Você está na página 1de 4
Robert J. Stoller fol um Psiquiatra e psicanalista norte- ~americano que dedicou boa par- te de sua pesquisa, na Facul- dade de Medicina da Universi- dade da Califémia, ao tema da ssexualidade, especialmente as. Porversves © & chamada pro- blematica do género, concer rente &formaeao da identidade sexual. Ainda que morto preco- cements em um acidente, dei- xou uma obra extensa, publi- cada, na maior parte, nos anos 70. Apesar de sua importancia, para apsicandlse, ele é um au- tor ainda pouco conhecido edi vvulgado no Brasil". Mas, curio- samente, uma autora como Joyce McDougall, bastante divulgada e reverenciada por ‘aqui tem em Stoller um dos prin- Cipaisinspiradores. Seus traba- ‘hos sobre a perversdo deve ‘acnotte-americanoum de seus Principais fundamentos, que é ‘anogdo de montagem ou cena sexual perversa, como vere- mosa seguir. Usando uma linguagem clara e sem volteios e evitando ‘até mesmo 0 emprego de ter- ‘mos préprios a0 vocabulério Psicanaiftco, Stoller discordava daqueles que contestamo.uso do termo perversao em psica- nalse. Como, para ele, a pre~ senga da hostilidade em re- lagio ao objeto éa caracterist- A erotizacao do édio na perversao Resenha de Robert J. Stoller, Perversion: the erotic form of hatred, London, Karak Books, 1986, 240 p. (edig&o americana original de 1975) «ca central do ato perverso, 0 uso de tal palavra ndo &,afinal, to impréprio. As tentatvas de aboliao deste termo, pa- ra Stoller, derivam de um certo tipo de posturaintelectual~que hoje poderiamos chamar de "po- lticamente correta'~preocupa- dda com as conotagtes morals que ele carrega, ara Stoller, entretanto, a investigagao psicanalitica da perversiio deve ter como esco- Po privilegiado a defnicdo alni- ado termo. Todas as suas for- rmulagdes decorrem desta dis- posigo. Para ele, ofator-cha- vve na definiggo da perversao é ‘a hostiidade: perversao 6 defi- rida como 0 resultado de um interjogo essencial ene host- dade e desejo sexual. Ora, tal ‘concepea0, grosso modo, afr- rma uma certa proximidade en- tre a nogao psicanaliica e a ogo carrente de perverséo. ‘Sem fazé-las necessariamen- te coincidentes, 0 autor, no tentanto, demonstra que a per- verso, na acepgdo psicanaliti- ca, comporta elementos hosts, talcomo ouso comum dotermo tom por suposto. 121 A perversio, de acordo com Stoller, 6 um produto da ansiedade, sendo que o com- portamento perverso molda-se parti de remanescentes ede ‘uinas da histria do desenvol- vimentoibdina, partcularmen- {eda dindmica familia. Ele acce- dita que, se pudéssemos, de modo ut6pico, saber tudo. que ‘aconteceu na histéria do sujeito {us investigamos, entgo encon- ‘rarlamos certamente os even tos histéricos que se fazem re- presentar em detalnes no ato sexual manifesto do perverso. Poderiamos, assim, saber como © por que tal pessoa elevou suas experiéncias sexuais pre- ccoces ~ aquilo que mais prazer lhe causou~a condi de par- todo cenério perverso, LEITURAS Ahipétese do autoré ade que @ perverstioé uma fantasia posta em ato por meio de uma cestrutura defensiva construida ‘gradualmente através dos anos, com a finalidade de preservar 0 prazer erdtico, O desejo de reservar tal gratificagao se- Fa provenionte de duas fontes: um extremo prazerfisico que, pela sua propria natureza, demanda uma repeticao, & ‘anecessidade de manutengao ualiunfante, Lembremos que, na perversdo, 0 prazer sexual 6 salvo pela erotizagao do ris 0, quando ha uma revivescén- Ga inconsciente do trauma mas seu desfecho 6 alterado em fantasia ‘Stoller supe que, quando trauma é complet, talvez nao resulte dele uma perversio, mas sim que a fungio sexual ‘ejasimplesmente apagada, isto 6, dela resuitea abolico dafun- (0 sexual ou aimpossiblidade de exercé-la, Assim, a parver- ‘0 resulta do estrago da fun- ‘980, mas nao de sua dostrui- ‘980. Alguma esperanca ainda subsist. Um outro ponto relevante {da obrade Stoller conceme ao esstatuto do objeto na perversso, Uma conclusto importante des- teautoréade que todo o traba- thode construgao da fantasia a ser enoenada pelo perversotem or corolirio a desumanizago do objeto sexual. Este néo ée nem pode ser ~ sob pena de ccolocar em risco @ montagem perversaencarado como pes- 50a ou alteridade. Multo embo- ra,na pratica, o objeto seja uma pessoa real com sua personall- dade, o perverso nele procura vistumbrar uma cristura sem humanidade ou simplesmente Lum fragmento anatémico oude personalidade. Este fato expi- ca porque o objeto & sempre escartévele tambémnos mos- tra.a razéo pela qual a promis- ‘cuidade faz parte quaseneces- ‘sia da Vida sexual do perver- 0. Em relagao ao fragmento anatémico, Stoler parece refe- rit-se a0 que Freud chamavade objeto parcial: um érgao se- »ualou qualquer outraparte do corpo do parceiro, Uma outra questo que vale a pena examinar, se qui- ‘sermos ter uma visdo mais am- pla da teoria geral daperverso de Stoller, 6a maneiraparicular ‘como ele compreende comple x0de Edipofreudiano, produzin- do uma verdadeira inverséo das afirmagdes de Freud sobre 8 avatares da constitulcao {a identidade sexual do meni- ‘no quando comparados aos damerina. Enfatizando a qualidade da presenca dos pais como modelo identiicatéro para os fihos, Stoller subverte a tese freudiana de que a feminiidade ‘da menina é um destino identi- catériocujo caminho é mais on- go @ tortuoso do que aquele vveriicado no caso da masculi- nidade do menino. Para Freud, a primeira retagdo do menino, Portera mée como objeto, teria 123 um caréter helerossexual, en- ‘quanto que, para a menina, a primeira retaglo seria homosse- xual. Stoller néo privilegia, como Freud, 0 investimento sexual primério como deter- ‘minante da posigéo sexual pri- maria, mas sim @ posig¢ao Identiicatéra incial. Segundo este ponto de vista, onto, tan- to. 0 menino quanto a menina estariam originariamente ident ficados com amae. Assim, para ‘omenino, aingira masculnida- {de implica separar-se dela, rom- ppendo.a unidade mée-fiho. As ccondigSes para que tal proces ‘soocorra de maneira equlibra- {da so dadas pela atitude ma- terna: se a mae forga uma int- midade exagerada com seu- tho, ela estara colocando um ‘obstaculo & formagso de sua idertidade masculin. Como fica patente, este ‘modo particular de compreen- ‘er a formagao da identidade sexual contrasta com postu- lagdes centrais da teoria se- xual de Freud. Em Stoller, nao ha primazia do pénis, mas do seio eda capacidade procriaiva dda mulher. Ele discorda frontal- mente da importincia que Freud atribuia ao pénis, enirevendo nos caracteres femininos os verdadeirs atrbutos que uma ctianga deseja possuir. Uma conseqiiéncia deste modo de conceber a identificagao so- xual 6 a concluséo de que os homens, quando em fantasia, ‘atfibuem um falo a mulher, nd00 fazem—como postuiava Freud para negar ainferioridade femi- nina, mas sim para negara su- ppetoridade da mulher! Portanto, ‘a descrigéo freudiana da for- ‘mago do fetiche ede sua fun- ‘980 precisaria ser reescrita se uiséssemos reformulé-la nos termos da teoria de Stole, Para a menina, original- mente identiicada 4 me, nao haveria necessidade de mudan- (8 ldo intensas para a aquish 0 da feminiidade. J para ‘Omenino, existe a necessida- cdede uma desidentiicago que 6aaltamente ansiégena. Sele ermanece unido & mae, sua ‘masculinidade nao 6 atingida. E como este destino identi- icatrio¢ intensamente exigido pelo meio social, ele se v6 na obrigagdo de obté-lo e, conse- entomonte, na angistiadian- te da possibiidade de fracas sar emtal empreitada, Os fatores etiolégicos da pperversdo, segundo Stoller, en- ‘ontram-se na modalidade da at- tude da mae sua resposta, por assim dizer — frente & necessi- dade de separagio que tem 0 seu iho. O trauma sexual ne- ‘cessério para a consolidacode uma perverséo, repito, deve ‘ocorrer sobre a anatomia se- >xual propriamente dia ou sobre ‘alidentidade soxval. Portanto, Uma aitude da mie contréria & ‘separagio do flo — por con- ‘seguinte, contréria & sua desi- entiicagao—constituium tau- ma da segunda espécie. No cextremo de ta atitude encontra- mos uma mae que nem sequer pormitea sou fino a entrada no Confito edipico, quando entéo ‘ambos protagonizam uma ela 80 idlica da qual o pai se ex: Gi completamente, Stoler v8 ai LEITURAS ‘a génese do transexualismo', que estaria localizada, assim, ‘em um estagio praicamente pré- sexual. Nao se trata, neste caso, de um fracasso na elabo- ago do conflito edipico, mas de algo mais regressivo, que seria a ndo-entradano mesmo. ‘Ao procurar estabelecer ‘uma “genealogia’ tedrica do ‘pensamento de Stoller, depara- ‘mo-nes com uma primeira cick dade, decorrente de seu estilo Peculiar esta genealogia deve ‘ser primordialmenteinferida, & medida que ele nica expiicita, textualmente. Além do mais, Stoller 6 um autor que errite.con- celtos genuinamente préprias, entremeados aos de outros autores ou afrmados por meio da oposigao a formulagdes classicas. Stoller recusa 0 uso cexcessivo de termos préprios, do vocabuldrio psicanalitco, preferindo colocar suas idélas, ‘sobre o funcionamento mental ‘em uma linguagem ordinariae ‘ndo-henmética ou, segundo ele ‘réprio, de modo que todos pos- ‘Sam compreendero que se quer dizer. Empreendimento cific, ‘som dvida, mas que o autor ‘consegue levar a cabo de ma- neira exemplar. Kernberg’, tecendo co- mentarios sobre a obra de Stoller, lembra primeiramen- te que Janine Chasseguet- SSmirgeP 6 uma autora que cha- mou a atengéo para “as conse- ‘liéncias patolégicas de grave _agressao precoce, no proces- s0 de separagao-individuago ‘da mae, particularmente nas vi- Cissitudes da identificago da menina com fungSes femininas. ea toleréncia do menino pela Fivalidade edipica com o pa'-E, prosseguindo, ele rendetributo 2 originalidade de Stoller que, como representante de uma certa tendéncia psicanalitica rnorte-americana, fol quem deu_ um passo fundamental ao enfatizar a importancia deste ‘mesmo processo de separacdo- individuagona génese da per- verso, quando definiu"omedo da feminlidade, nos homens, ‘como sendo uma expresso de ‘suas ansiedades no que diz res- ppelto & perda da identidade se- ual, derivada da identiicagao primaria com a mae, aqualne- cessita ser desfeit, a fim de tumaidentidademasculna poder ser desenvolvide’ Estamos, como 0 leitor pode constatar, diante de um autor original, que investigou ‘com afinco os mistérios da ai- rnamica da perversao © da se- xualidade em geral, acrescen- tando a lteratura psicanalitica idétas que sé0, no minima, aro- jadas e controversas. Prova disto 6 que ele se tornou refe- réncia para autores to diver- sos como Otto Kernberg”, Lonel Ovesey & Ethel Person Masud Khan®, Christopher Bollas", Joyce McDougall, Janine Chasseguet-Smirgel & Jacques André", entre outros. ‘Ainda que sua obra contenha pontos passiveis de critica ou ‘até mesmo pontos especula- tivos mais frageis, como suas incurs6es por uma “teoria so- cial” da perversio", sua obra vveio para ficar a0 lado dos cs- sicos sobre a sexualidade hu- ‘mana, Sua auséncia em nossos meios néo 86 nos empobrece ‘como nos faz atribuir a outros autores idéias que, na verdade, a psicandlise deve al. Notas 1. De aun extensa ob, tte los Fora pbeados no Bras Ap ‘once trates, ag, 382, ‘Masculnidade e fertntads, ‘anes Médicas, 1993, © Odser- fade a imaginacdo ersten, Imago, 1958 2, Tali de lero defi pu ‘Later qu Joes McDougal ‘eta fazer aera a pervendo, 3. EMeDougall, J.C Smiget ‘an so sures que faze, cada tim 2 ua moda, formulagoes Serelhantes est quando sta Soesutuodockyecona pervert Par Mibu Khan, por exempo, © ‘bo mio cha serine (outa = dierent, sparndo © Independente ma algo ltr 124 ‘madro ene 0 proprio eu € 0 ‘mand enema, ou ago que ‘Winnicott denaminen abjeo ronsconal 4. Nao emarel agu nos deaths da teora de Stoller sobre 0 tne ulna ema gue oop em ig de diaow a conta ‘aia Sobre io, ver]. Cae, Problemditcas da idewtidade sexual, Sto Pavlo, Casa do Prt, 00, cba Que a cup detal aunt eqs inl pom ‘de vista de Stoller, trzendo, (qe ele recebeu de Mousa Suen 5. 0. Kemnberg, Agressdo nos transtornsde personae nas perversbe, Pome, Alegre, Aes Media, 195, p. 272273 6 1 Sigel, Hbiqueet nabique ‘dele porersion Pas, Edtions ds arp illon 1984 ©. Kerberg pct 1L Ovesey 8 F Person, “Gender deny asexual payhopatlogy Imeem payehoanayti anase of homosexuality, ansseualam and wansvests nA. Acad ‘jcboanal, 1973 158-72 9. MMR. Khan, Ry Allenaion i ‘ponentons, London The Hogarth Pres, 1979 10.¢ Balls Hr Sto Palo, ew, 2000. 1, J MeDovgall The many faces of “ras, Loin, Fee Assocation Books, 1995. 12.6 Sigel, opt 13.J. André “Introduction; le imarochiame immanent, ‘Lénigme die masocbioe, Pats PF, oo, 14, fo minha intngio entra em ‘eathes, no. prevent tab, Scie ct ponte de obra de Se emi, dia, que Pett ie ‘oma erica detalhada de tal coneepeio. Ver Felxoto Je ‘Metamorjoses ene o seal € octal uma lettre da torte Dricanatica sobre a perena, No de Jane, Chilagio Br ea, 1955, Flavio Carvatho Ferraz & psica- alta, membre do Departamento de Pelcanaizo do Inetito Sedo ‘Sepleao; door om Psicologia pola USP, com pos-doutoramerto Bela PUC-SPr autor dos lnros A ftomidade da macs: Freud ea lca (GP Escua, 1904), Porversao (SP, {asa do Pscsiogo, 2000) © Anca: ios daimaginagso um ext so- ‘re 0s loueas de a (SP. Casa co Pstoiogo, 2000}

Você também pode gostar