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TEATRO EntreLivros Gi Aristéfanes, 0 maior comediante Anostalgia da paz é tema recorrente no principal nome da comédia grega. Oalvo de sua satira é a autoridade constituida, seja ela politica, religiosa ou intelectual. O fim da guerra muda o seu foco para a vida doméstica POR ADRIANE DA SILVA DUARTE ‘Aist6fones sistfanes€ 0 principal nome da ‘comédia. grega antiga. Apon- tado pelos antigos, 20 lado de Cratino e Eupolis, como integrante da triade cémica, somente suas peas foram preservadas na inte- agra. Dos cerca de 40 titulos que a tra- digdo the atribui, 11 chegaram até nés, 4 saber: Aearnenses, Cacvaleros, Vespas, Nuvens, Paz, Aves, Lisistrata, As tesmo- foriante, Ras, Assembleia de mulheres ‘© Pluto. Abarcando todas as fases de sua carrera, essas comédias permitem tragar a evolugio do género no iltimo quarto do séc. V aC. Apesar dessa posigio de destaque, ppouco se sabe sobre a vida de Aristofanes. As biografias, em geral, tram informa 58es da sua propria obra, ingenuamente tomando por verdade as bravatas que o ‘poeta cria sob a mascara ficcional. Nas- cido por volta de 450 a.C., Aristéfines estréin em 427 .C.com Convvas,comé- dia reduzida hoje a fragmentos. Somente ‘em 425 aC., com Grualeiros,arisca-se na diregdo, tarefa considerada pelo coro de cavaleros, “a mais drdua entre todas”, cm virtude do caréter instivel dos es- pectadores. Como quase toda a sua obra fi composta durante a Guerra do Pelo- poneso (431-404 a.C.), é natural que a guerra, ou methor,a nostalgia da paz, seja ‘um tema constante. O alvo de sua sitira € a autoridade constituida,seja ela poli- tica, eligiosa ou intelectual, que muitas ‘vezes € suplantada por um personagem ‘marginal, um camponés empobrecido ou ‘uma mulher. Com a rendigéo ateniense : 2 i : i 3 i ‘ati Miiam Hopkins em montagem dos anos 1530da peca Lissa © 0 fim da guerra, nota-se em suas co- médias uma maior presenga de cenas da vida doméstica,em detrimento do debate piblico, como se vé em Pluto (388 a.C.), seu iitimo trabalho de que dispoms. Aristfanes morre em 385 2.C. ‘A comeédia antiga foi introduzida nos festivais dramiticos atenienses por vol- ta de 475 a.C., quase 50 anos, portanto, apds a encenagio das primeirastragédias cf sob o regime democritico. Esse vin- clo entre comédia ¢ democracia salta aos olhos,uma vez.que o género cultiva a liberdade de expressio, gozando de uma salvaguarda religiosa, mas também insti~ tucional,para censuraracomunidade cos individuos pelos seas vicios. A invectiva pessoal, propriedade que acomédia anti- ‘ga partilha com a lirica jambica,é um de s€us tragos caractersticos. Sio inimeras ‘as mengées a cidadaos contemporineos, alguns lustres~ como o filésofo Sécrates, © tragedidgrafo; Euripides, o demagogo Cleon ou o general Lamaco ~ outros, fi- guras andnimas, que faziam 0 dia-a-dia da cidade. Nem mesmo os deuses esca- pavam da verve satirica do comedigra- fo. Em pelo menos duas das comédias supérstites de Avistéfanes, Zeus acaba deposto em virtude da agao do herd e rico (does e Pluto). Outros deuses apa- recem em cena tratados de maneira hu- rilhante, como Isis ¢ Poséidon,em Aves, Dioniso,em Ras, ¢ Hermes, em Pluto Por esse apreco 20 cotidiano da cidade aos seus problemas, comédia antiga ¢ dita politca,o que € particularmente ver~ dadeiro quando contraposta 4 comédia nova, cujo autor principal € Menandro (im do séc. TV a.C.), com seus enredos centrados nas intrigas domésticas. ‘A presenga intensa do coro é outra ‘marca da comédia antiga. Nas tragédias, © coro € passivo, de natureza submissa € sujeito ao softimento, Por isso mesmo assume paptis condizentes com esse per- fil mulheres, ancitos, escravos, O coro ‘mic, a contrério, € bastante atvo, ¢ seu apoio deve ser conquistado pelo he- si antes da implementagio de seu plano, como condiglo para que ele vena ser bem-sucedido. Os corcutas exercem so- bre o hersi um certo poder, que pode ser de vida e morte, como em Acarnenss,em que os integrantes ho- ménimos do coro es- to a ponto de lapidar Diceépolis, recuando naiiltita hore. O coro pode aliar-se 20 he- 16i c®mico e com ele enfrentar seus inimi- gps, como ocore em Gavaleires ou Paz, ou fazer-lhe oposigio a principio, terminando por apoii-lo no fim, como em Acarnenses ou Aves ‘Devido a variedade de enredos criados pelo comedisgrafo, muitos de natureza fantistica, 08 coreutas_assumem as formas mais diversas: Fhumanos(cidadlaosate- nienses em Aeamnses € Cavalera, carmponeses em Paz € Platr, mulheres em Lisitrata, As tesmnferiantes ¢ Asembléa de mulheres, rmortos em Rai), anirmas (ves, 5), cia- tures monstruosas (06 juizes-vespas de Vepas), © outros que nao se enquadram em nenhuma dessas categorias como as snuvens, da pega homénima,representadas sob aspecto ferinino. Por fim, € nio menos importante, esti a intermediagio que o coro faz en- tre espectadores, heréi cbmico e poeta ‘Ao identificar-se com seus integrantes, o piblico tende a apoiar a visio de mun- do que ele defende, ou seja, a do heréi Omico,requisto para o sucesso da pera. O cow dirige-se diretamente ao piibli- co, durante uma seco chamada paréba- se, em que ou fala em nome do poeta on em seu préprio nome, procurando convencer a todos da sua superioridade e da sua comédia sobre as demais. Mui- tas vezes apela aos juizes, procurando influenciar seus votos, como se vé em As aves (vv, 101-1103 e 1114-1117) “Com os jutzesqueremes eomversar scbre a vier. Quantes bens daremos a todos [eles se ‘wotarem por nés! Presentes muito melhores do gue os de 2aco(1596) ea de Caravagalon EntreLivros [Atesandre!(..) ‘Masse ndo nes favorecerem, frjem sobrinkos de bronze como as que usar as estituas! Porgue ‘quem [nto tiver uma, (quando estver usando um fino manto Poranco, enti ser punide por nbs cagado por todos os passares!” No que diz. respeito aos temas, é co- ‘mum classificar a comédia de AristSfia- nes de acordo com trés categoria: p. tica, critica cultural e ut6pica ou fan tica (ou ainda excapista). Voltadas para a stra politica seriam as comédias paci- fistas (Aearnenses, Paz, Lisstrata) ow as {que tratam do sistema politico-juridico da cidade (Gavaleiras, Vspas)..A critica A cultura ou A educagio contemporinea € central em Nuvens, ds tesmaforiantes © Ras, Utépicas ou fantisticas sio as que propdem uma nova ordem para a ci- dade ou para 0 universo, origindria de ‘uma agio sobrenatural, como em Aves, Assembla de mulberes¢ Pluto — algumas delas sio consideradas escapistas. por evitar aludir& realidade ateniense. Em- bora itil, essa cassificagao nfo deve ser aplicada com rigor, sob pena de asseme- Ihar-se aos rétulos redutores que os fl- 50 EnteLivios Emvaso geno, na de ume pe mes recebem nas videolocadoras (agio, aventura, romance, comédia, classic, drama). Para exemplifcas trataremos de tres comédias: Liistratay Ris © Aves Listsrata € a comédia aristofinica ‘mais encenada ¢ traduzida no tltimo século, por soar para nds ora como um libelo pacifista ora como uma pega pro- tofeminista, Nela, as mulheres gregas, chefiadas pela atcniense Lisistrata, de~ flagram uma greve sexual que, aliada a0 bloquecio do Tesouro Piblico na Acré- pole, visa obtigar os homens a por fim sguetra. Hi, certo, uma eensura aos ma Teficios da guerra evidente na resposta da heroina ao consetheiro pibico, que busca desqualificar a aco das mulheres sob o argumento de que a guerra nfo as afeta (vv. 588-592): "Seu ter repulsivo, com certeza/ nés supor- tomes [a guerra] duas ou mais vezes, Em rimeirisiono Lugar dammos i e/¢ envia~ ‘mos nossas criangas como soldades ras. (2) Ent, quando dewiamos ser redutoras gozar a juventude/ dermimos sozinhas par causa das campanbas militares” Mas, no gerd a poga se inscreve na tradigdo cémica da guerra entre os sexos, 'magnificamente representada nas batalhas verbase fisicas ente 0 coros masclino ¢ feminino, Portal vgs, essa, que ¢ conside~ sada por alguns um manifesto feminist, ji que retrata as mulheres como agentes politica, € & mais fantistica de todas as comédias de Aristfines. As atenienses cstavam entre as mulheres mais oprimidas da Grécia, mantidas rclusas € sob vig Hincia, nio freqientavam a assembléiae, provavelmente, nem o teatro. A grasa da comédia csti justamente na_promogiio desse revés camavalesco que faz das fra- cas € submissas mulheres poderoses por uum dia, Para 0 cidadio steniense, 0 es- pectidor-alvo da coméda sera mais fic aceditar que pissaros pudessem dominar © universo, como sugere 0 ened de ee, do que suas esposas, mies efihas pudes- sem um dia dita os rumos da cidade, Aves é especialmente atraente para 0 leitor moderno por contar uma historia de apelo universal, que faz lembrar um conto popular. Dois velhos atenienses, Pisetero ¢ Evélpides, abandonam a ci- dade ¢, guiados por dois péssaros, em- brenham-se na floresta atrés de Tereu ~rei mitico que fora transformado pelos ddeuses em uma poupa, E dele que espe- ram a indicagio de uma cidade melhor. Desiludidos com as opgdes oferecidas, decidem criar uma cidade aérea em sociedade com a8 aves, transformam- se em passaros ¢ declaram guerra 20s deuses. Para obter dos homens a fuma- 2 dos sactficios, os deuses teriam de atender as reivindicagBes dos passaros, 8 intermeditios entre a terra ¢ 0 cu. Eles exigem Soberania, personificacio do poder absoluro. Uma trégua, selada pelo casamento de Pisetero e Soberania, ‘marca a vitéra das aves e,sobretudo, de seu lider meio homem, meio péssaro, elevado agora i condigo de deus. A primeira vista estamos diante do super civiizagio contra natureza. Os dois homens abandonam a cidade cor- rompida c encontram abrigo na floresta redentora, trocam a sociedade humana pelo convivio com os anitais. Como a referencias a vida publica de Atenas aio esto tio presentes aqui, Aves fol rotulada como tuma comédia de escape, composta 20 sabor da fantasia ou de ex ptessio utépica. Mas, ao olharmos mais de perto, esa impressio se dest Os personagens, mesmo desaponta- dos com a vida em Atenas, no parecem dispostos a abdicar do meio urbano, Tanto que trazem em sua bagagem os ‘urensiios necessirios para. consagragdo dde uma cidade. Assim, o ugar tranqiilo «que buscam ndo se parece em nada com © cenirio natural em que se encontram e que nfo tardam a subverter, Seu obje- tivo, desde o inicio, € encontrar unna ci dade sem os defeitos de Atenas,0u,c250 isso no sea possvel, fundar uma, Revela-se entio 0 verdadeiro tema da posa: Aves é uma comédia sobre 0 poder das palavas. Emblemética dessa condisao é idéin da fndasio da cidade aévea, sugerida por Pisetero, ajo nome significa "bom de labia’ a partir de um trocadilho (pélo-pélis) Todo o seu plano ‘sti lteralmente, na ponta de sua lingua depende da capacidade de convenci- ‘mento. A palava de Pisetero € poderosa ‘to 86 porque &capaz de alteraro mun- do, mas também porque confere poder 20 seu usuitio. O velho exilad, fragilizado no comeso da pera, toma-se no final 0 senhor dos pissaros, dos deuses e dos homens. Seu casamento com Soberania coloca-o acima do préprio Zeus, trans formando-o em mestre do univers. Essa qualidade da palavra 36 € ima- gindvel no quadro de uma cultura pre~ dominantemente oral ¢, mais, numa democracia. Nenhum outro governo projetariaalguém tio alto 6 por sua ha- bilidade lingistica. Tanto assim que o regime de Atenas € de adogdo universal na pega: as aves delegam a Pisetero 0 di- reito de representi-las junto aos deuses, uc, por sua vez, elegem uma comissio Para negociar seus interesses. A. pega trata, na verdade, de uma refundasao de Atenas e, desse ponto de vista, € @ mais politica das comeédiasarstofanicas. Por fim, Rés, pega notabilizada por encenar no mundo dos mortos um de bate litertio ~ mediada pelo deus do teatro, Dioniso — entre Esquilo e Eur Pides. Tudo leva acrer que o tema dessa comédia 6 a crise cultural que se abate sobre a cidade com as moctes de Euripi- des ¢ de Séfocles. A vitéria de Esquilo interpretada como uma censura as ino- vagies que Euripides teria introduzido na tragédia, como a énfase na represen taglo das paixses, o registro realista do Esatuetase teracora de Tanga 300) ‘mito, as monodias aparentemente des- vineuladas do enredo. Accscolha de Dioniso,no entanto,niio se baseia somente em critérios estéticos, mas leva em conta aspectos politicos, como a.avaliagio de quem oferece o me- Ihor conselho para a cidade. Euripides sugere que 03 cidados, antes desacredi- tados fossem revalorizados, mas Esqui- {o supera-o ao discutir 0 aspecto moral do problema. Enquanto Euripides con sidera apenas a alterndncia de cidados no poder, sem exigir uma melhoria de cariter, Esquilo se preocupa com que sejam os melhores a ocupar as posigdes de destaque, O golpe de misericdrdia é sua proposta de retomada da estratégia EnteLivios Giécla cde Péticles: ceder sem resistencia o ter- io 208 inimigos concentrar-se nos combates por mar. Mais do que uma titica militar, Esquilo visa 0 resgate do cidado-modelo e sua politica, simbolos de uma Atenas gloriosa apelo a tradigao surge como tiltimo recurso capaz de salvar a cidade e inchit © pr6prio Esquilo, poeta emblemético da _geragio anterior, que seri levado de vol- #2 A vida por Dioniso com as béngis do ‘oro. Ou sea, em que pese a critica cultu- ral, Ras € também uma comédia politica, ‘na qual juizos éticos tém mais influéncia que os estéticos para a hierarquizasio dos tragedigrafos, Vale lembrar que cabe 20 ‘comedigrafo a palavra final.

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