar-nos, na condieao de seres humanos, a formar sistemas saudaveis. Eu costumava achar que a visto mecanica de mundo havia nos imposto estruturas mecénicas € que nossas sociedades cram realmente construidas como maquinas. Mas o fato € que nao se pode transformar coisas vivas em maquinismos. Pade-se tentar forei-las a comportar-se como tal, mas elas ndo sao maquinas. eXalamente por que nossos nao podem mais fazer previsées ¢ nossa politica esti se desintegrando. Nao as entendemos como coisas vivas que estao doentes: tentamos conserté-las como se fossem mdquinas, Ha uma grande dife- entre curar uma pessoa € consertar uma maquina 1, € fazendo-a de modo economist LONDON = Qwais sao algumas das ramvificagées sociais e politicas dessa mudanca do mecénico para o orgdnico? 16 “Todos os sistemas vives obedecem @oOS mesmos principios” SAHTOURIS — Ideal ei um pequeno modelo para criancas, que mostra come a economia que praticamos no munde de hoje nao é adequada para sistemas vivos. As vezes falo de pessoas como corpos, o que é um bom exemplo de sistema ‘6. Todos os sistemas vives obedecem aos mesmos princi pios, isto é, t¢m em comum algumas caracteristicas fundamen- tais de organizacio € funcao. Se fossemos praticar politica mundis | cm nossos corpas, seria algo assim: temos células sangiiineas em bruto saindo da me- dula dos ossos ¢ sendo despachadas através do corpo para dois drgaos industriais do hemisfério norte — @ coracao e os pulm6es —, nos quais o sangue € purificado, oxigenado, incrementado ¢ transformado em um produto utilizdvel. Entto o centro cardiaco de distribuic¢ao anuncia que © prego do san- gue para hoje € tanto, quem quer? Depois, o sangue & despa- chado para os 6rgaos que podem compra-lo eo resto € jogado fora como excedente. E o caso de perguntar: esse tipo de eca- nomia é vidvel para um sistema vivo? E claro que fazer econo- mia dessa Mancita Mataria o organismo, porque algumas das partes dele nao poderiam pagar pelo sangue (que poderia ser engarrafado € esperar até que o preco subisse), ¢ assim fica- riam 2 mingua e morreriam. Isso, claro, 6 exatamente o que se vé no mundo dos ho- mens. Exploramos algumas partes da humanidade em bene- ficio de outras. Um mecanismo assim nao poderia funcio- nar num sistema vivo. Se o nosso corpo devesse dar um valor maior ao coracgio em relagio ao figado, ou tentasse transfor- mar 6 coracio em figado, ou coisa parecida (que € a espécie de Joucura que fazemos como humanos), as coisas simples- mente nao funcionariam. © bom funcionamente de um sistema vivo precisa de diver- sidade. Requer que todas as células olhem para o qué é melhor para elas, para os interesses comunitirios de tecido de que fazem parte, ¢ também para os interesses do po inteiro. Nenhuma parte da natureza pede a qualquer outra para tomar decisGes que a levem a ter que decidir entre os interesses pessoal ¢ comunitirio. Nada precisa estar a esquerda ou 4 direita, ou ser conservador ou radical. No mundo natural, é Orgiios € do cor 17 preciso estar de ambos os lados. Essa é a fonte de toda cria- tividade — essa tensdo entre o individual ¢ © coletivo, entre a parte € 0 todo. E 0 fato de que ha interesses de algum modo. em disputa que deflagra a criatividade para a busca de solu- (oes. HA sempre um desequilibrio a ser resolvido — essa é a grande forca propulsora da criatividade. Nunca seremos cap: © e jamais cairemos no caos total. zes de alcanear a perfe Estamos sempre entre os dois. Temos de reconhecer o valor de ambos os lados. © capita- lismo nao € inerentemente mais vidvel do que o comunismo que foi praticado na Unido Soviética e alguns outros lugare: Um pedia ao individuo para se sacrificar em fungao do todo, o outro queria que ele sacrificasse @ todo a si mesmo, 0 que também € inviavel. Assim, estaremos indo ao encontro de mu to caos neste pais, 4 medida que comecarmos a nos reagrupar, a obedecer aos principios dos sistemas vivos, a medida que desenvolvermes uma sociedade alternativa para o futuro. LONDON — Vocé cita uma hist6ria publicada no Atlantic Monthly, dois anos atras, na qual Robert Kaplan observou que para manter nossa ilusdo de que tudo esta bem no mundo nos leremos de ignorar a realidade de trés quartos da popula- co mrenelictl SAHTOURIS ~ £ verdade. LONDON — Como vocé consegue manter o bom humor, quan- do considera os enormes problemas ecoldgicos, soctais e politi- cos que enfrentamos hoje? SAHTOURIS — Tento permanecer otimista diante desses ni- meros terriveis. O bura crescendo. de modo assustador. Alguns dizem que por volta do ano 2022 niio mais haver4 oz6nio, se mantido © atual ritmo de destrui- cio. F todos sabemos a respeita dos oceanos poluidos, das florestas que ¢: mo acontecendo com o are com o solo, Ha ainda o aumento da desertificagio de terras, quando prec agricultaveis. Sao estatisticas terriveis, mas @ que estamos fa- zendo a respeito delas? Nao haverd uma ¢poca futura na qual teremos de reverter as. Elas ja esto sendo revertidas, no sentido de que ha muitas maneiras alternativas de viver que podem ser im- plantadas ao redor do mundo, se as pe: tiverem ¢crian- do os seus proéprios sistemas monetirios, ou desenvolvendo na camada de oz6nio ¢ 40 morrendo ¢ dos rios envenenados, o mes- samos de mais dreas essas coi as 18 sistemas de agricultura comunitaria ou organica, ou planos edu- cacionais alternativos. Fis as novas formas do futuro. Gosto de usar a metifora da borboleta. Na metamorfose, dentro do corpo da lagarta, comegam a se acumular pequenas estruturas que os bidlogos chamam de discos ou células ima- . de modo ginais. Eles nao sao imunclogicamente significative: € resistentes, o que, quando comegam a se tornar mais forte: sistema imunoldgico da lagarta entra em faléncia ¢ as células imaginais formam o corpo da borboleta Acho que essa 6 uma bela metdfora para o que esté aconte- ssa Epoca. O velho corpo esta caminhando para a dissolucio enquanto © nove se desenvalve. Nao € que uma coisa precise terminar para que outra comece: com todo mun- de envolvido com reciclagem, projetos alternativos, vida co- munitaria, com o desenvolvimento de sistemas de sade mais sauckiveis, estard em marcha a construgio do nove mundo en- quanto o velho vai entrando em colapso. Esse colapso € inev' tavel. Nao ha outro caminho. Devemos, por exemplo, mudar para a agricultura organica. Ha tanto desemprego no mundo que isso é viivel e pode ser feito agora, com computadores cuidando das fazendas, a cul- sam. ir cendo em no: tura chegando pela micia, de modo a que as pessoas po até As cidades quando precisarem, como acontece na Dinamar- ca. Existem muitos meios. As culturas indigenas nos mostram que tudo pode ser feito de modo muito mais simples ¢ eficaz. ‘Temos 6 exemplo de John Jevins, aqui na Calif6rnia, fazendo a sua agricultura biointensiva ¢ conseguindo de quatro a sete vezes mais producao do que no cultivo em larga escala. Na recriacdo da agricultura pré-incaica, nos altiplanos da Bolivia no Peru, a producao passou, de duas a duas & meia toneladas por hectare, para quarenta toneladas por hectare em cinco anos —e essa é uma agricultura que requer muito pouco trabalho. possivel fazer uma agricultura realmente sadia, que seja mais produtiva do que a da revolucao verde, ¢ bem mais eficaz e menos destrutr A agricultura ¢ uma drea na qual nossa teenologia tem sido usada de modo inadequado € para o beneficio de apenas um punhado de pessoas. E desumano trabalhar assim, por causa rela. Por outro lado, nossa tecnologia de co- al para que possamos interconectar as comu- nidades vivas auto-suficientes numa rede global. Acho que as- sim integraremos as técnicas nativas com a tecnologia moder- temos um sistema de comunicacdes que nos permitira Assim, da fome que ac: 19: “Ha imensos interesses em jogo para a producdo de alimentos néo-saudaveis” . viver e trabalhar localmente em comunidades biorregionais saudaveis e orginicas ¢, ao mesmo tempo, estar em contato ada uma delas ao redor do mundo, com ¢ LONDON — Os jornatistas alguumas vezes falam de mudan- (as positivas como reciclagem, energia solar ou agricultura or- gdnica como se elas fossem novidades tempordrias. SAHTOURIS — Nao ha nada mais fundamental do que comi- da, ar e Agua. S¢ a8 pessoas esto demonstrando que os tos podem ser produzidos nao apenas de modo mais eficaz, mais saudavel ¢ menos destrutivo, mas também de forma mais barata, isso s6 pode ser rotulado de “nevidade” por aqueles cujos interesses esto sendo contrariados. Quem recebe ¢ conso- me alimentos produzidos organicamente jamais usari esse rétulo. Eo mesmo que escrever descartando a idéia de Gaia como “apenas” uma metéfora, sabendo que toda ciéncia se baseia em metaforas. A produgio de alimentos pode ser feita de ma- neiras saudaveis e nao-sauckiveis. Hoje sabemos que ha imen- os interesses em jogo na producao de alimentos por métodos nao-saudaveis. A televisao nos informa que um terco dos fran- gos produzidos em Los Angeles estao contaminados, e mesmo assim as pessoas saem da frente da TV e vio compri-los. Nao se dao conta de que a comica de supermercado, que freqtien- temente esta tio contaminada, é também com freqiiéncia de produgaio mais cara do que a alimentacao orginica. Mas é sub- sidiada pelo governo. Mais uma vez, mio estamos assumindo a dade pela democracia. Nao estamos dizende: “Por alimen- responsal que 0 governo subsidia a produgio de alimentos nao-saudé- veis, quando poderia subsidiar os fazendeiros que trabalham com agricultura orginica ¢ proteger o nosso bem-estar? Por que é que Clinton nao pode mudar o sistema de satide? O que esta acontecendo em Washington? LONDON — Antes de terminarmos, fale sobre o sete trabalho atual, SAHTOURIS — Estou tentando ajudar os cinco grupos indi- genas com os quais trabalho nos Andes a desenvolver um cen- tro cultural que possa reviver € promover a cultura andina € 20 “KR prépria Internet é um gigantesco sistema vivo auto-organizado” a sua maravilhosa agricultura — os experimentos mais intensi- vos produtives jamais feitos na historia andina. Mais da me- tade da alimentagio consumida no mundo pode ser rasireada até os Andes, A mtisica local € viva € boa para o povo. Os tecidos naturalmente tingidos, a arte, a sabedoria dos seus ido- sos, @ linguagem, tudo isso se inclui nas coisas que estamos tentando p: Acho que o mundo poderia se beneficiar muito do aprendizado com essa cultura. A organizacio social er dos incas era uma espécie de estado de bem-estar social paternalista, que garantia casa, comida e trabalho e nao explo- rava o trabalho das pessoas. Eis algo de positive, que poderia- mos aprender. Assim, estou tentando ajudar a promover mundialmente essa antiga cultura, bem como preserva-la e protegé-la de seus pro- prios descendentes nos Andes. Essa é uma regido muito impor- tante para o mundo, tanto do ponto de vista espiritual como do fisico. Muitos lamas tibetanos afirmam que ha uma mudanca de energia para quem sai dos Himalaias ¢ vai para os Andes. Espero que isso seja verdade € que grandes licoes possam ser aprendidas dessa fonte. Estou também trabalhando no F para tentar conectar a musica andina mundo. Gomeco a tabalhar na Internet, ¢ meu interesse es se dirigindo para as “ciberfestas” € outras maneiras de fazer com que as pessoas troquem informa¢oes, muisicas ¢ outros aspectos de suas culturas ao redor do mundo tao rapidamente quanto possivel. A propria Internet € um gigantesco sistema vivo auto-organizado, um tanto cadtico no momento, mas com © potencial de ser a primeira democracia real no mundo, por xemplo. Eis alguns de meus interesses. Continuo escrevendo, viajando e trabalhando nessas areas ao al Munelial de M : partes do com a de outra Eslo entrevista foi concedide a Scott London, nos EUA, e est senda reprodurida com permissoo dele ¢ da Sra, Sahtouris. Now: 1. Gaia: do ea0s oa cosmos, obra traduzido para sete Iinguos e que agora exié disponivel na Intemet nume edicao empliode, com ¢ titulo de Earthdones [A donca da Terr). Pare acossé- lo, beste ir home poge do site da autora: http://www retical. com/LifeWeb. MARIA ALUCE INTEGRACAO E FIGUEIREDO Serene TOLERANCIA: Adminisiragae SS © DESAFIO DO ee , Rese SECULO 21 em Sclvader, o » ~ ~ Beli Equilibrio razio-emoctio: 0 desafio de uma tarefa ido necessdria quando inadidvel esta transicgao de século ¢ de milénio, vivemos um mo- No muito especial na historia da humanidade. Nele enfrentamos sérios desafios como individuos € como espécie. No plano individual, a tarefa consiste em realizar a integragao. entre corpo fisico, mente € consciéncia espiritual, No Ambito global, o desafio € promover a integracio planetiria entre © Ocidente pragmatico e o Oriente contemplative, entre o Norte racional e © Sul emocional. {1 situacao vem dividindo os seres humanos em dois gru- pos: de um lado, a parcela menor — mas em constante cres mento ~ dos que em variados graus j desenvolveram a cons- ciéncia desses desafios. Do outro lado, a vasta massa dos que optaram pela irresponsabilidade diante de si mesmos e do pla- neta, permanecendo num estado de estagnacao de mente ¢, portanto, de consciéncia ética. A cada dia que passa, torna-se mais arduo deixar de perce- ber esses desafios, embora os acomodados fujam das evidén- cias € protelem a tarefa de autotransformacao, buscando refu- gio numa alienacao sempre mais dificil de sustentar. Quanto aos detentores do poder, procuram prolongar até o ponta de ruptura a defesa de seus interesses pessoais, em nome dos quais prejudicam a natureza, a coesao da sociedade € 6 equili- brio econdmico. Os que acompanham o desenrolar dos fatos de nosso tem- po ¢ a irresponsabilidade com que o pragmatismo vem dila- idando os recursos naturais ¢ interferindo r interagoes ecolégicas, sabem que a natureza é sagrada: destruir as bases desse equilibrio é desestabilizar a vida no planeta, ameaganda nossa espécie ¢ as demais. As. pessoas mais conscientes sabem que estamos numa al- deia global, uns diante dos outros, sem amortecedores que suavizem os choques. Sabem ainda que precisamos aprender a conviver uns com os outros € a lidar com formas de pensar muito distintas da nossa, o que é impossivel sem que desenyol- vamos tolerincia religiosa e adaptabilidade cultural. Precisa- mos encarar nossas diferengas culturais como uma riqueza, ¢ compreender que muito daquilo que até entio rejeitamos ¢ desprezamos no outro constituem licdes que necessitamos aprender porque, muito provavelmente, so aspectos que a nossa propria cultura negligenciou. Sabem também que, enquanto no houver um padrao de vida simples e digno para todos, nao existird equilibrio social e econémico. Simplicidade ¢ dignidade sao virtudes que nao ex- cluem @ acesso 4 tecnologia nem As oportunidades de desen- volvimento do potencial criador intelectual, artistico, cientifico ou filos6fico das pessoas. E certamente nfo excluem o seu direito A busca da felicidade individual. Mas dispensam todas as formas de desperdicio, toda dissipagao de recursos, a exces- siva desigualdade de renda, o luxe desmedido ¢ todas as for- mas de opressio econdmica, social, racial ¢ sexual. Nao ignoram que enquanto as relagGes internacionais forem orientadas pela ganincia e pelo desejo de supremacia ¢ peder a paz sera um sonho inatingivel. Cada vez mais € necessario 23 compreender que vivemes num Unico planeta, que somos to- dos compatriotas, porque nossa verdadeira patria é a Terra. Muitas. fronteiras estao hoje se desfazendo em mercados co- muns, 6 qué assusta muita gente, provoca reagbes dos grupos mais apegados ao status quo e deflagra surtos de violéncia, No entanto, as verdadeiras solucdes terao de ser planetarias, pois co de excluir alguns povos, pai na os problemas conti- enquanto houver a pret tacas ou religiées da fraternidade hum: stir. oas mais conscientes sabem que nenhum desses avan- is, econdémicos ¢ politicos sera realmente possivel em nuardo a AS pes gos soci: escala planctiria sem qué uma consideravel parcela dos indivi- duos se liberte de seus condicionamentos, sem que se modifi- quem preconceitos e pontos de vista arraigados, sem que se alterem profundamente suas atitudes diante da vida e sem que cada um passe por uma auténtica transmutacio corporal , psi- colégica ¢ — principalmente — filoséfica As tensOes estao chegando ao ponto de saturagao ¢ ruptura Persistir na mesma direcio nos conduzira a violentos trauma Por conseguinte, ¢ muito importante que nos esforce mos para entender © que esta acontecendo ¢ por qué. Tentar ignovar a situacio ou adotar uma abordagem fatalista sao ati- tudes fora de cogitacgao. Precisamos ser ao mesmo tempo objetivos ¢ criativos, racionais ¢ intuitivos, porque a solucio dos enigmas contemporiineos nao esti nos caminhos j4 tilha- $ circunstancias nunca foram tao claras dos, Se é verdade que 2 como agora, quanto as opcdes que devemos fazer, por outro ls de inibir a per- cepcao da realidade como neste momento da hist6ria. A crise que a humanidade hoje enfrenta é decorréncia de seu desenvolvimento unilateral. E causada, de um lado, pela auséncia de valores ¢ticos e espirituais, pela falta de sentido -xistencial, ¢, de outra parte, pelo desenvolvimento excessivo da mente concreta, a mente do krtow-how, Dispomos de uma tecno- logia avangada que, se nos surpreende pelas suas realizagdes positivas, também nos assusta pelo seu grande poder de des- truigdo. Mas a dificuldade maior ¢ que nao contamos cam a sabe- doria que vem da conseiéncia espiritual do ser, Também nao con tamos com a ciéncia da cooperagao, com a arte do conviver har- monioso e justo para bem administrar essa tecnologia. As solu- do nunea vivemos tantas situacGes: capaze: ces possiveis transcendem 0 indivicuo, mas passam necessaria- mente por ele, porque exigem uma grande transmutacao de cons- ciéncia, que somente sera possivel a partir do plano individual. O desenvolvimento unilateral e distorcido ocorreu quando. separamos a ciéncia da busca espiritual, o pensamento légico da intuigao, a mente concreta da mente abstrata, o racional do emocional. Hoje, vemos que € preciso ampliar o nosso concei- to do que seja ciéncia para que ela nao fique restrita a0 plano material ¢ laboratorial, ¢ do que seja religiao para que ela nao se limite a crenca dogmatica. 0 potencial subutilizado — Temos vivide utilizando ape- nas uma parte de nossas. potencialidades, como se isso fosse normal, Se usissemos apenas uma perna ou uni tinico pulmao, nos consicderariamos seriamente lesados em nosso funciona= mento orginico. No entanto, o fato de ut rmos apenas a metade de nossa capacidade psiquica s6 agora comega a cha- mar a atencao dos estudiosos. Durante muito tempo privilegia- mos apenas um lado do nosso potencial, agindo como se sua utilizacao eliminasse as outras possibilidades, julgande-as su- pérfluas ou inadequadas. Elas sio na verdade complementa- res, ¢ enquanto nao as utilizames dessa forma nao ha como evitar as distorgdes de discrimina¢ao ou de avaliagao, com to- das as suas conseqiiéncias. As verdades espirituais expressas em diversas escrituras sa- gradas da humanidade — que nao sao patriménio exclusivo de religides es geralmente sao instrugées realistas e pri ticas, voltadas para o desenvolvimento da maturidade do ser integral e para a obtencao de relacoes harmoniosas entre indi viduos e grupos de individuos. Estas a0 fundamentais & sobre- vivencia da humanidade, embora com freqiiéncia venham es- critas em linguagem simbolica € mitica, que exige decodificagao. Essas escrituras, no entanto, tém sido desconsideradas, porque temos procurado entendeé: imagens e delicadas alegorias apenas fazem sentido quando liberadas por nossa compreensao intuitiva, cujo desenvolvi- mento © ulilizacio tém sido relativamente desprezados pela cultura ocidental, Outra razio para a escassa compreensao de las a partir da razao, quando suas muitas es uras sagradas € que aqueles que se consideram seus “proprietirios” nao procuram distinguir as informagde meramente historicas ¢ culturais, tipicas de uma época e de um determinado povo, daquilo que constitui a expressiio de ver- dades atemporais e eternamente validas’, expressas na lingua- gem mais apropriada para aquele povo e para aquela época. Vistas desse modo, as verdades que nos foram transmitidas pelas tradicdes religiosas do Ociclente © do Oriente destinam-se 2 a despertar nossa consciéneia, iluminar nossa compreensdo ¢ contribuir efetivamente para nossa wansformagio — € nao a tornar-se objeto de crengas dogmitticas, separatistas e pros litistas. As escrituras contém verdades oriundas de um nivel supraconsciente, ¢ s6 podem ser apreendidas corretamente pela mente abstrata, intuitiva, Entretanto, exprimem-se de formas diferentes, a partir das peculiaridades da linguagem, da cultura e da época em que surgiram. Quando utilizamos a mente concreta, cuja fungao é apenas lidar com os problemas pragmiticos do cotidiano, falhamos s verdades em sua esséncia e deixamo-nos em apreender ¢: hipnotizar pela forma que assumiram em nossa tradigao pa cular. E assim passamos a consideri-las intocdveis e acima de qualquer possibilidade de revisao interpretativa. Foi dessa ma- neira que permitimos que nossas religides se tornassem fonte de conflitos com outras tradigdes, em lugar de disseminarem © amor por todos 0s seres, 0 servico voltado para a felicida- de geral ¢ a harmonia interna € externa, que sao seus verdadei- ros objetivos. 2assamos a acreditar em lugar de vivenciar criamos reli- gides, seitas e faccoes, ao invés de buscar a realizacio espiri qual. Separamo-nos em grupos que se digladiam, quando dev riamos construir pontes que nos unissem pela compreensio, por meio da busca objetiva e desapaixonada — atributos de uma atitude cientifica — de uma verdade que, sendo Gnica no plano abstrato, assumiu modelos interpretativos diferentes no plano concreto. Embora a verdade seja uni véirios modos de expre: ln e vivé-la si validos, porque a variedade é a t6nica da Natu reza. Individuos diferentes necessitam de caminhos es diferentes. Assim, € essencial a liberdade de seguir o caminho mais ficil e natural para cada um. Esse € 0 principio fundamen- tal da tolerancia entre as diversas tradicOes religiosas. Um olhar diferente — Entretanto, em vez de olharmos a Lua que brilha no céu, como dizem os zen-budistas, vemos apenas os diferentes dedos que apontam para ela e dizemos: “O dedo do lugar onde eu na é o tinico verdadeiro. Se nao olharem todos para este dedo particular, nao poderao enxergar a Lua que li esti”. Bastaria que tivéssemos nascido em um lugar diferente ¢ defenderiamos a validade de uma outra tradi- cao, briganclo sempre na defesa do “eu” ¢ do ‘meu’, Pois nao € a nossa religiio que defendemos — ela provavelmente nao 26 neacada por ninguém — nem a divindade, que defendermos acerba- esta sendo. obviamente nao necessita de qualquer defes: apenas 6 Hasso Cfo, que projetamos em dimensdes das, deixando-o incapaz de submeter-se a uma saudével rea- i é€o principio fundamental da intolerancia ¢ do cao fanatismo religioso, Como contrapartida, temos uma ciéncia e uma tecnologi que nao estio comprometidas com os valores espirituais, nao ao a servico da humanidade como um todo, nao respeitam a ¥ es vida no planeta e, em grande parte, tornaram-se perniciosas ¢ . Temos vivido de modo predominante as ués di- destrutr menses do fisico, do emocional e do mental concreto, ©: cluindo quase inteiramente a utilizagao do mental abstrato e da intuicgao, que constituem © portal de acesso a dimensao supra- mental. No caso dos individuos de mentalidade cientifica, por acreditarem que esse nao € o seu campo de cogitagoes, € no caso das pessoas religiosas, porque acreditam que € sua obri- gacao accitar as interpretagdes oficiais de suas religides, abs- tendo-se de usar seu discernimento proprio. O mental abstrato ea intuicao s edescobrimos as verda- des espirituais por nés mesmos, recriando-as em nossas men- tes ¢ ei nossas vidas: exatamente a capacidade que a passiva ago do dogma esteriliza’. E seguimos ignorando « exis- a de outras dimensoes da consciéncia, por nunca exercita- numa sociedade que nao nos estimula a pensar por nés mesmos € a buscar em nosso interior tanto a felicidade como as solucdes para os problemas que nos afligem. Paradoxalmente, todas as teorias e descobertas revoluciona- rias da ciéncia se deveram A utilizacao do nivel intuitivo da mente. Com as outros niveis, descobrimos novas maneiras de utilizar 6 j4 conhecido, mas é intuitivamente que enxergamos Oo radicalmente nove e original. Um dos atributos da genialidade é€ o emprego da mente em todas as suas dimensoes e uma permanente disposicio de seguir a propria luz interior. Contudo, limitados as trés dimensdes do espaco € confina- dos a um tempo linear unidimensional, enxergamos apenas um lado de cada vez, apenas um dos aspectos de uma verdade que é necessariamente multifacetada. Desse modo, cada as- 0, desenvolvem quando pecto parece ser exclusivo e negara validade e a veracidade iais da realidade levam a decisGes ina- dos demais. Visdes parci dequadas, num mundo que se tornou amplamente interde- pendente. As solucdes possiveis, em qualquer nivel, terio de naquelas dimensdes limitadas nao esté equipada para a v intuitiva ¢ completa da totalidade fisico-espiritual O pensamento légico concreto atua como um spotlight, ilu- minando muito bem uma pequena drea, mas deixando todo o resto na penumbra. Quando esse nivel da mente descobre um specto da realidade, apressa-se em afirmar que tudo o mais € falso, porque se recusa a admitir a possibilidade de que verda- des aparentemente opostas sejam complementares entre si, numa compreensao mais ampla da realidade. Pelas mesmas razOes, a mente concreta tampouco esta equipada para discer- nir claramente que a seguranca, o bem-estar © a felicidade de cada um dependem da seguranca, do bem-estar e da felicidade de todos os demais, porque a humanidade € um todo inte 1 como os Continentes sao unidos por baixo dependente, as: dos oceanos € 0 mundo € um so. A nogao de interdependéncia escapa com frequéncia a0 ni- vel concreto da mente, porque este é personalistico ¢ depende do plano mental abstrato para alargar seus horizontes limita- dos. Quando isso nao ocorre, a mente concreta tende a ser po- larizada pelo nivel emocional. Seu papel passa a ser o de pro- curador dos desejos emocionais ¢ instintives, batalhando para coneretizar as aspiracées de um nivel de conseiéncia cuja natu- reza € essencialmente efémera ¢ insacidvel. Empreendemos a viagem do filhe prodigo, em busca de uma realizagao do ser no plano concreto. Procuramos a felicidade interior em funcao de circunstancias exteriores, deixando 4 margem o desen- volvimento da consciéncia nos planes superiores, onde a feli- cidade e a reali stencial sio potencialmente atingiveis. Em outras palavras, a mente concreta engaja-se na busea do- Eldorado, na tarefa de r , possiveis, transformar ilusdes em realidades, usando a ligica © a objetividade. Pessoas que atuam exclusi mensoes sao, contudo, respeitadas como pragmiticas, gente que “tem os pés no chao”. Esse estigio faz parte da evolugio humana e nele negamos a complexidade do todo = ainda ina- ssivel - para poder melhor apreender as suas partes. Em nome razao ea servico da emogio e do instinto, abrimos mao da consciéncia superior, da dimensio impessoal de nosso ser, que nos da acesso & visto abrangente da realidade, nem tendenciosa nem limitada pelo interesse pessoal. Abrimas mio do tnico guia de que dispomos para orientar- nos a respeito do sentido evolutivo de nossas existéncias, me- tas € valores, Essa consci¢ncia superior tem sido considerada 0 ex izar © irrealizavel, coneretizar im- ce: assunto exclusivo do campo religioso, quando na verdade é um potencial de teda a humanidade, independente de se ter ou nao uma religiao € de qualquer que seja ela. Masa verdade é que seu exercicio € impossivel dentro dos limites do dogmatismo religioso ou cientifico. Por isso, tem sido negada nos segmentos culturais em que estes prevalecem, que ainda constituem a maior parte do mundo contemporineo- Nossa mente pode operar ba: conereto, em que cada pensamento assume uma imagem ¢ toma uma forma, é utilizado para pensar sobre o mundo mate- rial, sobre coi éa mente do know-how. O outro é 0 nivel abstrato, no qual o pensamento é muito mais dinamico e nao assume qualquer forma. Ele € utilizado para estabelecer valo- icamente em dois niveis: 0 €a mente do know=what ¢ res e obter fmsigsils abrangente: do know-wity. Os dois modos de operar habitam o mesmo cérebro, mas enquanto estivermos vinculados 4s trés dimen- sdes do espaco € ao tempo linear acharemos dificil desenvolvé- los ao mesmo tempo. Para estarmos 4 altura do desafio que enfrentamos, precis. reme¢ » potencial em acao, o que implica a utilizagao de técnicas meditativas, em sua maioria origindrias do Oriente. Os génios criadores, os grandes artistas, misticos e cientistas que admiramos, foram precursores da utilizagao si- multanea da razao e da intuigdo. Sem esta nao hé a descoberta do novo, $em a raz4o, nao temos como testa-lo para distinguir- mos © que nao passa de imaginagao, nem temos come comu- 5 senso comum de outras pessoas, seja através da pa. lavra, da matematica, da ane ou de outras linguagens. colocar todo o noss nica-lc Aseparacado sujeito-objeto — Por haver desenvolvido uma ciéncia voltada para © conhecimento ¢ 0 dominio do mundo exterior, 0 Ocidente conservou-se inteiramente voltado para a parte do mundo que observava, © que lhe induziu a perigosa nogao de estar separado dele, com independéncia ¢ impunida- de. Sendo esse mundo exterior quantificivel, o ocidental pas- sou a confiar demasiadamente na abordagem que adotou, por considera-la objetiva € imaginar estar lidando com um campo sdlido de conhecimento, aparentemente insofismavel Entretanto, esse mundo é o mesmo que a fisica quéntica revelou ser inconstante, fugicio ¢, em sua esséncia, inapreensivel. Um mundo que se mostra diferente a cada nova postura ou tipo de inquiricao de seu observador, demonstrando que sujei- to € objeto estao ligados por uma relacao insepardvel, fato que 29 a intuicao sempre reconheceu naturalmente. Até mesmo as in- cursdes pelo psiquismo em busca do autoconhecimento sofre= ram esta separacdo entre sujeito € objeto, tipica da mentalidade: ocidental, que conquistou o mundo e a Lua, mas passa ao lado. de sua propria esséncia sem conseguir vé-la. © Oriente desenvolveu a ciéncia da busca interior volta- da para o desenvolvimento do potencial abstrato da mente e a subordinagao dos niveis mentais pessoais aos niveis de sabedoria supramental transpessoal. Passou, portanto, a ter idade dos conceitos e da interdependéncia nogao da rela das partes do todo, tipica do pensamento oriental. Contudo, ingenuidade acreditar que todos os orientais atingiram estas realizagées, e que estariam isentos dos mesmos desen- volvimentos unilaterais que caracterizam os individuos do Ocidente. A ciéncia de como aces seri sar o mundo interior culmina na realizacho plena da consciéncia supramental, em que a separa- cao entre sujeito € objete € transcendida. Conhecimento, co- nhecedor e conhecide formam uma unidade perfeita, num ni- vel supramental amplamente ignorado pela cultura ocidental, embora Jung e a psicologia transpessoal a ele se refiram. O proceso de desenvolvimento da consciéncia € cientifico, em- bora empregue, como seria de esperar, uma abordagem dife- rente da ciéncia ordinariamente reconhecida como tal, Ciéncia e consciéncia — Quando chamamos de ciénci: algo que tem sido relegado sob o ronulo de misticismo — uma palavra que vem sendo usada com conotacdes pejorativas, em diversos graus, porque geralmente esta ligada a prati persticiosas ¢ charlatanescas ~, quetemos dizer que os pro- cessos para o despertar da consciéneia supramental foram de- senvolvidos ao longo de milénios, pelo método experimental do ensaio e erro, A mente do pesquisador ¢ ao mesmo tempo: seu objeto de estudo € seu laboratério de pesquisas. Suas experiéncias sao passiveis de ser reproduzidas por meio de uma conquista pessoal, intransferivel, e somente comprovaveis em sua totalidade por quem se dispuser a produz mesmo € por si mesmo, Trata-se de um tipo de conhecimento- AS SU- s: em si que s6 se adquire com participacdo intrinseca ¢ envalvimento de toda uma existéncia. Esse fato, ao tempo em que desanima os investigadores menos sinceros, serve-h sculpa para ilo como falso, nao passivel de comprovacio pela s de d desdenha ciéncia estabelecida. 30 Na cultura oriental, pela valorizacio desse tipo de conheci- mento, a relagio do homem com seus niveis mais clevados de consciéncia é considerada muito mais real do que sua relacio com o mundo material. Levada ao extremo, essa atitude des- preza o mundo material como irrelevante. Em muitos textos da tradic&o oriental, o mundo exterior € cquivocadamente chama- do de irreal ¢ ilusério, quando ilusérias sao as formas pelas quais o vemos, a5 imagens que a ele associamos € as expecta- idade e realizacdo pessoal que alimentamos a par- tivas de felicid: tir dele. E claro que duas abordagens tio diversas nao paderiam ter sido de: nvolvidas pela mesma cultura, embora sejam obvia- mente complementares. A humanidade divictiu as tarefas, o que foi 6timo, mas tendo-se desenvolvido unilateralmente, apre- sentam-se ambos, Ocidente ¢ Oriente, em desequilibrio, e por isso um precisa muito do outro. Nada ha de errado com a seja seu objetivo o conhecimento do mundo material ou o desenvolvimento da consciéneia supramental. O proble- ma surge quando um objetivo exclui o outro, dando margem a uma compreensao limitada da realidade. Drogados € fanaticos terroristas t¢m em comum o@ fato de serem os frutos doentios de suas respectivas culturas: a ociden- tal ¢ destituida de transcendéncia, a oriental leva a subjetivida- de as dltimas conseqiiéncias. Do mesmo modo, o racionalismo exagerado do hemisfério norte torna as pessoas frias, distamtes de si mesmas ¢ incapazes de compartilhar afetos com naturali- dade, ao mesmo tempo em que o excesso de emocionalismo, mais encontrado nos povos do hemisfério sul, também preju- dica a sua disciplina ¢ objetividade. Como vimos, nem 0 Oriente nem 9 Ocidente, nem o norte nem o sul, desenvolveram integralmente © potencial do ser humano. Esse tem sido o privilégio de uns poucos individuas que superaram sua separatividade e realizaram plenamente sua individualidade transcendente, além dos limites de sua perso- nalidade culturalmente condicionada. Tais individuos muito raramente foram compreend Para mos aptos a enfrentar o desafio de hoje € para que tenhamos a oportunidade de viver o amanha ¢ fazé-lo em pleni- tude, nao mais podemos limitar-nos a pensar e a sentir dentro dos moldes forjados pela nacionalidade, raga, religiao ov cul- tura a que pertencemas. As solucGes possiveis sao aquelas que levam a totalidade em consideracao, empregando toda a sa- bedoria, todo o conhecimento, toda a ciéncia que a espécie ciénci: los. un humana foi capaz de manifestar ¢ que hoje, com 9 avanco dos meios de comunicacto, é de fato nosso patriménio comum. sso, os desenvolvimentos parciais ou unilaterais devem se numa sintese planetaria, cuja base é a auto-integracao ntegra ao nivel individual. A hora da transformagao — Estamos todos aqui. Chega- mos a0 momento inadidvel do choque ou da sintese. Ao ho- ) alcanga poucas dimensdes, o chaque parece dio ¢gocéntrica mem cuja vis3 vel € até, paradoxalmente, desejavel. Sua wi nega a perspectiva de uma sintese, 0 apego exclusive @ sua , religiao, cultura e nacionalidade o faz rejeitar essa sintese os seus. Assim, inevita rac como se ela representasse uma traigao a si € tudo o que ele deseja & sair yencedor de um conflito cujo tinico resultado sera a destruicao de todos nés. Como hoje em geral encontramos comunidades de diferentes origens vivendo dentro das fronteiras de um mesmo pais, esse conflito na pra- tica equivale A guerra civil, nem sempre reconhecida como tal. ¥ 0 que ocorre com os negros, mexicanos ¢ outros latinos, nos EUA, os mugulmanos na Europa, 0s sérvios € 08 croatas, os sunitas e os xiitas, hebreus e palestinos, bascos ¢ ¢spanhéis, irlandeses € ingleses, as diferentes comunidades da Africa equa- torial — os exemplos nao tém fim. A vit6ria de um grupo impli- caria 0 genocidio de outro ou a reducio dos sobreviventes 3 condigae de escravos. Hitler nao foi apenas um monstro: foi o precursor da mons- truosidade contemporinea, porque todos aqueles que desejam esse tipo de conflito comungam em maior ou menor grau com suas idéias. Estio cegos pelo scu apego a sistemas particulares de crencas € costumes, por sua propria ignorfincia, pelo egois- mo com que defendem pseudovantagens materiais, econGmicas ¢ politicas. Nao entendem que nao precisam abrir mao de suas caracteristicas positivas, de tudo aquilo que a sua cultura tem de bom. Muito pelo contrario, terac 0 prazer de ver que outros também podem entender, valorizar ¢ comegar também a parti- Ihar delas. Terao apenas de aceitar que os outros tenham os mesmos direitos e de se precdispor a apreciar ¢ incorporar tam- bém as suas boas qualidades. Para muitos, cujos olhos esto se abrindo nesta virada de século e de milénio, esta é a oportunidade impar para o desen: yolvimento de uma compreensao inteiramente nova e crialiva do sentido de suas existéncias, do potencial inesgotavel de seu ser. Sentimos que viajamos através de idéias cada vez mais claras, por meio das quais as diferencas esclarecem, enrique- cem é completam, em vez de antagonizar ¢ excluit. As tentativas passadas de transformacio da realidade, frus- trantes ¢ frustradas, foram feitas no campo cla acao: chamaram- se revolugGes. A transformacao atual, que somos desafiados a realizar, € uma transmutacao da consciéncia. Inicia-se dentro do ser humano, colocando a mente concreta subordinada & mente abstrata e esta, sob a influéncia da supraconsciéncia, pondo a acdo pessoal sob a directo da consciéneia impessoal. Temos recursos, conhecimente e tecnologia para resolver to- dos os problemas da Terra num tempo relativamente curto. Os Gnicos obstaculos estio dentro de nds mesmas. A materializacao das verdades espirituais do amor ao proxi mo e do servico ao todo cria o potencial para o entendimento: a sintese, que nao é uma simples acomodagao de interesses ou a imposicao de um particular ponto de vista sobre os cdemais, mas a verdadeira harmonizagao das partes em um todo indi- visivel © interdependente. Se falharmos em atingir este nove patamar evolutive, as ten- tativas de harmonizacao planetiria e salvacio ecolégica fracas- rao, com todas as suas conseqlidneias ldgicas € inevitaveis. E um dever inadiavel de cada individuo aprimorar a conseiéncia de si mesmo, entrando em harmonia com a voz interna de seu proprio espirito, aprendendo a conviver pacifica € construtiva- mente com sua propria familia e com seu ambiente de traba- Iho, testemunhando suas transformagGes internas em todas as suas agdes, Manifestar a totalidade de nosso ser é a propria razao de nossas existéncias, nosso dever primordial. Quando um nimero suficiente de individuos houver passa- do por esta transformacao interior, desenvolvendo uma visao da realidade alicergada nas dimens6es superiores da conscién- cia, atingiremos uma massa critica no plano da energia mental que precipitara uma iresistivel, maravilhosa, simples. ¢ eficaz sintese planetiria a NOTAS. 1. Arigides de pensomento, o# traumas « bloqueios psicolégicos somatizam-se no rigider des courogas musculares, conforme os descobertas de Reich. Del porque devemos considerar também © corpo no processe de transmutagda 2. Este temo foi desenvolvido por Sri Aurobindo em seu livro Essays on the Gite, publicado pelo Sri Aurobindo Ashram, Pondicherry, In 33 4: Teme desenvolvido per Aldous Husley em sous liveas Eminéncia Pardee A ha, "E no vos conformets (néo foment «forma de] car este mundo, mas transfarmai-ves pela renovecéo do vosso entendimente (o que nda pode acontacer pela mera crenceem verda- ‘des née vivenciadas| para que experimenteis qual seja a bee, ogradivel 0 perleita vontade de Deus [que 56 poderemos vir a conhecer através do discernimento espiitual proprio, intul= tiva.)" Rm 12-2-Ne procesto dé amadurecimente espirituol e realizagdo existencial, a Cons- ciéncia Divina fola sobre 2 nosso deveres éiicos © cada um de nés em particular, come foconfecou regularmente com ledos aquoles a quem chamomes de santas © profeias. E née se vole de inlermediérias. MeDA ASPECTOS ETICOS Medic aga E LEGAIS DA Se seertia DOACAO DE seh ORGAOS ‘eto Ocencontro da ciéncia, da tecnologia e do humanismo na vereda que leva a um dos mais polémicos awangos da medicina: Trangplante ciéncia ¢ a tecnologia avangam a passos ripidos, e as A pessoas passaram a incorporar as suas conquistas aos seus prdprios modos de vida, usos ¢ costumes. Por isso, surgiu a ne- cessidade de definir normas e regras que estabelecam limites tempordrios para esses usos. Entre o avanco da ciéncia e o seu acompanhamento por parte das pessoas ha um lapso de tem- po, durante o qual é necessario que surjam leis que possam acompanhar ¢ regulamentar os noves habitos- Na tradigao brasileira nao leis: € como se estas sempre dev nada que seja decidido sem Mm existir anteriormente aos fatos a serem regulamentados. Temos a Constituigao Federal de 1988, que é relativamente nova; 6 atual Cédigo de Etica M dica, também de 1988; o de Etica Odontoldgica € de 1995; o de Ftica Fonoaudioldgica é de 1996. Sao todos recentes, portanto. Em contrapartida, ha o Codigo Pena , de 1940, que do artigo 121 em diante cuida dos crimes contra a vida, inclusive o abor- to. E o nosso Cédigo Civil é de 1916. De 14 para ca, a tnica alteracao que ele sofreu foi em relagao ao regime de casamen- to = a Lei do Divéreio. O arcabougo principal, no entanto, continua antigo. Diante disso, é possivel imaginar 5 que acon- com esse cédigo em relagado ae tee ncia de normas sobre temas como, por exemplo, a fertilizacao extracorpdrea — 0 “bebé de proveta’, conquista da ciéncia ¢ tecnologia, ja incorporada aos nossos habitos e costumes. 86 na cidade de Sao Paulo existem oito centros praticando ativamente esse tipo de fertili- zacao, sem contar os de outras cidades e outros estados. 35 E surpreendente até que ainda nao nos tenhamos deparado. com umi problema sequer, O tinico de que temos noticia surgiu em uma novela de tclevisio, ¢ algo foi inventado para resolvé- lo. Mas na vida real os juizes andam preocupados a esse res- peito, porque se surgisse alguma dificuldade nao haveria como soluciona-la, ji que no temos jurisprud@ncia sobre 0 assunto. Os transplantes sao um exemplo de outro avanco da ciéncia médica. Nao sao conquistas tio novas, pois datam da década de 50. Entretanto, em termos de legislacdo sio relativamente recentes, tanto do ponto de vista civil quanto do penal A era dos transplantes — Desde 1967, quando Christian Barnard fez 0 primeiro transplante de coracao, houve uma di- visto mundial em relagho ao conceito de morte. Na Epoca, para.a tradigio popular, havia morte quando © coragAo parava de bater e quando cessava a respiracao. Na tradigio médica, desde o século passado ja era diferente, uma vez que do ponto de vista da hierarquia de Grgaos o sistema nerveso central ra considerado 6 mais importante. Esse fato entrou em cena um tanto inopinadamente com 0 primeiro transplante cardiaco, e o mundo ficou dividide em duas correntes: os cardiGlogos, adoradores do corac bloco do “eu também quero fazer”. Aqui no Brasil, também. logo se quis executar esse tipo de cirurgia. Em 1968, surgiu uma lei permitindo que fossem feitos transplantes no pais. Essa lei permaneceu em vigéncia até a época do presidente Collor, quando surgiu um novo anteprojeto, que passou a vigorar a partir de fevereiro de 1997. Assim, embora tenhamos um Cédi- go Civil ¢ um Codigo Penal absolutamente anacrénicos, temos uma legislacao de transplantes que é extremamente moderna, da década de 90, inspirada nas legislacoes italiana e espanhola No Brasil, acontece com freqiéncia a criacao de leis especi ficas para corretas, sejam. et: eo ircunstincias novas. Estarao essas leis eticamente convenientes ou nao do ponto de vista doutrinario? Essa é uma questao sobre a qual precis: lr. Nao existem especialistas em ética, A ética tem algo de irracional, € muito permeada pelo emocional. Esta também em permanente evolucao, tal como as leis. Seria muita pretensio da nossa geracao achar que ja somos detentores de um poder suficiente para nos dar © direito de dizer que existem princi- plos univers: ibsolutamenteé imutaveis ¢ estratificados Nao se pode falar assim, sobretudo na area da medlicina, em. que muitas vezes existe a necessidade de decisées imediatas. A amos refle- ética médica é casuistica, no sentido de que cada caso é um “aso, com suas particularidades, Nao € possivel saber o que fazer em determinadas circunstancias sem vivé-las especifica: mente. Também nao ¢ possivel pedir que seja suspenso o que estiver acontecendo, para que possamos ir para casa, estudar 0 caso por 48 horas e depois voltar com a decisac. Nem sempre podemos patar para decidir. Em grande nimero de oportuni- dades, temos que tomar decis6es com base na experiéncia. E nem sempre clas sio as mesmas. Somos mutiveis, assim como a ética, a lei e a ciéncia. Heraclito, 0 fildsofo pré-socratico, di- via: “Um homem nao constedi para; ele simplesmente constrdi’. Quando se fala em transplante, fala-se também do conceito de morte. Quando o homem era némade, bandos de pessoas caminhavam sobre a face da terra. Ao anoitecer, todos se deita- sam e dormiam. Quando amanhecia, seguiam o seu caminho. Muitos nao seguiam junto, porque nao acordavam: simples- mente nao se levantavam e isso nao constituia um grande pro- blema. Quando, porém, o homem comegou a se fixar em ca- vernas, porque cra mais seguro, ¢ssa situagao mudou. Uma a da caverna € seguia. Outra, nao: continuava deita- E provavel que num primeiro momento isso nao incomo- sea ninguém, mas depois o corpo exalaya mau cheiro. “Ele nao se levanta mais”, dizia-se. Entiio 0 corpo era jogade num rio, na terra, atirado de um penhasco. O homem deve ter enc rado a morte dessa forma ao longo do tempo: se © corpo re pira, esta vivo. Se nao, esta morto. Essa era a idéia popular de morte, ¢ também a dos médicas € religiosos. Estava no Génesis: Deus deu vida ao homem por- que soprou em ‘A legislacao brasileira ainda con- sidera a respiragio importante. Mas tudo mudou do século passado, o presidente de uma academia da Franca recebeu um prémio, oferecido ao médico que apresentasse @ metodologia mais pritica, simples e segura para diagnosticar a morte. A principio cram sete ©: a) verificacio de parada respiratéria; b) constatagao da cessagao dos batimentos cardiacos; ¢) observacao da parada circulatéria, pela tomada do pulso. Se essas circunstancias se mantivessem por cinco ou dez minutos, o individuo era consi- derado. morto. Os médicos fazem isso até hoje. A dilatacao fixa da pupila, sem reagao.a estimulos luminasos, em 90% dos casos € sufi- ciente para sé diagnostique a morte. Contudo, ha situagdes em 1A narinas la metade seus procedimentos. A seguir, que isso nao é€ suficiente: ¢ se a pessoa estiver em parada Cardiaca af por pouco tempo e puder ser reanimada? Essa € a primeira possibilidade a ser considerada pela ciéncia moderna, A se- gunda € tomar conhecimento o mais cedo possivel do que el proceder & reanimacao, Essas se encaminhar para o ocorre, para que seja poss duas questGes forgaram a me diagndéstico precoce. A partir do transplante de Chris Universidade de Harvard, nos como a cessagao da vida no sistema nervoso central. No ano seguinte, a Associagao Médica Mundial, em Sidney, Australia, baixou uma série de normas € critérios para definir de modo claro quando uma pessoa esta de fato morta, de modo a que a populacao pudesse ser bem informada a respeito. Durante oite anos, tudo correu bem. Até que em 1975, em teve parada car- ina a ‘ian Barnard, umn comité da JA, decidiu definira morte Nova Jersey, uma jovem, depois de uma festa diaca, Colocaram-na num respirador artificial, mas ela continuou em coma prolongado. Seis meses depois, como o quadro nao se modificasse, seus pais pediram o desligamento definitivo das maquinas que a mantinham viva. Dois médicos se recusaram a faz@lo porque, depois de tentarem “desmamé-la” (ou seja, des- ligar temporariamente os equipamentos), perceberam que ela dava sinais de poder reagir. A familia, inconformada, entrou na justica, solicitando o desligamento definitive da aparelhagem. Cerea de um ano depois, 0 juiz de Suprema Corte de Nova Jersey decidiu pelo desligamento definitivo. No entanto, ape- sar dessa providéncia ter sido tomada, a jovem continuou res- pirando sozinha, embora sempre em coma profundo, sem ma- nifestar qualquer reacao, ¢ alimentada por sonda. O que fazer, entio? Com essa relativa estabilidade, ela poderia sair da UT e ir para casa, com a recomendagao de alguns cuidados em caso de emergéncia. E assim foi. A jovem ficou nove anos nesse estado, sem reagir. Continuava sendo alimentada por sonda. Depois de 10 anos, faleceu. Ao morrer, tinha 1,70m de altura € 27 kg de peso. Foi feita entao uma série de exames, sobretudo em relacho ao sistema nervoso central. E surgiu novamente a questao: se- tia Necessdrio exigir a morte total do encéfalo, ou bastaria a acdo da vida nos hemisférios cerebrais? Esse pas- sou a ser um nove dilema ético, que persiste até hoje. No Brasil, segundo o Conselho Federal de Medicina, desde que possamos garantir, além de qualquer divida razodvel, que a pessoa nao tem condigdes de retorno a consciéncia, os apare- Ihos podem ser desligados e removidla a sonda de alimentagao 38 Que a morte esta ligada ao sistema nervoso central nao resta a menor divida Os médicos sabem disso ha mais de 100 anos. Em 1985, um autor francés fez um estudo no qual acompa- nhou clinicamente pessoas que seriam executadas. Assistia as execucdes pela guilhotina. No momenta em que a cabega caia, © carrasco a levava embora ¢ o pesquisador pingava os gran- des vasos do pescoco, para parar 0 sangramento, ¢ punha uma Ginula na traquéia para que o ar entrasse. Verificou que em alguns casos 0 coracao continuava a bater por até 40 minutos. Fez entao uma série de consideracées do ponto de vista fisiolé- gico ¢ assinalou que nao era possivel que as pessoas pudessem ser consideradas situacGes, porque todas as cone- xdes com 0 cérebro haviam sido cortacas, E concluiu: “Ainda que meus argumentos nao tivessem validade do ponto de vista fisioldgico, os individuos eram considerados mortos*. Do ponto de vista técnico, o que vale hoje no Brasil € a morte encefiilica, Se por acaso alguém est4 em coma profundo, sem reflexos € dependente de maquinas, é licito e juridicamen- te aceito que se desliguem os aparelhos ¢ seja ded morte. Mas ha casos de pessoas que voltam 4 vida depois de 6 meses, $40 situagdes em que havia dividas. Nem sempre € facil diagnosticar a morte, de modo que em caso de diivida o melhor € deixar o paciente ligado aos equipamentos. Ha regis- tras de casos como o de uma jovem que ficou 34 anos ligada a aparelhos. Outros assim permaneceram por 7 ou 8 anos. Ha também o da Sra. Leda Collor, que ficou muito tempo em coma nao ligada a equipamentos. Assim, quando fermos capazes de dizer, para além de qualquer divi possibilidades de retorno 4 conseiéncia, é razoaivel manté-la artificialmente viva No Brasil, adotamos o sistema antigo. O critéria do Conse- tho Federal de Medicina nio serve para criangas menores de 2 anos, nao @ acequado para intoxicacdes metabdlicas, nem ¢€ til em casos de coma barbittirico e¢ de hipotermia. Nessas si- tuacdes, G que conta é a consciéncia de cada um. As pessoas am a ter importancia moral a partir do momento da con- cepcao. Na legislagao brasileira existe, claramente, a inten¢io de proteger a vida. Entretanto, no que se refere ao seu fim, as leis nada dizem. la, qué uma pessoa tem pas: A doagao de orgaos — No Brasil o corpo humano, vivo ou morto, no todo ou em parte, nao pode ser objeto de comercializagio. Mas ha antincios de venda de 6rgaos. Nossa a lei diz que é crime vender Grgios, mas ndo especifica que é ilicito anunci-los como mereadoria. As filas de receptores sio grandes, mais para alguns 6rgaos do que para outros. A lei anterior sobre doacao de Grgaos exigia que houvesse iniciativa do proprio individuo ou da familia nesse sentido. Pela nova legislacao brasileira, todo individuo ¢ doador a nado ser que declare o contrario antes de morrer, ou que sua familia, por meio de um documento, assim determine. Essa circunstan- cia se choca com 0 preceito constitucional de direito a religiao. Se um individuo tem uma determinada religiio € esta veda a doacto de érgaos, cle ndo pode ser doador. £ 6 caso das Tes- temunhas de Jeovd. No entanto, deve ser mantide o principio da doagio presumida, j4 que as pessoas nado tomam, habitual- mente, a iniciativa nesse sentido. A vida seria muito melhor se amdssemos uns aos outros, mas a sociedade nao funciona assim. Ha uma eseassez critica de 6rgaos, sobretudo em algumas areas, dai manter-se a neces- sidade da doacio presumida. Contudo, precisamos desburo- eratizar a nao-doacao, de forma que o individuo, por meio de um bilhete assinado por ele préprie, ou uma declaragao de sua milia, passa nao ser doador, se essa for a sua vontade. Caso ele nao tenha se manifestado, a familia deve ter o direito de opinar. Em outros termos, deve prevalecer a opiniao da pré: pria pessoa, Como nas determinagées de heranca, salvo se a familia conseguir provar que na Epoca do testamento ela nao estava em seu juizo perfeito. Vejames algumas situagdes especificas. Para ser aprov da, a eérnea precisa ser retirada até seis horas depois do claros de morte. Mas a nova lei exige exames que ¢ quem o falecimento por morte encefiilica, 0 que complica a retirada de cOmeas. Em reuniio, as equipes do Hospital Sao Paulo e do Hospital das Clinicas, os dois maiores hospitais universitérios do pais, estabeleceram que os encarregados das equipes de transplame nao adotem exatamente o que a lei estabelece. Em vez disso, eles devem perguntar as fumilias se elas autorizam ou nilo a retirada . Ha outras situagdes bem mais complicadas. O tecido fetal, por exemplo, serviria para tratar o mal de Parkinson. Mas é preciso que nao se use material de aborto natural, por causa do risco de infeceao. Assim, sé o material de abortos provoca- dos serviria para esse fim. Em certos paises que nao © Brasil, permite-se que mulheres engravidem, para depois e tecido, inais abortar ¢ vender ess 40 Contudo, é preciso considerar que o individuo que faz ex- periéncias por dinheiro — 0 cobaia profissional — pode levar a erros. Além disso, uma oferta aumentada de Grgaos nao ajuda- ra, se nao for viabilizado o aproveitamento desse material. Ha, por exemplo, o problema do transporte, no caso de estruturas como o pancreas, 0 rim ¢ o figado, que precisam ser removi- dos € transportados com rapidez. Um Srgie pode ser aproveitado mesmo para uso tempora- aver ceitos tipos de dia- rio. Hoje se usa figado de porco para lise, Cogita-se até mesmo da produgio, em laboratério, de ani- mais transgénicos, isto é, preparados a semelhanca do homem, e por meio deles desenvolver repositérios de Srgios. Essa é uma das grandes possibilidades da clonagem, que antes s6 era feita em anfibios ¢ tornou-se possivel na ovelha Dolly. Entre- tanto, é remotissima a possibilidade de criar' um ser idéntico a outro, pois nem gémeos univitelinos o sio. Morte e eutanasia — A morte € encarada de modo curioso pelo ser humano. Os médicos tém pavor dela, e o mesmo vale para toda a sociedade, sobretudo a ocidental, que se inspirou nos Gregos, que chegaram 4 irreveréneia de querer nar com os proprios deuses, tanto assim que ¢riaram, na sua mitologia, as figuras de ‘Tanatos (a morte) e seu irmio gémeo, Hipnos Co sono), A Igreja tem sido renovadora quanto a morte. Em 1957, 0 Papa Pio XH declarou que cabe aos médicos decidir e que, quando nao houver esperangas, néio se deve prolongar antificial- mente a vida dos pacientes. O Papa atual diz que € preciso que haja uma adequacdo entre a metodologia que se usa € as reais possibilidades de vida dos pacientes. F comum usarmos uma altissima tecnologia para preservar a vida por apenas mais duas horas. Em casos assim, 0 esforgo claramente nao vale a pena. A cutandsia ciente) ou involuntdria (casos em que a familia decide). Ha também os suicidios assistidos, casos em que sao fornecidos aos pacientes meios para que eles se matem. No Brasil, pouco ou nada se fala a esse respeito. Aqui ndo existe a figura legal da eutan: existe o homicidio, e o suicidio é crime previsto pelo Cédigo Penal. Nos paises anglo-s: cdo de morte, € por isso os médicos tém que obedecer a certos requisitos para declara-la. Em alguns paises nao se fala clara- mente em eutandsia, mas hd algumas normas. Na Holanda, por exemplo, existe desde 1984 um acordo entre as categori: pode ser voluntaria (quando solicitacda pelo pa- axGnicos existe a cdefini- médica ¢ juridica pelo qual, desde que obedecidas 22 etapas, € permitida a cutandsia. Também no Oregon, EUA, esse procedi- mento é lega No Brasil, os critérios para definir a parada total e irreversivel das fung6es encefilicas em pessoas com mais de 2 anos sao clinicos ¢ devem ser confirmados por exames complementa- _ E voltamos ao grande dilema Gtico contemporaneo: decidir se a morte ¢ igual A lesao irreversivel do encéfalo como um lesdo irreversivel apenas das ado. re: todo, ou se ela corresponde dreas responsiveis pela consciéncia ¢ pela vida de relagao. Lembremos aqui a teoria dos atos e das omissdes. Para mim, matar ou deixar morrer so circunstincias iguais do ponto de vista ético, ou Seja, eutand sao a mesma cois © fundamental € saber o que é melhor para o paciente. Se melhor é nao continuar com ele ligado aos aparelhos, convém desliga-los. ‘Trata-se de uma conclusao absolutamente légi- ca. Prolongar a vida ¢ sedar a dor — esses sao os pilares basicos da medicina. Mas 4s vezes eles se contrapdem, porque ha oca- sides em que sedar corresponde a nao prolongar a vida e nao. sedar é prolonga-la aumentando a dor. Todos os sedativos sao. inibidores do sistema nerveso central ¢ nessa condigao podem prejudicar © processo respiratério. Dessa forma, as vezes 0 médico se vé diante dessas alternativas: ou € homicida ou tor- turador, isto é, ou seda ¢ o paciente vive dois dias em alivio, ou nio seda e ele vive dez dias em imensa dor. E preciso usar a logica, para saber quando a mort € preferivel ac sofrimento. O dolorose da morte nao € a propria morte. O segredo esta na sabedoria, nao na ignorincia. Quanto mais se souber, me- lhor. A vida 6 um pré-requisito e nao um fim. O valor esta na vida da pessoa. Enquanto houver pessoa hit valor na vida, O que precisamos saber nao é quando a vida comeca, mas quan- do ela principia a ter importincia moral, Do mesmo modo, precisamos saber nao quando a vida termina, mas quando ela deixa de ter impertincia meral. i sia ativa € passiva Este artige correspende & edicoo de uma polestra de outor na Associagso Palas Athena, em iunhe de 1997. 42 = — O que aprendi com 0 Dalai Lama sobre 0 jucaismo Hg quatro anos, acompanhei um grupo de oilo rabinos e estudiosos judeus @ India para uma audiéncia com 0 Dalai Lama do Tibete, que ttos havia pedido para revelar o mistério dla sobrevivéncia dos judeus no exilio dutrante dois milénios. jamais imagi- nei que ele também tinka tum segredo, que poderia ajudar o povo judet. esde 0 seu exilio do Tibete, em 1959, o 14” Dalai Lama, lider temporal € espiritual de seis milhdes de budistas tibetanos, tem refletide com freqiiéncia sobre 0 povo € a hist6- ria judaicos: “Através de tantos séculos, de tantas privacdes, vocés nunea perderam sua cultura ¢ sua fé. Em conseqiiéncia, quando as condigées externas se tornaram maduras, vocés es- tavam prontos para construir sua nagao. Assim, ha muito a aprender de nossos irmaos e irmas judeus” Dalai Lama vive no exilio em Dharamsala, uma remota cidade nas encostas dos Himalaias. De 14, ele vem conduzindo uma campanha nao-violenta para a liberdade do Tibete, que o fez ganhar 0 Prémio Nobel da Paz em 1989, ¢ também ser reconhecide come Membro Honorario da Universida- de Hebraica, em 1994, Nesse meio tempo, sob o dominio chi- nés, seu povo tem sofrido uma aniquila mais de seis mil mosteiros j4 foram demolidos ¢ a pritica re- ligiasa proibida. Nos, judeus, enfrentamos situagoes seme- Ihantes muitas vezes no passado, Portanto, desejivamos sa- ber se realmente poderiamos ajudar os tibetanos a superar sua agonia. Depois de uma dificil viagem por terra, através do Pundjab dilacerado por tumultos, vimo-nos dentro da catedral central, um templo brilhante © cor de mostarda. Cento € cingienta monges budistas ¢ abades da regiao dos Himalaias estavam sentados em esteiras, em posicao de létus. O Dalai Lama en- trou. Usava um manto vermelho-acastanhado, Gculos escuros de cor rosada ¢, na face, trazia um amplo sorrise. Trés monges cantavani 6 seu estranho canto gutural. Notei duzias de shangkas, pinturas devocionais em seda em cores brilhantes. Uma delas mostrava fileiras de Budas sentados diante de uma lagoa de Aguas claras, Naquele dia havia se juntado a nds o ator de cinema Richard Gere, que explicou que 0 pequeno lago da pintura era na verdade de néctar. Um lago de néctar, claro ¢ doce. Para mim, essa tornou-se a imagem dominante do encontro das judeus com o D De algum modo, ele nos fez ver o judaismo mais claramente ¢ com mais docura do que muitas vezes nos proprios o vemos, Em nosso didlogo com o Dalai Lama vimos reviver a tradi- gato judaica, Seu anseio de aprender era contagioso. Olhei para © Seu rosto, Enquanto 6 rabino Irving “Yitz” Greenberg — cuja organizacio, a CLAL, promove o entendimento entre grupos judaicos — explicava como, em nossas preces & costumes, todo judeu deve ser relembrado do exilio, » cultural ¢ fisica — 44 “Ao fim de cada casamento”, disse Greenberg, “quebramos um copo. Por qué? Para fazer com que as pessoas se recordem de que nao podem ser inteiramente felizes. Ainda estamos no exilio, ainda nao estamos reintegrados, Quando vocé constréi uma nova deixa um pequeno cémodo inacabado. Por qué? Por mais bonita que seja uma habitacao, ainda nao estamos em casa”. O Dalai Lama concordou com a cabeca, pensativo, e respondeu com suayidade: “Sim. Relembrar sempre. Os pontos que o senhor mencionou realmente atingem o Amago de como manter uma cultura e uma tradigao. Isso é 6 que eu chamo de o segredo judaico — conservar a tradicaio. Em todos os aspectos importantes da vida humana, ha algo para relembrar-nos de que temos de voltar, temos de voltar, temos de voltar para assumir a responsabilidade”, Ele havia compreendido um as- pecto basico da sobrevivéncia — a memoria, Para mim, a memG6ria tornou-se viva de outro modo em Dharamsala. Senti-me religado com fragmentos perdidos de minha propria tradicao. O manto do monge — compreendi — como 0 nosso ialil, pode ligar a Escola Budista de Dialética as ancestrais academias Entretanta, se os judeus conser- vam lembrangas do mundo antigo, os tibetanos pertencem in- teiramente 2 ele. Uma madrugada, acordei com 0 cantico de uma jovem monja. Fiquei sabendo depois que ela recitava de meméria um livro inteiro, do mesmo modo que, no século I, os Jannaim haviam ade 0 Mishnahames que ele houvesse sido escrito pela meira vez. A medida que o rabino Greenberg descrevia os sdbios rabinicos em Yavneh, apés a destruigao do Templo pelos ro- manos, em Jerusalém, observei as faces enrugadas dos velhos lamas ¢ abades, ¢ percebi que para cles Dharamsala era Yavneh e © tempo da suprema crise era agora. NG6s, judeus, conheoe- mos instintivamente 2 agonia de perder a terra-mie, ser forga- do ao exilio ¢ sobreviver & adversidade Relembrar sempre”, era o conselho-chave, mas também de- mos a eles outros segredos. Numa cerim@nia de sexta-feira a noite, assistida por varios lamas, compartilhames 0 poder do Shabbat. A Dra. Blu Greenberg, académica ¢ autora feminista, acendeu as velas e rezou. Substituiu cuidadosamente 0 matzah, sso pio da aflicao, pelo challah, em solidariedade 20s nos- héspedes do Shabbat que jamais retornariam clo exilio. (Os monges rapidamente aprenderam a dizer Shabbat Shalom, & respondiamos com Tashe Delek — expressao tibetana para “paz 45 a vocé”.) Em sua sessdo com o Dalai Lama ela falou sobre a importincia central, para o ju ensinamento dificil para uma religiio conduzida por monges celibatarios. A propria presenca de Blu, bem como a de Joy Levitt, rabino da Sinagoga Reconstrucionista de North Shore, em Roslyn, Nova York, qué explicou o papel fundamental da sinagoga, acrescentou um elemento vital ao didlogo, O “lado” tibetano da discussio era todo masculino. O grupo judeu tam- bém ofereceu sugestoes especilicas sobre o estabelecimento de acampamentos religiosos de verao, uma idéia que os tibeta- nos acharam particularmente Util. © Dalai Lama desejou saber mais sobre a “vida interior” dos judeus, A medida que falava, movia seu punho para frente € para tris como se estivesse abrindo uma porta. Queria saber que métodos o judaismo oferece para tansformar o ser huma- no, para que ele supere “emoces aflitivas” como a raiva. Para os tibetanos, essa nado é uma questio abstrata. O Dalai Lama smo, do lar ¢ da familia — um vem conduzindo o seu povo através do mais dificil periodo de sua histéria, uma fase na qual a violéneia 6 uma resposta muito previsivel. Assim, saber lidar com a raiva ¢ um desafio tanto pessoal quanto politico. Embora os chineses tenham levado ele e sua familia ao exilio, torturado ¢ matado © seu povo pelos Ultimos trinta e cinco anos, ele se refere a eles como 0 “assim chamado inimigo” Descobri que © Dalai Lama, que desereve a si mesmo como. “um simples monge budista”, é um mensef: — um homem profundamente gentil ¢ benevolente. Aprendi com cle o po- der do que os budistas chamam “mente silenciosa”. Em nossa primeira reuniao cle estava muito resfriado mas, durante tr horas de conversa, seu interesse e seus extraordindrios pode- tes de concentragao jamais pareceram enfraquecer. Encontrou também tempo para saudar cada um de nds pessoalmente. Tive uma estranha sensagao quando me olhou profundamente nos olhos. Os tibetanos acreditam que ele pode ver nossas vidas passadas. Senti-me pessoalmente desafiado pela meditagio budista, que parece tornar seus praticantes mais calmos, mais sabios ¢ mais capazes de lidar com emogdes dificeis. Sao qualidades que nao tenho. Em nosso didlogo, os tibetanos queriam saber © caminho © o objetivo do nosso sistema de crengas, ¢ como ele nos ajuda a superar sentimentos dolorosos. Até Dharamsala, jamais havia pensado em fazer tais perguntas sobre o judaismo. Para mim, o fato de ser judeu permeava nossa histGria coletiva, familia e identidade. Nunca havia considerado © judaismo como um caminho espiritual © rabino Jonathan Omer-Man, que ensina meditacao judai- a em Los Angeles, referiu-se a esse problema quando falou ao Dalai Lama: “Para nés, o trabalho de transformacao € um cami- nho sagrado. Contudo, mais © mais pessoas que procuram a mudanga nao vao a um rabino. Vao a um psiquiatra, que nao Ihes ensina a iluminacao, mas a auto-satisfacio”. A apresentacdo do rabino Omer-man sobre meditagao ju- daica, ¢ a do rabino Zalman Schachter sobre a Cabala, vieram responder 4s quesioes do Dalai Lama sobre a “vida interior” judaica. Fiquei surpreso ao saber que © judaismo tem técnicas poderosas de transformacao interna. Mas elas sto profundas e ocultas, inacessiveis para a maiotia de nds. Historicamente, t¢m sido praticadas apenas por uma pequena elite; por isso, os judeus que sao buscadores espirituais vao para outras partes quando estio 4 procura de um caminho. Tinha isso em mente quando abordamos 0 delicado tema dos judeus convertidos ao budismo. Nos Estados Unidos, os judeus sdo desproporcionalmente representados em grupos budistas ocidentais. Em Dharamsala, encontramos um certo mimero de monges € monjas budistas que tinham raizes judaicas, inclusi- ve a bisneta de Henrietta Szold. Um dos tradutores residentes do Dalai Lama é um budista judeu com doutorado em Harvard. Meus proprios pressupostos sobre essas pessoas — apéstatas, desgarraclos, cultuacores — logo se desfizeram. Convidames toda a Dharamsala judaica para uma cetimOnia de Shabbat no siba- do de manha, e passei horas com eles lendo e discutindo a Tora. Os judeus budistas de Dharamsala sdo extraordinarios — argutos, até mesmo brilhantes em alguns casos; certamente naa. sao zumbis submetidos a lavagem cerebral. Alguns ainda se consideram judeus, outros nao, mas todos dizem haver encon- trado algo valioso no budismo, que nao tinham sido capazes de encontrar no judaismo. Isso fez com que alguns de nds se sentissem desconfortiveis. © professor Nathan Katz, que ensi- na estudos budistas na Universidade de South Florida, enx Tam- pa, expressou depois ao Dalai Lama a nossa dor por ter perdi- do para o budismo esses judeus espiritualmente compromet- dos, Apés uma longa pausa, o lider budista disse que jamais havia procurado converter os outros, porque todas as religides oferecem satisfacdo espiritual. Costuma aconselhar os recém- chegados a continuar com seus préprios credos, mostrando que muitos tibetanos estiio também em busca de outras religioes. Ao aprender sobre os ensinamentos misticos judaicos, o lit der tibetano disse que havia adquiride mais respeito pelo juca- smo, porque “encontrei mr ao aqui’ ava parti- cularmente impressionado pelos conceitos cabalisticos de Deus, que acentuam a responsabilidade humana, e descobriu que as técnicas da meditacao e prece judaicas eram muito similares as da meditagao budista. Tais ensinamentos ¢ priticas esot aconselhou ele, deveriam estar mais amplamente disponiveis. © Dalai Lama fez um paralelo a partir da historia budist: Como a Cabala, © misticismo budista (ou santrayana), tal como é tradicionalmente ensinado na India, tem sido “muito reserv: do, muito confidencial”, ¢ proporcionado de modo seletivo a muito poucos alunos. “Nunca houve um ensing publico”. Con- tudo, com tanto sigilo existe o perigo de desaparecimento da tradicao. Ele nfo acha que convém pre sigam uma religito especifica. “Embora a motivagio possa ser sincera, o resultado pode nao ser positive, sé limitamos o direi- to de escolher e explorar. Se tentamos isolar-nos da moder- nidade, estamos nos autodestruindo. E preciso enfrentar a realidade. Se temos suficientes motives para praticar uma. reli- gitlo, nto ha necessidade de temer a perda das pessoas. Mas se nao temos suficientes razOes, valores, nao ha necessidade de continuar’. O Dalai Lama nos ofereceu um extraordindrio conselho — ¢ um desafio. Poderiam os nossos lideres tornar © judaismo mais satisfatrio e benéfico para os judeus? O Professor Katz respon- deu criticando os judeus que se definem como tal principal- mente em termos de luta contra “inimigos que nos ameacam com perseguigio ou assimilagao. Se tansmitirmos AS pessoas O sentimento de que elas devem estar em guarda o tempo toda, iremos perdé-las”. Por meio do meu encontro com os budistas, comecei a for- mular de modo diferente as questées do judaismo. Como ele melhora a minha vida? Como posso aprender a trazer béncdos para a minha vida? Como posso viver 0 ideal judaico de tornar sagrada a vida cotidiana? Compreendi que havia subvalorizacdo 0 que havia de pre- cioso em minha prépria tradicdo, especialmente a prece € oO estudo. Também ignorava completamente a meditagao judaica oua importancia da kavenah—a intencio — na prece judaica ¢ no dia-a-dia. Meu contato com os budistas tibetanos aprofundou minhas expectativas em relagao ao judaismo. a sOfistica jonar as pessoas para que ‘stou levando adiante a minha busea de transformaeao inte- rior, nao na distante india, mas em minha prépria casa e na sinagoga. Tenho estudado intensivamente textos espirituais ju- daicos e budistas. Vendo 0 judaismo refletido em um lago bu- dista de néctar, cheguei 4 conclusao de que a religido na qual nasci nao é apenas uma etnicidade ou uma identidade: é um modo de vida e um caminho espiritual, com suas préprias exi- géncias sobre meus pensamentos € scntimentos. Se fosse para resumir essa mudanea, poderia dizer que ela tem sido um movimento do exotérico para o esotérico, do externo para 0 interno — nem tanto no sentide de mudar mi- nhas priticas judaicas, mas na direcao de aprofundi-las. Minha esposa, minhas duas filhas © cu, temos, por muitos anos, cele- brado © Shabbat em nossa casa, acendendo velas e abengoan- do 0 pao € o vinho, mas agora estou 2 & nossa kananah, as nossas intencoes. Quando recitamos béneaos, por exemplo, tento me manter afinado com o sen= timento pacifico do Shabbat, em corpo, mente ¢ alma. ssas preces € cerimGnias sao veiculos para aprofundar is cuidadoso em re esse sentimento, E, mesmo quando antes de nossa familia reci- tar as béncaos, cantamos Shalom Aleichem para dar as boas- vindas aos anjos clo Shabbat(uma imagem profunda, vinda do acervo do misticismo judaico). Também dames as boas-vindas a noiva do Shabbat com o Leche Dodi, ¢ algumas vezes nos damos as maos e dangamos em nossa cozinha. Aprendi a trazer as imagens ¢ a riqueza do imaginario para as minhas preces por meio da meditagae. Concorde com um dos delegados, o Dr. Moshe Waldocks, editor na area de Boston, humorista € professor judeu, que disse que os judeus. podem aprender de outras tradi¢ocs meditativas: “Meditar, cantar e res ociamos com os modos orientais de rezar, » de modo algum estranhos ao judaismo” A maioria dos judeus nao se da conta do yvasto acervo de espiritualidade contido nas preces judaicas, em nossa tradigao mistica ¢ em nossa Tora. O Dr. Mare Lieberman, o organizador da nossa viagem « Dharamsala, disse com acerto: “A voz da claridade e da sabedoria, a voz que fala ao meu coragao, s estou descobrindo agora ne judaismo porque tive a experiér cia mais clara de ouvir 6 meu coragio por meio da meditagao’ Para alguns, a trajetoria da espiritualidade profunda no ju- daismo envolve uma jornada através da meditacao budista. Se abrirmos mais amplamente as portas de nossa propria tradicao meditativa, e adquirirmos clareza sobre como 6 estudo € a Oa 49 prece juclaica podem beneficiar-nos em nossas vidas hoje, tal- vez essa jornada nao seja necessaria para a prOxima geragao- No bal mitzvah de minha filha Anya, no ultimo outono, na sinagoga Beth Shalom, ela aprendeu a cantar todo o mafir, € também uma extensa passagem da haftarah, Conduziu tam- bém toda a ceriménia da sexta-feira 4 noite e, de novo, no sabado de manha. Entretanto, enquanto eu me s que cla desempenhava essas funcoes, estava ainda mais orgu- Ihoso do espirito que ela trouxe para as suas preces. Ela enten- deu 0 que estava cantando — 0 que €stava atravessando. Ado- rou com kavanah. A medida que ela conduzia a ceriméni toda a congregacdo pareceu ascender cada vez mais. O rabi- no Caplan estava to orgulhoso que pediu que ela repetisse a sua passagem da Tora sobre o Yom Kippur = uma grande honra. Acho que 2 geracao dela jd entende implicitamente que sua tarefa é trazer para o coracao a espiritualidade judaica € aprofundi-la. Uni entia orgulhoso do rigor com ¢ a uma identidade judaica exterior sem cultivar uma alma judaica j4 nao tem sentido para mim. O Dalai Lama falou de uma “curiosidade pessoal” quando indagou sobre a nossa vida interior como judeus. Foi uma pergunta tipicamente bu- dista ¢ me transformou num judeu. [THOT] 50 Favela espelho ensaio fotogrifico nas paginas seguin- oe tes ¢ um registro do cotidiano da Fave- la Monte Azul. Localizada na zona sul de Sao Paulo, numa area de 24.000m, ld vivem 3.700 pessoas amontoadas em 435 barracos. Hoje; as pequenas construcées sio de alver ruelas sao urbanizadas, ha luz ¢ agua enca- ada, s6 6 esgoto ainda é despejado a céu aberto num corrego que repousa no vale. A garantia 4 educacio, satide e cultura é uma das prioridades da Associacao Comuni- tiria Monte Azul, uma organiza: »*-gO- vernamental sem fins lucrativos, autogerida e reconhecida como entidade de utilidade pu- blica Municipal, Estadual ¢ Federal. Fazem parte dessa cooperativa és nticleos, todos em regiées préximas. A Favela Monte Azul é o maior deles € 6 pionciro. Os outros Favela Peinha e uma drea no bairro Horizon- te Azul. A identificagao com os principios da antroposofia € uma das razées que diferen- ciam o trabalho da Monte Azul. Sua proposta ndo se resume a um mero assistencialismo, mas hd uma atuac¢ao consciente no aprimora- mento do ser em busea da cidadania. O tra- balho social iniciado pela alema Ute Craemer (em uma das fotos que se segue, sentada a direita do lama nyingma do budismo vajraya- na tibetano Chagdud Tulku Rinpoche) as 2a coneretizou-se com a fundagao da Associacio Comunitaria Monte Azul, em 1979, quando da inauguracio de uma peque- na escola e ambulatério, num terreno doado pela prefeitura. Ute imigrou para o Brasil para ser professora da pedagogia Waldorf numa escola particular em Sao Paulo. A educadora comenta, quando morava nas vizinhancas da Favela Monte Azul, como surgiu a primeira semente desse movimento social: Lm 4975, quando estava em casa preparando culas, mititas vezes era tnierrompida por um bater no portdo, Eu ia Id fora: “Tem alguma coisa para dar?”, perguntavam. Dei pao, mas logo vi que essas criancas precisavam ce mais do que pao. Lembro-me de um verso que falave assim: “Se tiver dois pdes, fique com wm para comer ¢ 0 outro vocé dé: assim brotard uma flor”. Mais tarde, li num livro do Sr. Liewegood: “Preste atencao as pergrn- tas. Nas perguntas se exprime o destino.” Um dia cheguet em minha classe e depois de ter falado 0 verso dittrio disse: “Vejcm, Id onde moro ha uma favela cheia de criancas! Praticamente ninguém cuida delas, os pais tém que trabathar, os barracos sdo cubictlos feios ¢ insalubres. Sera que nds podtamos ajudd- E mesmo!” Gritaram uns ¢ jd fiveram mil idéias: excur- sdo, argile, ensinar a ler e escrever. Assim foi... Montamos um esqueme para que cada semana wns dois ou tres vlessem aqut em casd. famos chamar as criangas da favelea para duas tare- fas recreative O sucesso da Monte Azul € reconhecido no Brasil ¢ no ex- terior. Ano passado foi agraciada com os prémios Bem Eficien- te © Crianga Fundacio Abring. Seu ambulatério-maternicade ostenta os melhores indicadores do pais, segundo a Organiza- (ao Mundial de Satide, com apenas 3% dos partos resultando em complicagées © cesdreas. Na area educacional, a entidade atualmente atende a 960 criangas e adolescentes. A formacao cultural também esta na ordem de prioridades: 0 Centro Cultu- ral Monte Azul estimula e acolhe regularmente experiéncias em teatro, danga, canto e musica. escuras ¢ desordenadas, nas brincadeiras dos meninos, no ritmo didrio da creche, no corte de cabelo improvisado, no voluntario estudante, nas jovens artistas, um universo imagético descortina-se. A fotografia narra o seu modo de ver, flagra acasos do dia-a-dia, tece texturas em preto e branco. A Favela Monte Azul, uma dentre as 1.700 favelas es- palhadas pela cidade de $40 Paulo, € 6 que se pode chamar de “espelho’, ¢ ela reflete o sonho possivel de um Brasil que co- meg¢a a vislumbrar a sua face. [THOT] r Aria AVANCINI é , pesquisader fotogral © professor de fotojornalismo ¢ fotografia em ae na Escola de Comunicagdes ¢ ja Universidade de Sao Paulo. E mestrando em Ciéncias da Comuni- cagio, na area de Jornalismo, na RCA/USP. Iniciow sua carreira dé fotégrafe no inicio dos anos 80 documentando a danca espontinea de Rolf Gelewski, dk enti vem r como free-lance fotos para a midia impress, Jd expos no Museu de Ame de Paulo, Museu da gem € do Som Centro Cultural Sao Paulo e Museu de Ante da Bahia. Cola- bora na Associ a0 Comunitéria Mente Amul desde 1994. serene HUMBERTO eae MATURANA E ieee A PSICOTERAPIA ih ode A convergéncia entre o trabalho contin de um dos maiores cientistas de nosso tempo e wma escola psicolerapéutica de vanguarda psicologia contemporanea ainda parece estar muito in- fluenciada pelos paradigmas empiristas, que aceitam a existéncia de uma realidade nica ¢ universal, igual para todos e independente da percepgio do observador. Segundo esse modelo, o organismo € essencialmente passivo € responde uni- eamente a uma dada ordem externa. Por conseguinte, o senti- do das coisas esta objetivamente determinado de antemao & a mente hu- mana se tora um mero re- ceptor externa, 0 que a determi- na em sua quase totalidade. A rigida simplici- dade desse ponto de vista, todavia, entrou em uma profunda crise explicativa nos tiltimos 15 anos. Ao mesmo tempo, ocor- reu uma convergéncia interdis- ciplinar (a segunda cibernética, a 61 epistemologia evolutiva, a termodinamica irreversivel, as cién- cias Cognitivas, a neurociéncia e o neodarwinismo, entre ou- tras), a partir da qual esti surgindo uma perspectiva de base totalmente diferente: a das ciéncias da complexidade. A noc s da complexidade emergiu, nos anos, em parte como uma sintese de algumas disciplinas tradi- s, Os sistemas » de ciénc. mos: ae s matema ionais, como a biologia, a fis complexos (por exemplo, os seres sociais), dos quais elas se ocupam, nao estao confinados das disciplinas tradicionais: pa los, so ne- de varias disciplinas. vivos, 0 cérebro e os siste- mas a uma tnica ra estud a8 @ conhecimento ¢ as técnica Hoje, esse panorama permite vislumbrar uma nova colabo- ragao entre as ciéncias “duras” (as chamadas ciéneias ex as sociais (como a psicologia, a psicopatologia, a saciologia. antropologia), sobretudo quando estas wltimas, como diz o psicoterapeuta italiano Vittoria Guidano, mostram um atraso de 20 a 30 anos em relagio as primeiras. Esse atraso se explica, gundo @ mesmo autor, porque as ciéncias sociais nao se pre- ocuparam com os aspectos epistemolégicos: Tomemos um ¢xemplo no aml “cluras”. Nos Ultimos dez anos, os fisicos esclareceram os fenémenos que ocorreram quando houve o Big Bang (0 inicio do Universo). Conseguiram, inclusive, reconstruir as acontecimentos que se desenrolaram por volta de 14 segundos depois dessa grande explosiio. Mas nio o fizeram especukindo ¢ sim construindo ¢ explicando os processos. Dessa maneira chegaram a dizer cer- tas coisas, em linguagem cientifica, que para os cientistas so- ciais nem sequer seriam pensiveis, como a existéncia da anti- matéria, isto €, 0 entendimento de que a matéria s6 & tas) € ito das ciénci te por- que est flutuando em mares de antimatéria. Tudo isso foi pos- sivel para a fisic porque ela conservou o contato com a epistemologia Pois bem, 4 concepeio das ciéncias da complexidade, a0 considerar os organismos em termes de sua estrutura comple- xa, destaca desde o inicio su Io ¢ auto-organi- zacgio, bem como o modo aberto ¢ plastica pelo qual el evoluem € se desenvolvem. O elemento basico dessa perspec. tiva € a mudanea das nogoes de realidade ¢ cde observador. Esta levou a uma modificagdo radical na relagao observador- observado, na qual ji mio se aceita o acesso a uma realidade Unica, independente do primeiro. Ao contritio, 0 que se pro- poe € que existem tantas realidades quantos modos de vida ha em cada ser. autodetermina A contribuicio de Humberto Maturana — Prémio Nacional s Bioldgicas em 1994 —as ciéncias da complexidade € bem conhecida, bem como sua influéncia no pensamento ¢ investigagao de muitos dos cientistas a elas ligados. Quando, ja no final de sua vida, perguntaram a Gregory Bateson quem poderia continuar o estude da “Criatura” — 0 mundo dos se- res vivos — ele respondeu que o centro dessas investigacdes agora era Santiago do Chile, ¢ que elas estavam a cargo de um homem chamado Humberto Maturana. Do mesmo modo, te6: cos € psicoterapeutas como os psicoterapeutas Guidano ¢ Arciero, ao fazer referéncias especificas 2 abordagem de Maturana, a denominam de “escola chilena’ As contribuicdes mais significativas dessa esco! da complexidade foram © questionamento do racionalismo objetivista e a formalizagao das teorias da cognicio, a auto- referencialidade de toda adaptagao e conheci fase na linguagem na construgio da experiéncia humana € © en- eapsulamento do conhecimento no ser total, que contest tradicional dualidace corpo-mente de antes. A contribuicgao da teoria de Maturana a psicoterapia é tam- bém vastamente reconhecida. Com efeito, ele tem side cons- tantemente solicitado para congressos no Chile e no mundo: or de mento, a ¢ inteiro. Além disso, tem sido designado como prof institutes de formagao nes: expor algumas de suas idéia: mportantes ¢ relacioné-las brevemente com a psicologia e com a psicoterapia. a drea. O objetivo deste artigo é mais A teoria biolégica do conhecer — Assinalavamos que a convergéncia interdisciplinar proporcionou mudanc¢as episte- molégicas em relacao ao binémio observador-abservado. A contribuigioe de Humberto Maturana a nova propo: l6gica é fundamental. Trata-se do primeiro cientista que, a par- tir de sua atividade de bidlogo, propde que o conhecimento € um fenémeno biolégico, ¢ que portanta 86 pode ser estudado e conhecido como tal. Mais ainda, sua proposicao € que a propria vida deve ser entendida como um processo de conhecimento, cuja finalid de € proporcionar ao organismo meios para que ele se ada para sobreviver. Nenhum ser vivo esté interessado em sé seu conhecimento é vercladeiro ou nao, quando isso nao importa para a sua sobrevivéncia, Dessa maneira, a obra de Maturana pode ser caracterizada como um sistema explicati- vo unitirio e ontolégico da vida ou da vivencia, E omolégico 63 porque ve a experiéncia humana a partir de um ponto de ta situado dentro dela mesma, ¢ nao a partir de um referen- cial externo. Como surge a partir do ser biolégico, a abordagem de Maturana permite-nos refletir em termos is amplos, no sen- tido de que tude 0 que se relaciona com a vida pode ser expli- cado a partit dela propria. Por esse dingulo a psicologia € parte biologia, j4 que os fendmenos que cstuda se dao nos seres ivos. Embora Maturana reconheca que a biologia tem um dominio préprio, cujo Ambito é o estudo da dinamica das rela- cOes ¢ interagdes que OCOrreM entre Os OTganismos come tota- lidades, seu raciocinio bioldgico o faz ver a mente come uma instancia da vida, como uma organizacio dentro da organi (do que é a propria vida. A vida ¢ a morte se auto-organizam. Sao sistemas estruturalmente determinados, autopoicticos (no sentido de queos organismos vivos estio sempre se autocrianda) ¢ também auto-referentes, isto é, ci Esses delineamentos tiveram conseqiténcias incalculiveis para a psicoterapia, Nessa perspectiva, qualquer mudanca que surja num sistema humano pela intervencaio de um psicoterapeuta ¢ sempre uma reordenagao da experiéncia do paciente, determi- nada por ele préprio e nfo pelo terapeuta. Assim, este apenas pode ‘perturbar” o paciente para engatilhar nele a sua reorga- nizacio. Mas nunca poderd “instrui-lo”, vale dizer, nao podera sar-lhe “informagées diretas”, como postulam as escolas tra- ionais, inclusi ma culares. pa dic a psicanilise. O determinismo estrutural — Maturana sustenta também que todas as mudaneas que os sistemas vivos podem experi- mentar sao determinadas por sua propria organizacao € estru- tura. Embora esses dois conceitos sejam propriedades dos s res vivos (que, na sua terminologia, sao entendidos como “uni- dades compost * pertencentes a uma categoria especial), nao Oo sindnimos. A organizacio se refere A relacao entre os componentes de uma “unidade compos ela que determina as propriedades da unidade, bem como os componentes € a relacao por meio da qual cles devem participar na constituigao dessa mesma unidade. Em outros termos, nds, seres vivos, manlemos nossa organizacio durante toda a vida: é cla que faz com que nes reconhe¢amos sempre como a mesma pessoa, desde a infancia até a velhice. A organizagao ¢, pois, invariante. Mas a estrutura COES Ue SJ possivels € variavel: cla determina qu OF numa dada “uni cas sa0 necessdrias para desencaded plo, de alguém que é engenheiro e aos 40 anos decide dedicar- se a poesia Dessa maneira, ainda que todo sistema e: nalmente constituido por sua organizagao, sua opera especifica se processa em sua estrutura e por meio dela. Assim sendo, mesmo que © dominio (ou espaco) de interacdes do sistema esteja especificado por sua organizacdo, as interacdes efetivas ocorrem por meio de seus Componentes. Em vista dis- so, airmar que os sistemas sao estruturalmente determinados implica que aquilo que neles ocorre nao esti determinado por nada que lhes € externo. Significa também que, quando na condi¢ao de observadores vemos algo que incide sobre um istema, nao é esse algo que proveca a mudanga: apenas de- sencadeia, no interior do sistema, uma modificacao estrutural que estava previamente determinada em sua configuracio. Na psicoterapia, essas consideracdes permitem concluir que as mudang¢as que © paciente pode experimentar estao demar- cadas por sua organizacio, por sua identidade sistémica. Em outras. palav ele podera mudar apenas até 0 ponto em que sua organizagdo nao corra riscos. Dessa forma, a psicotera- pia tem sempre um limite, ¢ este é determinado pelo paciente e€ mio pelo terapeuta. lade composta”, € quais interacées especifi- s. Eo caso, por exem- teja operacio- idade O fechamento organizacional e a auto-referencialidade — “Pechamento organizacional” significa que, uma vez defini- das as caracteristicas da unidade do sistema vivo, sua integricla de depende de suas prdprias capacidades. Marurana sustenta que nossa “linha de fundo” consiste em manter nosso status, isto €, permanecer vives, Por isso, a adaptacao requer mudan- as estruturais na unidade dos seres vivos. Devido ao fato de rem estrutural e organizacionalmente fechados, os sistemas vivos 840 aut6nomos, no sentido de que sobrevivem, prospe- ram ou correm perigo segundo as leis de suas préprias ativi- dades. A organizagao do sistema vive € circular, auto-referente, recursiva, € sua organizagdo ¢ fechada e portanto autonoma. Se transportarmos. i$ NOGGes para o sistema do conheci- mento humano, entenderemos claramente a posicao de Guidano, quando ele fala da caracteristica essencial de consi- derar a habilidade auto-organizadora do sistema de conheci- mento humano como uma demarcacdo evolucionaria basica que, por meio da ascensao e maturagao na direcdo de habilidades oF rutura progressivamente um sentido cognitivas mais altas total de auto-identidade com os sentimentos inerentes de unicidade e continuidade histérica. A capacidade de auto-iden- tidacle estrutural ¢ estavel permite a autopercepgao continua € coerente diante da marcha para o futuro num ambiente de mudang¢as. Por essa razao, a manutencao da identidade de um. individuo chega a ser tio importante quanto a propria vida. Sem a individualidade ou identidade, serfamos incapaves de funcionar apropriadamente ¢ perderiamos, aa mesmo tempo, nosso sentido de realidade. A conservagao de um sentido de individualidade e unicidade pessoais através do ciclo da vida resulta da atividade autopoiética. Somos como somos devido 4s nossas histGrias de interagao com o mundo e com nossa historia pregressa, Mas Somos sempre no presente, estamos sempre nos preparando para perpetuar a nds mesmos. Isso significa que do ponto de vista da psicoterapia o pa- nte estard sempre limitado pela sua identidade. Em outras palavras, nfio pode haver mudancas para além de seu modo particular de dar significado as suas experiéncias. A mudanga terapéutica é a reestruturagao, no paciente, da maneira como 0 significado esta organizado. Este continua sempre o mesmo Muda-se a estrutura, mas no a organizacao. O multiverso — Se, como assinala Maturana, negamos a rea- lidade objetiva independente do observador e€, como ele pro- pds em sua “ontologia do observar”, reconhecemos que o ab- servador € um participante constitutive do que observa, a mu- danga que aqui se postula € evidentemente radical. Ela prevé a passagem de um Universo, quer dizer, de uma realidade objetiva univoca (gual para todos), para um Multiverso, no qual cada mundo, tal como construide por um determinado observador, € igualmente valido ¢ deve ser respeitado pelos outros. Consideremos, do ponto de vista da psicoterapia, a existén- cia dessas duas concepcdes da fenomenologia psicol6gica. Delas resultam duas visées distintas do que acontece no cotidiano das pessoas €, portanto, duas concepcdes diferentes sobre as trans- formagées que se processam nestas como resultado da terapia. Essa circunstancia implica dois modos diferentes de traba- lho psicoterapéutico. No primeiro, acreditar que existe um Uni- emos acesso a ele, coloca o terapeuta numa po- verso, € qu sigdo privilegiada: ele passa a ser o portador da verdade e acredita que pode transmiti-la ao paciente. Na outra posigio — a sugerida pelo Multiverso de Maturana —, 0 terapeuta nao se 66 vé como portador da verdade e reconhece que o mundo que o paciente constréi é 0 Gnico possivel para ele. Anogao de linguagem — ©utra contribuig¢io extraordind- ria de Maturana é a sua teoria da linguagem. Com efeito, para teGricos como Guidano nao existe na atualidade outa melhor e mais exaustiva. Para Maturana, a linguagem como fendmeno da vida per- tence a histéria evolutiva dos seres humanos. Os humanos sao os primeiros © tinicos animais (primatas, mais concretamente) que tém a peculiaridade de viver — num fluir constante, inin terrupto — uma dupla dimensdo simultinea. A primeira € a experiéncia imediata (as emocdes), que acontece a todos os animais € segundo a qual algo simplesmente ocorre. A segun- da, que se di apenas no primata humano, a explicagdo, que se processa na linguagem. 56 nesta, por exemplo, se pode admitir a exist€ncia de categorias como o bom e 6 mau, 0 justo. € o injusto, que permitem compreender o que acontece. A linguagem consiste na operagio recorrente do que Maturana denomina coordenacoes de coordenacgdes consensuais de conduta. De acordo com estas, cada palavra ou gesto nao esti relacionado com algo exterior a nés, € sim com nossas ocupagées ¢ com a coordenagao dessas atividades com os ou- tros. $40 precisamente essas agdes — & as emocdes que esto em sua base — que especificam ¢ dao as nossas palavras 0 seu significado particular. Por isso, no plano da experiéncia didria, nao se pode estabelecer a diferenca entre o que é uma ilusio e uma percepgaio: s6 podemos fazer isso por meio da linguagem. Assim, jé que s6 por meio da linguagem o ser humano pode & continuidade cia de vida © assimila explicar sua exper de sua prixis cotidiana, o compreender é inseparavel da expe- riéncia humana. Toda reordenagao racional cognitiva que se pode elaborar baseia-se em premissas ticitas, que sie propt cionadas pela experiéncia imediata. Maturana sustenta que todo sistema racional tem uma base emocional, Isso explica por que nao se pode convencer ninguém com argumentos légicos se nao se aceitar suas premissas @ priori. Do ponte de vista da psicoterapia, essa proposta € uma alternativa as abordagens racionalistas, que postulam que por meio da légica formal é possivel modificar as emogoes do paciente. Mas Maturana vai mais além e cunha 0 termo nguajar”, como qual denomina a relacao dinamica e funcional entre a experiéncia imediata ¢ a coordenagio de agdes consensuais 67 com os outros, Esclarece também que esse linguajar é constitui- do pela relacao entre as emogdes © a linguagem. Essa concep- Ao questiona o enfoque empirista clissico, que vé a lingua- gem como um simples meio de wansmissao de informagao de um individuo a outro. Mas essa postura é hoje tao dominante que nao se prevé que ela mude nem mesmo na proxima déca da. Considero que a proposta de Maturana — com seu significz do emocional e nao racional - € a teoria que melhor explica esses fendmenos. Em sua abordagem ontoldgica, o linguajar corresponde a uma expressao da temporalidade humana: tudo o que acontece acontece na linguagem, no aqui-e-agora. Na atualidade, essas idéias tém permitido o desenvolvimen- to do que se vem chamando de trama narrativa ou pensamento narrativo na construgao do cotidians das pessoas. Esse avanco sera sem dtivida fundamental para compreensio da experién- cia humana € portanto para a psicoterapia do futuro. A concep¢ao de cultura — Para Humberto Maturana, a experiéncia se proce: quer dizer que, se bem que do panto de Homo sapiens sapiens, nosso modo de viver — nossa condicao humana — acontece na maneira como nos relacionamos uns com. os outros e com 6 mundo, ¢ qué configuramos no nosso cotidiano por meio do conversar. nala que uma cultura é uma rede fechada de e que as mudancas culturais acontecem quando a no espaco relacional do conversar. Isso ista bioldgica somos Maturana a: conversagdes se produzem modificacdes nessas conversas. Segundo ele, alteragdes surgem, equilibram-se € se mantém no emocio- nar (nas emocdes) dos membros da comunidade. Dai resulta que o humano € cultural: aparece Como um modo de viver no conversar, num entrelagamento entre o linguajar e o emocio- nar. Isso significa que toda experiéncia humana se dé no mo- mento presente: nado admite programagoes anteriores, nem tampouco obedece a intengdes. Além disso, também no pro- cesso da evolucdo, seja este biolégico ou cultural, nao existe um caminho preestabelecido. O devir é uma deriva (uma mar- cha progressiva): © presente evolutivo humano ¢ © resultado de um processo que preserva uma mancira de viver, e nao apenas 0 que foi conseguido no processo de adapta¢ No campo da psicoterapia, as propostas da psicologia < hoje dizem que ae: de pensamentos, emocdes, consciéncia, s etc. A contribuigao de Matu oO. xperiéncia humana € construida ¢ composta en: sagdes, impulsos ana nos mostra que o fendmeno é 68 cultural, € que tanto © terapeuta quanto © paciente podem participar desse sistema. Tomemos 0 exemplo do marido em crise matrimonial, que vem ao terapeuta para que este The diga se € cle ou sua mulher 0 responsdvel pelos problemas que esto enfrentando e que, além disso, pede-lhe conselhos sobre se devem separar-se ou no. Segundo a perspectiva de Maturana, nao haveria resposta possivel nesses termos, porque a expe- riéncia emocional nao é predeterminada A biologia do amor — Maturana é o primeiro a buscar ex- plicago para o amor segundo a perspectiva da ciéncia. Em sua proposta, o amor nao € uma qualidade ou dom, mas um fend- meno cultural ¢ biolégico. Como tal, ele consiste nas condutas ou classes de condutas por meio das quais o outro surge como legitimo outro na proximidade da convivéncia, sem deixar de conservar a sua individualidade. Entende-se, entao, que a legitimidade do outro se constitu em condutas ¢ operagoes que respeitam e aceitam a sua ¢xi téncia tal como cla é, sem esforco ¢ como um fendmeno do conviver, Legitimidade do outro e respeito por cle sac doi modos de relagio congruentes © complementares que se im- plicam reciprocamente. © amor € um fendmeno biolégico pré- prio do Ambito relacional dos animais. Nos mamiferos, ele sur- ge como um aspecto cent da convivéncia, na intimidade da relagdo materno-infantil em total aceitacao corporal. Segundo Maturana, tornamo-nos doentes s¢ nosso modo de vida nega sistemati Maturana afirma que 6 processo terapéulico é sempre o mes- mo, seja qual for a forma de psicoterapia. A terapia acontece quando o terapeula consegue, mediante sua interagdo com 0 paciente, guid-lo, conduzi-lo inconscientemente ao abandono da neégacao sistematica de si mesmo ou do outro e recuperar a biologia do amor como 0 fio condutor de sua vida. is mente 0 amor. Conclusao — Essa mancira de conceber o ser humano, pro- posta por Maturana, pode trazer como conseqiiéncia uma alte- ragdo do modo de experienciar as pessoas. Tudo isso junto pode nos levar a dar maior importancia a afetividade e 4s emo- gGes € menos Enfase ficiéncia € aos lucros da tecnologia, tao apreciados pela modernidade, E-mail - cruiz@inteco.

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