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Umut reba Ce Co ALi A aaiicis! cimuo ese oil Hofalino feria _ NAOTEM Betq Hotel Pregrainaitle G HOT é uma pispo daderenyie Poor tee dolront THOT 72 eutbro de 1999 fragar: 3.090 ewplaee Isom bai ae ps s.00 ned Bas Pulsin Gap fovea Hosbaro oie i iin, Fimo Agua Geil Usiolon iimbasa face THGT babe Crista facet, lise et, on Ran Tags Ago, ea Bear Worcs, aa Novell Serb, Nor Alen Sha, Pun Bese, Teaurha Siete Compe, ers {Clabarosores: Clogs ‘eos Doni More, ara eee Sel Hern Masidteinare, Babes roy, Sate Conca, ‘Ween Conparela Froduga: Adevar Aske fii fogs, lace adie 5 Madore, no's da Cama de Oise, Senin dicwiuigns Paks hn Jeenaisie esponsér: daa Cons iho Core lores! mas, cn Cate Indice 1 Editorial A nogdéo do sagrade em Gregory Bateson Vincent Kenny 32> Civilizagées americanas: cinco séculos de desconhecimento Eduardo Notalino dos Santos 50 Hélderlin: a proximidade e o distancia do sagrado Dora Ferreira da Silva GO Introdugao & meditagdo cristé Lawrence Freemett 69 Submissao Suzete Carvaiho 76 De Freud a Bion pelos caminhos de Lao-Tzu Igndcio Gerber 99 Painel — Valores que ndo tém prego 109 Tempo de sonho, tempo de vida Beto Hoisel Epifonia: Estranha beleza do mar George Barcat Mio pablicumos maiesas reduGonitis pagas. Pemitida a reproduce, lands 4 orien. Os numerosarucados sevag venelides confomne 2 tim tabela de pregen: publlicada pela Editora Palas Auber, Periodicidade: ti caf por sao a us pevdalos em nome da Associagn ‘dos Hrasil, ie enderego abaiyn, A rexpamaliledade pelos los cae aos autores, Mainculs w? 2046, tepistis no DPCP tleral ola ni? 15Bl 12X73 Balas AA inti as de Depantamennw de Poli Associacéo Palos Athena do Brasil Rus Lednaae de Cara, 80 - Paraiso 4003-010 ~ Sav Paulo = SP Fovaes: (OxnT 1) 288.7356 - 283.0967 ¢ 257.2668 se: ((heq1 1) 27 AOL In up: rw paltsalhens ane St ee = = Editorial qui vocé encontrard artigos nascidos nos trés solos de onde a palavra retira sua forga. A imaginagio, a agao e o siléncio. Nossa esperanca — pois é dela que vivem os editores — € que esses textos motivem o leitor a cruzar por conta propria aquela ponte to antiga quanto perigosa, que liga as idéias a vida, seja para fazer algo por alguém, seja para simplesmente admirar um creptsculo ao lado de si mesmo. E preciso que assim aconteca. E necessario que os projetos € © cotidiano se entendam para qué possamos aquecer a beleza gelada des se poema de William Butler Yeats, chamado A Segunda Vinda: A todare a rodar no giro que se wlarga, O fatcdo ja néo pode ouvir 0 falcoviro. Desagrega-se tudo; 0 centro nao segura: Esta solta no munde a simples anarquia: Fsid Solta @ maré escura do sangue, e-em toda parte A ceriménia de inocéncia se afogou; Falta dos methores conviced, engreanto ox ptores Estdo cheios de ardor apaixonado, E necessirio. que © pessimismo intransigente ceda espaco. George Barcat ‘VINCENT KENNY A NOCAO DO cee SAGRADO EM ane GREGORY BATESON Psychology em Dublin, Irlondo. Conair oro O que ela nos pode dizer nizacianal, aplica sree sobre uma vida consirutiva? Sore faire orgenizacional. 1. A preocupagao e o sagrado - Na verdade, Gregory Bateson nao nos fala diretamente sobre o sagrado, 0 que alias é uma forma de indicar o que cle é: algo que esta além das rigdes Ficeis. O sagrado faz parte do indizivel da experién- humana e deve permanecer assim. Quando Bateson diz. cia nto podem se encontrar — que ha um ci que mente € consi fosso necessdrio entre as duas —, quer expressar que nossas tentativas de explicar a experiéncia humana sdo sempre ¢ ine- vitavelmente incompletas ¢ que ha mais na vida e na mente do que a consciéncia pode alcancar: Mas 0s pedacos e migalhas da mente que surgem na cons cigncia proporcionam sempre um quadro falso de sua totalida: de. © eariter sist¢mico da mente nunca € descrito, porque a amostragem € orientada pelo utilitarismo A conseiéncia jamais vé que a mente é como um ecossiste: ma — uma rede auto-regulavel de circuitos. Percebemos ape- nas arcos desses circuitos. A vulgaridade instintiva dos cien- listas consiste em confundir esses arcos com a verdade maior, isto é, pensar que, porque aquilo que é percebido pela cons- neia tem um dado carater, a totalidade da mente deve té-lo também, © ego, © id © 0 superego personificados por Freud, na ses verdade no © so. Cada um desses componentes ¢ construido apenas A imagem da conseiénei cientes. A cons nao se assemelha & pessoa total. A cons: ¢ incons: , embora possam s ciéncia isolada & necessariamente despersonificada. A totalidade do iceberg nao tem as caracteristicas que po- dem ser inferidas olhando para a parte dele que esta acima da linha d'igua. Com isso, quero dizer que a mente nao € como um iceberg. (Bateson, 1967) 1.1. Nossa responsabilidade pessoal diante do sa- grado — © modo como os seres humanos tém lidado com essa “aracteristica inevitavelmente autolimitante de sua existén- cia incluiu a evolucae das religises como formas de trabalhar essa separacao. Tudo isso leva ao reconhecimento da impos- sibilidade de superar a lacuna de nossa percepgao dividida, 0 que resulta na total delegacdio de mossas responsabilidades de vivé-ld a seitas ou classes de pessoas —os padres, os druidas, os gurus etc. Tal delegacio nao pode ser aprovada pelo construtivismo. Leiamos Bateson outra vez: ‘Ocorre que, mesmo antes da moderna tecnologia, algo te nha de ser feito a respeito da divisio inata entre a consciéneia eo resto da mente. A consciéncia deixada a sua propria sorte sempre armuina as rclacdes humanas. A consciéncia n’io-ajuda- da deve combinar a sabedoria da pomba com a inofensividade da serpente. Vou dizer-Thes o que era feito na Idade com essa divisao. igiilo — eis o que se fazia Pedra, para lidar E tao simples inventar para mostrar ao homem que a maior parte dele Ce, analogamente, a maior parte da sociedade ¢ do ecossistema que © rodeavam) era de natureza sistémica € imperceptivel sim. A religiio ent tudo o que se podia por sua consciéncia, os sonhos ¢ os transes, as intox »s humanos, 05 mitos de todas as Isso inchu 10, 8 rituais, os sacrifi Ss, as invocagées da morte, a arte, a pos ja, a mmisica © assim por diante. E evidente que a podiam di ou por que 0 resultados. pessoas daquela época mio diziam, nem endo. rer ou saber com clareza, 0 que estavam fa im. Além disso, com frequéncia ndo havia 1.2. A tarefa impossivel da humanidade — Para viven- ciar inteiramente a nossa humanidade, devemos resistir a tentagio de delegar a alguém ou a algo nossa responsabili- dade pessoal de viver a distincia entre nossas experiéne nossas tentativas reducionistas de explici-las com uma lingua- gem de objetivos conscicntes. No entanto, continuar a aceitar a responsabilidade por esse esforco impossivel € a marca de um esforgo ético. Eis o que Wittgenstein diz a esse respeit ise Estou propenso a acreditar que a tendéncia de todos os homens que tém tentado escrever ou falar sobre ética ou reli- gitio foi investir sobre os limites da linguagem. Psxas investidas contra as paredes de nossa jaula é perfeita e absolutamente sem esperanca. Na medida em que emerge do desejo de dizer algo sobre o significado iisico da vida, o absolutamente bom, ° Mas documenta uma tendéncia da mente humana, que pes- soalmente dicularizaria, (1929) olutamente precioso, a ética no pode ser uma ciéncia. © posso deixar de respeitar muito © que nao ti- Nessa citacaie podemos ver, por um lado, a questao central do construtivismo. Por outro, sabemos que qualquer significa do que construirmos permanecera como uma propriedade subjetiva nossa. Por isso, um significado jamais chega a descre- ver um estado real de coisas. De outra parte, porém, podemos e devemos transcender o conhecimento que inventamos, dos seguintes modos: a nossas idéias favorita: * pondo a pro ; + fazendo esforcos para sair dos limites da linguagem; * questionando nossos limites para agir ¢ raciocinar; * escolhendo penetrar nos dominios nos quais nosso entendimento fraqueja © desejo de fazer esse esforco impossivel € um sizioma da presenca do sagrado: ¢ 0 esforco para ir além do aprisiona- mento da linguagem e alcancar o incognoscivel, o indizivel iéncia maior. sentido de uma cons! 1.3. Responsabilidade versus dependéncia — George Kelly insistiu em nossa capacidade de aceitar a responsabili- dade total pelos dilemas pessoais, Fla retine as melhores ca- racteristicas da espécie humana. Eo contrario da fuga a res- ponsabilidade de falar sobre “circunstancias além do nosso controle” = frase qué ouvimos muito hoje em dia. Esse autor se expressa assim: Mesmo Deus a mais poderosa de todas as circunstincias — € hoje considerade morto. Tal afirmativa nao é obviamente ateista, nem mesmo agnéstica. De um modo geral, ela admite a cria- cao de circunstancias endo nega a sua impertincia histéri embora num sentido teolégico peculiar seja uma devastadora declaracao de independéncia por parte dos homens prepara- dos para aceitar a responsabilidade por seus de reconhecer o poder direcionador de qu: cias, mesmo a maior delas — o proprio Deus. (Kelly, 1969) ‘os, e que deixam isquer circunstin- A histéria do Jardim do Eden, tal como lida por Kelly, diz que Deus jogou fora a sua inven¢io humana, quando os seres humanos optaram por conhecer em vez de obedecer. Bateson a interpreta dizendo que foram os homens que expulsaram Deus desse jardim, ao exaltar o utilitarismo consciente em pre- juizo da consciéncia As duas leituras podem ser usadas para dizer-nos algo sobre a responsabilidade humana. Na primeira, porque Deus es- ta moro € somos os Uinicos responsiveis pelo modo como construimos 6 mundo. Na segunda, porque € presuncoso jo- gar fora © bebé divino junto com a agua do banho ecoldgico © sist@mico, reduzindo assim a percepeao humana A me- ra consciéncia utilitéria — e aqui de novo somos responsé pela escolha 1 sist@mica. veis Dizende de outra maneira, somos tesponsaveis pelos mo- dos como construimos o mundo (e esse 6 6 Nosso empreen- dimento), ¢ também pelas formas como consiruimos @ nos mesmos Como seres humanos. E nossa tarefa tornarmo-nos humanos-com-preocupagao-total. humanos-com-consciéncia utilitéria. Nao temos nenhuma “natureza™: temos apenas a natureza que geramos em nossas relacGes sociais. No contexto dessas leituras, podemos dizer que a aborda- gem construtivista vé a religido como uma convencao social utilizada pelas pessoas para fentar voltar ao Eden. 14, tudo 0. que € preciso é obedecer ao lider. Ao prestar essa obediénci: acabamos nao conhecendo 6 mundo de forma responsavel. E um caminho que nos afasta do sagrado, porque se bascia na submersdo da percep¢ao pessoal em regras ideolégicas. © principal modo de “nao saber” € seguir cegamente regras inventadas por outros. Como diz Kelly, em vez de continuar sendo As regras so bastante Uteis como corrimios para a mo- ralidade miope, € isso naturalmente inclui a maioria de nés. Mas... 0 homem que voluntariamente confia em regras € leis, que em sev nome distinguem o bem ¢ o mal, esti apenas querende evitar a antevisdo daquilo em que, no fim, 0 bem e © mal se tornariio. No futuro, nfo sera muito confortivel para ele verificar que confundiu as coisas, lembrar-se de que fe- chou os olhos ¢ conformou-se com sis regras. (Kelly, 1969) Os comentarios acima realcam © valor construtivista do “ho- mem que fez a si mesmo” ou o “pessoa autoconstruida” ¢€ inserida em uma determinada rede de conversacdes. Uma das muitas responsabilidades que parecemos relutar em assumir € a de como inventamos os individuos em nossa sociedade — de como geramos os componentes humanos de uma sociedade cada vez mais desumana. 2. A limitada conveniéncia da ficcao do “self * indivi- dual” — © “self individual” é uma ficcao ocidental convenien- te, Nao existe fora das tradicdes do Ocidente. No mundo aci- dental, os homens sao vistos como entidades inteiramente se- paradas. Mas cada pessoa sabe, depois de refletir um pouco, que esse simplesmente nao é o caso: para existir, todos depen- dem de redes especificas de relacdes. 6 Acho que foi Harry Stack Sullivan quem criticou a Igreja Catélica, por querer passar para as pessoas a falsa idéia de que elas tinham “livre arbitrio” para fazer o que quisessem. Quando essas pessoas deixam de exercer esse arbitrio, deixam ce “fazer ntem angustiadas por causa disso, a mes- ma Igreja Ihes vende “absolvicao” por seu sentimento de cul- pa. E um pouco como as atuais praticas comerciais, que im- poem as pessoas a crenca de que elas precisam de algum objeto de consumo (ou precisam ser algo que nao sao), & depois oferecem justamente o produto que removerd o sentimento de inferioridade por nao possuir o produto certo. Nao deve ser surpresa que a posse eventual do novo carro, TY, casa ete. pouco faz para resolver o sentimento de inade- quacao anteriormente instilade, A maquina publicidade-con- umidor gera as mesmas ansiedades, para as quais prope suas ‘solucGes” comerciais. Sob esse ponto de vista lembro também a psicandlise, que é tida por alguns como a pr6pria doenca que alega curar. David Smail assinala que: a coisa certa” es A pessoa nao € uma entidade cireunscrita © separada do mundo em que existe, mas sim uma interagio corpo-mundo que engloba ambos. As pessous néio podem controlar suas creneas ¢ atitudes porque elas sdo suas crencas ¢ atitudes. Estas, bem como os sistemas nao-verbais de significado e as metiforas — que ordenam a experiéncia —, sao constituintes de nossa condigio pessoal. Nao existe uma pessoa “adicional”, que possa de algum mado sair de seu interior, ajusté-lo a partir de fora ¢ depois voltar a ele. © que parece ser o nossa “interior” € o que os psicélogos freqiientemente chamam de self, “espaco interno” etc. Mas ele ntido material, nem no imaterial. Na yerdade nao existe no s € uma forma de nos referirmos & nossa autoconsciéncia. O que faz diferenga para o nosso modo de ser, 0 que nos modi- fica ou permite que mudemos, nao é a manipulacdo voluntatia de recursos internos, porque nao existe tal “interior”, O que faz. essa diferenca é a influéncia de poderes ¢ forcas externas ou © acesso a eles. Nem o seinem o mundo podem ser in- o do poder, (Smail, 1993, fluenciados por nada sena pp. 82-83) o exerc Agora ilustremos o tema do “self ficcional” com algumas citagdes da perspectiva budista: NI © budismo ensina que nao existe nenhuma entidade est: vel tal come o self O self é como o presente. Como © presente se dissolve no passado e o futuro se presentifica, num dado momento nao existe nenhuma entidade fixa que possa ser identificada como “presente”. A atividade de criagio do pre- sente é incessante. Podemos entender o selfda mesma manci- ra. Nao se trata de algo constante. Ele se origina da atividade limitante do absoluto, Apegar-se an selfé na verdade vel, porque ele nao tem uma natureza fixa. Portanto, tentar npossi satisfazer os seus desejos é também impossivel. Uma cultura baseada em proporcionar essa satisfago no pode ser bem sucedida. O que € necessirio é a sabedoria de compreender o selfalém dos apegos, ¢ criar uma cultura que tenha essa sabe- doria por base. (Roshi, 1983) B também: A maioria de nossas terapias € orientacl por uma teoria da personalidade. Além disso, a maioria de nés em geral acha que devemos saber quem somos, Afinal, parece que os outros sabendo quem sio, Gantudo, se olhamos pars andam por dentro de nds mesmos € no encontramos nada em que pos- amos com medo. Nao nos damos conta realmente sabe quem €. Nao percebemos samos nos agarrar, fi de que ningués que essa € a natureza do nosso ser. Nao entendemos que, se afinal temos um verdadeiro self, cle deve estar nas profundezas do desconhecimento, com © qual nos defrontamos quando se podemos “pen- durar-nos” na borda desse desconhecimento, podemos tam- bém descobrir como deixar a nds proprios em paz, sem a obrigagao de ser algo. (Welwood, 1983) comecamos 4 olhar para 6 nosso interior. E, Neste ponto, quero sublinhar a frase que dix que a verdade da individualidade repousa “nas profundezas de desconheci- mento, com o qual nos defrontamos quando comecamos a olhar para © nosso interior’. Trata-se da propria incognos- cibilidade, da luta impossivel com os limites da linguagem, que gera o sentimento constante de uma individualidade étic. Mais uma vez, temos © forte sentimento de que “ser alguém em particular” é uma nogio perigosa, cheia de oportunidades para experienciar emocdes autodestrutivas. E sera que temas ou- tras opcdes, a nfo ser empurmar esse “alguém” para além da borda de sua suposta posicio em um espaco humano de conversacoes? a 2.1. O self é aquilo que surge quando um corpo huma- no ocupa uma posi¢ao nodal numa rede fechada de con- versagées — O se/f individual nao tem existéncia independente. O que ha sio muitos deles, diluidos em uma longa rede de historias culturais ¢ interpessoais. Verden-Zéller observa que: Um seifé uma dimensao social, que adquire existéncia por meio de um determinade corpo, isto é, de uma determinada corporeidade. E como um n6 onde se encontram as conver- sagées de uma comunidade humana de aceitacao mutua, A crianga, portanto, deve adquirir sua auto-identidade a partir de um modo particular de ser em sua corporcidade. E faz isso vivendo em uma comunidade humana de aceitagao miitus Esse processo normalmente ocorre quando a erianea cres- ce em interacdes corporais estreit aS Com Sua mae ¢ também com outras crianeas ¢ adulios, num proces todos cles, de modo natural ¢ sem intencao ou esforco, parti- cipam para que cla se desenvolva com dons naturais, percep- cho corporal, autoconsciéncia ¢ consciéncia social. Na verda- de, estamos tio acostumados & normalidade desse desenvol- vimento infantil que nao percebemos o ambito das relacdes humanas ne qual ele ocorre como processo natural. Quando 0 por meio do qual tal nao acontece, no sabemos 6 que falhou nem o que fazer, € entio recorremos ao controle. Além disso, quande tentamos corrigir uma insuficiéncia biisica de relacdes humanas em u crianca por meio do controle, o que geralmente obtemos é mais insuficién 1 em relagio ao presente ¢ com os olhos postos no futuro, negamos essa criance. ni , Porque, em nossa cegu De um modo geral, somos cegos para esse dominio contes tualizante de relagées humanas comple, ao do sentimento infantil de: 8, no qual se dé evolu spaco de | ee conversacao 4 v Corpo ee NG de comunicago 9 Em outras palavras, somos unanimes em perceber a crianca como “uma entidade separada” da estrutura familiar. Tende- mos a ser cegos diante de sua existéncia dentro de um con- texto de coordenagdes interpessoais de emogdes. Quando a crianga desenvolve problemas emocionais, continuamos alheios ao fato de que estes nao podem existir dentro dela: s6 podem ocorter como uma maneira sua de expressar 0 com- plexo contexto de relacdes no qual ela foi colocada, por meio de seu corpo. Desse modo os terapeutas tentam curar 0 “pro- blema da crianga”, embora © Unico problema dela seja o de ter sido inserida em uma rede insalubre de relacionamentos. £ desnece: forcos mal disfarcados de fazer com que a crianga caiba nesse stema insalubre — tomando por certo que ele funciona. No te um siste- tarde, se a Ario dizer que essas tentativas de “cura” sao es- entanto, mesmo quando alguém percebe que exis ma, em geral ele ndo é visto. Mais cedo ou mais crianca tiver sorte, alguém percebera que existe uma rede fami- liar, ¢ que ela nem sempre é um meio maravilhoso para apoiar uma crianca em crescimento. Nesse ponto, a crianga nao pode- Hi ser vista como se fosse independente desse complexo con- texto de inter-relagdes humanas, A auséncia de percepcao da crianca em seu contexto geralmente leva a mais fracassos, por- que ela é negada; tenta-se nega-la pela manipulagao dos resul- tados, procurando fazer com que ela se adapte. Segundo Maturana, nossas acGes sao determinadas por nos- sa estrutura. Num dado momento, os ¢stados de nossa cor- poreidade sao o resultado da historia de nossa vivéncia daquele momento. Isso significa que s6 podemos agir dentro do contexto das possibilidades oferecidas ou implicadas por nossas estruturas corporais. is dependem da histéria das interagdes estruturais que vivemos com os Outros, AO Crescer, a crianga se torna o ser humano resultante da histéria de suas interagdes com sua mae € outras pessoas e, principalmente, do modo como seu corpo. interacdes. Tudo isso s transformado por meio dessas suas ignifica que a histéria de nossas interagées — especialmente com nossas Maes — gera, com o tempo, a gama de agGes das quais podemos participar. Nossa estrutura corpo- ral contém, em estado latente, atividades vidveis. O corpo con- tém a gama das interagdes que podemos exercer. Essa gama determina como e para @ qué seremos orient: dos em nossa vida, momento a momento. Ela nos diz o que devemos esperar ¢ como interagir com o que vier, quando 10 chegar a hora. ‘Tornamo-nos cegos para todos os outros modes de interagao. Assim, a partir de nossas experiéncias com nossas: mies, somos especificamente orientados para determinados modos de relacionamento conosco ¢ com os outros. Estes tor- scimento e experiéncia. nam-se os limites do nosso cre 2.2. A pretensa individualidade — © que foi dito acima tora claro que o “selfindividual” é 0 que vive sua individuali- dade apenas dentro de uma matriz de atribuigdes compartilha- das, garantidas por suas coordenacoes de emogdes. Esse self € continuamente confrontado com a necessidade de imaginar que é “independente” ¢ de comportar-se como se isso fosse verdadeiro. Mas ao mesmo tempo ele se submete, pois € um componente décil da rede que o faz existir como um individuo. © modo como 0 self é configurado nessa rede obs- curece a presenga do sagrado. Em vez de se preparar para estar em contato com o sagrado, aS pessoas sio continuamente convidadas a resolver a impo: sibilidade da identidade individual. Para tanto, diluem o seu self na seguranca de algumas formas religiosas ou pseudo- religiosas, ou nas “subculturas” comuns na adolescéncia, nas quais 0 uso de roupas com a eliqueta “certa” é 0 poder distin- tivo supremo. Como a Italia hoje tem um dos menores indices de natalida- de do mundo, sua cultura esti mudando rapidamente para uma média de menos de um filho por familia. Na verdade, a propria nogao de “familia” esta se tornando problematica, porque ago- ra hd poucas pessoas disponiveis para assumir as diferentes pe im, perde-se com facilidade o sentimento de ciclo de vida em familia. Em outros paises ainda € possivel viver nesse ciclo, no qual num dado momento ha pessoas “populando” os diferentes estigios da vida. Assim, vemos as criangas com seus irmaos ¢ irmas mais velhos ¢ com seus pais, que por sua vez podem ser vistos Com seus préprios pais, na familia ampliada. De- pois vem a aposentadoria e finalmente as pessoas se aproxi- mam do término de seus ciclos vitais. Tudo isso junto compde um ciclo sistémico. A importancia desse sistema era, naturalmente, a vida em comum numa ecologia familiar evolutiva, na qual havia sem- pre alguém para ajudar positivamente na descoberta das expe- riéncias do proximo estagio do desenvolvimento humano. A perda dessa forma de ecologia teve sérias implicacées para os des no espaco familiar de conversacées. # td seres humanos e para 0 seu desenvolvimento ao longo da vida. Em outras palavras, existe hoje um profundo sentimento de perda das compreensdes vividas e geradas pelo modelo familiar. 2.2.1. Os si-mesmos destrutivos — Ao comentar 2 escala- da do consumismo na Inglaterra, David Smail escreve: © ciclo de vida de uma pessoa toma-se, cada vez mais pela significa marcado pelas implicagdes do mercado do qui ho social € espiritual de seus eventos. Do berco ao estigios da vida tiram seu significado mais do tipico modelo aixto, os de consumista do que daquilo que Ivan lich chamou de “convivialidade”. Do mesmo modo que 0 ciclo anual ¢ marcado por uma sé- ios, férias, Natal ete: rie de celebragdcs © consumo = anive: las tende a ser cada v demarcado pelas orgias de gastos do que por si como tilos sociais de passagem. A preocupacio infantil com os so. No entanto, quando as crian. —o curso de nossas V1 swramente significacao brinquedos € um exemplo diss ar com os adultos ao 5 1 u redor, diferente aos brinquedos. ¢as tém oportunidade de f maioria delas € razoavelmente Contudo, num mundo em que os prdprios adultos es > comprometidos com a visio mercantil, as criancas t¢m menos oportunidades de socializagio do que de aprendizagem das ames do consumisme, em seu universo de brinquedos espe cialmente preparados. A partir do momento em que seus olhos podem focalizar algo, elas nao apenas sio instruidas sobre a aquisicae ¢ a ripida obsolescéncia dos bens de consumo, como de-conta. Este também sio inseridas em um mundo de f oferece oportunidades de mercado virtualmente ilimitadas, ¢ tende aa ‘| com as realidades da existéncia social. (1993, p. 118) fasti-las de qualquer ligacao comercialmente indese Um forte sintoma dessa perda de senso do ciclo de vida familiar € a nossa incapacidade de estar com as criancas: Estamos sempre fora, no trabalho; ou muito ocupados; ou demasiada- mente estressados € cansados; ou entediados demais; ¢ assim por diante. Nos ultimos anos, especialmente nos EUA, ouvi- mos falar de pais que ficam com seus filhos em “tempo quali- tativo”. Isso supostamente com as criangas, se durante o tempo que passarmos com elas estivermos “realmente presentes”. No texto acima, falamos so- bre a importancia de estar com nossos filhos no presente. ignifica que correto nao ficar muito Além de se tratar de uma desculpa muito fragil, a nogao de “tempo qualitative” é¢ também a descrigio de um cendrio mais inverossimil: as pessoas estio lo mergulhadas na atividade frenética da sociedade de consumo que se tornaram obrigadas a produzir bens para essa sociedade. A situacao chegou a tal ponto que é bastante improvavel que elas possam simples- mente “desligar-se”, isto é, parar com o “modo de producio”, 36 porque esta na hora de ir para casa ¢ ficar com os filhos. O esforgo para gerar um “tempo. qualitative” de relaciona- mento com os filhos produz um espaco superprogramado, que tem de preencher critérios de “qualidade”. Talvez a curto prazo. a de consultores, para que estes os vejamos esses pais em bus enquadrem num “padrio de qualidade” em relacao ao alto nivel de “atencao qualitativa” que devem dar aos seus filhos — no pouco tempo que passam com eles. E Gbvio que aqui a intengao consciente é “fazer hor tras”, & que esses pais devem estar concentrados na producio. do tipo certo de coisa —a qualidade. Num contexto como esse, nao vejo muito espaco para relagGes espontaneas de interacho. S ex 2.3. Fingir que as pessoas so “coisas” — Um corolirio da atitude de ver uma pessoa como se ela fosse uma entidade separada é vera si proprio € aos outros como “coisas”, em vex de processos envolvidos em relacionamentos continuos. Para Kelly, uma pessoa € uma forma de processo. Ver a propria corporeidade como um “objeto” facilita a manipulagie do cor- po e dos outres como corpas. Os corpos se tornam entao coi- Sas para mover, possuir, desfrutar, ajustar, descartar, permutar, abusar, ignorar, explorar, controlar e assim por diante. Tudo leva com freqiiéncia & automanipulagao, bem como A mani- pulagio dos outros. Uma das formas mais crescentes de manipulacao € a enor- me popularidade da cirurgia plastica, que visa esculpir em cor pos insatisfatérios formas mais desejaveis. Para tanto tira is pedacos aqui ¢ ali, ¢ recheiam-se com eles pontos estratégicos , que estimulam suas esposas do corpo. Maridos manipuladore “nao-perfeitas” a manipular a si proprias pelas plasticas, frequentemente buscam um “modelo mais novo” do que o “antigo”. E a: eé ponto de vista, um fracasso manipulative, mesmo quando parece ser um sucesso do ponto de vista material Kelly ilustra o problema da manipulacao ao descrever a apa- rente eficdcia dessa abordagem, que Bateson condenou como im essa cirurgia €, sob e: 13 “propésito consciente”. Fla é capaz de disfarcar os problemas humanos, ocultando-os debaixo de sua superficie brilhante, pomposa e vulgar: Dito de um modo simples, o determinismo cientifico é a crenga de que um acontecimento deve levar a outro. Ponha 0 seu dedo num evento ¢ estara.a caminho de predizer e contro- untos humanos, lar 0 que se segue. Quando aplicada aos 2 significa que pracuramos ver quais antecedentes 810 4rios € suficientes para fazé-los previsiveis. Quase nao preciso assinalar que esse € uma abordagem estritamente maniprladora das relacoes humanas, essa idé ne Nada nos autoriza a tentar entender uma crian¢a com 0 pressuposto de que todas as vezes que lhe dermos um doce ela far exatamente o que imaginamos. Se cada vez que com- pra algo para sua esposa ela 0 acaricia ¢ Ihe prepara uma ceia extra, 0 que mais voce poderia querer saber a respeito dela? Se cada vez que faz um empréstimo a um pais da América Latina ele vota a seu favor nas Nacoes Unidas, quem poderi dizer que voeé nao entende os latino-americanos? Bis 0 que geral- mente funciona’ Mas sera que funciona bem? Amitide ouvimos falar de ho- mens que parecem lidar adequadamente com seus emprega- dos, mas queixam-se de que nao sio realmente queridos em casa. Tudo © que suas familias esperam deles é apoio financei- 10, Seus filhos esperam doces, ¢ concordam entre si que tudo © que precisam fazer para agradar aos velhotes € evitar cruzar com eles. sao. Descobriram que tudo o que tém a fazer € preparar suas refeigdes favoritas € acariciar is Mucas Com as pontas dos dedos, enquanto pensam em alguma hi Ladies Home Journal. uas esposas esperam presentes em vez de compreen- sus t6ria romantica do Enquanto toda essa psicologia cientificamente valida € pra- ticada em casa, possivelmente marides ¢ taram psicoterapeutas por algum tempo, e as criangas prova- yelmente foram postas em alguma boa escola, escolhida por sposas jf freqiien- uma equipe de consultores. (Kelly) A alternativa de Kelly para toda essa manipulacda € com- preender nao apenas © comportamento das outros, mas tam- bém os canstrutos: pessoais que os incitam a pd-los em pratica como as melhores opgdes disponiveis. Isso significa entender os construtos dos outros, € nao apenas interpretar e categorizar 14 suas agoes. E esse esforco para dar sentido aos modos como ‘os outros dao sentido as suas vidas que esta no coragao da psico- logia construtivista © mundo de hoje desenvolveu, num nivel extremamente perigoso, a indtistria do corpo humana como um objeto de desejo a ser comprado e vendido. E comum ver a facilidade com que os jovens se matam = na escola, na vizinhanca e assim por diante. Na Itélia, estamos acostumados a ver noticias de recém-nascidos descartados em latas de lixo, ou simplesmente jogades em becos, © ano de 1997 testemunhou a descoberta de circulos de peddfilos na Europa, com conexées em todo o mundo, Viu também o trifico, do Oriente para a Europa e os EUA, de crianeas vendidas para serem escravizadas, abusadas, torturadas ¢ finalmente mortas, Também sabemos do uso de criancas como fonte de 6rgaos, a serem vendidos no mercado negro médico para transplantes cinirgicos. Em agosto tltimo, os jornais italianos publicaram a fotogra- fia de uma cena de praia, perto de Trieste, no norte do. pais Nela aparecem banhistas nas poses costumeiras: tomando sol deitados na arcia, passando bronzeador nos corpos aquecidos, fazendo lanches de frutas ou sanduiches, bebendo agua, mer- gulhando ¢ assim por diante. Tudo muito tipico de uma praia no verao. Havia, porém, um detalhe que fez dessa fotografia noticia — um cadaver jazia na areia. Era o corpo de um homem afogado, trazido ha pouco pelos salva-vidas. Nada disso aba- lou © prazer ¢ a normalidade com que as pessoas desfrutavam a praia, 4 poucos centimetros do morte — como se ele nada fosse, ou como se fosse um mero objeto inerte. Os jornais us fato para denunciar a total auséncia “sentimentos humanos” ou de “decéncia” entre os banhis- las, que nao mostraram nenhum interesse na pessoa morta nem revelaram quaisquer sinais de restringir seu proprio prazer. O que isso pode significar? Que os valores sociais da vida huma- na (a vida dos outros, é claro, nao a minha!) se reduziram apenas aos que podem ser manipulados em nosso proprio in- teresse? Que a vida humana em si ndio tem nenhum valor? Que €stamos tio acostumados a ver os outros como objctos para nossa prdpria disponibilidade, que acabamos perdendo de vis fa o que antes era uma empatia normal, ou um interesse por eles € por seu estado? Que jf nae temos a decéncia de suspen- der momentaneamente nossa auto-indulgéncia até que o cad4- ver seja removido da praia? Que perdemos uma forma funda- mental de respeito? de ‘Testemunhei a mesma manifestacao de indiferenca na in- dia, em Varanasi, nas margens do rio onde a madeira é empilhada em volta dos cadaveres, para cremi-los e depe irar as cin- zas a dgua. As pessoas perambulam distraidamente por esse lugar. Assistem aos efeitos das chamas sobre os corpos, @ medi- da que elas se tornam cada vez mais altas € os sacerdotes ati- ¢am o fogo para manté-lo eficaz, ou empurram cabegas, bragos ou outras partes dos cadaveres, para fazé-los voltar 4s chamas € ter certeza de que serio queimados. Esses observadores, ¢ traidos, podem estar saboreando um cone de sorvete ou fu- mando um cigarro, enquante assistem a0 “show”. Assim esses italianos, bem como os indianos, viviam a sua total aceitacao da vida ¢ da morte. Estes Ultimos, talvez por saber que os mortos tiveram muita sorte, pelo privilégio de suas cinzas serem atiradas ao rio sagrado. Quanto aos banhis- las, sera que estavam tao concentrados em seus préprios praze- res e em fazer valer seu dinheiro, que simplesmente se tornarani incapazes de ligar o fato de um cadaver na praia a algo util? Enquanto considerarmos as pessoas coisas, ou corpos inter- cambiando serv conversagio para a aceitagao © © apoio mutuo, as coisas mudario. Ou mudarao para pior. icos, € nto como seres existentes em redes de 3. O cultivo dos amigos — A tentativa de escapar aos dlile- mas do individualismo pode hoje ser vista em um miriade de diferentes cultos, movimentos, sociedades religiosas etc. Esses grupos existem para trata de uma forma muito semelhante. Em sintese, o lider do culto assume toca a respon- sabilidade de dizer aos seguidores — ¢ com grandes detalhes tudo o que eles tém de fazer para continuar a ser aceitos como membros. © que se requer € submissao as ordens do lider, € isso pode ser verificado em muitas e diferentes atividades hu- manas, desde a politica e 0 terrorismo até os cultos secretos. A pessoa deve submergir sua presumivel individualidade até o ponto de tornar-se um simples ntimero na rede do culto, reli- giao, movimento politico etc. seus membri 3.1. Submersao: onde nada é sagrado — O que vemos, portanto, é que as possibilidades de contato com o sagrado se tornam cada vez menore la que tentamos estratégias para evitar os dilemas da falsa presuncao do self individual, Essas estratégias se distribuem em trés dominios da experién- humana: 16 © ter de sustentar uma determinada posicto na matriz de relacionamentos, para poder existir como membro da rede de conversacdes; * ter de viver dentro dos “limites de crengas € comandos dos grupos; * ter de reprimir a curiosidade natural a respeito do que esta acontecendo, Nao questionar, por exemplo, 0 lider e as regras, mas sim obedecer, mesmo quando se tem cons- ciéncia de que algo esti muito errado. 0” impostos pelas Essas trés condigdes asseguram a submersio da “mente”, do “espirito” e do corpo da pessoa sob o peso das regras obs- curantistas do lider. Nessas condigdes, nio ha esperancas de que nos tomemos conscientes do sagrado. 3.2, Condig6es de emergéncia — Dessa maneira, supo- nhamos que seja possivel resistir as tentagOes de escapar aos dilemas socialmente impostos da “individualidade”. Nesse ca- so, teremos de encontrar o viver total na corporeidade de um “self individual”, o que é, ao mesmo tempo, uma menti- ra. Aqui, devemos controntar duas condicdes principais de nos- sa experiéncia: @) em primeiro lugar, a condicio de sentir que autodefinicio depende dos contrastes alienantes com os outros. Mesmo quan- do criancas sentimas isso de modo negative, quando nos ve- mos pouco diférenciados de nossos irmaos, irmas, primos € amigos, por um pai zangado ou desapontado. “Por que vocé no se parece mais com sua irma?", gritam eles, furiosos. Entio compreendemos que somos diferentes de nossa irma de uma forma que nos torna menos desejaveis, menos aceitaveis. Sen- timos a enorme lacuna que existe entre “eu” ¢ “minha irma”. Nao apenas é impossivel fechd-la, mas também verificamos que nossa propria identidade depende de sua manutencio. Qualquer esforco de nossa parte para fazer com que desapa- reca essa diferenca apenas piorara as coisas. Somos acusados de “querer ser diferente/melhor”. Nossa irma é “realmente boa” estamos apenas “querendo ser bons”. E claro que isso nao dura muito; b) em segundo lugar, somos continuamente forgados a desempenhar uma tarefa impossivel: tentar equilibrar 0 investi mento que fayemos ao procurar “sentir-nos bem” com o de tentar “mostrar pertinéncia” ao grupo de que dependemos para 7 existir, Devemos lutar continuamente para agradar aos outros (por exemplo, ao chefe, no wabalho por medo de perder o emprego) e, a0 mesmo tempo, tentar encontrar um significado pessoal para o que fazemos. Essa situacao muitas vezes se re- vela impossivel, porque constatamos que temos de fazer coisas espantosas para “agradar” aos outros. Quanto mais desequili- brada a proporgio sefffoutro, mais nossas vidas sao terriveis pesadelos ou, na melhor das hipsteses, terrivelmente tediosas. E mais insalubremente as vivemos. 3.3. Condigdes de fusdo — As condicdes pelas quais pode- mos abordar o sagrado como experiéncia de fusio com o mundo siio, desde os primeiros momentos, estabelecidas na relacho corporal mae-filho. Verden-Zoller faz os seguintes comentarios a respeito da capacidade humana para brincar: © bebé humano encontra a mae nas brincadeiras, antes de ccomecar a falar. A mie humana, contudo, pode encontrar 0 bebé na nio-brincadeira, porque jf esta na linguagem quando s que constituirao o seu filho. Se ela comecam as conversacd encontra o filho na brincadeira, isto €, em uma relacao biolégi- ca congruente de aceitag4o total de sua corporeidade, a crian- ¢a € vista como tal € sua biologia € confirmada, no fluxo do crescimento corporal € da transformagao, em um bebé huma- no nas interacoes humanas, Se a mae humana nio brinca com nga, S¢ja por causa de suas expectativas, desejos, espe- rancas ou aspiracdes, ou se seus olhares ou agdes nao se en- ada ou nao confirmada, ac contram, a biologia da crianga € ne} no fluxo de seu crescimento corporal ¢ transformag3o como um bebé humano em interacoes humana: entre g bebé ¢ a mae se torna im surge uma erian¢a incapacitada em vez de Se o desencontro: istematico, o crescimento dele € reduzido, € a uma normal. (p. 18) Quando a mae encontra © bebé na brincadeira — em “uma relagdo bioldégica de total aceitagao de sua corporeidade” — entio a crianea é vista como tal. Isso significa que ela € con- firmada, admitida, reconhecida na integridade e na justeza de sua biologia, desenvolvimento e crescimento, como uma pes- soa humana, 4, Abertura para o sagrado e auto-aceitacao — 4 abertu- ra para qualquer experiencia positiva de fusio depende em 18 parte de nosso senso de aceitagio. Com isso, quero expressar nossa aptidio para accitar o mundo como ele €, e ao mesmo lagdo de nds mesmos tempo nossa capacidade de sentir a ac pelo mundo, tal como somos. As possibilidades de nos mantermos abertos a experiéncia do sagrado dependem, em parte, dos modos de ser que nos foram proporcionados na relagao pré-verbal com nossa mac quando criangas. Nossa capacidade de abertura para os outros, e de aceité-los como eles sao, depende de nossa habilidade de auto-aceitaeao, que por sua vez depende de nossa relagdo ini- cial cam nossos pais. A relagdo corporal entre a crianga e a i¢ € uma oportunidade original para estar no sagrado. Verden-ZGller continua a explicar: A aceitagio mitua nao pode ocorrer como uma forma es pontinea € continuada de vida com © outro se mio houver auto-aceitagao. A auto-aceitagio no pode surgir como uma da crianea, na relacao mae-filho, se caracteristica da ontogeni esta nao fluir em uma aceitacie corporal total © mutua, vin- culada ds interacées corporais hidicas, (A aceitagio muitua mae-crianga nao pode ocorrer quando amie vé o bebé como um futuro adulto, ou quando vive suas interagdes com ele como se fossem um processo educacional Ser aceito é ser visto na interagdo. Nao ser visto em uma interagao € ser negado. O modo como interagimos uns com os outros € uma qu especificam a todo instante o dominio de agdes nos quais nos encontramos. Em outras palavras, so nossas emo¢oes que . nde o que fazemos em termos de tao de emogdes, porque nossas emogdes especificam nossas age movimentos ou qualquer espécie de operacées corporais, © desenvolvimento de uma crianea é bioldgico, na medida em que um ser social tequer © contato recorre ente do corpo da mae em total accitaclo no presente. Mas uma mae nao pode encontrar seu filho no contato corporal de completa aceitacao se ela estiver, por causa de sua atitude produtivista, orientada para as cons para o seu filho real no momento presente. qjii@ncias de suas interagdes com a crianga, endo Assim, a aceitagao mutua depende da existéncia da auto- aceitagdo, que por sua vez depende da espontaneidade de re- lagio corporal mae-filho, tal como classicamente manifestada no brincar. Tudo depende da interago espontinea da mae no agora com seu filho. Equivale a evitar o pensamento aqui-e 19 orientado para a produtividade — seja em relacto ao passado, ao futuro ou a ambos. Dessa maneira, a aceitacho é definida como 6 tipo de reagao espontinea na qual uma pessoa ao ser visto em uma relacaio é ser negado. € 4.1. Nao se pode “pilotar” o “self correte” — Ja vimos como a falta de aceitagio do se/f se manifesta na automa- nipulagio que leva a cirurgia plastica — a tentativa de esculpir um “self mais aceitavel”. Mas essa auto-escultura esta por de- finicao fadada ao fracasso, porque é uma declaracao irreversi- Co: “No aceito a forma de meu nariz, de mo- vel de autonega do que vou cortar partes dele”. Em vez disso, € preciso enten- der que a auto-accitagao Cou a autonegacao) deriva da relacao inicial de uma pessoa com seus pais — em especial a mac. Nenhuma cirurgia mecinica pode substituir esse processo pre- coce de relacionamento. A aceitagao mUutua é obviamente baseada no sentimento aco que conseguimos alcancar. Quanto mais mos mais ficil ser pelos outros. Mesmo q $s nos aceitam, podemos nao aceitar essa aceitacle, se nao nos sentimos verdadeiramente “aceitaveis”. Assim, devemos voltar um passo atris para compreender a auto-aceitacao € a autonegagio. Nas interagoes corporais mae- filho, € possivel perceber com facilidade a progressio da pri- meira. Ela prossegue até © ponto em que a relacao se manifesta por meio de interacSes espontaneas no hidico. Nesse momen- toa crianca é “vista” pela mie e surge o fenémeno da aceitagao total. Quando essa progre 1O OCorre, BEera-se a TeCUsa OU a negacio. Deve ter sido isso o que Carl Rogers queria dizer, quando descreveu a idéia de respeito positivo incondicional. Na emergéncia do nosso self individual, podemos, na me- lhor das hipsteses, tomar consciéncia do sagrado por meio de sua falta no centro de nossas experi¢ncias. Podemos perceber © quao amputados, separados e solitirios nos sentimos em nossas vidas. Assim como a cirurgia plastica nao é um mecanismo de ge- racdo de auto-aceitacao, a psicoterapia também nao o €. $6 consegue sé-lo quando é orientada para acompanhar de perto os sentimentos inerentes 4 experiéneia de vida de uma pess Se 86 € possivel comecar a mudar a partir do ponto em que ¢stamos num dado momento, 0 entendimento do projeto de vida de uma pessoa é um marco inicial indispensivel. anterior de auto-ac aceitamos a nés mi sermos aceitos ando € AO. va. 20 4.2. Nem mecanicismo nem sobrenaturalismo — A psi- cologia dos construtos pessouis foi especificamente criada, em 1955, para ultrapassar o mecanicismo do behaviorismo e mistificacdes clo freudismo, que eram as abordagens domi- nantes na primeira metade deste século. Kelly desenvolveu uma linguagem ¢ um modelo destinados a superar também co dualismo mente versus corpo, propondo sua nogao de “construto”, ou sintese, que descreve a experiéncia da pessoa total ¢ nado apenas a parte cognitiva ou emocional. Segundo éle, tais divisées nfo existem. Construir envolve a acao da pes- soa inteira, ¢ nao um ato cognitivos ou aletivos. Nao existe algo “cognitive” nem “afetivo” em nossas interpretagoes. E a pessoa total que constréi, nao apenas seu cérebro ou intesti- nos. Trata-se do esforco da busca de sentido pela totalidade. O termo “construtivo” visa expressar a superagio da dicotomia fragmentirio versus holistico. Do mesmo modo, Bateson dizia claramente que sua nogio de sagrado visava evitar as simplificacdes mecanicistas € tam- bém os modos “sobrenaturais” de explicac: Nao sei o que fazer, exceto tornar muito claras as opinides que sustento sobre © sobrenatural, por um ado, € sobre o C1 mecinico, por outro. Simplificando, devo dizer que desprezo € temo os dois extremos de opiniaio. Acredito que ambos se- jam epistemologicamente ingénuos, epistemologic 0. também perigosos para juilo que podemos chamar, vagamente, de saide mental (Bateson, pp. 52-53) mente er- rados € politicamente perigoses. Nesse estigio, podemos super que alguns ingredientes ini- ciais do sagrado incluem a consciéncia respeitosa dos limites humanos para o conhecimento e para a criagado. E preciso re- conhecer as inevitiveis lacunas da compreensio humana, a inevitabilidade dos escorregos ¢ a nao-redutibilidade do domi- nio das explicagées ac Ambito da experiéncia, como faria Maturana. E também importante reconhecer a necessidade de recomec¢ar sempre do zero, com uma atitude de benevoléncia para com os erros. © que € preciso para lidar de maneiras mais complexas com. os rélacionamentas? Isso requer modos de ver que afir- mam a nossa propria complexidade e a complexidade si ca dos outros. Esses modes propoem a possibilidade de mi- ‘constituir juntos um sistema inclusivo, uma rede mental comum la qual participem elementos daquilo que ¢ inevitavelmente misterioso. Tal percepedo, tanto de nés préprios quanto dos ou- tros, € a afirmagio do sagrado. (Bateson, Angels Fear, p. 176) A terapia deve também ser vista como uma abordagem a complexidade sist¢mica da vida das pessoas, e nao como algo destinado a “cura-las de si mesmas”. Deve buscar suas implica- g6es peculiares para a mudanga pessoal num futuro proximo. Para ser construtiva, ela precisa evitar as tentagdes humanas de mecanizar, literalizar e mistificar, Bateson criticava © movimen to de terapia familiar americano justamente por causa desses eros. Por exemplo, em seu didlogo pai-filha: Pai — Ha ainda outro problema para Angels Fee: a questo do mau uso das idéias, Os engenheiros se apoderaram delas. Olhe para esse espantoso negécio que € a terapia familiar, com os terapeutas fazendo “intervencdes paradoxais” pari : 3 mudar pessoas ou familias, ou contando duplos vinculos’- Duplos vinculas nao podem ser contados. Filha — Nae. Sei disso, porque os duplos vinculos tém a ver com a estrutura total do contexto. Uma situacio de duplo vin- a0 de terapia, 6a ponta de um iceberg cuja estrutura basica é a totalidade da vida familiar. Mas vocé nao pode impedir as pessoas de contarem scus duplos vinculos. Diluir processos em entidades € fundamental para a percep- que cortigir isso faa parte da utilidade da religiao. Mas vocé se tornou muito rabugento a esse respei- culo, em uma s -a0 humana. Pode s to, € um tanto detestavel para as pessoas que o admiram tio intensamente. (Bateson, Angels Fear) De todo modo, o tipo de terapia familiar abominada por Bateson é o que pode contribuir para uma maior “coisificagaic” da existéncia individual e familiar. 4.3. As psicologias manipuladoras: poder e controle — George Kelly também estava alerta para ajudar seus alunos € outros a evitar a armadilha do propdsito consciente, em rel 40 8 “aplicacao” de sua psicologia dos construtos pessoais facil resvalar para uma psicologia manipuladora, mesmo quan- do se esta tentando fazer o oposto. S¢ nossa atengao se de: do ser da pessoa com quem estamos para outra versdo dessa viar pessoa — seja ela imaginada, implicada, desejada, ou projeta- da —, teremos modificado a natureza de nosso relacionamento na directo da manipulagio. Em seus escritos, Kelly comenta: Prometi-lhe que este livre nfo seria um manual do tipo “como fazer”, para terapeutas que querem que as pessoas se comportem bem, sem ter de penetrar na complicada que: € entendé-las. (Kelly, p. 187) qu Quanto mais falarmos sobre a abordagem manipuladora — que inclui intengdes conscientes estreitas € focalizadas —, maior seria distancia a que ficaremos de nossa propria globalidade € mais cegos nos tornaremos para a sacralidade do todo. Esta corresponde 2 visio da totalidade complexa, @ entendimento da auto-regulacao, da autoproducae, da autocorrecao, da auto- manutencao e da autocura. Na medida em que uma psicoterapia propée esses aspectos como marcas da relacao terapéutica, poderemos dizer que estamos tocando partes do sagrado por meio do nosso trabalho. Segundo a terapia de construtos pessoais, o terapeuta deve produzir os processos autoconstrutivos sistémicos da pessoa. Isso € necessario para compreender como ela chegou a ter problemas, € também para ajudar na construgdo conjunta de alternativas viaveis e novos modos de auto-construgao sistémica. Tudo fica mais facil quando é realizado na totali- dade da familia, aqui definida como um sistema conversacional no qual podem surgir problemas. O processo psicoterapéuti- co consiste em reconstruir a cultura familiar. Trata-se de um empreendimenta politicamente desafiador, porque sé opoe As regras que manipulam as pessoas e aos mecanismos sociais predominantes. Bateson insistia em que qualquer que sejam as outras carac- teristicas definidoras do sagrado, nossa atitude diante dele de- veria ser marcada pelo fato de sermos capazes de questionar abertamente scja o que for que ele pareca ser, ¢ ter a capacida- de de receber humildemente as respastas. Essas atiwdes — ques- tionar € ser humilde — sto duas das caracteristicas importantes é definidoras do construtivismo, que dia que: a) nao existe uma resposta final, ou uma conclusdo que possa ser tirada a respeito das quest6es hu b) ninguém pode conhecer a hist6ria inteira. Por isso, nin- z de ser humil- nas; guém pode querer aspirar ser arrogante, em ve de diante da ignorancia. 23 Dizendo de outra maneira, oferego tivista”, que seria algo assim: » aqui a “prece constru- 4.4, A prece construtivista Nenhuma pessoa pode saber tudo. Nenhuma versio dos acontecimentos pode ser completa. Nenhuma compreensdo da realidade pode set a versio final do porvir humano. Qualquer coisa conhecida agora pode tornar-se irrelevante no futuro. Qualquer coisa que agora € Util pode tornar-se redundante Qualguer coisa que agora parece definitiva pode revelar-se insuficiente depois. Tudo o que chegarmos a saber jamais esgotari o Ambito do desconhecido Tudo o que pensamos saber serve apenas para obscurecer a ignorancia do que desconhecemos. Tudo aquilo em que cremos ne: alternativos necessariamente mundos 5. Fusao, emergéncia e submersao — Neste ponto, posso oferecer um mapa para que nos localizemos em relacao ao Sagrado, em termos de nossa posicao nestes trés dominios: fusdo, emergéncia e submersao: Fusco — com a unidade césmica maior: bem-aventuran¢ga cdsmica. ergéncia — da ligacao com o sistema maior: desespero existencial. Submersdo — nossa percepcao da ex ignorfincia profunda). sténcia do sistema maior: 5.1. A rede: oito modos de sentir o sagrado Os oito modos de sentir o sagrado, que estao aqui reunide em tés grupos. © primeiro é 0 fendmeno da fusio — pelo qual temos oportunidade de sentir a nés mesmos em comunhao com a totalidade maior da qual somos parte. O segundo é a emergéncia, que descreve os processos pelos quais somos pas- tos 2 parte do tedo, ao ser vistos como individuos separados. Aqui sentimos 0 sagrado como algo que falta 4s nossas vidas Em terceiro lugar hai a submersio, na qual nossa natureza sistémica mergulha sob as ideologias dominantes da rede em. que temas de ¢ Aqui, 6 sagrado é sentido em termos do que esta fundamentalmente errado na forma come vivemos em comunidade com 6s outros. E o profundo mal-estar cultu- ral de uma populagio que esta sendo desviada de seu caminho por nao questionar seu sistema de valores. Trés sinais de fusdo: sensacdes Sentimento de que ha algo maior do que © self individual no Universo: consciéncia clo espanto, Nessa definicao, sagrado significa que aquilo que sentimos de modo recorrente deve existir como um sistema ou meio ambiente. E um contexto mais amplo, no qual todos estamos contidos ou inseridos. Aqui as emogées colaterais sto reveréncia, ser esmagado ete, O sagrado surge em situagdes nas quais sentimos que devemos tentar ir além de nosso Ambito, estender-nos na direcao do que sentimos estar presente em nossa experién- cia. Ao superar o dominio da linguagem, conjuntamente in- ferimos e implicamos a existéncia de algo que nao pode s dito. Também sabemos que tal sentimento pode permane- cer para sempre incognoscivel, no quadro da consciéncia passivel de ser expressa por palavras. 2. A seguir, vem o sentimento de /azer parie totalidade césmica maior: pertencer, encaixar-se — sentir-se “em casa no Universo. Aqui o sagrado € a sensacao de unidade, uni- ficagao ou identificagto, que podemos experienciar ao viver no Unive As emocoes colaterais sao 0 contentamento, a profunda satisfacao, a tranqiilidade etc. 3, Nossa percepcio da inevitabilidade do colapso das anteci- pacdes humanas, dos planos ¢ sistemas humanos, leva-nos a perceber que existe sempre mais do que o olho alcanga, mesmo em nossas previsoes simples. Nossa vivéncia de surpresas, conseqiiéneias no desejadas, ¢ os efeitos freqiten- temente desastrosos ¢ previstos de nossas acées, podem oferecer-nos um vislumbre da complexidade de mundo em que vivemos. Somos continuamente advertidos de nossa cegueira bdsica quanto ao futuro, e da necessidade de reexaminar sempre nossa experiéncia a luz dos resultados inesperados de nossos esforgos. As emogdes colaterais aqui sao a ineerteza, a ansiedade, a ameaca, o medo, a confusao, @ caos, oO panico etc. O grau em que podemos realmente aprender pela experiéncia, ¢ modificar o que temos como so = a bem-aventuranca ¢ésmica certo, é uma medida de nossa capacidade de detectar a atuagao do sagrado, por tris de nossos encontres recorren- tes com 0 desapontamento ¢ com o fracasso. Precisamos desenvolver uma atitude de benevoléncia para com os ¢1 ros. Se tivermos sorte, poderemos usar essas experiénci: para avaliar a atuacio do que ocorre num mundo que ¢ além da andlise redutivista. LS Dois sinais de emergéncia: privagdes 1. A base aqui € nossa sensacao de estar separados ou amp tados do resto da humanidade, por causa da individualid de que nos foi dada: softimento, distanciamento, solidao. Com freqtiéncia, soma-se a necessidade de ser competitivos: “Bu sou diferente ¢ melhor do que vocé”. A campetitividade implica necessariamente negar os outros. Essa definigao diz que © sentimento do sagrado surge de sua auséncia em nos- sas vidas individuais, Na medida em que somos individual- mente distintos dos outros — e em virtude dessa clistincao — vemo-nos abandonados na pele da personalidade que nos foi dada. Assim, estamos muito distantes de nos sentir “jun- tos com” o mundo, Aqui a individualidade é vista como uma ficeao Util das sociedades ocidentais, mais interessadas na produgio € na intencionalidade do que em “humanizar” ‘os seres humanos. As emogdes colaterais sio a solidao, o distanciamento ¢ a alienacao. Ha uma sensac&o de grande caréncia, de estar & parte da totalidade do mundo vivido. 2, Aqui hi a percepeao da luta para conservar o self individual » 20 mesmo tempo, a de ter de conformar-se com as €xpec- tativas sociais: conservar a pertinéncia, o valor de mercado, as capacidades produtivas. A luta para perceber a individu- alidade como uma disposicao contra o fato de sermos arre- messados, como dentes de engrenagem, na maquina dos outres, acentua nosso sentimento de alienagao de um mun- do enquadrado em culturas comerciais € capitalistas. As emogoes colaterais aqui sao a de estar sob pressdo, a raiv o-sentir-se explorado, o sentir-se enganado, comprometido, inauténtico etc. Ao entrar nessa luta, acabamos sentindo a insatisfacao im- plicita diante da incompatibilidade das tarefas gémeas de autoconservacio © conservagao do ajustamento. Quanto mais oO mes- a sociedade se baseia na cren¢a do individualismo €. mo tempe, forga os individuos a comprometer esse individua- lismo de modo a se enquadrarem no sistema, como engrena- gens de maquina, mais as pessoas sofrem com esse paradoxo. Trés sinais de submersio: negacdes 1. Tentamos resolver os conflitos impossiveis dos itens 1 ¢ 2 do pardgrafo anterior mergulhando no sentimento de per- tencer a nossas redes locais de conversacées: “Ser € ser com as outros”, “Nao balance o barco”. “Nao perca o seu lugar no grupo”. Na medida em que essas redes requerem um alto nivel de concordéncia com as regras culturais dominan- tes, lemos poucas oportunidades de ser livres para sentir © sagrado, a no ser entrando em contato cam a sensacao de mal-estar que se origina do convivio com essas estruturas As emog6es colaterais aqui sio o ressentimento diante da manipulagao mitua, © abuso, a falta de respeito € de aceita- cao = junto com a impossibilidade de mostrar-se verdadeira- mente aos outros por medo de ser excomungado, isto é, de ser excluide da rede de comunicagées. 2. Aqui marchamos contra os limites permitidos das acdes hu- manas — 0s limites de nossas possibilidades de agir. Nossa percepeao diz que ha sempre limites para aquilo que nos é permitido fazer. Se tomarmos isso como um desafio para ultrapassar essas fronteiras, estaremos sempre em uma pe- quena rede de acao racional, que freqdentemente nado con- Segue lidar muito bem com os desafios da vida. Dessa for- ma, as emogoes colaterais aqui sao a frustracdo, o sentimen- to de impoténcia ete. Sentimo-nos incapazes de fazer algo porque “nao é permitido", Quanto mais estr sao es- ses limites, mais sentimos que estamos vivendo em uma pri- slo, na qual € impossivel realizar nossos desejos pessoais Nossos projetos ou Nossos mados preferidos de vida. Pode- mos apenas sonhar com aquilo que estd fora das paredes dessa prisio. 3. Aqui tormamo-nos conscientes dos limites permitidos ao nosso entendimento. $6 podemos pensar, ou buscar sentido em nossa vida, dentro de um dado quadro ideolégico, Outra definigao prototipica da situagao humana diz que somos sempre apanhados no fosso entre nosso Ambito de expe- ri¢ncias ¢ as explicagdes disponiveis parma elas. Sao duas dimensoes fundamentais, que jamais seremos capazes de juntar. Nossa experiéncia recorrente desse fosso € © princi- pal ponto de partida para que nos tornemos conscientes do sagrado. Desse ponto de vista, o sagrado poderia ser definido como equivalente ao “real” lacaniano — aquilo que sobra depois que se esgotam nossos melhores esforcos explicativos ¢ descritivos. Assim, o sagrado € o sentimen- to do real que nos escapa cle modo continuo e inevitdvel. Aqui as emoc6es colaterais sao a confusio, a frustracao inte- lectual, a raiva etc. Nossa sensagao de camisa de forca mental é criada pela dominancia dos valores locais, das ideologias, das religides etc. Sentir que ha muito mais a ser pensado, que deve haver cami nhos melhores de descrever e fazer contato com nossa experién- cia, leva as pessoas a buscar modos alternativos. Bater can- tra esse teto cognitivo cultural, que nos diz como devemos entender os acontecimentos, é outra forma de delimitar as coacdes que nos separam do sagrado. 6. Ah! Eis o sagrado! — Neste verio, eu estava em uma praia quase deserta da Sardenha. A minha frente havia ur menininha, que aos poucos s¢ dava conta de que podia andar. Ao ser posta de pé, langou-se para diante e cambalcou cinco ou seis passos antes de perder o impeto € cair. Estava totalmen te absorvida com essa nova descoberta do livre movimento Continuou por varios minutos com esse ciclo de levantar seguir em frente, dar alguns passos ¢ cair. Num dado instante, sua atencio foi atraida pelas marcas que suas maos haviam deixado na areia, Foi mais uma descoberta! Percebeu que a0 tocar a areia com as miios, podia fazer nela toda sorte de fasci- nantes buracos ¢ entalhes. Enquanto se ocupava com essa nova oberta, as ondas alcancaram @ lugar onde estava sentada, um a areia € apagaram todas as marcas. Mais uma descoberta! O que ela acabara de testemunhar? Repetiu toda a seqliéncia: correr, cair, marcar a areia com as miios — ¢ por fim observar a dgua vir e desfazer tudo. Que espantoso! Em seguida, correu mais alguns passos e cavou novos: buracos. Mais uma vez, a gua apagou as marcas que ela fizera no mundo, Correu de volta ao ponto onde estivera antes, fez mais buracos, viu a 4gua apagi-los. E agora corria de um lado para outro entre os pontos que estivera marcando — como s¢ -stivesse tentando evitar que algumas das marcas fossem des- de! la feita s pela ‘gua 28 ‘Continuou com esse experimento por varios minutos. E, mais uma vez, algo de novo! Um pedaco de alga fora deixado para tris pelas ondas. Ela o tomou, olhou para suas cores brilhantes, cintilantes, agitou-o de um lado para outro capturande os re- flexos do sol. Era tio emocionante! Voltou correndo para junto de seus pais, Mostrou sua descoberta, gritando de alegria, ba- langando-a contra o sol = mas parece que o pai ja havia visto uma alga, porque a tomou e atirou-a na areia. Depois ergueu a filha, colocou-a em sua nova béia de bor- racha colorida ¢ empurrou-a para a agua, Logo que cle parou de empurrar ela virou © curso da béia em direcao a praia, para onde voltou com muito esforgo. Ao chegar a areia, livrou-se da béia ¢ corren para o ponto onde a alga havia sido jogada. Pegou-a de volta ¢ dessa vez foi até sua mae, para partilhar ea levou a sério e com ela o que descobrira. Dessa vez an juntou-se a ela na partilha da espantosa descoberta. Mais tarde, seram: ape perguntei aos pais a idade da menina ¢ eles me dis nas 13 meses Conto essa hist6ria porque quero deixar aqui uma imagem da atuacao do sageado. Aquela menininha estava em um estado de sacralidade, era capaz de viver espontaneamente o seu espan- entre to de ser-no-mundo, de descobrir a assombrosa cones cla propria ¢ tudo 0 que a cercava. Todos nds j : dao para viver no sagrado, antes que a linguagem nos apanhas- se © nos tormasse humanos com prope ntes. Depo disso, tornamo-nos cegos para a atuagio do sagrado em nosso préprio ser. Se tivermos sorte, conservaremos a capacidade de ficar ocasionalmente espantados, assombrados, reverenciando a totalidade do sistema no qual nossas vidas esto inseridas. A menininha, que ainda nao entrara na linguagem, era livre para estar espontaneamente no sagrado. Nos, que estamos do. outro lado da barreira lingiiistica, ji nao somos livres para fazer isso — a menos que tenhamos muita sorte e nos percebamos assombrados diante de algum fenémeno da natureza. Deve- itos con: mos lutar até 6 impossivel para nos livrar das amarras da lin- guagem, de modo a ser capazes de sentir a complexidade mica de nossas vidas. Nossa orientacao cultural atual de “criar produtos” nos torna cegos pata o aqui-e-agora de nossa interagio com os outros, Por isso nos é dificil viver o presente de nossos relacionamen- tos — 0 que inclui a relacto mie-cri bem dificil, para muitas pessoas, permanecer na totalidade de uma aceitagao miitua ¢ sem expectativas nga nas situagées lidicas. E vale a pena destacar como essa perspectiva ajuda a detinir o que Kelly quis dizer com sua psicologia das compreensdes. Trata-se de uma forma de viver em relacionamento com os outros, de tal modo que sejamos capazes de manter nossa “pre- senca pessoal” em um fluxo de “momento presente”. Ou, em outras palavras, estar juntos em um relacionamenio de presen- ca reciproca. O que a psicologia das compreensées implica, pois, € que estamos em relacho com © outro em uma série de momentos presentes, c num fenédmeno 44 fronteira cultural mesoamericana, e comecaram a migrar ji a partir do século 18, com os toltecas Percorrendo longos caminhos, os mexicas entraram na com- plexa ¢ povoada regio mesoamericana, disputada por povos agricultores, com suas grandes cidades de antigas tradicoes cul- turais. Os novatos tiveram que enfrentar o desafio de conseguir um lugar ao sol, € para isso tiveram que “civilizar-se”, adotando tragos culturais do estranho meio ¢ assimilando ativamente conhecimentos € simbolos dessas antigas tradicdes. Durante o século 12, prosperam novos centros de fala nahuatl ou otomie no Altiplano Central — Coatlinchan, Texcaco, Azcapotzalco, Culhuacan, Chalco e¢ Xochimileo. Comeca uma etapa cultural, marcada pela forte presenea desses gru- pos, principalmente os poves de fala nahuatl. Fm meados do século 13 chega © ultimo grupo, que se tornaria em pouco tempo, junto com outras cidades como Texcoco e Tlacopan, senhores ¢ tributacores de uma enorme regio. Fram os mexicas, que depois do segundo nascimento de Huitzilopochtli, guer- reiro que nasce para vingar sua mae, que havia sido engravidada por uma pluma e seria morta pelos irmaos, abandonam a de- nominacao de astecas por ordem divina Depois de varios anos na regiao, onde fazem amizades & inimizades — e depois de se estabelecerem em Chapultepec € outras localidades na margem do lago Texcoco —, entram no lago em 1325, Nesse lugar construirao sua capital. Logo elegem Acama Pichtli seu primeiro flahtoani — aquele que tem a pala- vra, denominacao dada aos soberanos. Até 1428 sao tibutiries dos tepanacas, donos da ilhota, quan- do entio, aliados a outros senhorias, vencem Azcapotzalco. Eo inicio de uma campanha guerreira, que em menos de um século chegara até a Costa do Golfo, do Pacifico ¢ até a atual Guatemala. Tenochtitlan torna-se a Nova Tula. Os povos de Culhuacan, 4 Chao Chegada a Chapultepec ou § Cerro dos grilos, segundo 0 Tira de ta peregrinacion Arqueclogia Maxicana, fi oe eacea SHEN iH BH a ergs Texcoco, Chalco, Azcapotzalco, ¢ Tlaxcala adotam 0 calendirio: tenochca. A Nova Tula gesta a historia do mundo, do Quinto Sol. Cristianismo, Huminismo, Civilizagéo Tecnologica e Direitos Humanos — Depois desse rapido sobrevoo sobre a cultura ea hist6ria da Mesoamérica, podemos comecar a per- ceber que falar em indios ¢ descobrimento da América pode ser muito ttil para outras finalidades que nic a de conhecer, valorizar e respeitar estas diferentes culturas. riamente descrito (e certamente para a maioria das culturas nativas americanas), os significados ¢ sentidos da conquista que se iniciou no século 16 — e que continua até os nosses dias — foram catastr6ficos: ne decorrer de wns quantos séculos, seus habitantes originais, que estavam ha milénios estabelecicos ali e se contavam por muitos milhoes, passaram a ser considerados um fator marginal, quando nao tolalmente prescindivel, no destino do continente. Os cristaos ocidentais do século 16 perceberam que toda a sua visio de mundo, baseada principalmente na Biblia e em ‘Aristételes, foi de alguma forma questionada pela existéncia desses estranhos povos. Os freis espanhéis tornaram-se espe- cialistas em fixar o olhar sobre as culturas americanas, que as enquadrava nas suas concepedes cristas de hist6ria ¢ salvacao, Além disso, instituiram para os sobreviventes das epidemias, guerras, maus tratos ¢ escravidao, um processo de ev ingelizacao que tendia, em ultima instancia, a climinar ou amenizar essas diferencas radicais. Em todo esse processo de evangelizacio ¢ ocidentalizagio, os poves indigenas americanos foram sempre infantilizados, ou seja, deveriam ser guiados por designios propostos externa- mente. Suas culturas foram sempre vistas, ofa como algo as- queroso — caso das priticas rituais com sacrificios ou antropo- fagia —, ora como algo interessante & EXGtico. © fato é que rarissimas vezes Conseguimos nos livrar, mes- mo de um modo minimo, desses preconceitos, e entrar verda- deiramente nesses universos culturais. Quando conseguimos fazé-lo as surpresas sio indescritiveis, pois salta aos olhos a percepgao da existéncia de toda uma complexa ¢ claborada visao de mundo. Gordon Brotherston, um inglés éstudioso dos cédices meso- americanos, mostra que enquanto a Europa crista do século 16 acreditava que 9 mundo tinha apenas alguns milhares de anos, que havia sido criado em seis dias e continuava como era no Para esse mundo suma 46 inicio, os Mesoamericanos especulavam sobre um passado de milhocs de anos ¢ sobre as metamorfoses e relagGes entre as animais — incluinde o préprio homem —, como atestam suas narrativas consideradas miticas. Todo esse saber foi soterrado e ignorado até o século 19, quando entao os “verdadeiros cientistas” comecam a tratar des- ‘s temas na Europa. Enquanto isso, aqui na América, os povos indigenas eram mais uma vez submetidos a um projeto que nao lhes convinha: a formacio de Estados-nagdes, a partir das independéncias. Reconhecer nessas outras culturas esse tipo de saber além de ser um process muito trabalhoso, que envolve anos de es- tudo, acaba por abalar toda a tradicional e linear narrativa his- t6rica ocidental. Abala também a sua pretensa divisio da hist6- ria humana em Pré-Historia, Antigiidade, Idade Média, e Tda- des Moderna ¢ Contempor Talvez devéssemos pensar a historia como a trama de um lo ou um mosaico, em vez de vé-la como uma linha do tempo univoca, dividida em periodos sucesséries ¢ progressi- nea tet vos, na qual as sociedades industriais modernas ocupam o tle limo e mais avancado estagio. Hoje, nao acreditamos mais na partisia e no inevitavel universalismo cristio, nem estamos tao entusiasmados com os progressos da sociedade indu trial. Qual o lugar, entio, dessas diferentes tradicoes culturais em um mundo ocidentalizado? Sera que a crenga ¢ a tentativa de universalizacao da cultura cristé ocidental nao foi substi- tuida pela uni cao da sociedade tecno-industrial, da democracia ocidental dos direitos humanos? © professor e antropélogo peruano Rodrigo Montoya con- tava4me que em um de seus trabalhos de campe, em uma comunidade andina peruana, conversou com um “intelectual indigena” chamado Evari io Nungquag. Era um dos primeiros dirigentes do povo aguaruna-huambisa ¢ hoje é prefeito de uma provincia. Tratava de uma espécie de sitio, que se preo- cupa com os destinos de seu povo e é reconhecido como tal por este. O assunto era direitos humanos, e Montoya pergun- tou-lhe o que achava da igualdade dos homens. A resposta veio em forma de pergunta ¢ foi contundente: “Tguais a quem e por qué?” Com essas palavras, o sabio andino Mostra Como © Conceito que temos de homem — ou do que acreditamos que ele deva ser — é um conceito totalmente curo- peu ¢ baseado na existéncia € primazia do individuo como portador de um sentido ngular e realizavel. E uma teleologia 47 do ego. Serf que a partir desses valores podemos respeitar os direitos coletivos reivindicados por esses grupos? Parece que, mesmo querendo ajuda-los, o Ocidente cristao ainda padece de um olhar violentador ¢ totalizador (e quem sabe totalitario) sobre os povos indigenas. Trata-se de um olhar que varia do bom selvagem as sociedades primitivas em estigios Civilizacionais anteriores ao nosso. £ fruto de uma perspectiva antrapolégica € histerica ocidental, que tomou as diferencas culturais espalhadas geograficamente ¢ organizou-as como di- ferencas temporais progressivas, nas quais a sociedade euro- péia era a “ponta de lanca” da humanidade, Recentemente revestimos essas cultaras de outras expectati- 1s © atribuimo-lhes outros destinos. S40 vistas como uma hu- manidade que vive em harmonia com a natureza, e por isso devem ensinar-nos a voltar a esse estigio quase paradisiaco — uma reedicao do bom selvagem de Rosseau. A professora de historia da América da Universidade de Sao Paulo, Janice Theodoro, contou-me um fato ilustrativo. Ela or- ganizava a parte brasileira de uma expasicio que aconteceria em Portugal, em 1988, em comemoragao as grandes navega- cdes. Quando visitava comunidades indigenas atuais para a dbtencao dé fotos, o lider de um grupo Terena pediu-lhe para que os indios nao fossem fotografados junto as plantas ou aves consideradas exdticas. Eles queriam aparecer perto dos objetos que produziam, isto €, junto da parte visivel de sua cultura, que os torna homens € 0s jentifica entre si ‘Temos de parar de projetar nossas explicagoes do passado, aréncias do presente ¢ expectativas do futuro sobre estas ¢i lizacdes. Quando © fazemos, falamos apenas para nds me: mos. Creio que seria saudavel vé-las e ouvi Hoje se fala muito em multiculturalidade e direitos de auto- determinacio dos povos. Estes sio permitidos - ou pelo me- nos garantidos por lei em muitos paises — desde que nao firam os interesses pressupostos de unidade que sustentam os Esta- dos-nacdo, ou a centralidade dos direitos dos cidadaos, hoje substituidos pelos direitos da consumidor, Essas prerrogativas se baseiam na centralidade crista ¢ ilu- minista do individuo. Serd que os povos indigenas, que nao por sua vontade habitam o territorio brasileiro, querem e¢s- colas, evangelizagio € médicos? Talvez preferissem apenas um territério onde nao houvesse homens brancos, que deter- minam seus destinos, na quase totalidade das vezes de for- ma catastrofica. 48 Nao ouso colocar tais perguntas. Elas poderiam abrir a pos- sibilidade de legitimar outras formas de organizacées sobera- nas dentro de um Estado-nacgao supostamente unitirio. Nao defendo culturas iméveis ou museus. Temos de libertar-nos do mito da origem e da pureza. Toda cultura é uma trama de ele- mentos pro rios € assimilagGes de alheios, na maioria dos casos impostos de forma violenta. Acredito, apenas, que essas assi- milacdes e mudaneas deveriam ser uma escolha de dado grupo Temos de abandonar a pretensio de conceder aos povos indigenas americanos um lugar em nossa visto. de mundo e forca-los a ocupa-lo. Precisamos aceitar que as solucdes dadas por essas civilizagdes 2 sua existéncia e aos seus problemas nao sao em nada inferiores 4s nossas — sao apenas diferentes. [Ea REFERENCIAS BIBUOGRAACAS Brotherston, Gordon. La América indligena en su literatura: los libros de! cuarte mundo, México: Fondo de Culture Econémies, 1997. ‘Cédice Chimalpopoteo: Anales de Cuauhtitian y Leyenda de fos Soles. México: Institute de His- teria do UNAM, 1945. Florescano, Enrique. Mito e hisiéria net meméria mexicona. Discurso de Dr. Enrique Florescano, apresentada no ecasido de seu ingresso ne Academia Mexicana de Hisiério, come mem- bro, 18 de Julho de 1989, . Memoria mexicana. Méxica: Fonde de Cultura Econémica, 1994 Garibay K. Angel Moria (O7g,|- Teouania ¢ historia de los meaicanos: tres opascules del sigh XVI. México: Editorial Perris, 1996. Leén-Rartlla, Miguel. Literatures indigenas de México. México. D. F & Madtid: Fondo de Culture Econémica & Editorial Mapfre, 1992. México Antiguo, Antologia. 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Embora ndo vos chamasse pelo nome Nem vés a mim Como as homens se chamam Ao conhecer-se Melhor vos conhecia Do que aos homens. Compreendia o siléncio do Eter As palavras dos homens jamais compreendi. Educou-me a harmonia Do bosque murmurante E @ amar aprendi Por sob as flores. Nos bragos dos deuses cresci. Hélderlin seu na Suidbia em ohann Christian-Friederich Hélderlin nas 1770, de familia modesta. Sua mae desejava que um paroco de aldeia, o que era comum na sociedade alema a daquela época, em se tratando de um le fosse aristocratico-burgue: jovem com dotes intelectuais ¢ sem dinheiro. José Paulo Paes cita um bidégrafo moderno do poeta, que menciona um detalhe curioso. Em alemao, o nome medieval do diabo € Hélderlin, que signilica “pequeno sabugueiro”. Se- gundo a tradigio de certas regides da Alemanha, esse vegetal é considerado a arvore da v onde mora 0 espirito do desti- no. Tera sido talvez o destino que mudou 0 rumo da existéncia do poeta. Ainda no semindrio, belo como um Apolo com rou- pas eclesiasticas, ele inicia a leitura dos antigos gregos. Alguns anos antes, na Leteinschule, ¢ depois na escola do convento de Denkendorf, aprendera radimentos de latim, grego ¢ hebreu, em suas respectivas literaturas. Em 1786 entra no seminario de Maulbronn, de severa disciplina religiosa, onde 0 proibem de tocar flauta, e onde s6 ocultamente 1é autores do pré-romantis- mo: Klopstock, Schiller, Ossian. Nessa época, comeca a escre- ver seus primeiros poem ‘A leitura dos gregos jamais representou em sua vida um exercicio erudito. Sempre foi uma busca de paradigmas, mode- los de ser que pouco a pouco dele s¢ apossaram, mansamente de inicio e depois com © impulso ambivalente do inconsciente, ora cfiativo, ora destrutivo. A violéncia apaixonada da poesia hélderliniana, embora ligada 2 sua época, pressagia a mo- dernidade, Como to profundamente assinala Paes, Holderlin teve de pagar por seu destino de vate precursor “a prego da pentiria, do menosprezo € da insania, a semelhanca da pro- genie dos poetas malditos que o sucederia e sobre a qual ele estendeu, sem que o soubessem, sua sombra enorme e benfazeja”. Em ordem cronoldgica, a poesia de Hélderlin inclui as seguintes obras: Poemas da Juveniude (1789-1794), Diotima (1795-1798), A Maturidade (1798-1800), Odes e Hinos (1T99- 1802), As Grandes Elegias 800-1801), Os tiltimes Hinos (1800- 1803) ¢ Fragmentos: Poemas da Loucurea. No momento prima- veril dessa poética, a leitura apaixonada de Platao, de Homero ¢ dos trigicos gregos, o arrebatamento mais profundo de sua al- ma, orientaram-no para o louvor da Grécia Antiga. Eis um frag- mento do poema Griechenland (Grécia), onde ele invoca ria de seu espirito: f Meu desejo se volta para wm pais melhor, Para Alceu e Anacreonte; Feliz eu dormiria nos timuulos exiguos Dos herdis de Maratone. Fosse este at tiltima ldgrime Vertida sobre a Grécia consagrada! 6 Parcas, que vossas tesouras cantem Pois meu coracdo pertence aos mortos. Por que © poeta se volta tao ansiosamente para a Grécia, invocande as terriveis Parcas num desejo confessado de morte, o que é sublinhado ainda mais pelo fecho do poema: “Pois meu coragio pertence aos mortos”? Holderlin € um extem- porineo. Terrivel augtrio. Na sociedade aristocriitico-bunguesa de sua €poca, cram poucas as possibilidades de insercao de uma personalidade como a sua. Tornou-se um mero preceptor em casa de banqueiro, recomendado por Schiller, poeta jé ple- namente reconhecido. No entanto este tltimo, em carta a um amigo € referindo-se a cle, confessa que suspeitava daquela “subjetividade violenta a qual se alia certo espitito filoséfico, nfio carente de profundidade...” Hélderlin fracassa nessa primeira tentativa de educar o filho de Charlotte von Kalb, menino cujo temperamento era proble- matico, Comenta-sé que, certo dia, agarrou o discipulo pelo pescoco. Foi o fim de sua preceptoria, Mas a bondade de Charlotte levou-a a ajudar Hélderlin, que se instalou em Tena, onde assistiu aos cursos de filosofia de Fichte, cujo pensamen- to “titanico” o impressionou. Esporadicamente, ¢ também por condescendéncia de Schiller, alguns dos primeitos Hinos héderlinianos sao publicados na Nova Talia e em outros almanaques da Suabi. Ao yoltar-se para estudos de filosofia e estética, ele escreve a um amigo € comenta que os estudos filoséficos eram uma espécie de hospital dos poetas. Mas, de qualquer forma, sua amizade e participacao nas idéias de Hegel chega ao ponto de ambos selarem um pacto designado pela expressio “Reino de Deus” ou Ln kai Parte Cunidade e totalidade), como ideal su- premo da histéria do homem. OQ mergulho na treva — Holderlin continua com problemas financeiros. Nao sende hemem de recursos materiais, nem reconhecido em seu justo valor, tenta mais uma vez ser pre- ceptor em casa de um banqueiro. Um destino obscuro parece impeli-lo. A mulher do financista € Susette Gontard, Diotima, que abrira um novo ciclo na sua poesia e inspirard seu roman- ce Hiperion. Susete Gontard, mae de quatro filhos menor foi a anima que passou a conduzir a poesia hdlderliniana. Entre ambos houve um amor platénico, que o nome de Diotima, dado pelo poeta a sua amada, parece confirmar. Eis um poema em que ela é exalta Vem, 6 delicia das Musas celeste Tu, que outrora reconciliaste os elementos hostis, Vem apaziguar o caos deste tempo, a furtosa discérdia Com os acordes da paz e que nos coragdes mortais Se conciliem as forcas inimigas! Que a antiga natureza humana, sua alma grande e trangiiila Retorne poderosa ao coracdo carente do povo, 6 beleza viva, Volla @ mesa hospitaleira que é sempre wa e ao Templo! Pois Diotima vive como as flores frageis durante o inverno: Rica de sex proprio espirito, busca no entanto o Sol, Mas 0 Sol do espirito, o mundo mais belo pereceu Ena noite glacial alternam turbiihdes. Como vimos, em sua juventude Hélderlin sofrera a influén- cia dos pré-romanticos, cujo movimento Sturm und Drang (Tem- pestade ¢ Impcto) se opunha ao racionalismo € ao iluminismo alemao (Au/kidrung). Com os primeiros, volta-se para a con- templagao poética da natureza, tal como Jean-Jacques Rousseau e, como este, acredita utopicamente no bon sauvage. Acalenta também 0 sonho de uma sociedade fraterna, o “Reino de Deus” ou £n kai Panta, fusio idealizada de paganismo e cristianismo A visio de mundo helénico, segundo a qual apenas na bele- za o bem e a verdade se irmanam, projeta-se numinosamente naquela maravilhosa criatura que foi Suzette Gontard. Para 0 poeta, cla é a prépria Diotima que, no Banquete de Platao, como a Estrangeira de Mantinéia, é convidada por Sdcrates a definir o amor, o Eros. Ao que cla responde com a definiga0 sabia e profunda de que © amor é abundancia e pentiria, dai seu carater paradoxal. Diotima abre um ciclo de poemas, além de ser a figura feminina principal do romance hdlderliniano Hiperion, out 0 Eremita na Grécia. Trata-se de uma obra epistolar, na qual a correspondéncia circula entre Hiperion, Belarmin, Alabanda e€ Diotima. Nesse momento de sua vida, Holderlin jé por sua extemporaneidade: eta um poeta grego, vivendo na estava ameacado 54 Alemanha, lutando como um Ffiperion solar contra os. tur- cos invasores da Grécia novecentesca, isolado do ambiente académico alemao (mas de altissimo nivel). Dilacerado entre paganismo e cristianismo — o que o titulo desse romance tao bem revela —, estava a um passo da loucura. O belo filho de Apolo mergulharia na insanidade, pelos Gltimos quarenta anos de sua vida. A armadilha dos opostos — Tal como Nietzsche, Friedrich Hélderlin foi vitima da unilateralidade de sua experiéncia inte- tio. O predominio do elemento urinico, ou celeste, em detri- mento de sentido da Terra, determinou © que, na psicologia junguiana, se chama de enantiodromia. Esse termo provém do pré-socritico Herdclito, € significa a conversao dé um oposto no outro — o terrivel castigo da unilateralidade, © poeta parecia prever essa calastrofe psiquica, num poema do qual destaco um fragmento: Vvergonhosamenite Uma forga arrebata-nos 0 coragado Pois todos os deuses exigem oferendas, E quando esquecemas um deles Nada de bom stecederd As divindades que se manifestam no decorrer da poesia de Holderlin nao sao arbitrarias, e apenas irritam as sensibilidades aliadas a uma falta de conhecimente da realidade animica do ser humane. Longe de ser sem regras, elas correspondem as metamorfoses da imago dei em sua mais intima e sagrada inti- midade, O poema Patmos, dos Ultimos Hinos, j4 prenuncia as perigosas fragmentacdes que ameacam o poeta. Vejamos um trecho, na tradugdo exemplar de José Paulo Paes: Extd perio, FE dificil de alcangar. o Deus. Mas onde hd perigo Hé tambom salvacao F nas trevas que moram As dguias, sem medo Os filhos dos Alpes cruzam, Sobre frdgeis ponies, os abismas. A mina esconde 0 ferro, na verdade, FE resinas ardem dentro do Kina. Assim eu poderia, com riqueza, Pintar uma imagem onile se visse, ‘Tal como havia side, 0 Cristo. As “resinas que ardem dentro do Etna” devem ser assoc das 4 entrega sacrificial de Empédocles, o taumaturgo ¢ fildso- fo grego, personagem principal da tagédia hikdlerliniana A morte de Empédocles. Em Patmos, a energia destrutiva e suicida de Hélderlin parece ter sido conjurada pela figuracio do Cristo, “tal como havia sido”, Mas a identificacao do poeta com Empeédocles é funda demais e o Etna ameacador, com suas resinas ardentes, mora dentro dele. A presenca da beleza — Ao afastar-se de Fichte, Hélderlin assume a realidade autGnoma da natureza, espécie de nao-eu diante do poder titanieo do eu. O mundo natural nao é um cenirio idilico, mas uma plenitude viva de forgas divinas. O poeta vive em profundo pathos coma alma cdésmica e sagrada, que pode embalar 0 menino que “brincava tranquilo”, mas cuja face escura é 0 avesso desse estado paradisiaco. Uma Grandes Elegias, cuja traducio retomamos ao longo de mes intitula-se O Arquipélago, Nela me deterei, porque fala da “dis tancia dos deuses” (Gottesferne) ¢ da “proximidade dos deu- ses” (Gottesndhe). A proximidade divina € 9 momento auroral de uma cultura, que parece bafejada pela presenca benfazeja do sagrado. Leia- mos © poema: © Arquipélago Retornam as gruas, buscando-te de novo? Nevios Tenlam aproar novamente em tuas margens? Sobre ‘Tue dgua tranqilila sopram aragens e das profiandezas Emerge o golfinho para aquecer 0 dorso Na iuz amanhecida? E a hora da Jonia em flor. Os viventes, com move coragdo, evocam na primavera Seis primeiro amor e rememoram a Idade de Ouro. Bnido venho saudar-te, Ancido, em teu siléncio! 56 Para sempre vives, Poderoso. Repousas como outrora A sombra das montanhas e com teus bracos ainda vigoresos Fstreitas a terra encaniadora; nenhumea filha perdeste, Pai: Tuas ilhas florescem, Creta persiste ¢ Salamina Reverdeja & sombre dos loureiros; Delos ergue ao sol A fronte inspirada, cingida de raios, Tinos e Chios transbordam de frettos, Os vinhos de Chipre borbutham nas colinas embriagadas, Das alturas de Calduria precipitam-se riachos Como antes, nas antigas dguas do Pai. Todas as ithas ainda vivem, mdes das hersis, Hlorescendo ano apds ano: se as vezes, do abismo Desencadeia-se 0 incéndia noturno, ¢ a tormenta Arrebata uma das Gracas, € em teu regaco Que ela tomba agonizante, ¢ tu sobrevive: Tu, que contemplas dos aniros tantas awroras segutrem tantos Anciao divine, crepiisctlos. O Arguipélago —a segunda das Grandes Elegias—evoca um. mundo auroral, semelhante a [dade de Ouro, em que a nature- za orvalhada pelo divino desperta em uma luz amanhecida. E © tema da aurora, da primavera, do primeira amor. Poseidon & saudado em seu siléncio criador. Poderoso, ele enlaga a grega em seus bracos vigorosos: “E a hora da JOnia em flor’, As ilhas do Arquipélago s3o louvadas: Creta, Delos, Tinos € Chios, a wanshordante de frutos. As colinas embriagadas pelos vinhos de Chipre, todas as ilhas-maes dos herdis florescem ano apés ano. E, se uma das Gracas € arrebatada pelo fogo das entra- nhas da terra, é no regaco do anciao divino que ela agoniza Mas o deus criador sobrevive — cle que contempla o mistério- de tantas auroras € de tantos creptisculos. Nesse ultimo verso transparece o sentido meta-histdrico da proximidade dos deuses (Gottesnéihe), que precede 2 sua di incia (Gottesferne). A esse m antropomor- fizada ¢ auroral, corresponde © microcosmo do poeta e sua u a terra: terra rocosmo da Gréci missao criadora entre o ¢ Quando os vives iniciam 0 somho dureo Que a4 cada aurora o poeta thes prepara, A tiele oferece, 6 deus entristecido, um sortilégio Mais suave, Sua propria iuz ndo alcanca a beleza Do diadema— sinal de amor —com que, fiel @ tua lembranca, Hle cinge @ cada manhd os cachos grisathos de ta fronte, SI Por que cabe ao deus criador a tristeza, em meio & plenitude auroral do come¢o? E porque, por meio da carnacio histérics com suas lutas e inicios criadores, ele pressente que 0 abando- no vira, que a distancia entre deuses € homens serd crescente. £ impossivel saber quem abandona ¢ quem ¢ abandonado. A elegia evoca entio, dolorosamente, as ruinas gregas depois da batalha de Salamina: Dize-me: Athenas, onde estd? O deus emt tuto, Viste treet cidade — a mais amada— desabar em cinzas Nas margens sobre as urnas funerdrias Dos Mestres! Acaso algum vestigio deles restor Para que um marinheiro de passagem possa dizer-lhe 0 nome, Consagrando-the um simples pensamento? O Arquipélago ja confrontara a presenca do divino no po- der de criar a beleza do génio helénico, em passagens co- mo esta: A Cidade... criacdo magnifica, obra do genio firme ¢ forte. Semelhante as constelagées, forjando peara si mesmo Hames de amor A fir de encerrar em formas grandiosas— por ele construidas— Sua eterna mobilidade. Em busca da unidade — A obra tudo nelas prospera em radiincia es Sempre novo, Hélderlin traca a verticalidade que une 0 céu a Terra, Para cle, a8 formas grandiosas dos templos da polis (cidade) sio semelhantes 4s constelagdes. Em uma intui- cao genial, menciona as formas grandiosas apolineamente encerradas na arquitetura e na escultura, prestes ao desbor- damento dionisiaco de sua “eterna mobilidade”. A luta de per- sas € gregos, em seus episédios mais marcantes, escapa 3 descricio de uma historicidade monétena € alcanca pinca- ros que s6 a leitura completa € atenta da Grande Flegia re- velard totalmente. Em paralelo ao poder genial de criar beleza, é evocado e fim o distanciamento dos deuses (Goltesferne), tal como men- cionei ha pouco. Prestemos atencio a estes cinco versos terri- veis © fortes, que exemplificam 0 obscurecimento do fim de um mundo, antes de uma nova aurora: 58 No entanto, ai de nds! Nosset estirpe caminha na Notte Come se fora no Hades, longe dos deuses. Entregue ao labor Da oficina ruidosa, cade um ouve apenas a si mesmo; poderosamente Trabatham esses bérbaros, incessantemente. Seu miseravel esforco Permanece estéril para sempre, como 0 das Fiirias. Nesse instante, devemos suspender a leitura € respirar fun- do. Estamas na noite, no distanciamento do divino. “A atualidade de Hdlderlin”, diz Ernildo Stein, “deve-se ao fato de ter trans posto © limiar de sua época, avangando para o futuro, sem propriamente filiar-se a uma tendéncia estética em voga. Nesse saminho solitério, sem modelos, quande sua obra chegou a maturidade 0 poeta criou algo que, ainda que mergulhado na histéria, ganhou uma historicidade que é atual em qual- quer €poca”. £ impossivel ignorar 0 momento de obscuridade que o mundo atravessa. At6nitos, sofremos dentro da humanidade, que € tinica, o desastre de guerras terriveis, destruicao em massa, campos de exterminio, a ambigiiidade da descoberta da ener- gia nuclear numa hora de rebaixamento da ética humana, a preponderancia de: poder sobre o amor. Estamos atravessando a noite do divino, a espera de um dia que reconcilie tantas contradicées. Terminemos com um dos poemas hélderlinianos da loucura, que mais parece uma pequena galixia, perdida nessa grande noite: A beleza & propria das Criancas, Uma imagem de Deus, taluex. Tem a caima ¢ @ silencio Que se lowva também nos Anjos, i Esta matéria corresponde 4 edicdo de uma polestra proferida pela autora na Biblioteca Mario de Androde, em Sé0 Paulo, a 26 de maia de 1999, durante o evento “Os Limites da literatura”, realizade pela Secrefcria Municipal da Cultura, concebido e orgonizade por Claudio Willer so LAWRENCE FREEMAN: & monge da Ordem Benedilina Olivefona. Foi discipulo de D. Jahn Main, OSB, temando-se ay sucessor no fe assisiéncia pritica das Meditogdo Cristé INTRODUCAO A MEDITACAO CRISTA Cc onsidero muito inspirador © crescimen- to nao s6 de grupos de meditacao, mas também @ de um senso de comunid tre as pessoas interessadas. Tenho a firme ide en: conviccio de que esse sentimento, que bro- ta dos grupos ¢ cresce, 6 um sinal de espe- rainca para todo o mundo, Em geral, acredi- tamos que a meditagio é uma atividade soli- tiria, Achamos que a comunidade surgiré se conversarmos sobre ela, ¢ no pelo fa ncio. Mas €xis- nao cabe nas as pessoas meditarem em sil te uma misteriosa realic! palavra quando simplesmente partilhamos a prat meditativa. ?ara mim, ¢ importante nao apenas o que transmito com palavras, mas o tempo que pass meditando junto com as pessoas. E © que acontecera aqui. Antes, porém, eu gos- tara de expor algumas idéias sabre o senti- mento do sagrado, ¢ como cle emerge da pri tica meditativa. © ser 60 O circulo de pedra — Ha pouco tempo estive no norte da Inglaterra, onde fui visitar um grupo em uma regido remota € antiga — uma pequena pardquia, once existe um antigo cir- culo de pedra. Sabe-se que ele foi construido ha cerca de qua- tro mil anos, mas nao se tem um conhecimento exato de sua significacao. Quando cheguei, 6 sol estava se pondo. Tive a am de 20 a 25 pessoas sentadas ou surpresa de ver que Id estav de pé, em siléncio. Esse circulo de pedra esta sobre uma montanha ¢ tem ac so ficil no sentido les de maneira que de ld se peree- be perfeitamente a aurora ¢ 0 creptisculo. Assim conseguimos ver o sol, o que nao é muito freqiiente na Inglaterra um momento muito sagrado, muito misterioso: estavamos juntos e comungavamos alguma coisa, mesmo sem saber intelectual- mente o que aquelas pedras eram ou para que serviam. Po- diamos sentir uma espécie de unidade, naquele lugar, Para mim, 0 fato de algo assim estar acontecendo lembrou-me de nossa escolha dos momentos de meditacio: pela manha e ao entardecer. Pessoas de todas as partes, de todos os tempos, parecem sentir essa necessidade de entrar em sintonia com 0 sagrado nesses momentos e, por meio deles, harmonizar-se com 0 sen- tido ¢ o significado do sol nas varias estagdes. Quando medita- mos de manha ¢ ao anoitecer, ligamo-nos naturalmente a & periéncia dessa tradicao. Quando dizemos — 0 que hoje é freqiiente — que nao temos tempo de meditar a tarde, estamos nos separando dessa wadicao, @o antiga, que esti ligada a éncia do ser humano. Esse senso do sagrado, do tempo relacionado ao sol, faz parte da natureza humana. E por isso que logo mais iremos meditar Quando meditamos de manha e 4 noite entramos em uma peregrinacao, em uma caminhada, € cada vez que o fazemos nos vemos em outro lugar. Muitos cle nds se recordam do sitio onde pela primeira vez tiveram a experiéncia da meditacao, onde sé sentaram para meditar seriamente. Desde que come- camos nossa jornada espiritual — na verdade, nés a iniciamos desde o momento da concepeac —, nos lembramos desse: mentos, que foram pontos de mutaglo e nos quais entramos em um nivel mais profundo da experiénei: Gostaria de falar um pouco sobre um mapa geral des jornada. Em geral nos sentimos perdidos, desencorajados. Mas mo- meditatr a se tivermos um claro senso de diregio, nio perderemos em Y40 © NOSSO tempo. Muitos mapas de jornada espiritual foram oF compostos, segundo as mais diversas experiéncias. Existe um grande numero deles, mas falarei apenas de um. Aque- las pedras, Id na Inglaterra, talvez sejam um exemplo dessa cartografia. E importante que nao nos apeguemos a esses roteiros, por- que eles se referem a uma realidade espiritual que na verdade nao pode ser colocada em palavras nem diretamente carto- grafada. Por isso, sempre foram usados grandes simbolos para expressar o significado dessa jornada, como a mandala, 0 labi- rinto ¢ a espiral. Nao posso desenhar o labirinto, porque é complicado, mas sei que vocés conseguem imagina-lo. A jornada espiritual nao comega linearmente. Ela nao tem inicio, por exemplo, na Ave- nida Paulista, e segue até o Mosteiro de Sao Bento. Durante o seu trajeto, julgaremos sempre que aparentemente estamos no mesmo ponto. Teremos a sensagao de que nao fizemos ne- nhum progresso, de que estamos marcando passo. Entretanto, mesmo que na aparéncia estejamos a cobrir 6 mesmo territa- rio, a repetir as mesmas passadas, na verdade estaremos dando cada passo em um patamar diferente € novo. Isso pode ser um verdadeire consolo para muitos de nds, que sentem ter algu- mas falhas que gostariam de erradicar, mas que insistem em continuar conosco ao longo de toda a viagem. Se examinarmos a vida dos santos, perceberemos que eles nfo eram individuos perfeitos. As vezes nem mesmo eram pes- soas simpaticas ¢ bonitas. Porém, eresceram no amor de Deus, e pot meio desse crescimento conseguiram dar algo & humani- dade. Mesmo que certas caracteristicas se mantenham conosco. podemos tomar consciéncia delas em um plano diverso, de uma maneira diferente. Essa nogiio de niveis diversos de cons- ciéncia € muito importante quando pretendemos perceber o conjunto da nossa trajetoria espiritual. Niveis e mapas — Deixem-me entao sugerir um mapa mui- to simples. Lembro-me perfeitamente de quando fui iniciado por D. John Main na meditacao, ha vinte anos. Nao foi um. momento dramatico. Nao mudei de repente. Algumas coisas reza daquele nfe-se € repita o continuam as mesmas, mas recordo-me com cls instante. D. Main simplesmente me disse mantra”, Sentei-me ¢ comecei a repetir. Falemos agora sobre esse mapa. Come¢aremos em um pon- to que chamaremos de primeiro nivel. Trata-se de um plano de muita distragao e turbuléncia. 62 Pode acontecer que escutemos uma palestra muito interes- sante sobre meditacao, ¢ digamos que gostariamos de comecar a praticé-la. Entio sentamo-nos — € deparamos com a tealidade turbulenta que ha dentro de nds. Por exemplo, se ficarmos agora em siléncio, a primeira coisa em que pensaremos sera, provavelmente: “O que vou comer quando chegar em ca % se ainda nao tivermos comido. Ou: “Sera que vou comprar um telefone celular, ou trocar o que j4 tenho?” Ou: “Como amanha terei um dia ocupado, vou aproveitar para plane Qu entao pensaremos em como foi o dia de hoje, nos contatos que fizemos, no que aconteceu de bom. De repente, lembrame- nos de que deveriamos estar repetindo o manta ¢ voltamos a ele. Vamos repeti-lo durante uns trés segundos, e de novo vem uma outra turbuléncia mental ¢ embarcamos em noves pensa- mentos. Nada disso € muito bom para © nosso orgulho espiti tual. Podemos pensar, por exemplo, que o Dalai Lama medita de outra forma. Essa pode ser uma experiéncia extremamente desenco- rajadora. Vocé gostaria de chegar & quietude, ao siléncio em telagio ao espirito, e simplesmente nao consegue. E aqui que a maioria das pessoas deixa tudo de lado e di: jom, isso € muito dificil para mim, eu nic consigo, ndo sou feito para meditar”. E muito importante saber que tudo isso acontece nao por que a meditagao € dificil, mas porque ela é muito simples. Essa é a questao. Talvez pensemos que uma saida seria comecar a estudd-la. Entao faremos cursos, assistiremos a palestras, compraremos livros sobre o assunto, Acabaremos nos tornan- do experts em todas as linhas, em todos os tipos de pritica meditativa. F interessante conhecer as outras tradicdes, mas nao € essa a questao. Saber tudo sobre a meditagio nao melho- ra sua pritica. Praticd-la é completamente diferente de estuda- la. Ha outras tradigOes que tem mantras, mas ndo se trata disso, € sim de simples execucao. Esse € outro ponto em que as pessoas renunciam, param de meditar talvez por uma semana, lo agora” um ano. E muito importante a existéncia de um grupo, porque cle apoia a experiéncia de cada um. Escutamos as pessoas e pereebemos que elas tém as mesmas dificuldades. A experién- cia de cada um resulta em suporte mutuo. Se vocé tiver persisténcia, entrara em um processo simples € misteriosa, no qual o mantra o conduzira gradativamente a um nivel de consciéncia mais profunde. Vocé poderd observa- lo enquanto acontece, ¢ vera que ele da varios frutos, em termos 63 de nivel de consciéncia, isto é, da maneira como percebemos as coisas. A semente de mostarda — Jesus contou, em uma paribo- la, que 0 Reino dos Céus € como um homem que tomou uma semente e plantou-a no chao. Ele foi embora, deitou-se, dor- miu e voltou na manha seguinte. Durante todo esse tempo, a semente crescera na terra. Como? Ele nao sabia. No tempo certo, alguns brotos comecaram a surgir do chao, segundo o ritmo da natureza. Essa paribola destaca o processo natural do crescimento. Jesus falou, por exemplo, da semente de mos- tarda, que € pequenina, mas cresce e dé origem ac maior entre os arbustos. Hojé somos pessoas impacientes, queremos resultados imediatos, nao sabemos esperar. Mas nao podemos, por exem- plo, fazer com que o sal se levante mais cedo, nem com que ele se ponha mais tarde. Nao podemos apressar a jornada espi- ritual s6 porque somos impacientes. Uma qualidade espiritual importante, que aprendemos por meio desse processo, € a paciéncia. Nesse ponto, atingimos o segundo nivel de cons- ciéncia. E como se ele fosse o winchester do nosso compu- tador, onde esto armazenados todos os programas e informa- goes importantes Tenho um amigo, expert em informatica, que me disse que estio desenvolvendo um sofitware por meio do qual podere- mos recuperar tudo © que tenhamos alguma ves posto em nossos computadores, Isso nos faz ver que somos, por meio do corpo e da mente, mais muravilhosos do que qualquer com- putador que foi ou poder ser feito, porque realmente pode- mos nos lembrar de qualquer coisa. Corpo e inconsciente — Muitas vezes, nossas lembran- ¢as nao ficam na mente: passam ao inconsciente. Do que nos aconteceu ¢ de tudo aquilo em que pensamos = seja reali- dade ou fantasia — nada se perde. Essas experiéncias e me- morias podem ser transformadas ou simplificadas, mas nao erradicadas. Muitas delas envolvem sofrimento, como no caso em que entramos em contato com lembrangas da infancia. Podemos racionalizi-las para evitar que elas aparecam, por exemplo, como viveneias de abandono ou de rejeicao. Faze- mos o mesmo com decisoes que lomamos, Ou erros que Come temos © que hoje nos causam mal-estar. Poderos lembrar-nas de algumas dessas experiéncias, lidar com elas ¢ resolv 64 Mas ha outras que permanecem no inconsciente ¢ como que nos controlam, bloqueiam-nes 0 caminho. Ao meditar fazemos um trabalho espiritual, mas ele tem con- seqléncias diretas em nossa estrutura psicossomatica, As distracdes que encontraremos nesse segundo plano meditativo serio diferentes. No primeiro cram circunstincias do aqui-e- agora, Mas nesse retomaremas as experiéncias dificeis por que passamos. Nao se trata de um trabalho psicanalitico. Nao estamos querendo analisar essas recordacbes e experiéncias. Muitas delas, inclusive, continuario profundamente situadas no inconscien- te. Mas outras conseguem emergir até a consciéncia, e de re- pente podemos nos flagrar lembrando algum rclacionamento passado, algumas vivéncias de que nem tinhamos mais lem- brancas. Algumas delas, é claro, podem conter uma grande carga de ansiedade. Minha mae morreu ha dezesscis do fui visitar o seu timulo, eu pensava que a dor e o mal-estar que senti naquela Epoca ja haviam passado. Mas quando es em pé diante de sua sepultura, de repente me veio uma onda imensa de dor e eu me vi chorando. Senti-me melhor, depois. Nao tinha a menor idéia de que essa emogio ainda pudesse estar em mim. Nao podemos ignorar esses fatos — € a meditagdo nao os ignora. Ela mos poe em contato com a profundidade do nosso ser. Isso no quer dizer que a cada vez que meditarmos experiment Mas € preciso entender que @ processo meditativo. nos aproxima dessa realidade humana total e pode representar uma espécie de cura. © perigo do primeira nivel 6 que vocé abandone a medita- ¢40 por sentir-se desencorajado. No segundo plano, € possivel que também haja um desencorajamento. Mas aqui o pior peti- go talvez seja o de voce descobrir-se em amor apaixonado por si mesmo. Vamos a um exemplo. Ande um pouco até o MASP e veja a exposicdo de Caravaggio, onde esté aquele belissimo quadro que mostra Narciso enamorado, totalmente envolvido com a sua imagem refletida num pogo, talvez a uns poucos segundos ce tombar finalmente nele, No segundo plano meditativo, o perigo é que vocé se torne absorvido pela contemplacio de sua propria complexidade psicolégica, Nesse ponto, é preciso ter uma visdo muito clara ‘iplina do mantra. Ela consiste em voltar a ele tao logo nos damos conta de que © deixamos, £ necessirio persistir. Muitas pessoas param nesse nivel, e confundem o trabalho espiritual anos. Recentemente, quan- va mos emocdes intensas da di com a atividade psicoldgica. Se persistirmos, porém, @ mantra nos conduzird a um plano mais profundo de consciéncia “A nuvem do nao-saber” ~ Este € o terceiro nivel. E dificil explicé-lo. Nele, voc? experimentard outra espécie de distra que nao é superfi dos planos anteriores. Aqui vocé encontrara a raiz da distragao, a primeira de todas — o ego. Ele Sa imagem no espelho da con: linguagem de computador, trata-se de uma imagem interativa. Nesse estigio, encontramos nosso senso de autocon: nosso sentimento de “eu mesmo”. Ha uma bela descri¢ sa experiéncia em uma obra do século 14 sobre meditagiio, A nuvem do ndo-saber. Em suas paginas, ha a idéia de que nesse plane entramos em contato com a autoconsciéneia nua de nds mesmos. Nao estamos mais vestidos com nossos habitos, nos- sos trajes de trabalho diario. Nao mais nos trajamos com as imaginagées ¢ a pantomima do teatro do nosso inconsciente Estamos nus. Nas palavras do autor, esse € 0 ponto em que diariamente tomamos nossa cruz e a carregamos. ‘A distragdo que ocorre nesse plano € o senso inflexivel de raiz de nés mesmos. Trata-se de um estado perturbador, por- que é um sentimento de separacao. Nao gostamos de estar em contato com essa realidade, porque ela representa a consc cia de um medo que esti em nés, E um medo de raiz, da alma, 9 pavor de estar sozinho. Nao importa o tanto de coisas mate- riais que tenhamos, ou a complexidade psicolégica que encon- tramos no segundo nivel. Nesse terceiro estagio, defrontamo- nos com essa sensacio de isolamento do nosso ego A nuvem do ndo-saber diz que essa experiéncia nos leva 4 dor da existéncia. Nao € 0 que ocorre na depressio. Também nao corresponde ao desapontamento, 2 dor que sentimos por ter feito algo de errado, Trata-se da dor que brota dessa sensa- cdo de nossa existéncia como entes isolados, separados. Nao hé nada que possamos fazer. Nao ha nenhum truque, nenhu- ma magica, nenhuma técnica. Temos de esperar. E aqui que, mais que nunca, nos damos conta de que o mantra é um cami- nho de fé. Quando chegamos a esse ponto, aprendemos a disciplina a que o mantra pode nos conduzir. E entao, alguma coisa ocorre de um modo que nao conseguimos observar. Acon- tece como se algumas pedras se soltassem de um muro ¢, atra- vés desse buraco, pudéssemos ter um vislumbre da verdade. Basta um momento, um lampejo, para sermos banhados por uma esperanga que ira durar por toda a nossa vida. I como a 66 A meditacao € um trabalho maravilhoso. Aes poucos, no dia-a-dia, esses blocos, essas pedras, vio se deslocando, e va- mos percebendo a realidade de uma outra dimensio do ser. E aqui que podemos entrar na experiéncia do espirito. Na visio crista, € nesse momento que comega a se formar a experiéncia mais importante: o reconhecimento da presenca de Jesus res- suscitado. Lembro-me de uma historia do Evangelho, na qual Maria Madalena foi, no domingo, ao timulo de Jesus. O sepul- cro estava vazio. Ela saiu procurando pelo corpo de Cristo. Esse ¢ o Jesus hist6rico ¢ muitos livros hoje falam disso. E curioso que se continue escrevendo tanto em bus Jesus histérico. Onde estaria ele? Maria sai a procuri-lo e, quando o encontra, pensa que é um jardineiro. Preocupada, pergunta a esse homem se ele sabe para onde levaram o corpo. “Por que vocé esta chorando?”, retruca ele (nos Evangelhos, Jesus sem- pre faz perguntas). “Levaram 0 corpo do meu Senhor. Nao sei onde © colocaram’, responde ela, sem saber que est4 conver- sando, como muitos tedlagos, com Jesus Cristo. “Marial”, exclama Jesus. E ela, voltando-se para ele: “Rabi, meu Mestre!” Nesse momento, no qual Jesus fez Maria Madalena conhecer 0 scu mais profundo ser, ela conseguiu reconhecer 0 verdadeiro Jesus. Simone Weil escreveu: “Ele vem a nds escon- dido, € a salvacao consiste no fato de que o reconhecamos”, £ nessa dimensao do espirito que acontece a experiéncia do re- conhecimento. Jesus € o nosso guia nesse outro lado do muro, essa parte que nao conhecemos. © espirito de Jesus nos toma com ele ¢ nos conduz no resto da nossa jornada, que € infinita € segue a direcao do espirito de Deus. A luz dessa experiéncia, comecamos a pereeber que o con- junto da nossa trajetéria € espiritual, e que aquelas trivialidades e coisas praticas do primeiro nivel e& se Contexto. Tudo comega a se ligar, e principiamos a perceber a totalidade do nosso ser na experiéncia, Podemos ainda nos distrair, quan- do sentamos para meditar, no primeiro nivel. No segundo, é possivel que continuemos um pouco desligados, um pouco preocupados, incomodados com 0 que nos. acontece. E de novo precisamos tomar ¢ Carregar a nossa cruz cada dia, mas em perspectiva completamente diferente. No terceiro estagio, po- rém, uma nova experiéncia entrou em nossa vida. Na verdade ela sempre existiu, mas agora temos consciéncia dela. Essa dor da existéncia, da qual a Nuvem do nao-saber fala com tanta propriedade, cada vez mais se transforma em uma experiéncia diferente de alegria. a do ao fora des Fis, portanto, um mapa simples. Existem muitos milhoes de planos entre esses tres de que falei, mas acho que a visio global que nos da essa carta geografica nos ajuda a persistir € nao abandonar o trabalho, em especial quando se tem 10 completa do que realmente significa o mantra, do que ele nos permite alcangar. [THOT] Nota DA REDAGAO: Esto molérie corresponde & edigao de uma polesira dodo pelo autor na ‘Associagéo Polos Athena em 26.08.98, 68 SUZETE CARVALHO é pés-groduada jpela Universidade de S60 Poulo (Filosofia do Direito « Direito do Trabalho), conferencisia © professora. da Associegao Polat ‘Athena. SUBMISSAO Para sair do condicionamento: a necessidade de uma ética | de reaprendizagem e transformacao. 69 oe emprego do prefixo “sub” pressupde a nogao de hierar quia, j que traz em si uma conotagao de inferioridade A idéia de hierarquia esta ligada 4 nocao de poder, comando, autoridade, dominagio. Toda dominagio pressupde neces riamente submissdo. Submeter-se, portanto, pode ser enten- dido como colocar-se abaixo ou sob a dependéncia de algo (que pode ser uma idéia, um regime politico, uma paixao) ou de alguém. Denota, assim, muito maior abrangéncia do que a vulgata de que a submissdo é caracteristica meramente fe- minina, tio s6é comparavel 4 resignacio a vontade divina, sao patriarcal que nos vem nocio arraigada na milenaria v sendo sistematicamente transmitida 0 imprinting cultural — © condicionamento da sociedade aos conceitos wadicionais e lineares do pensamento racional faz com que sejamos basicamente submissos, nao so as id¢ias de hierarquia e atomizacao nele contidas, como as nossas pra- prias emoc6es, nao trabalhadas devido a supervalorizagio do raciocinio logico. Ha como que uma impressao matricial inde- lével, um imprinting cultural (Edgard Morin), que recebemos desde a infancia, a estruturar nossos pensamentos e limitar nos- sas acdes. Esse estado nos tiraniza a ponto de enfraquecer, ainda que temporariamente, nossa intrinseca capacidade de luta, en- tendida esta como um caminhar para a liberdade. Na busca de libertagio, o trilhar da alma pela experiéncia — que nao prescinde, nos estégios iniciais, da concep¢io bipolar da reali- dade, fundada na dor e no prazer — deve orientar-se no senti- do de maior conscientizagao ¢ discernimento (ver € ouvir claramente) e€ superar toda tendéneia A desmesura (hibris). Assim, o abandono de excessos duais (violéncia/passivida- de, 6dio/idolatria, moralismo/concupiscéncia) nos leva a um estado mais harmOnice ¢ condigne de ser ¢ viver, € auxilia a formacao de um nove caldo de cultura, mais apropriado a transcendéne: A disponibilidade para accitar um estado de sujeigio pode estar relacionada 4s mais variadas quest6es, das politico- econémicas 4s religiosas, s6cie-culturais, ideolégicas ou fa- miliares. Nessa dinamica, somos levados a nos submeter, prin- cipalmente, ao modo de pensar individualista ¢ fragmentador que realimenta, com ares de modernidade, arcaicas dualida- des como forte-fraco, rico-pobre ¢, conseqiientemente, domi- nador-dominado. Preconceitos e minorias — A violéncia simbdlica contida nesse pensamento bipolar, que apresenta como realidade insofismavel a nocao de uma culpa imanente nas diferencas (cada um tem o que merece), gera a inseguranga e o medo, que contribuem para maior fragilizacao do eu individual ou coletivo, ¢ favorecem a hegemonia do autoritarismo — contra- partida da submissao. A lei do mais forte, fundada na com- petitividade e na violéncia, subjuga intelectual ¢ moralmente a maior parte da populacao. Esta, embora se suponha enca- becada pelas mulheres que dela representam mais da metade, é composta principalmente por um imenso contingente de hipos-suficientes de ambos os sexos (os deficientes civicos). Acresca-se a estes toda uma gama das preconceituosamente chamadas “minorias” — objetificadas em esteredtipos vulgares -, e teremos os excluidos de sempre, condicionados a um estado ci de conformismo ¢ apatia estagnadores. A hipossufic |, ques- to sempre polémica, é vista, quando reconhecida, come um problema meramente econdmico. No entanto, suas conse- qiiéncias refletem-se dramaticamente nio sé nos campos do trabalho, justi logico, dos quais nao chega sequer a ser alijada, pois ndo tem a minima chance de entrar. A dor do reconhecimento da propria fragilidade, some-se 0 medo da liberdade. Esta se mostra perigosa, pela possibilidade de acarretar a perda de um bem maior, representado pela prole ou por um false status (a “rainha do lar’, 0 “operirio-padrao”, © “intelectual do ano”), ou de parcos bens econdmicos, cuja precariedade de posse é ingenuamente desconsiderada. A vi- (0 linear, que nao percebe a impermanéncia de todas as coi- umenta de modo alienado ou tendencioso a importincia dessa precaucao, que tem como agravante a insergio em uma sociedade cujo fundamento é a materialismo e, conseqtiente- mente, © apego. A esse medo da perda, junta-se ainda a também ilusdria seguranca de viver sob as asas protetoras de um “pai” — repre- sentado pelo Estado, 9 patric ou o maride todo-poderoso -, que teria 0 condao de nos isentar de responsabilidades. O temor infantil da rejeicdo paterna renasce e se apresenta co- mo insuportavel a um ego agora fragmentado pela introje- cao da culpa individual ou social. Forma-se assim um quadro protelatério de decisdes, cada vez mais propicio a instala- > do conformismo. E dessa dependéncia medrasa que, co- Krishnamurti, nascem todos os nassos problemas, pois a € satide, como no social, educacional ¢ tecno- onde houver medo haverd ansiedade, Gdio, citime, posse € dominagio. H4 que considerar ainda eventuais tendéncias inconscientes a desvios psicoldgicos ¢ comportamentais, em geral manipula dos individualmente ou de forma generalizadora ¢ estereotipa- da, como caracteristicas de género. Um exemplo classico € 0 alegado masoquismo de mulheres e homossexuais. Sem que sejam consideradas as especificidades individuais € a poten- cialidade da alma para a transcendénc generalizacdes radicalizam preconceitos ¢ realcam o dualismo, agora sob a forma “vitima-carrasco”. Banaliza-se assim a viol€ncia nos rela- cionamentos intimos ¢/ou na convivéncia familiar. Por outro lado, ha possibilidade de manipula daqueles que adotam a postura de vitimas. Conscientemente ou nao, prevalecem-se da situacdo ¢ langam um forte apelo emocional ao sentimento de compaixao dos que compartilham © seu entomo. Estes, de modo ingénuo, acabam por ajudar a perpetuar a dualidade protegido/protetor. Para Marilena Chaui, essa vitimizagdo concentra agir¢ agao em maos das nao-viti- teazendo justiga de fora para os objetos de sua compaixdo. s “vitimas” alienadas como que se comprazem na chan- tagem emocional de filhos, amigos, compadres, vizinhos com- padecidos, ou mesmo de membros de incautas organiza assistenciais. Todos estes, 4vidos por diminuir caréncias, acre- ditam cumprir sua 1 © alimentando a dependéncia infantil e ociosa dessas almas imaturas ¢ inconseqlientes, que por sua vez se tornam algozes de seus bem-intencionades protetores. Inaugura-se assim um novo circulo vicioso. As partes envolvidas se esquecem de que o discernimento é um pressuposto indispensavel para 0 cultivo e aprimoramento s como o amor @ a compaixdo, cuja exis- sentido no exercicio cotidiano da solidariedade respons |e transformadora. Caso contrario ele se anulara no perverso jogo de poder que rege as'relagdes de autoritarismo. Muitas vezes, a aparente “vontade de servir” pode estar aco- bertando um desejo de participar da tirania, pois, como pon- dera Nancy Mangabeira Unger, “dominac&o ¢ servidao falam do mesmo”. Dessa forma, a alma se perde nessas insondaveis € contradi- torias regras de dominagao. De um lado, é pressionada pelo desejo de felicidade. Do outro, sofre a pressio de um superego rigido ¢ avassalador. Como conseqiiéncia, ela delega ao ego (sua instincia relacional) a busca de uma saida “honrosa”. E de sentimentos nobre: téncia 6 im, a adogao de mecanismos de defesa. Estes se revelam como violéncia contida, entre outras formas, na aparente sub- serviéncia ou humildade afetada, caracteristicas de uma perso- nalidade violentada que reflete 0 cinismo vigente. © sentido de humildade, presente nas pregacdes e exem- plos de grandes homens, assim como o de paz, amor ¢ toleran- cia, ndo tém a ver com relacdes de poder, mas com o respeito pela igualdade ¢ a dignidade de todos os seres. A humildade é uma virtude inata, sacrificial e consagradora da alma. Nao com- bina com o servilismo medroso e hipécrita de quem se inclina diante de outrem, com 0 coracao magoado ou manchado pelo 6dio (Mahatma Gandhi). A falsa harmonia exterior e interior da raz tornar-se insustentavel, a ponto de inviabilizar todo dialogo — pressuposto basico do conviver —, levando, em momentos de crise, a explosdes de violéncia irracional por uma ou ambas as partes envolvidas na relacio de dominacao, sejam elas coletivas (Estado versus povo), ou individuais, ou familiares. Registros histéricos das conseqiiéncias desse relacionamento tiranico, analisados sob um prisma transdisciplinar (antropol6gico, cul tural, religioso, s6cio-politico, filos6fico ¢ psicalagico), reve- nos de dor e destn lam paro: A reflexdo transformadora — Uma realidade to trigica, : nao for passivel de ser totalmente evitada, dado 9 limi do estado de consciéneia atual, poderia ao menos ter seus efeitos diminuides por uma mobilizagao nao-reacionar consciente ¢ persistente (ativa € pacifica, diria Gandhi), das almas sofredoras. Eis alguns dos fios que sustentam a relacio autoritarismo/ submissao: a ignorincia de prineipios éticos fundamentais como © respeito 4 dignidade humana; a desconsideracao com que sao tratados os clamores ecolégico-ambientais da natureza e seus filhos desfavorecidos (racionais ou nao); o desmesurado e egdico apego a que fomos condicionados; a prepoténcia mono- loguista da tadigao patriarcal; ¢ 0 senso comum inadvertida- mente ideologizado. Desfazer os imimeros nds dessa complexa trama requer co- ragem (agit com © Coracdo, sem medo), paciéncia e vontade. Sao meros instantes e detalhes, diante da longa peregrinacio e da inimaginavel potencialidade da alma, sujeita (parafraseando Sartre) a uma unica condenacao: a liberdade. Olgaria Matos lembra que a filosofia sempre teve a atribuicho de consolar , mas a alma sofredora. Assim como a medicina nasceu das necessi- dades do corpo, a reflexao filosofica surgi como uma medici- na da alma, uma afirmagao que por si sG recupera a sua voca- 10 curativa original. Acredito que a filosofia poderia ser util ao desenvolvimento de uma autovacina, um antidoto eficaz para o veneno da submissio — que € um dos mais virulentos, por conter em sua formula um elemento desagregador da convivénc Contande com aportes da sociologia e da psicologia, entre outros, ela favoreceria o reconhecimento da participacao de ambos os sujeitos (carrasco/vitima) na situagao, repensan- do-a em termos de didlogo e parceria, no sentido de uma ago transformadors Tempo de reaprender — A idéia de parceria igualitiria de direitos e deveres entre todos os atores sociais vem encontran- do respaldo em investigagdes cientificas, como as recentes des- cobertas arqueolégicas ¢ a reinterpretacdio de pesquisa riores, que leva em conta elementos transdisciplinares. Suas conclusoes orientam-se no sentido de uma desmitificagao de civilizagdes arcaicas pré-patriar nas quais a coexisténcia pacifica e nao hierarquizada nao impediu o florescimento da cultura, das artes e até da tecnologia como implemento agrico- la e doméstico. fata também ao socialismo utépico e cientifico, a idéia vem sendo aos poucos recuperada nas Ultimas décadas por movimentos pacifistas, encabecados por ecologistas ¢ lideran- cas de trabalhadores e sem-terra, bem como “minorias” negras, feministas, homossexuais ¢ de deficientes. Nao obstante as migalhas legais ja conquistadas, 0 apoio de renomados estu- diosos e organizacdes (geralmente nao-governamentais) sera insuficiente para a transformacao de mentalidades e atitudes, se ndo houver também um empenho individual constante no sentido de sacudir a mesmice. Substituir o medo ¢ 0 conformismo por um trabalho interior fundado na coragem de encarar nossos prdprios erros e nossa incapacidade de enfrenta-los, a par de assumir uma postura ativistas mais critica e alerta, seria um bom comego. A submissio as injungdes externas, aliada ao desconhecimento de nossas pré- prias potencialidades, nos torna marionetes nesse teatro de ambicdes egdicas, onde os personagens se deixam manipular pelos dedos dgeis e atentos daqueles a quem aproveita o espe- taculo, sob os aplausos da platéia alienada Essa € a tragica realidade que se nos apresenta ciclicamente, ‘iva ins: e redunda em uma progr isfacao de alguns persona- gens e assistentes mais sensiveis aos lamentos da alma aprisio- nada, que incentivam os demais a sair em busca de novos paradigmas. A meu ver, esse momento de crise ou de novas escolhas é de fundamental importincia. Mas 2 opcio tem que ser criteriosa, para que nao reverta em fundamentalismos, cuja estrutura, embora dissimulada em promessas de felicidade eter- na, contém em si 0 mesmo autoritarismo que favorece o estado de submissio. Para 0 tedlogo Leonardo Boff, vivemos a crise da moder dade, “de nosso modo de ser e de ler 0 mundo”. Ou seja, atravessamos uma verdadeira crise do pensamento racional, que se rebela contra a centralizacao num individualismo per- verso ¢ despreparado para enfrentar a complexidade do mun- do moderno. Assim, a melhor escolha seria reaprender a pen- sar o mundo em sua complexidade, reconhecer 0 enriquecedor papel das diferencas, revalorizar a importancia da participacao do outro na vida relacional ¢ reavaliar a nossa propria postura pessoal e social O reaprendizado requer apenas vontade ¢ determinagao, Para que comece a surtir efeitos priticos no cotidiano, cuja transforma¢ao mais rapidamente se fara quanto maior a aten- lo que dispensarmos as nossas verdadeiras motivacées. Nao poderemos compreender o comportamento do outro se nao en- tendermos © nosso proprio. Isso nos leva 4 questio do autoco- nhecimento, que propicia uma redefinicao pessoal € relacional. O emergir ético s¢ amplia em progressao geométrica, a par- lir das agGes ¢ relacionamentos familiares corriqueiros, até al- cangar as mais complexas estruturas s6cio-econdmicas e politi- idir 0 que fazer, com certeza cas. Se nem sempre podemos de nos é dada a opcao de como agir. Refazem-se assim as situa- Ges relacionais, no sempre-agora que se nos apresenta como possibilidade. Erxor] SUGESTOES DE LerTURA: ‘AAguia e a Galinha~ Uma meidfara do Condigée Humona. Leonardo Bo, Ed Vozes, Petrépolis- BU, 9772. Rede do Pensomento, Krishnamurti, Ed. Cultrix, SB 97, 3 ‘Meus Deménios. Edgar Morin, Ed. Bertrand, RJ, 97; 4 © Gélice © a Espacio — Nossa Histério, Nosso Futuro. Riane Eisler, Ed. Imago, Rl, 84; 5. (©.Eacamamento do Mundo — Ecologia ¢ Espiritualidade. Nancy Mangabeira Unger, Ed, Loyollo, 5E91; 6. © Preconceito. Ruth Cardoso e Outros, Jilio Lerner Editor, IMESR SE 96/97; 7. Vestigios ~ Escritos de Filasofie ¢ Critica Social, Olgéria Matos, Ed. Palas Atheno, SP9B; 8, Vialéncia & Cidadnia, Gielone Neder, Sérgio vs. Fobris Editor, Porto Alegre-RS, 94, —_— = De Freud ‘membro di Sociedode Brasileira do Set 4 Bion pelos caminhos de Lao-Tzu O Tao expresso em linguagem jando éo Tao Lao-Tzu / foo am untranslatable. Walt Whitman 76 Psicanalise, transdisciplinaridade e linguagem — Em marco de 1986 realizou-se em Veneza, Italia, o 1° férum da UNESCO sobre ciéncia e cultura, denominado A ciéncia e as Jronteiras do conhecimento: prologo de nosso passado cultural. O evento reuniu participantes de todos os cantos do mundo e de distintas especialidades, personalidades reconhecidas e, in- clusive, varios agraciades com prémios Nobel. O encontro foi sintetizado num documento, qué passou a ser conhecido como Declaragao de Veneza, Transcrevo seus itens 2 ¢ 2. O conhecimento cientifico, por meio de seu proprio mo- vimento interno, atingiu © ponto em que pode comecar o did Jogo com outras formas de saber, } mentais entre a ciéncia ¢ a tradi¢: esse sentido, reconhecen- 10, do-se as diferencas fan constatamos nic sua oposi¢io, mas sua complementaridade © reencontro inesperido & enriquecedor entre a ciéncia ¢ as diferentes tradigdes do mundo permite pensar o aparecimento de uma visto nova da humanidade, na verdade um novo smo, que poderé condu auma nova perspectiva metalisis ante, tode sistema fe- 3. Recusando-se todo projeto global chado de pensamento, toda neva utopia, reconheeemos, a0 mesmo tempo, a umgéneia de uma pesqui transdisciplinar, numa mudanga dindmica entre as ciéncias “exatas”, *humanas”, a arte ¢ a tradicdo. Nesse sentido, essa abordagem transdisciplinar estd inscrita em nosso cérebro pela interacao dinamica de seus dois hemisférios. O estudo conjun- verdadeiramente to da natureza € do imagindrio, do Universo e do homem, podera, assim, melhor nos aproximar do real © permitir-nos enfrentar melhor os diferentes desafios de nossa época. , 2 we O professor Ubiratan D'Ambrosio , signatario da declaracio, esclarece: Claro que a wansdisciplinaridade nao constitui uma nova filosofia, nem uma nova metafisica, nem ur ciéncia das ci cias e muito menos uma nova postura religiosa. Nem é, como muitos insistem em mostra-l tansdisciplinaridade reside numa postura de reconhecimento de que nao ha espaco € tempo culturais privilegiados que per mitam julgar € hierarquizar, come mais correta ou mais certo ou mais verdadeiro, complexos de explis com a realidade que nos cerca. A transdisciplinaridade repousa , um modismo. © essencial na igio € convivéncia 77 sobre uma atitude aberta, de respeito miituo e mesmo humil- dade, com relagao a mites, religides € sistemas de explicacbes e conhecimentos. A transdisciplinaridade ¢, na sua esséncia transcultural O conhecimento fragmentado dificilmente poder detentores a capacidade de reconhecer ¢ enfrentar os proble- mas © situagdes novas que emergem de um mundo, a cuja complexidade natural acrescenta-se a complexidade resulan- te desse proprio conhecimento tansformado em acio, que incorpora novos fatos realidade, pela tecnologia. dara seus: ‘A Declaragio de Veneza ampliou a credibilidade de todo um movimento cientifico-cultural que, dentro de um rigor conceitual, vem buscando uma humana-unidade no vasto campo do saber. Citemos como exemplo o caso do socidlogo Edgar Morin: Edgar Morin questiona a dispersdo diaspdrica que afeta nao somente o homem, mas © saber sobre o homem, esse arquipé- 30 de ilhas “esplendidamente isoladas” que formam as cié cias ditas humanas € as ciéncias tout court. Ele escuta com incredulidade esses “agougueiros disciplinares”, que dizem a quem queira ouvi-los que € preciso seecionar, retalhar, destrin- char, despedacar o corpo do saber para explici-lo: € necessi rio matar para compreender. A partir desse forum a idéia se expandiu por meio de int- meros encontras, culminando com o 1®Congresso Mundial da ‘Transdisciplinaridade, realizado no convento de Arrabida, Setibal, Portugal, de 3 a 6 de novembro de 1994. * 4s discus- sdes foram sintetizadas na Carta da Transdisciplinaridade, cujos trés primeiros itens transcrevo- o ser humano a uma deter- trutura formal ¢ incom- 1. Qualquer tentativa de reduzi minada definigao e dissocia-lo numa es pativel com a visio da transdisplinaricdade. 2. O reconhecimento da existéncia de diferentes niveis de realidade, governados por diferentes tipos de légica, é ineren- te a atitude da transdisciplinaridade. Qualquer tentativa de re- Jade a um s6 nivel, governado por uma tnica for- plinaridade. duzir a rea ma de légica, nie tem lugar no campo da transdi 3. A transdisciplinaridade é complementar em relacao a abor- dagem disciplinar. Partindo da confrontagao das disciplinas, 78

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