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IRMAO DAVID. STEINDL-RAST Vivendco o Credo Apostdlico Prefacio deSua Santicade 0 Dalai Lama . PASTS df [6 NV. PREFACIO DE SUA SANTIDADE O DALAI LAMA Onde quer que vivamos ¢ scja qual for a nossa fé ou nenhuma, temos o desejo de viver a vida plenamente, para sermos melhores € aprimorarmas as vidas daqucles que amamos. E, independentemente do lugar em que surgitam, todas as tradigées religiosas mais impartan- tes so iguais na sua capacidade de ajudar os seres humanos a viver em paz tins com ns outros, consigo mesmos ¢ com scu meio natural. Tive de fato consciéncia pela primeira vex de que a discussie entre pracicantes sinceros do ¢ tianismo ¢ do budismo poderia ser enrique cedora, ¢ um alimento espiritual para ambos, quando Thomas Merton veio me ver muitos anos atrds. A coragem que demonstrou ao explorar tradigGes de fé, além da sua propria, para poder, por assim dizer, expe- rimentar o verdadciro sabor dos ensinamentos que as outras tradigdes representam abriu os meus olhos, Foi uma verdadeira fonte de inspira- sf. Desde entio tenho a sorte de ser amigo de outtas pessoas cuja feliz iéncia da f& em suas préprias vidas espi apreciassem o valor de outras tradigoes, em ver de apreciar somente expel ais Ihes perm u que valor exclusive da sua. Tenho o privilégio nao somente de falar com es- ses homens ¢ essas mulheres cheios de vigor, mas também de compar tilhar suas oragdes ¢ suas prdticas. Uma pessoa que se destaca entre cles € 0 Irmao David Steindl-Rast, conhecido por muitos simplesmente lo 12MAO DAVID STEINDL-RAST + como Irmao David, um monge beneditino experiente ¢ vererano do didlogo inter-religioso ativo. Portanto, é com grande prazer que vejo 0 langamento desta nova obra do lmao David, um live a respeito do qual ele ¢ ew falamos muito, Nesta obra, cle explora como a crenga cist na Criagio © a compreensio do budismo da Originagao Interdependente sio dois indicadores diferentes relativos 4 mesma experiéncia. Ele demonstra como alguém pode permanecer perfeitamente fiel ao comprometi- mento mondstico cristdo ¢ ocidental ¢ ao mesmo tempo ser enrique- cido, digamos, pela compreensio ¢ pela experiéncia budista. E claro que © mesmo se aplica ao lado budista também, De fato, a esséncia do didlogo inter-religioso auténtico deve se basear nessa conviccio. O tipo de coragem que mencionei anteriormente esta mais uma vez presente na escolha de Irmie David do texto do Credo Apostélico, uma expresso fundamental da f€ crista. Ele o aborda perguntando, ponte por ponto, o que significa, como sabemos ¢ por que ¢ importan- te. A sinceridade aberta de suas respostas a essas questées, penctrando na sua propria vida ¢ na sua experiéncia contemporinca, € o que dé qualidade ¢ poder as suas palavras. O Irmao David da muito valor 4 maravilhosa ideia unificadara de gratidao. Gracidao pela bondade do Criador ¢ da criagao evoca claramente a gratitlio pela bondade do Buda ¢ de todos os seres sencientes. Promover gratidao cm nassos co- rages é promover uma mente positiva. E uma mente positiva ¢ algo que finalmente nos traz beneficio ou Felicidade. Estou certo de que muitos leitores compartilharia comiga o sen mento de gratidio a0 Irmao David por sua bondade de escrever este livro. Fevereiro de 2010 INTRODUCAO “DEUS NAO E OUTRA PESSOA” Imagine um mostciro erguide no alto de um penhasco com vista para o ria Dantibio na Austria. Os monges beneditinas trabalha- ram ¢ oraram nesse lugar durante novecentos anos inincerruptos. Sua Santidade o Dalai Lama passou trés dias aqui, juntando-se a nés, be- neditinas, simplesmente como um mange entre autros monges. Orou conasco na capela nas horas de oragdo e comeu conosco no refeitério do mosteito. Foi durante uma dessas refeigdes que cle se vitou para mim e disse de forma abrupta: “Temos tanto em comum, vocé ecu, mas uma coisa nos separa: a ideia de um Criador divino”. Senti uma espécic de desafio, embora nao de fate, no sentido de um confronto desafiador. A voz do Dalai Lama expressou uma verdadeira tristeza em relagéo a um desacordo percebido, uma dor que provocou a minha compaixio, Quatro décadas de participagio dos didlogos budistas! cr Jos haviam me preparado para tudo o que se tarnava 9 foco da conversa naquele momento. Tratava-se de um desafio, tinha que rea- giracle, e rea Nao me perguntem como. Bombeiros tomam decisdes instancine- as num momento crucial, salvam uma vida c depois sio incapazes de di- zer como o fizeram. Numa espécie de breve discurso improvisado, tive 2 + IRMAO DAVID STEINDL-RAST + que fazer duas coisas ao mesmo tempo: permanecer fiel & minha crenga na Criagéo Divina da tradiggo crista ¢ mostrar que cra compativel com acrenga budista da Originagao Interdependente. Tudo era uma questo de criar uma ponte que eliminasse a distdincia entre Criador e criagio, uma distancia meramente cspeculativa ¢ nio bascada na experiéncia. Afinal, o falecido Thomas Merton, monge trapista ¢ amigo tanto do Dalai Lama quanto meu, foi capaz de cristalizar a viséo essencial numa frase de cinco palavras: “Deus ndo é outa pessoa”, Para o mistica, nda ha distdncia entre o Criador a criagéo. Todo o universo € uma cx- presséo da vida divina. A rede césmica de causa e efcita mutuamente interdependence na qual todas as coisas tém sua origem é 0 que.o poeta Kal vé como “o Secreto se tornands lentamente um corpo". Portanto, a crenga na Criagio ¢ a crenga na Originagao Inver- dependence sio duas expressdes diferentes de uma vinica ¢ mesma Fé fundamental — dois indicadores diferentes cm relagio 4 mesma expe: riéncia. A fé como experiénei se encontra num nivel mais profunda do que palavras c conceitos. E um gesto interno através do qual nes dk nossa, embora como um poder maior do que nds O Dak a respeito disso”, encorajando-m confiamos total ¢ incondicionalmente & vida — a vida percebida como Lama sorriu de mancira radiante: “Vocé deve escrever “Com prazer,” respondi, “se Sua Santidade escrever o preficio"; ¢ cle concordou. Nesse momento, fui cu que sorri. No didlogo inter-religioso, a nossa tendéncia ¢ citar a partir das nossas tradigGes respectivas as passagens que os outros podem accitar mais facilmente, Mas, aos poucos, isso comegou a se mostrar para mim um pouco superficial. Senti que para concordar de forma sin- cera terfamos que nos aprofundar; teriamos que testar se mesmo os textos menos provveis — digamos, um credo — ajudariam a aprofun- dar uma compreensao inter-rcligiosa. Guerras foram travadas mes- mo entre correligionsrios sobre esses resumos sucintos de crengas + ALEM DAS PALAWRAS 13 essenciais. Um credo seria, portanto, a pedra de coque perfeita para a possibilidade de acordo inter-religioso naquele nivel profundo que nos interessa. Essa ¢ a razio pela qual escolhi o Credo Apostélico — 0 mais antigo dos credos cristéos — foi assim que este livro surgiu. O Credo expressa a fé humana basica em termos cristaos, da mesma forma que as crengas budistas sio0 uma expressio dessa mes- ma fé humana basica comum a todos. A fé — a verdade corajosa no mistério da vida — nos torna humanos; ¢ cada cultura, cada perfodo da historia, dé a essa fé novas exp ssdies em crengas que sie determ nadas por circunstancias histéricas ¢ culturais. As crengas dividem, mas a fé da qual provém é uma sé ¢ une. A tarefa do didlogo inter- -rcligioso ¢ tornar as nossas crengas divergentes transparentes para a mesma [é que dividimes, Neste livro, tentei aplicar esse princfpio no Credo Apostélico, um resumo das crengas através das quais os cristéos professam a sua fe no batismo. A partir de cada uma de suas afirmagies, usei uma fer- ramenta constituida de trés partes cm cada uma delas, fazendo erés perguntas decisivas. Ao perguntar“O que isso de fate significa?”, tenta abrir a dura concha das nogdes preconcebidas que tende a se format em relagéo a expressiies estabelecidas que ouvimos ou usames com requéncia. Quande essa concha se abre e voc? sabe 0 que quer dizer, frequé i tha se abs @ sabe pergunto “Como vocé sabe?” — como voct sabe que essa afirmacio é verdadcira? Essa pergunta nao nos permite mais freer malabarismos com conceitos, mas nos forga a uni-los & exp iéncia — a experiéncia do Icitor —, visto que é a base para um verdadciro conhecimento. Por fim, cu pergunto “Por que isso é io importante?”, sufi ntemente impor- tante para fazer parte de um documento tio sucinto quanto o Credo, importante, portanto, para aqueles que recitam o Credo. (E possivel perceber que essas tres pergunras ficam cada vex mais pessoais. A f&, junto com as crengas que expressam essa fé, € uma questio muito mais pessoal, ou nao se trata absolutamente de fé.) As minhas perguntas 14 +} IRMAG DAVID STEINDL “O qué? Como? Por qué?” (as quais adiciono breves reflexdes pessoais) dao a este livro o scu formato. Profunda paz interna, um sentimento de fazer parte ¢ uma anco- ragem firme no eterno Agora do momento presente, estes sio alguns dos frutes que homens que lutam através dos séculos colheram da fé cxpressa no Credo. Fala como um ctistio que rezou o Credo pot quase gitenta anos © posso garantir que esses frutos espirituais ainda esto disponiveis hoje tao frescos quanto sempre. Quer se tenha ou nao as crengas especificas expressas na Credo, qualquer um que usar a minha ferramenta constituida de erés partes poderd reconhecé-las como cx- pressOes validas da fé que nos une como humanos, Tenctei promover esse reconhecimento. Vocé, Ieitar, dird se consegui. O que isso de fato significa? A versio original do Credo comeca com a palavea creda, da qual detiva a palavra creedem inglés. A palavea credo é traduzida em ingles por duas palavras J believe [(cu) CREIO]. Devemos analisar melhor a palavra em latim na préxima parte, Aqui vamos nos concentrar no significado de “cu” que fala no Credo. Quem é esse “cu”? $6 quando esto juntas na frase ew eveia, essas duas palavras revelam todo.o seu significado, Uma define a outra, por assim dizer, Quando 0 “eu” que fala aqui “cré”, isso significa muito mais do que accitar uma proposta nao provada como provével; ¢ antes uma expressio da confianga incondi- cional, E somente quando sabemas que isso é o que actedicar significa, que entendemos que “cu” esti falando aqui; © somente esse “cu”, por sua vez, pode acredi mente corajaso pela certeza radical da confianga incondicional pode ser 0 1, no pleno sentide de acreditar, Somente um “eu suficiente- nosso verdadero Eu. O nosso pequeno ego —ao qual nas referimos quando dizemos “eu” — € incapar da confianga corajosa da Fé, Por qué? Porque 0 oposto da fé como confianca nao é chivida, mas temor, € 0 nasso ego cresce com o medo. O ego deve a sua propria existéncia ilustio de ser scparado do todo — esse pequeno eu contra o resto do mundo, Nao é de espantar que se sinta isolado, inseguro ¢ ameacado, O nosso verdadeino Eu esté integrado ¢ salvo na tocalidade do set. © que poderia emer? Ele confi 18 + 1RMAO DAVID STEINDL-RAST + Ao dizer (eu) CREIO, dando as duas palavras da frase todo 0 seu peso, acabamos com a farsa do ego ¢ entramos numa nova realidade. Damos expresso ao que significa ser completamente humano. Vou expressar isso com uma imagem de certa forma estranha, O pequeno X entra numa igreja pequena — tudo peifcitamente inofen- sivo ¢ calmo, Mas chega a hora de recitar o Credo, ¢ 0 pequeno X di “(cu) Creio”, Subitamente ~ 0s olhos voltados para uma rcalidade mais profunda —o cecoe o campanario da igreja voam, as paredes desmoro- ham, o tempo ¢ o espaga ficam suspensos, Tudo o que testa € esse Eu human que compreende tudo no Agora eterna, 0 Credo fala na lingua da religiéo crist@, mas também na voz de uma espititualidade que é mais profunda do que qualquer tradigao em particular, O eu que diz “(eu) CREIO® ¢ o nosso yerdadeiro Eu, o Eu auténtico que tados os humanos tém cm comum. Camo sebemos que é asstm? “Conhece-te a ti mesmo!” ¢ a inscrigio na entrada do temple de Apalo cm Delfos, lugar do famaso oraculo. Mas os gregos antigos nio eram os tinices nesse conselho da chave para a sabedaria. Qualquer ser humano que atinge certo grau de consciéncia confionta-se com © desafio do autoconhecimento, E assim que camegamos a jornada da autoexploragda, descabrimos a distingda entre a eu que observa- mos ¢ um Eu maior que faz a obscrvagio. Nao precisamos dar m detalhes aqui sobre as implicagées. Consclhos confidveis para o auto- conhecimento estio facilmente disponiveis hoje, digamas, nos livros de Eckhart Tolle ou através de Big Mind Process, de Genpo Roshi. No nosso contexto, sé precisamos prestar atengao em dois favo A auto-observacio nos mostra como estamos profundamence enredadas no que chamamos de ego. Nao samos sequer capazes + ALEM DAS PALAVRAS " de parar os nossos proprios pensamentos ou a avalanche de his- térias através das quais o ego mantém a ilusio de ser uma enti- dade independence. 2, Qu mos o Eu. Umi pritica eéo simples qua nto mais aprendermos a viver no agora, mais descobrire- nto ficar alerta & portu- nidade que cada momento nos oferece — oportunidade de respi- rar, desfrutar, aprender — nos fard sentir cada vee mais 4 vontade nese Eu que faz parte do todo. Aino temas medo e pademos nao dar importancia aos esforcos do cgo para se perpetuar, As estituas gregas em geral rém uma perna de sustentagio ¢ uma livre. Iniciantes do autoconhecimento colecam firmemente a sua per- na de sustentagao na consciéncia do ego. O abjctivo do treinamcento espiritual € mudar © nosso peso até o centro de gravidade se apoiar no verdadeiro Eu — a nossa natureza de Buda, como diriam os budis- tas; outras tradigées usam outras expresses. So Paulo eserever “Ja no sou eu que vivo, mas é Cristo que vive em mim” (Galatas 2,20) Tente sentir dentro de vor’, no seu Amago, onde voct € 0 Observador que nao constitui os seus pensamentos, mas pode observi-los, Esse ir-para-dentro revela o scu Eu para voce mesmo — 9 scu cu-Cristo. Quanto mais nos identificamos com essa realidade, mais nos tornamos singularmente nés mesmos ¢, 20 mesmo tempo, uma parte do todo. Somente esse Eu pode “cret” no seu pleno sentido; somente 0 nosso verdadeiro Eu pode ec E por essa razio que o Credo, embora scja uma declaragio da comunidade, nao comega com a palavia ds, mas com exe, Esse Eu humano mais puro ~ Pairusha na mitologia hindu. V'itoi [o Homem no Labirinto] nos mites de Tohono O'odham no Arizona, o Cristo Na edicio original, codas as citagdes da Biblia sio adugdes pessoais do Iemia David Steind|-Rast, Para a ediga0 em portugués, utilizamos, na maiar parce das casos, a taducie da Biblia ae Jerusalém, Sao Paula, Paulus, 2010. (N.T3 20 + IRMA DAVID STEINDL-RAST Césmico, para dar somente wés nomes — fala em mim e através de mim, porque esse & quem de fato sou. Por que isso é tdéo tmportante? Se entendermos as duas primeiras palavras do Credo corretamente, saberemos 0 que “cter” significa e que “eu” esta falando aqui. [ssa mostea que o Credo nao ¢ 0 que a maioria das pessoas acha que ¢, Normalmente & visto como uma proclamagio de crengas através da qual os cristios se diferenciam de todos os outros. Entendido corretamente, contudo, ¢ a expresso de uma fé compartilhada por todos aqueles que encontram ¢ reconhecem o scu verdadcira Eu — ¢ nao hd outra fé. O que as pesscas chamam de fés diferentes so simplesmente sistemas de crengas ieren- tes, expressics diferentes de uma atitude universal da fé existencial. Lon- ge de afirmar diferengas entre “nds” ¢ “os outros”, o Credo atenua essas distingSes. Proclama, na linguagem ¢ na imaginagio da uadicio cris, uma fé que € comum a todos os sercs humanos, Suas primeiras palavras se referem a esse Eu para o qual todas as tradigdes espiritvais aponcarn. Cada uma dessas tradigGes é, por assim dizer, uma porta diferente que dé no mesmo santudrio, Quanto mais encontrarmos o caminho pata esse Lugar interno sagrado ¢ nos tornarmos & vontade mele, mais podere- mos entrar ¢ sair livremente por ¢ssas diversas portas, Nao seremos mais bloqueados pelo que nos parece estranho, tampouco nos apegaremos ao que é familiar, © bom senso nos diz como ¢ viral essa compreensio num mundo ainda dilacctado por gucrras de religiéo. Ha ainda pessoas que aparentemente acham que é possivel se tomar um ctistio melhor em de- trimento de ser totalmente humano — verdadciramente humano. Aquele que coloca a ideologia crista acima da questio relativa aos seres humanos poderia servir de exemplo de compreensio incorreta. Dessa maneira, 0 que poderia ser mais urgente do que perceber que a profissio de fé cristi faz de toda a humanidade a sua pedra angular? + ALEM DAS PALAVR Uma vee que é0 humano fundamental que fala no Credo, aplica- remos cssa visio ao texto como um todo ¢ cncontraremos o que cada uma de suas afirmagGes significa em termos universais. Na verdade, se voct dissesse somente (cu) CREIO, ¢ soubesse de fato o que quis dizer com isso, tudo © que o Credo explica seria resumido nessa tinica frase, Reflexées pessoas Nada é mais di amor de outro ser humano, Nada € mais natural do que © amor, em- il do que acreditar — acreditar de verdade — no bora nada seja mais inacreditavel. Que o seu amigo 0 ame é natural, mesmo que, por essa mesma razio, dizer ino scja afinal duvidoso, Mais € necessirio, Mas o que € esse “mais’? Ea confianga — a fé — que deve ser provida por aquele que recebe amor. An m joge de infancia, uma competicao com o meu pr ha primeira experiéncia de tudo isso comegou como mo de fixar o olhar. Inventamos esse jogo (ou melhor, nds 0 reinventamos, como faz toda nova geragio, estou convencide) enquante estivamos Li deitados no cobertor xadrez vermelho ¢ branco na grama, entedia~ dos ¢ um pouco chatcados por ainda ter que tirar a soneca da tarde, embora jd nos sentissemos crescidas. Comegou como uma competi- 40 de quem conseguia olhar por mais tempo nos olhos do outro. Sc desviasse a alhar, voc’ perderia, Mas de repente virou mais do que um jogo. Isso talvez tenha comecado vendo a nossa propria imagem pequena c escura refletida na pupila do outro. O que aconteceu de pois disso nao pode ser facilmente colocado em palavras. De certa maneira, caimos um nos olhos do outro. Como criangas num conte de facas que caem num lago magico, nds nos encontrivamos naque- le momento numa terra encantada. Podiamos ser dais ¢ aa mesmo tempo um sé. Quando os nossos olhos comegaram a lacrimejar, nds dois os fechamos ao mesmo tempo. + IRMAQ DAVID STEINDL-RAST + Mais tarde centamos tit de tudo isso, mas no fundo sablamos que inhamos vislumbrado 0 verdadciro mundo. Nesse nivel de intensa consciéncia, tudo & amor, Ver & amor, respirar € amor, ser ¢ amor — amor como uma pertenga que nao pode ser questionada nem duvidada. Décadas mais tarde li um verso de E. E, Cummings “Iam through you so I” [Sou através de vocé profundamence eu] ¢ lembrei, Olhan do retrospectivamente, reconhego que © que compartilhei com o meu primo foi um encontro com Deus, Somente um grande poeta pode resumir de mancira tio sucinta a percepgao —a conviccao = que advém de um cncontro desse tipo. “I am through you so I.” Voot deve estar presence para que o cu possa se encontrar. Confianca em voct da con- fianga cm mim mesmo. No encontro entre o voct ¢ 0 eu, nasce a fe, Sou tio verdadciramente cu porque tenho fé em vocé. Somente o Eu que se di através da f& pode ter fé E voct? Quando c como vact encantrou esse paradoxo? Nao pro- cure na sua memoria algum grande evento externo, Um momento de brincadeita na sua infincia também pode ter-Ihe oferecido esse flash de percepeao nunca mais esquecido, em geral negligenciado, que cer tamente vale a pena recuperat CREIO EM DEUS O que isso de fato significa? Essa afirmagao inicial contém, como numa semente, a totalidade do Credo. Significa que me dedico com plena confianga a um poder maior do que cu mesmo, Essa dedicagdo € um comprometimento de todo o meu ser — mente ¢ corpo — do meu coragdoa, 0 meu ser mais intimo, o “centro mais profundo do meu coragao", para usar uma ex- presséo cunhada por William Butler Yeats. Fé & muito mais do que a soma total das crengas. As crengas so meras indicadoras; a fé é a confianca profunda na realidade para a qual as crengas apontam, O Credo menciona crengas, mas € uma afirmacio de fé, nao de crengas. H4 muitas crengas, mas no fim das contas uma sé fé: fé em Deus. As crengas nao passam de varias janelas para a dinica tealidade & qual estd ligada a & Deus No latim original, a frase de abertura do Credo (eu) CREIO é uma palavra, credo, da qual a palavra cm inglés creed deriva. Creda é um composto de car (“coragao") de (“dou”) e significa liveralmente “dow meu coragao”; a palavea tem a mesma raiz linguistica que amor, Hoje, porém, a significado mudau completamente. Através da crenga, dié-se © consentimento intelectual; através da fé, dé-se 0 coragio, ern con- fianga coral, Eo ponto de referéncia dessa confianga ¢ 0 que a palavra Deus significa sempre que é adequadamence wsad fF IRMAO DAVID $TEINDI-RAST + Na sua proclamacio inicial do Credo, a palavra Deus & usada simplesmente como um indicador. Mostra uma diregao, a diregao da cs ficado como fonte ¢ objetivo da minha vida, mew valor supremo; o scu verdade di ado coragéo humano. Aqui Deus ainda nao é iden significado ainda cstd esperando ser coberto de imagens como a famo- sa do poeta Gerard Manley Hopkins: “Ground of being, and granite of it: pastall grasp, God”, Nesse ponto no Creda, 0 terma DEUS refere- -s¢ simplesmente ao objetivo de um desejo crénico do coragio huma- no de significado. A persisténcia dese sentimenco, concado, implica uma confianga profunda que o nosso desejo pode e ser acalmado. A confianga é a fé mais bisica. Como sabemos que é assim? A partir do momento que termos consciéncia de que somos scres humanos, ids nos damos conta (pouco importa o nivel de imprecisio) do transcendente. Vocé sabe que tudo o que vocé experiencia se trans- forma numa histdria na sua cabega? Isso comega na infancia, assim que nos tornames conscientes. Mesme que voc nunca conte a histéria a ninguem, o fato de ser uma histéria implica um ouvinte que sc inte- ressa por nossa histéria de vida. Apesar de raramente darmos énfase a isso, essa consciéncia oferece um pano de fundo cantrastante no qual projctamos todo o resto de que temos ciéncia, Dessa forma, sabcmos implicitamente © que DEUS quer dizer antes de sabermos qualquer outra coisa: o Ouvinte para quem faremos a histéria da nossa vida, Mas muitas pessoas se tornaram alérgicas, por assim dizer, & pa- lavra DEUS. Isso ¢ compreensivel. Frequentemente, a palavra que co- mega com D foi mal compreendida c mal utilizada. Numa tentativa de do, undamenta da indicar a realidade experiencial sem apertar o bora linguistico er em geral uso sinénimos ~ “Realidade Derradcira’, Set”, “Fonte da Vida" ¢ coisas do genera, Tadavia, quando queremas + ALEM DAS PALAVRAS t 25 entender o Credo, a nossa tarefa nao é substituir a palavra DEUS por uma diferente, trata-se antes de aprofundar a nossa compreensio do scu significade, especialmente o significado que ganha ne cantexto em que se professa a fé. Abraham Maslow chama a atengio para 0 que denomina “expe- rigncias excremas”, como determinantes para uma compreensdo da fé rcligiosa, Nos nossos momentos extremos, experimentamos a comu- nhao existencial com uma realidade derradeira que transcende o nosso prdprio cu limitado. Essa experigncia é tao bisica que nao podemos duvidar muito dessa percepgao, Nav faz sentido perguntar “Isso & real?” parque 0 que encontramos é a tealidade que estabelece © nosso padrio para eudo o que € real. Um dos psiquiatras mais importantes da metade do sécule XX, Maslow incumbiu-se da carefa de descobri o que caracreriza as pes soas que sio consideradas coma modelos de sade mental, Para sua grande surpresa, ele descobriu que as pessoas psicologicamente sau- daveis, altamente criativas ¢ fl ‘vcis, que ele cxaminou, tinham uma coisa cm comum: momentos misticos, Relararam experiéncias nas quais riveram um sentimento de pertenca ilimitada ¢ experimenta- ram a bondade ¢ a beleza de tudo 0 que existe — muito parecido com @ rclato dos grandes misticos de varias tradigGes espitituais, Maslow falou de “experigncias extremas” porque os scus pares desaprovaram © termo “mistica”; porém, mais no fim de sua vida, cle insistiu que nao havia diferenga entre os dois. Ele também descobriu que codo mundo parece ter essas experiéncias ~ até onde é possivel gencraliza O que de fato distingue seres humanos genuinamente extraordinarios de pessoas comuns é que cles deixam as suas vidas serem moldadas por suas experiéncias m/sticas, Por exemplo, comportam-se em rela- 40 aos outros como normalmente as pessoas se comportam em rela- sao a alguém a quem pertencem; vivem agradccidos pela bondade ¢ pela beleza que encontramos em todas as partes. + IRMAQ DAVID STEINDL-RAST + Vocé se lembra de momentos em que foi mais vocé mesmo exa- tamente porque tinha se perdido, digamos, olhando para o céu estre- lado ou para um bebé dermindo. De tepente, « fronteira abrupta que vocé interpéc para se separar dos outros se esvai. Nesses momentos extremes, podcmos experimentar um pouco daquilo que os misticos chamam de comunh3e com Deus, embora toda a énfase seja colo- cada na pertenca sem limite, no em qualquer nocio daquilo « gue pertencemos. Poderia parecer impossivel cer esse profundo sentimente de pertenca e nio se comprometer incondicionalmente, pois realiza o nosso descjo mais profundo, No entanto, para a maioria das pessoas, a lembranga da experiéncia extrema se esvai, O que persiste & essencial- mente um vago desejo de pertenca. No inicio da nossa vida espiritual, DEV profundo aponca, E simplesmente uma diregio para a qual o nosso descjo. mai Par que isso é tio importante? Nada & mais importante para nds, humanas, do que ver sen- tido na vida, Somos capazes de suportar grandes provas, dares, contanto que vejamos sentido nas dificuldades pelas quais pas- samos, $e, por outra lado, deixamos de ver sentido, mesmo os ambientes mais agradavcis c a companhia mais amivel néo nos tirarao do desespero, Pergunte-se: o que da sentido & vida? Qualquer resposta que voce der ficaré reduzida a alguma nogéo de pertenga, Dessa maneira, a sua prépria experiéncia prova-lhe que somente uma sensagao de pertenga dé sentido a vida do homem. Precisamas nos lembrar dessa percepgio: sentido surge da perteng: Uma segunda petcepeio essencial é: 0 nosso sentimento de per- tenga mais profundo ¢ o de pertencer a Deus. Calmal Nao pense que comegantos sabendo o que significa Deus, ¢ a partir disso afirmamos + ALEM DAS PALAVRAS y a nossa pertenca. Devemos antes inverter essa ordem e perguntar: onde o meu sentimento mais profundo de pertenca esté ancorado? Onde esti ancorado aldm do reinw de todas os fendmenos perecivel que vio ¢ voltam? A resposta para essa pergunta mostrar para cada um de nés o que pessoalmente “Deus” significa (quando esse termo € usado corretamente). A for ma especifica através da qual expres- samos a nossa fé em Deus nao é de extrema importancia; ela pode mudar. O que mais importa & descobrir a profundidade do aceano onde afundamas a nossa ancora do significado, reconhecer que isso €0 que “Deus” significa para nés, ¢ deixar esse significado penetrar na nossa vida coridiana. E importante dizer de fato “creia em Deus” au “tenho fé em Deus"? A resposta ¢ sim, Colocar isso em tantas palavras — mesmo quando as digo somence para mim mesmo em siléncio — pode ser um passo decisivo na minha vida cspiritual, pois cada ver que me lembro da minha pertenga, bebo da Fonte do Significado. Isso di dedicacio & minha vida; ajuda a evitar caminhos de alienagao sem saida ¢ néo me permite ter o sentimento de ser orftio no universo. Ajuda-me a ir adiante com uma consciéncia nitida do que importa fandamentalmente. Expressar fé em Deus dé base para uma vida alegre, de gratidao, ¢ criativa. Essa base se torna maior quando me junto a outros proclamando nossa fé basica em Deus, uma fé que une todos os scres humanos. Fico forcalecido na minha consciéncia de uma comunhie mundial. Afinal, compartilhamos com todos os outros scres humanos neste plancta a possibilidade de tertos consciéneia da nassa pertenga i: profunda c encontrar nisso a Fonte do Significado — quer falemos de "Deus" ou néo, Isso também ¢ a base da nossa miitua pertenga uns aos outros. Nada ¢ mais necessirio hoje do que esse sentido de pertenga mitrua entre todos os scrcs humanos ~ que depois sc expande para incluir também o universe nio humane,

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