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XXXIV AS REGRAS DO METODO SOCTOLOGICO Spencer quase nao tem outro objeto sendo mostrar como. a lei da evolu al se aplica as sociedades. Ora, para tratar essas questdes filos6ficas, ndo so necessarios procedimentos especiais ¢ complexos. Era suficiente, por- tanto, pesar os méritos comparados dit dedugao e da in- dugio e fazer uma inspegio sumaria dos recursos mais, gerais de que dispde a investigagio sociol6gica. Mas as precaugdes a tomar na observacdo dos fatos, a maneira como 0s principais problemas devem ser colocados, 0 sentido no qual as pesquisas devem ser dirigidas, as pri ‘cas especiais que podem permitir chegar aos fatos, as re- gras que devem presidir a administragdo das provas, tudo isso permanecia indeterminado. Uma série de circunstancias felizes, entre as quais € justo destacar a iniciativa que criou em nosso favor um curso regular de sociologia na Faculdade de Letras de Bordéus, 0 qual possibilitou que nos dedicassemos desde cedo ao estudo da ciéncia social e inclusive fizéssemos dele o objeto de nossas ocupacdes profissionais, nos fez sair dessas questoes demasiado gerais e abordar um certo numero de problemas particulares. Assim, fomos levados, pela forca mesma das coisas, a elaborar um método que julgamos mais definido, mais exatamente adaptado 4 na- tureza particular dos fenémenos sociais. Sao esses resulta dos de nossa pritica que gostariamos de expor aqui em conjunto ¢ de submeter 4 discuss2o. Claro que eles estio implicitamente contidos no livro que publicamos recente- mente sobre 4 divisdo do trabatbo social, Mas nos parece interessante destacd-los, formulé-los a parte, acompanha- dos de suas provas ¢ ilustrados de exemplos tomados tan- to dessa obra como de trabalhos ainda inéditos. Assim poderao julgar melhor a orientagio que gostariamos de tentar dar aos estudos de sociologia CAPITULO 1 O QUE E UM FATO SOCIAL? Antes de procurar qual método convém ao estudo dos fatos sociais, importa saber qLais fatos chamamos assim. A questio é ainda mais necessaria porque se utiliza essa qualificacdo sem muita precisiio. Ela é empregada correntemente para designar mais ou menos todos os fe~ némenos que se dio no intesior da sociedade, por menos que apresentem, com uma certa generalidade, algum inte- resse social. Mas, dessa maneira, nao ha, por assim dizer, acontecimentos humanos que nao possam ser chamados. sociais. Todo individuo come, bebe, dorme, raciocina, e a sociedade tem todo 0 interesse em que essas fungdes se exercam regularmente. Portanto, se esses fatos fossem so- Giais, a sociologia nao teria cbjeto proprio, ¢ seu dominio se confunditia com o da biologia e da psicologia Mas, na realidade, hd em toda sociedade um grupo determinado de fenémenos que se distinguem por ca- racteres definidos daqueles que as outras ciéncias da na- tureza estudam, Quando desempenho minha tarefa de imo, de ma- rido ou de cidadao, quando executo os compromissos AS REGRAS DO METODO SOCIOLOGICO que assumi, eu cumpro deveres que esto definidos, fora de mim e de meus atos, no direito ¢ nos costumes. Ainda que eles estejam de acordo com meus sentimentos pro- prios e que eu sinta interiormente a realidade deles, esta nao deixa de ser objetiva; pois nao fui eu que os fiz, mas os recebi pela educacao. Alids, quantas vezes nao nos ocorre ignorarmos o detalhe das obrigagdes que nos in- cumbem e precisarmos, para conhecé-las, consultar 0 C6 digo e seus intérpretes autorizados! Do mesmo modo, as creneas € as priticas de sua vida religiosa, o fiel as encon- trou inteiramente prontas ao nascer; se elas existiam antes dele, é que existem fora dele. O sistema de signos de que me sitvo para exprimir meu pensamento, o sistema de moedas que emprego para pagar minhas dividas, os ins trumentos de crédito que utilizo em minhas relacdes co- merciais, as priticas observadas em minha profissio, ete funcionam independentemente do uso que fago deles. Que se tomem um a um todos os membros de que € composta a sociedade; o que precede poderi ser repetido a propsi- to de cada um deles. Eis ai, portanto, maneiras de agir, de pensar e de sentir que apresentam essa notivel proprieda- de de existirem fora das consciéncias individuais. Esses tipos de conduta ou de pensamento nao ape- nas sao exteriores ao individuo, como também sao dota- dos de uma forca imperativa e coercitiva em virtude da qual se impdem a ele, quer ele queira, quer nao. Certa- mente, quando me conformo voluntariamente a ela, essa coergdo nao se faz ou pouco se faz sentir, sendo indtil Nem por isso elt deixa de ser um cardter intrinseco des- ses fatos, ¢ a prova disso é que ela se afirma to logo ten- to resistir. Se tento violar as regras do direito, elas reagem contra mim para impedir meu ato, se estiver em tempo, ou para anuli-lo € restabelecé-lo em sua forma normal, se tiver sido efetuado e for repardvel, ou para fazer com que f UM FATO SOCIAL? 3 oot eu 0 expie, se nao puder ser reparado de outro modo. Em se tratando de maximas puramente morais, « consciéncia piiblica reprime todo ato que as ofenda através da vigiliin- cia que exerce sobre «t conduta dos cidadios € das penas especiais de que dispOe. Em outros casos, a coercao & menos violent, mas nao deixa de existir. Se ndo me sub- meto as convencdes do mundo, se, a0 vestir-me, nao levo em conta os costumes observados em meu pais ¢ em mi- nha classe, 0 riso que provoco, 0 afastamento em relacio a mim produzem, embora de maneira mais atenuada, os mesmos efeitos que uma pena propriamente dita. Ade- mais, a coergdo, mesmo seado apenas indireta, continua sendo eficaz. Nao sou obrigado a falar francés com meus compatriotas, nem a empregar as moedas legais; mas € impossivel agir de outro modo. Se eu quisesse escapar a essa necessidacle, minha tentativa fracassaria miseravel- mente, Industrial, nada me proibe de trabalhar com pro- cedimentos € métodos do século pasado; mas, se o fizer, € certo que me arruinarei, Ainda que, de fato, eu possi li- hertar-me dessas regras € violi-las com sucesso, isso ja- mais ocorre sem que eu sejt obrigado a lutar contra elas, E ainda que elas sejam finalmente vencidas, demonstram suficientemente sua forca coercitiva pela resisténcia que opdem. Nao ha inovador, mesmo afortunado, cujos em- preendimentos nao venham a deparar com oposigdes dlesse tipo. Eis portanto uma ordem de fatos que apresentam ca- racteristieas muito especiais: consistem em maneiras de agir, de pensar e de sentir, exteriores ao individuo, e que sao dotadas de um poder de coergio em virtude do qual esses fatos se impdem a ee. Por conseguinte, eles nao poderiam se confundir com os fendmenos orginicos, ja que consistem em representacdes € em agdes; nem com os fendmenos psiquicos, os quais s6 tém existéncia na 4 AS REGRAS DO METODO SOCIOLOGICO consciéncia individual e através dela, Esses fatos consti- tuem portanto uma espécie nova, e é a eles que deve ser dada € reservada a qualificacao de soctais, Essa qualifica- cao thes convém; pois é claro que, nao tendo o individuo Por substrato, eles ndo podem ter outro senio a socieda- de, seja a sociedade politica em seu conjunto, seja um dos grupos parciais que ela encerra: confissées religiosas, es- colas politicas, literirias, corporacdes profissionais, ete. Por outro lado, é a eles s6 que ela convém; pois a palavra social s6 tem sentido definido com a condicdo de desig- nar unicamente fendmenos que nao se incluem em ne- nhuma das categorias de fatos ja constituidos ¢ denomi- nados. Eles sio portanto 0 dominio proprio da sociologia. E verdade que a palavra coereao, pela qual os definimos, pode vir a assustar os zelosos dlefensores de um individua- lismo absoluto, Como estes professam que o individuo & perfeitamente aut6nome, julgam que o diminuimos sem- pre que mostramos que ele nao depende apenas de si mesmo, Sendo hoje incontestavel, porém, que a maior parte de nossas idéias e de nossas tendéncias nao é ela- borada por nés, mas nos vem de fora, elas s6 podem pe- netrar em nés impondo-se; eis tudo o que significa nossa definigao, Sabe-se, alids, que nem toda coercio social ex- clui necessariamente a personalidade individual. Entretanto, como os exemplos que acabamos de citar (regras juridicas, morais, dogmas religiosos, sistemas finan- ceiros, etc.) consistem todos em crencas € em praticas constituidas, poder-se-ia supor, com base no que precede, que 86 ha fato social onde hé organizacao definida. Mas existem outros fatos que, sem apresentar essas formas cris- talizadias, tém a mesma objetividade e a mesma ascendén- cia sobre o individuo. E 0 que chamamos de correntes so- Giais, Assim, numa assembléia, os grancles movimentos de entusiasmo ou de devogio que se produzem nao tem por (0 QUE BUM RATO SociAL? 5 lugar de origem nenhuma consciéneia particular. Eles nos vém, a cada um de nés, de fora € sd capazes de nos arre- batar contra a nossa vontad, Certamente pode ocorrer que, entregando-me a eles sem reserva, eu nao sinta a pressdo que exercem sobre mim. Mas ela se acusa to lo- ‘go procuro lutar contra eles. Que um individuo tente se opor a uma dessas manifestagdes coletivas: os sentimentos que ele nega se voltario contra ele. Ora, se essa forca de coergdo externa se afirma com tal nitidez nos casos de re- sisténcia, @ porque ela existe, ainda que inconsciente, nos. casos contrarios. Somos entio vitimas de uma ilusdo que nos faz, crer que elaboramos, nés mesmos, 0 que se impos. «a nés de fora. Mas, se a complacéncia com que nos entre- gamos a essa forca encobre a pressio sofrida, ela nao a suprime. Assim, também 0 ar nao deixa de ser pesado, embora nao sintamos mais seu peso. Mesmo que, de nos- sa parte, tenhamos colaborado espontaneamente para a emogio comum, a impressdo que sentimos é muito dife- rente da que teriamos sentido se estivéssemos sozinhos. Assim, a partir do momento em que a assembléia se dis- solve, em que essas influéncias cessam de agir sobre nds € nos vemos de novo a s6s, os sentimentos vividos nos dao 1 impressio de algo estranho no qual nao mais nos reco- nhecemos. Entio nos damos conta de que softemos esses sentimentos bem mais do que os produzimos. Pode acon- tecer até que nos causem horror, tanto eram contrdrios a nossa natureza. £ assim que individuos perfeitamente ino- fensivos na maior parte do tempo podem ser levados a atos de atrocidade quando reunidos em multidao. Ora, 0 ‘que dizemos dessas explosdes passageiras aplica-se identi- camente aos movimentos de opiniado, mais duraveis, que se ptoduzem a fodo instante a nosso redor, seja em toda a extensio da sociedade, seja em circulos mais restritos, so- bre assuntos religiosos, politicos, literarios, artisticos, ete. 6 AS REGRAS DO METODO SOCIOLOGICO Aliés, pode-se confirmar por uma experiéncia carac- teristica essa defini¢ao do fato social: basta observar a ma- Acira como sio educadas as criangas. Quando se obser- vam 08 fatos tais como sao e tais como sempre foram, sal- ta aos olhos que toda educagdo consiste num esforco continuo para impor 3 crianca maneiras de ver, de sentir € de agit as quais ela nao teria chegado espontaneamen- te, Desde os primeiros momentos de sua vida, forcamo- las a comer, a beber, a dormir em horirios regulares, for- camo-las a limpeza, a calma, a obediéncia; mais tarde, forcamo-las para que aprendam a levar em conta outrem, a respeitar os costumes, as conveniéncias, forgamo-las ao trabalho, etc,, etc. Se, com 0 tempo, essa coercio cessa de ser sentida, & que pouco a pouco ela dé origem a habitos, a tendéncias internas, que a tornam indtil, mas que s6 a substituem pelo fato de derivarem dela. E verdade que, segundo Spencer, uma educagao racional deveria repro- var tais procedimentos e deixar a crianca proceder com toda a liberdade; mas como essa teoria pedag6gica jamais foi praticada por qualquer povo conhecido, ela constitui apenas um desideratum pessoal, no um fato que se pos- sa opor aos fatos que precedem. Ora, 0 que torna estes liltimos particularmente instrutivos é que a educaao tem justamente por objeto produzir 0 ser social; pode-se por- tanto ver nela, como que resumidamente, de que maneira esse ser constituiu-se na histéria. Essa pressao de todos os instantes que sofre a crianga é a pressdo mesma do meio social que tende a modeli-la & sua imagem e do qual os Pais € OS mestres ndo sao sendo os representantes e os in- termediarios, Assim, ndo é sua generalidade que pode servir para caracterizar os fendmenos sociolégicos. Um pensamento que se encontra em todas as consciéncias particulares, um movimento que todos os individuos repetem nem por isso (0 QUE £ UM FATO SOCIAL? 7 sdo fatos sociais, "Se se contentaram com esse carater para defini-los, é que os confundiram, erradamente, com 0 que se poderia chamar de suas encarnagdes individuais. O que ‘0s constitui so as crengas, as tendéncias as praticas do grupo tomado coletivamente; quanto as formas que assu- mem os estados coletivos to se refratarem nos individuos, sio coisas de outra espécie.* © que demonstra categorica- mente essa dualidade de natureza é que essas duas ordens de fatos apresentam-se gera mente dissociadas. Com efei- to, algumas dessas maneiras de agir ou de pensar adqui rem, por causa da repeticlo uma espécie dle consisténcia que as precipita, por assim dizer, e as isola dos acontec mentos particulares "que as refletem*. Elas assumem as- sim um corpo, uma forma sensivel que Ihes € propria, € constituem uma realidade sui generis, muito distinta dos fatos individuais que a manifestam, O habito coletive nao existe apenas em estado de imanéncia nos atos sucessivos que ele determina, mas se exprime de uma vez por todas, por um privilégio cujo exemplo nao encontramos no reino hiol6gico, numa formula quz se tepete de boca em boca, que se transmite pela educagio, que se fixa através da es- crita. Tais so a origem e a natureza das regeas juridicas, morais, dos aforismos e dos ditos populares, dos artigos de fé em que as seitas religiosas ou politicas condensam. suas crencas, dos cédigos de gosto que as escolas literdrias estabelecem, etc, “*Nenhuma dessas maneiras de agit ou de pensar se acha por inteiro nas aplicagdes que os parti- ~Tanto nao & a repetcio que ov consti, que eles existe fora dha cas partelaves nov quae realizam, Cau fo soda onsite ‘numa etenca, ow numa tendencis, ou muna praca, que € 4 do po tomad clfamerte © que & muito dt foray rm iaTse ata pos indivkiuos terme phfosopbique, tomo XXX, pn 1894, p 4709 sam eee se encamamtodo da. CRP, 470. = Fras que no Figitam no texto Ini. 8 AS REGRAS DO METODO SOCIOLOGICO culares fazem delas, jd que elas podem inclusive existir sem serem atualmente aplicadas.” Claro que essa dissociacdo nem sempre se apresenta com a mesma nitidez, Mas basta que ela exista de uma ma- neira incontestavel nos casos importantes € numerosos que acabamos de mencionar, para provar que 0 fato social € distinto de suas repercussdes individuais. Alias, mesmo que ela nao seja imediatamente dada A observacao, pode-se com freqtiéncia realizé-la com 0 auxilio de certos artificios de método"; é inclusive indispensivel proceder a essa ope- rago se quisermos separar o fato social de toda mistura para observi-lo no estado de pureza*, Assim, ha certas com rentes de opiniao que nos impelem, com desigual intensi- dade, conforme os tempos € os lugares, uma ao casamen- 10, por exemplo, outra ao suicidio ou a uma natalidade mais ou menos acentuada, etc, “Trata-se, evidentemente, de fatos sociais.* A primeira vista, eles parecem inseparé- veis das formas que assumem nos casos particulares. Mas a estatistica nos fornece © meio de isoli-los. Com efeito, eles sao representados, nao sem exatidao, pelas taxas de natali- dade, de nupcialidade, de suicidios, ou seja, pelo ntimero que se obtém ao dividir a média anual total dos nascimen- tos, dos casamentos e das mortes voluntarias pelo total de homens em idade de se casar, de procriar, de se suicidar?, Pois, como cada uma dessas cifras compreende todos os casos particulares sem distingdo, as circunstancias indivi- duais que podem ter alguma participagio na produgao do fendmeno neutralizam-se mutuamente €, portanto, nao contribuem para determini-lo, “O que esse fato exprime & um certo estado da alma coletiva Eis 0 que sdo 0s fendmenos sociais, desembaragados de todo elemento estranho.* Quanto as suas manifestacdes * Frases que ndo figuram no texto inicial 0 gun Ew rao sociale 9 privadas, clas tém claramente algo de social, j que repro- duzem em parte um modelo coletivo; mas cada uma delas depende também, e em larga medida, da constituicao or- sinico-psiquica do individuo, das circunstancias particu- lares nas quais ele estd situado, Portanto elas ndo sio fe~ némenos propriamente sociclégicos. Pertencem simulta~ neamente a dois reinos; poderfamos chamé-las sociops quicas. Essas manifestagdes interessam o socidlogo sem constituirem a matéria imedista da sociologia. No interior do organismo encontram-se igualmente fendmenos de na- tureza mista que ciéncias mistas, como a quimica biolégica, estudam, ‘Mas, dirdo, um fendmeno s6 pode ser coletivo se for comum a todos os membros da sociedade ou, pelo me- nos, & maior parte deles, portnto, se for geral. Certamen- te, mas, se ele € geral, porque € coletivo Gsto é, mais ou menos obrigatorio), 0 que é bem cliferente de ser coletivo por ser geral. Esse fendmeno € um estado do grupo, que se repete nos individuos porque se impde a eles. Ele esta ‘em cada parte porque esté no todo, o que € diferente de estar no todo por estar nas partes. Isso é sobretudo evi- dente nas crengas € priticas que nos sao transmitidas in- teiramente prontas pelas geragdes anteriores; recebemo- lus e adotamo-las porque, sendo ao mesmo tempo uma obra coletiva © uma obra secular, elas esto investidas de uma particular autoridade que a educagio nos ensinou a reconhecer e a respeitar. Gra, cumpre assinalar que a imensa maioria dos fendmeaos sociais nos chega dessa forma. Mas, ainda que se deva, em parte, & nossa colabo- racao direta, 0 fato social é ch mesma natureza. Um senti- mento coletivo que irrompe numa assembléia nao expsi- me simplesmente 0 que havia de comum entre todos os sentimentos individuais. Ele ¢ algo completamente distin- to, conforme mostramos. & uma resultante da vida co- 10 AS REGRAS DO METODO SOCIOLOGICO mum, das agées € reagSes que se estabelecem entre as ncias individuais; , se repercute em cada uma de- las, € em virtude da energia social que ele deve precis mente a sua origem coletiva. Se todos os coragées vibram ‘em unissono, ndo € por causa de uma concordancia pontinea ¢ preestabelecida; € que uma mesma forca os move no mesmo sentido. Cada um é arrastado por todos. Podemos assim representar-nos, de maneira precisa, © dominio da sociologia, Ele compreende apenas um gru- po determinado de fendmenos. Um fato social se reco- nhece pelo poder de coeredo externa que exerce ou é ca- paz de exercer sobre os individuos; € a presenca desse poder se reconhece, por sua vez, seja pela existencia de alguma sangdo determinada, seja pela resisténcia que o fato opde a toda tentativa individual de fazer-lhe violén- cia. *Contudo, pode-se defini-lo também pela difusdo que apresenta no interior do grupo, contanto que, conforme as observacdes precedentes, tenha-se 0 cuidado de acres- centar como segunda e essencial caracteristica que ele existe independentemente das formas individuais que as- ume ao difundir-se.* Este ultimo critério, em certos casos, é inclusive mais facil de aplicar que © precedente, De fa- (0, a coercio € facil de constatar quando se traduz exterior- mente por alguma reag2o direta da sociedade, como é 0 caso em relacdo ao direito, a moral, as crencas, aos cost mes, inclusive 4s modas. Mas, quando é apenas indireta, como a que exerce uma organizagio econdmica, ela nem sempre se deixa perceber tao bem. A generalidade com- binada com a objetividade podem entio ser mais faceis de estabelecer. Alias, essa segunda definicio nao é senio + *Pode-se defini-lo igualmente: uma maneira de pensar ou de aagir que € geral na extensio do grupo, mas que existe independent mente de suas expresses individuals” (RP, p. 472) (©-QUE BUM PATO SOCIAL? n outra forma da primeira; pois, se uma maneira de se con duzir, que existe exteriormente as consciéncias indivi dluais, se generaliza, ela s6 pode fazé-lo impondo-se’. Entretanto, poder-se-ia perguntar se essa definicao completa. Com efeito, os fatos que nos forneceram sua ba- se so, todos eles, maneiras de fazer, sio de ordem fisio- logica. Ora, ha também maneiras de ser coletivas, isto é, fatos sociais de ordem anatémica ou morfolégica. A socio- logia nao pode desinteressar-se do que diz respeito ao substrato da vida coletiva. No entanto, 0 niimero © a natu reza das partes elementares ce que se compde a socieda- de, a maneira como elas esto dispostas, 0 grau de coales- céncia a que chegaram, a distribuigdo da populagao pela superficie do territ6rio, o ntimero e a natureza das vias de comunicagao, a forma das habitages, ete. nao parecem capazes, num primeiro exame, de se reduzir a modos de aagir, de sentir ou de pensar. Mas, em primeiro lugar, esses diversos fendmenos presentam a mes cteristica que nos ajudou a defi- nir os outros. Essay maneiras de ser se impdem ao indivi- duo tanto quanto as maneiris de fazer de que falamos. De fato, quando se quer conhecer a forma como uma so- ciedade se divide politicamente, como essas divisbes se compoem, a fusdo mais ou menos completa que existe entre elas, ndo € por meio de uma inspegdo material & por observacdes geogriificas que se pode chegar a isso; pois essas divisdes sao morais, ainda que tenham alguma hase na natureza fisica, E sonente através do direito pu- blico que se pode estudar essa organizagio, pois é esse direito que @ determina, assim como determina nossas re- lagdes domésticas & s. Portanto, ela ndo é menes obrigatoria. Se a populagao se amontoa nas cidades em vez de se dispersar nos campos, € que ha uma corrente «lc opiniao, um movimento coletivo que impde aos indivi- na cara 12 AS REGRAS DO METODO SOCIOLOGICO duos essa concentragao, Nao podemos escolher a forma de nossas casas, como tampouco a de nossas roupas; pe- Jo menos, uma é obrigat6ria na mesma medida que a ou- tra. As vias de comunicacdo determinam de maneira im- petiosa o sentido no qual se fazem as migragdes interio- res € as trocas, e mesmo a intensidade dessas trocas € dessas migragdes, etc., etc. Em conseqtiéncia, seria, quan- do muito, o caso de acrescentar a lista dos fenémenos que enumeramos como possuidores do sinal distintivo do fato social uma categoria a mais; e, como essa enumera- 10 no tinha nada de sigorosamente exaustivo, a adicao nao seria indispensavel. Mas ela nao seria sequer proveitosa; pois essas ma- neiras de ser ndo sdo senao maneiras de fazer consolida- das. A estrutura politica de uma sociedade nao é senao a maneira como os diferentes segmentos que a compéem se habituaram a viver uns com os outros. Se suas relacdes sio tradicionalmente proximas, os segmentos tendem a se confundir; caso contrdrio, tendem a se distinguir. O tipo de habitagio que se impde a nés ndo é senao a maneira como todos ao nosso redor e, em parte, as geracdes ante- riores se acostumaram a construir suas casas. As vias de comunicagao nao sao sendo o leito escavado pela propria corrente regular das trocas e das migracoes, correndo sempre no mesmo sentido, etc. Certamente, se os fend- menos de ordem morfoldgica fossem os Gnicos a apresen- tar essa fixidez, poderiamos pensar que eles constituem uma espécie a parte. Mas uma regra juridica é um arranjo néo menos permanente que um modelo arquiteténico, e no entanto € um fato fisiolégico. Uma simples maxima moral é, seguramente, mais maledvel; porém ela possui formas bem mais rigidas que um simples costume profis- sional ou que uma moda. Ha assim toda uma gama de nuances que, sem solucio de continuidade, liga os fatos 0 QUE E UM ATO SoctAL? 13 estruturais mais caracterizados as correntes livres da vida social ainda nao submetidas a nenhum molde definido. que entre os primeiros ¢ as segundas apenas ha diferen- gas no grau de consolidacac que apresentam. Uns € ou- tras sdo apenas vida mais cu menos cristalizada. Claro que pode haver interesse em reservar 0 nome de morfold- gicos aos fatos sociais que concernem ao substrato social, mas com a condigio de nao perder de vista que eles s0 cla mesma natureza que os outros. Nossa definigdo com- preendera portanto todo 0 definido se dissermos: £ fato social toda maneira de fazer, fixada ou nao, suscetivel de exercer sobre o individuo uma coercdo exterior; ou ainc, toda maneira de fazer que é geral na extensdo de uma so- ciedade dada e, ao mesmo tempo, possui uma existéncia propria, independente de suas manifestacdes individuais'

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