Você está na página 1de 20
PRODUTIVIDADE DA ESCOLA IMPRODUTIVA gaudéncio frigotto 6*eigio 340981 : S SoRTez Gaudéncio Frigotto A PRODUTIVIDADE @ Dados Internacionais de Catalogacao na Publicagao (CIP) {Camara Brasileira do Livro, SP, Brasil) Frigotto, Gaudtnci : ‘ DA ES C OLA ‘A produtividade da escola improdutiva : um (re) exame das IMPR ODUTIV A relagGes entre educagao ¢ estrutura econémico-social capitalista/ Gaudéncio Frigotto— 6. ed. — Sao Paulo : Cortez, 2001 ISBN 65-249-0152-7 Um (re) Exame das Relagées L. Capitalismo 2. Hducago ~ Aspectos econémicos. I. Titulo. entre Educacao e Estrutura Econémico-Social Capitalista IL Série. CDD -338.4737 89-0074 -370.193 Indices para catdlogo sistematico: 1. Capitalismo e educagdo 370.193 2. Economiae educago 338.4737 3. Economia : Economia 338.4737 ae 4. Economia e capitalismo 370.193 ¢ edicao UNICAMP - FE - BIBLIOTECA S€ SGioRa EDUCACAO COMO CAPITAL HUMANO: UMA TEORIA MANTENEDORA DO SENSO COMUM Presos as representagGes capitalistas (os economistas burgueses), véem sem diivida como se produz dentro da relagdo capita- lista, mas nto como se produz essa prépria relagao. (Marx) Neste Capitulo apresentaremos inicialmente as teses_basicas da teoria_do capital humano e mostraremos que elas so um desdobra- mento singular dos postulados ‘da teoria econémica marginalista apli- cados & educagao. Nao objetivamos fazer um tratado sobre a teoria marginalista, mas apenas recuperar os vinculos do capital humano com esta viséo.! Discutiremos, num segundo momento, que o carater circular das abordagens econémicas da educac&o, baseadas na pers- pectiva do capital humano, é decorréncia do carater positivista da 1. A visio econémica marginalista caracteriza-se pela postura metodoldgica positivista que busca aprender o funcionamento da economia mediante a and- lise de unidades isoladas ou agentes econdmicos (individuos, firmas) e, a partir desta visio atomizada, elabora uma teoria da economia como um todo mediante a agregacio do comportamento destas unidades. O termo Mazrginalista deriva da visio de que o individuo, dotado de “racionalidade” e “liberdade”, faz as escolhas econémicas de acordo com a utilidade marginal ou desutilidade margi- nal dos bens disponiveis. Isto por sua vez, decorre, da concepcSo de que o “individuo”, enquanto homo-economicus, relaciona racionalmente os seus dese- jos, as suas necessidades, seu orgamento com os pregos dos bens, atingindo sempre, mediante esta relaciio, uma escotha otima, o equilfbrio. (Ver, a esse Tespeito, Himmelweit, S. O individuo como unidade bfsica de anilise. In: Green, F. & Nore, P. A Economia um antitexto, Rio de Janeiro, Zahar, 1979, p. 35-52). 35 teoria econémica que Ihe serve de base —,teoria esta que se..cons- titui_ numa apologia das relagdes sociais de producao da sosiedade burguesa. Buscaremos evidenciar que o método de andlise positivista ‘constitui-se, ent4o, na forma especifica da visio burguesa_dos nexos entre educacio_e desenvolvimento, educagao_e trabalho, capital _e trabalho. Nexo este que esconde a verdadeira natureza de exploragdo das relagdes sociais de produgdo capitalista, determinando que esta teoria se constitua num poderoso instrumento de manutengdo do senso comum. A teoria mostra-se fecunda enquanto uma ideologia, tanto no sentido de falseamento da realidade quanto no de organi- zagio de uma consciéncia alienada. 1. TEORIA DO CAPITAL HUMANO: O MOVIMENTO INTERNO Buscamos, neste item, caracterizar de forma répida o_ movimento interno da teoria do capital humano. Trata-se, como veremos, de um_movimento que guarda em seu_interior um carter circular, um pensamento_em “giro”, recorrente_aos mesmos supostos, mas que sé desdobra em linhas muitas vezes aparentemente contrarias. Os supos- tos, o arsenal tedrico sobre o qual a teoria se move, nao sdo postos em questéo. O movimento se da exatamente na _tentativa de encon- trar, no_ mundo da imediaticidade empirica, de forma cada vez mais Tigorosa, elementos que_sustentam_os_supostos. ‘Nao nos demorare- mos em demonstrar as polémicas internas da teoria, apenas apon- taremos os diversos deslocamentos das abordagens. 1.1. © apelo de Adam Smith e seus discipulos £ quase um lugar-comum entre aqueles que analisam os vinculos entre_educacéo_e desenvolvimento, educacdéo_e¢ renda, educacio_e mobilidade_soci; i I s_pensamentos_da_obra_de Smith _e seus discipulos. Este apelo, no mais das vezes, aparece como a busca de um critério de autoridade para realgar os desdobramentos de abordagens que pouco ou nada tém a ver com © que esses autores escreveram naquela época, e menos ainda com o método de inves- 36 tigagfo por eles adotado.2 Uma das passagens classicas de Smith, citada em grande numero de trabalhos, € a seguinte: “Um homem educado a custa de muito esforgo e tempo para qual- quer emprego que exige destreza e qualificagbes especiais pode ser comparado a uma daquelas mAquinas caras. aprende a realizar, como serd de esperar, acima dos sal4rios habituais emiod ‘mso-de-obra comum, compensar-Ihe-d todo o custo de sua edu- cago, com, pelo menos, os lucros habituais de um capital igualmente valioso.”3 J. Stuart Mill, em 1848, quase um século depois da obra de Smith, na sua exposigao sobre a economia politica classica retoma © pensamento de Smith de forma mais contundente: “Para 0 propésito, pois, de alterar os hAbitos da classe trabalhadora (...) a primeira coisa necessdria é uma eficaz educagio nacional das stiangas da classe trabalhadora, Pode-se afirmar sem hesitago que ‘© objetivo de toda a formacao intelectual para a massa das pessoas deveria ser o cultivo do bom-senso; o torn4-las aptas a formula julgamento sadio das circunstincias que as cercam, Tudo o que se pode acrescentar a isso, no dominio intelectual, é sobretudo decora- tivo."4 A. Marshal (1980), embora considere a educacio “o mais yalioso_capital que se_investe_nos_seres humanos”, considera_que a analogia feita_por Smith entre_o investimento_em_méaquinas_e edu- cagéo é imperfeita pelo fato de_o “trabalhador vender_seu_trabalho mas _permanecer ele mesmo_a sua propriedade”, ¢ pela intervencao de fatores que limitam o investimento na educagéo, como o poder aquisitivo das familias. (Marshal, A., 1980). 2. De fato, enquanto os primeiros estavam preocupados em identificar as Jeis que regiam a sociedade capitalista nascente sem, no entanto, tirar dessas andlises as conseqiiéncias politicas, como dird Marx ao criticé-los, os segundos se movem mais dentro de uma ética “vulgar” de economia preocupados na apologia das relagdes sociais de producao vigentes nesta sociedade. 3. Smith, Adam. A Rigueza das nagées, 1776, livro 1, cap. 10. E preciso frisar que 0 conceito de educagao, no contexto do trabalho de Smith, é nitida- mente identificado com ensino vocacional, treinamento, formagio profissional Nao guarda, portanto, o sentido genérico dado hoje, especialmente quando se apela para a idéia de Smith ou a idéia geral de capital humano, para justificar determinadas polfticas governamentais. 4, Stuart Mill, J. The principles of political economic, 1848. Apud Launay, J. Elementos para uma economia politica de educagao. In: Durand José C. G- (org.) Educagéo e hegemonia de classe. Rio de Janeiro, Zahar, 1978, p. 179. A concepeio de educacio como treinamento ¢ adestramento para 0 trabalho explicita em Stuart Mill, bem como uma tacita aceitagio da desigualdade social. 37 Embora seja possivel mencionar mais de uma dezena de traba- ihos que _se_referem_ao_investimento_nas_pessoas apés os fragmentos dos: classicos, é ente a partir do final da _década_ di ue_esta idéia_se_desenyolve de forma sistematica,* especialmente por traba- Thos de pesquisadores_americanos_e ingleses, colimando com o que se convencionou denominar, por analogia ao capital fisico, de teoria do capital humano. Vale assinalar que a idéia_de “capital humano” surge, histori- camente, bem antes, até mesmo no Brasil,® da década de 50. O fato de que sua formulacao sistemdtica_e seu_uso ideolégico_politico_so- mente se verificam_a partir do fim da década de 50 e inicio da década de 60 aponta para a hipétese de que & efetivamente neste periodo que_as_novas formas que _assumem_as relacdes_intercapitalistas_de- mandam_e¢ produzem esse_tipo_de_formulacéo.7 1.2. O Conceito de capital humano nas andlises macro e microeconémicos QO _conceito de capital humano, que a partir de uma visdo_redu- cionista_busca_erigir-se_como_um dos elementos explicativos do_de- senvolvimento_e_egiiidade_social_e_como_uma_teoria_de_educagio, segue, do_ponto_de_vista_da_investigacdo, um _caminho_tortugso. - Percorrendo-se esse caminho depreende-se que o determinante (edu- facho como fator de desenvolvimento ¢ distribuicso de renda) se transmuta em determinado, (o fator econémico_ como elemento expli- ,gativo.do_acesso_e_permanéncia_na_ escola, do_rendimento_escolar, 5. B. F. Beker, por exemplo, menciona mais de duas dezenas de trabalhos desta natureza em artigo intitulado “The historical roots of the concept of human ' capital”. (University of South Carolina, s.d.) 6, “Simultaneamente € necessério atender 4 sorte de centenas de milhares de brasileiros que vivem nos sertées, sem instrugio, sem higiene, mal alimenta- dos e mal vestidos, tendo contato com os agentes do poder publico apenas atra- vés dos impostos extorsivos que pagam. E preciso agrupé-los instituindo colénias agricolas; (...) despertar-Ihes, em suma, o interesse incutindo-lhes habitos de atividades de economia. Tal é a valorizagao basica, essa sim que nos cumpre iniciar quanto antes — a valorizacdo do capital humano (0 grifo & nosso), por isso que a medida da utilidade social do homem € dada pela sua capacidade de produgfio.” (Ver Carone, Edgar. A Primeira Repitblica. Sio Paulo, Difusio Européia do Livro, 1969, p, 245). 7. Veremos esse aspecto detalhadamente no Capitulo 2, onde abordaremos as condigdes histéricas que demandam esta formulagao. 38 etc.). Essa circularidade de andlise, veremos, decorre de sua funcao apologética da dtica de classe que representa. Do ponto de vista macroeconémico, a _teoria do capital humano constitui-se num desdobramento e/ou_ um complemento, como a situa Shultz, da_teoria_neoclassica_do_desenyolvimen: ico. De lassi acordo com a visio neoclassica, para um pais sair de estdgio tradi- cional ou pré-capitalista, necessita de crescentes taxas de acumulacgao dade (famosa teoria do bolo, tao amplamente difundida entre nds). A_longo_prazo, com o fortalecimento da economia, hayeria natural- mente _uma redistribuicéo. O crescimento atingido determinaria: niveis minimos de desemprego, a produtividade aumentaria e haveria uma crescente transferéncia dos niveis de baixa renda do setor tradicional para os setores modernos, produzindo salérios mais elevados.* Q conceito de capital humano, que _constitui_o construtor basico da_economia_da_educacio, yai encontrar campo_prdprio_para_seu desenvolvimento no bojo das discussdés sobre os fatores explicativos do crescimento econémico. A_preocupacdo basica ag_nivel_macro- econdmico é, entéo, a_andlise_dos_nexos entre os_avancos educacio- nais_e_o desenvolvimento _econémico_de_um_pais. A observacio de que o somatério imputado 4 produtividade_do estoque de capital fisico_e estoque de trabalho da economia, ao longo de determinado tempo, explicava_apenas uma_parcela_do_crescimento ¢condmico desta economia levou a hipétese de que g_residuo nao explicado_pelo _acréscimo do estoque de capital e de trabalho _poderia ser_atribuido_ao_investimento_nos_individuos, dengminado_analogi- camente_ capital _humano, Este_residuo_engloba_o_investimento_em educacdo formal, treinamento, satide etc. “Q meu préprio interesse por este assunto surgiu no cower de 1956-57, quando eu era membro do Centro de Estudos Avancados das Cigncias do Comportamento. Sentia-me perplexo ante os fatos de que os conceitos por mim utilizados, para avaliar capital ¢ tra- 8. Esta tese toma forga especialmente a partir dos estudos empiricos de Kuznets, através dos quais, tenta evidenciar que existe uma relacic com o for- mato de um “U”, entre igualmente de distribuigio de renda ¢ niveis de renda per capita, (Ver Kuznets, Simon. Economic growth and income inequality. American Economic Review, 6 (45) 1955). No Capitulo 2 retomaremos esta questiio, ligando as teorias do desenvolvimento com a educagdo. 39 balho, estavam se revetando inadequados para explicar os acréscimos que vinham ocorrendo na produgao. Durante o ano de minha per- manéncia no Centro, i ini i ificava como capital e trabalho, nj imutayeis; sofriam_um _processo de aperfeicoamento, o gue nao era deidamense ‘avaliado, Segundo 2 Titha conce a conceltuapo, ad: Sane) € trabalho. Taml percebi clayamente que, nos inidos, muitas pessoas esto investindo, fortemente, em si mesmas; que estes investimentos humanos estdo constituindo uma penetrante inf it sobre 0 crescimento econdmico; e que o investimento bisico no capi- tal humano € a a educacao.”"9 Segundo T. Schultz, um dos pioneiros da divulgagao da teoria do capital humano, que lhe valeu o Prémio Nobel de Economia em 1979, “O componente da producdo, decorrente da instrugdo, é um investi- mento em habilidades ¢ conhecimentos que aumenta futuras rendas ¢, desse modo, assemelha-se a um investimento em (outros) bens de produgio". (Schultz, T., 1962). Schultz, como se pode depreender desses fragmentos e mais detalhadamente em suas obras (ver também Schultz, T. O Capital Humano, 1973), ¢ os seus adeptos pretendem com o conceito de capital-humano, a um tempo, complementar os fatores explicativos do desenvolvimento econémico na concepcdo neoclassica, explicar a alta de saldrios do fator trabalho nos paises mais desenvolvidos explicar, a nivel individual, os diferenciais de renda. A_educagao, entéo, é o_principal_capital_humano_enquanto. é concebida como _produtora_de_capacidade de trabalho, potenciadora do_fator trabalho. Neste sentido € um investimento como qualquer outro. / Q_processo_educativo, escolar_ou_ndo, é reduzido 4 fungdo_de produzir_um_conjunto_de_habilidades_intelectuais, desenvolvimento de determinadas atitudes, transmissao de um determinado volume de conhecimentos que funcionam como geradores de capacidade de trabalho e, conseqiientemente, de produgao. De acordo com a espe- cificidade e complexidade da ocupagao, a natureza e o volume dessas 9. Schultz, T. O valor econédmico da educagéo. Rio de Janeiro, Zahar, 1962, Certamente, Schultz teria grande dificuldade para justificar hoje o desem- Prego em massa nos EUA (perto de 10 milhdes de pessoas), embora esses indi- viduos tenham “inyestido fortemente neles mesmos”. . 40 habilidades deverao variar. A_educacao passa, entao, a constituir-se num dos fatores fundamentais para explicar economicamente as dife- rencas de capacidade de trabalho e, conseqiientemente, as diferencas de_produtividade e renda. Q_sconceito de capital humano — ou, mais extensivamente, de -recursos humanos — busca _traduzir_ o montante de _investimento que a_nacao_faz_ou_os individuos fazem, na_expectativa de_retornos adicionais futuros. Do ponto de vista macroeconémico, g_inyesti- acc mento no ‘“fator humano” passa_a_significar_um_dos_determinantes basicos para aumento _da_produtividade_e elemento_de_superacao_do atraso econdmico, Do ponto de vista microeconémico, constitui-se no fator explicativo das diferengas individuais de produtividade e de renda e, conseqiientemente, de mobilidade social. ‘A _tese_ central da teoria do capital humano que vincula educa- gdo_ao_desenvolvimento econémico, & distribuicéo de renda, confi- gurando-se como uma “teoria_de desenvolvimento”, sem desviar-se de sua fungdo apologética das relages sociais de produgao da socie- dade burguesa, vai ‘desdobrando-se, no campo_da pesquisa, em tra- balhos aparentemente contrdrios. Assim é que as_pesquisas se deslocam do campo macroeconémico para o microeconémico e, den- tro destas esferas, tomam especificidades diversas, O que da coeréncia aos trabalhos é 0 arsenal tedrico e ideolégico no qual todos os enfoques se afunilam. Neste sentido, como veremos adiante, a aparente polé- mica de carfter “cientifico” que se estabelece apenas serve para esconder o cardter circular das abordagens.1? A nivel macroeconémico, lho_de_ Harbinson e¢ Myers, sobre comparagdes internacionais, efetivado em 1960," &_o mais 10. As abordagens mais freqitentes para o estudo das relagdes entre educa- gio a desenvolvimento (crescimento) econdmico sio as comparacées interna- cionais, comparagdes intertemporais, comparagSes interindustriais ¢ a andlise do “fator residual”. O segundo € o terceiro tipo de abordagem tiveram pouco impacto quando comparados com 0 primeiro e¢ o tiltimo. 0 11. Harbinson, F. H. & Myers, C. M; Education manpower and economic growth, New York, McGraw-Hill, 1964. No Brasil, os trabalhos de Langoni (As causas do crescimento econémico no Brasil. Rio de Janeiro, Anpec, 1974; é Distribuigdo de renda ¢ o desenvolvimento econémico no Brasil. Estudos Econ micos, 2'(5), 1972) se enquadram nesta dtica. O mesmo vale em telagdo ao que escreve sobre educacio e distribuigéo de renda (Ver Simonsen, M. H. Brasil 2001. Rio de Janeiro, Anpec, 1969). - 41 completo ¢ que tem _gerado maior impacto _e_alimentado o discurso — especialmente nos governos dos paises subdesenvolvidos — sobre a eficdcia da educac&o como instrumento de desenvolvimento _econé- mico € distribuigao de renda e equalizacao social. Estes autores toma- yam um indice de desenvolvimento de recursos humanos formado na base do fluxo de pessoas matriculadas nas escolas secundarias com idade entre 15 e 18 anos, e fluxo de pessoas entre 20 e 24 anos que estavam no ensino superior, de 75 paises, e o correlacio- naram com o PNB per capita de cada pais. A correlagéo encontrada foi de r? = 0,789. Inferiu-se dai a relevancia da educag&o para o desenvolvimento econdmico. Esse trabalho, embora mantenha ainda hoje, pelo menos entre nos, um forte apelo ideoldgico, foi muito criticado internamente pelos adeptos da teoria do capital humano.'* Entre outras criticas sobressaem: as_ponderacdes_que_os_autores fazem na construgéo do seu indice de desenvolvimento _de_recursos humanos; o fato de compararem_um_ fluxo (pessoas no processo edu- cacional) com_um_estoque — (PNB per capita) das_pessoas_que fgstavam_no mercado de trabalho; de outra parte, o modelo estatistico de correlacdo nao permitir_inferéncias de causagao, mas apenas_de. vinculo,\Resta saber, dizem os criticos, se_é educagio = gue _gera_mais_desenvolvimento_ou_se_o desenvolvimento gera mais educagio. } ' Uma_forma mais elaborada e até mesmo altamente formalizada de_abordagem do _vinculo entre educagéo _e desenvolyimento_econd- mico foi_a introducio do “fator H” (recursos humanos) numa fungio neoclassica_de_produgao, geralmente sob a formula de Cobb-Dou- glas,!8 onde toda a variacio de PIB ou de renda per capita nao 12. Toda vez que nos referimos 3 critica interna estamos entendendo as criticas que partem dos proprios adeptos da teoria do capital humano, que se atém n&o no questionamento dos supostos da teoria, mas de alguns aspectos dos trabalhos que buscam demonstréla e confirmé-ta. 13. A férmula geral de Cobb-Douglas é geralmente apresentada pela equa- gdo: X = AK Li-s onde X olume de produtos; A = nivel de teconologia; K insumos de capital; L = insumos de mao-de-obra; a uma constante; t-s € igual & unidade para dar rendimentos constantes de escala. 42 explicada Pelos fatores A (nivel de tecnologia), K (insumos de capi- tal), L (insumos de mao-de-obra) seria devida ao fator H (mao- de-obra potenciada com educacio, treinamento etc.) QO. trabalho de Denison (Denison, E. F., 1962) é 0 mais conhe- cido_entre os que introduziram inicialmente o “fator H” na funcdo de _produgao, nos EUA_¢ em outros paises. A suposigad basica do modelo é€ de que os fatores recebem o valor dos seus produtos marginais, donde “o crescimento do produto, no tempo, pode ser atribuido ao crescimento dos varios insumos e as mudancas na tecnologia”, (Sheehan, J., 1973). Nesse contexto, 0 “residuo” do crescimento econémico, néo explicado pelos fatores A, K, L, seria atribuido ao fator capital humano, As criticas internas sobre 0 modelo, a despeito de sua capaci- dade de formalizagio ¢ matematizacio, so inameras. M. Abramo- vitz, por exemplo, denomina o “residuo” atribuido a educacdo, trei- namento etc., ‘indice de nossa ignorancia”, querendo enfatizar a debilidade desse tipo de medida, (Abromovitz, 1962). De outra parte, a suposicio basica de que os “fatores recebem o valor de seus pro- dutos marginais” implica a suposicéo de que a concorréncia perfeita prevalega no mercado desses produtos, o que conflitua com o cres- cente cardter monopolista da economia capitalista, e a crescente inter- vencdo do Estado, Além dessas criticas, Becker e Atkinson enfatizam que existem razées tedricas pelas quais o treinamento no proprio trabalho (Becker, G.S., 1964, p. 8-11) e certos tipos de progresso técnico (Atkinson, A. B, & Stiglitz, J.E., 1969) gerem divergéncias entre as remuneragées dos fatores e 0 valor dos produtos marginais. As tentativas de se mensurar, em _termos macro, a contribuigao da educacao para o crescimento econémico tém esbarrado, do ponto de vista_da_investigacao,.nas_mais diversas criticas internas 4 teoria. ssas_criticas fundamentalmente se prendem_ a debilidade_das medi- das que, tentam apreender_o impacto da educacdo sobre.o crescimento. A visio positivista, cujo patamar de sustentacdo se calca sobremodo na mensuragéo dos fenémenos, no rigor formal, na aplicagio do modelo fisico de ciéncia as ciéncias sociais, fica vulnerdvel, Isto_faz 43 com que a teoria do capital humano se _desloque da esfera_macro- econémica pata a microeconémica. Estabelecem-se, ao nivel das diferentes correntes de pesquisa, polémicas que podem deixar ao leitor menos familiarizado com a 4rea, uma impressdo de visdes diametralmente antag6nicas. Ao con- trério, o que esté em jogo & apenas o car4ter de maior ou menor possibilidade de preciséo na apreensio do dado ou a representati- vidade da amostra, validade dos testes, etc.!4° econémico_é de que o individuo, do ponto de vista da produg&o, € uma _combinacio_de trabalho fisico e educagao ou_treinamento. Supde-se, de outra parte, que o individuo é.produtor de suas _préprias capacidades_de_producéo, chamando-se, entao, de. Jnvestimento humano_o_fluxo_de_despesas_que_ele_deve fet or_ele, em educa: treinamento ‘Sara aumentar-atua produtivdade A_um acréscimo marginal de escolaridade, corresponderia um acréscimo marginal de produtivi- dade. A renda é tida como fungao da produtividade, donde, a uma dada produtividade marginal, corresponde uma renda marginal. Na base deste raciocinio (silogistico) infere-se literalmente que a_educa- cdo € um eficiente_instrumento_de_distribuicao de renda_e_equaliza- g40 social, O célculo da rentabilidade € efetivado a partir das dife- rengas entre a renda provdvel de pessoas que nao freqiientaram a escola e outras, semelhantes em tudo.o mais (critério ceteris paribus) € que se educaram. Dai decorrem também as teses relacionadas com a mobilidade social.15 14. Um exemplo desse tipo de polémica interna é a discusstio que se esta- beleceu entre Langoni e Castro na década de 70. (Ver Castro C. M. Investimento em educacdo no Brasil: comparacdo de trés estudos. Revista de Pesquisa e Pla- nejamento Econdémico. Rio de Janeiro 1 (1): 141-59, jun./nov. 1971; Langoni, & G. Investimento em educacio no Brasil: um comentario. 1 Q): 381-92, ista de Pesquisa e Planejamento Econémico, dez., 1971. Castro, C. M. Inves- ea em educacao no Brasil: uma réplica. Pesquisa ¢ Planejamento, Rio de Janeiro, 1{2}): 393-401, dez. 1971. 15. Nlau, P. M. & Ducan, O. D. The American ocupacional structure. New York, 1967; Anderson, C. A. A skeptical note on education and mobility. rican Journal of Sociology, v. 66, 1961; Pastore, J. & Owen, C. Mobilidade Educacional, mudanga social ¢ desenvolvimento no Brasil: notas preliminares. Revista da Pontificia Universidade Catdlica de SGo Paulo, v. 35, n. 67/68, 1968; Pastore, J. Desigualdade e mobilidade social no Brasil. Sio Paulo, Editora Queiroz, 1979. 44 O deslocamento da andlise macro para a micro nao muda em nada os supostos da teoria.1¢ Ao contrario, trata-se de uma medida técnica para livrar a investigagdo das criticas de cafater pouco con- sistente da construcgaéo dos indices que permitem Calcular a rentabi-. lidade da educagdo, Os trabalhos de Becker (Becker, 1964) e Blaug (Blaug, M., 1972) entre outros, assinalam a natureza deste tipo de andlise. Desenvolveu-se dentro da 6tica microeconémica uma grande quantidade de trabalhos sobre andlises de custo-beneficio, taxa de retorno,!7 e mesmo técnicas de provisio de mao-de-obra!® (manpo- wer approach) cujo objetivo, no primeiro caso, é tentar mensurar, a nivel micro, o efeito de diferentes tipos.e niveis de escolarizagéo, em termos de retorno econdmico; e, no segundo, buscar ajustar Tequisi- tos educacionais a necessidades do mercado de trabalho nos diferen- tes setores da economia, tanto a nivel macro, como micro. Embora_as_andlises_microeconémicas_aparentemente_permitam uma_maior confiabilidade_na_construgao dos indicadores utilizados, a redugio_das_varidveis que explicam renda a idade e experiéncia, de um lado, a dificuldade se se _construir_os_perfis idade-renda_¢ as hi- poteses que supdem, aqui também, um mercado em concorréncia per- feita, de outro, fazem_com que essas_andlises_se_tornem cada_vez 16. A visio microeconémica da teoria do capital humano ressuscita os con- ceitos da teoria neocl4ssica do marginalismo. Afasta-se desta relacio, como veremos adiante, quest6es relativas aos rendimentos do monopélio, a divisio social do trabalho e toda a critica da forma privada de apropriagdo do lucro. (Ver Attali Jacques & Mac Guillaume. A anti-economia — uma critica a teoria econémica. Rio de Janeiro, Zahar, 1975, p. 187-209). 17, Além dos trabalhos de Becker, Blavg, intimeros outros vém sendo pro- duzidos nesta 4rea. Entre outros, ver Psacharopolous, G. The rate of return to investment education at the regional level. Havai, 1969; Klinov-Malul, Ruth. Profitability of investment in education in Israel. Jerusalém, 1966; Prest & Tuvey. Cost-benefit analysis — a survey. Economic Journal, 75(300), 1965; Mishan, E. J. Cost-benefit analysis. London, 1971; no Brasi! temos as andlises de C. L. Langoni e C. M. Castro. 18. A aplicagéo de maior impacto em termos de abrangéncia e mesmo em termos do fracasso — da técnica de man-power-approach foi no projeto Medi- terraneo, pela Organizagéo de Cooperagao e Desenvolvimento Econémico (OCDE), abrangendo Espanha, Grécia, Itdlia, Portugal, Turquia ¢ Tugoslévia. Ver, a respeito dessa técnica, Parnes, H. S. ‘Manpower analysis in educational planing. Paris, OCCD, 1964. 45 \ menos freqiientes e« menos aceitas pelos préprios adeptos da teoria visio de mao-de-obra do Projeto Mediterraneo, igualmente reforcam © descrédito destas andlises. Uma_das criticas _internas_mais recentes_a_este_raciocinio sim- plorio é efetivada pelas andlises que tentam refutar_a sua linearidade com _a tese da segmentacdo do thercado de trabalho.!* Acrescenta-se a essas criticas os que buscam mostrar que os saldrios tem pouco a yer com a produtividade do trabalho. Ha, de um lado, o aspecto legal, e de outro, as conquistas da presséo dos trabalhadores. 1.3. © que se aprende na escola e o que é funcional a0 mundo do trabalho e da producgao L Um_outro_tipo_de_critica_interna 4 teoria_do_capital_humano, desenvolvida em pesquisas mais recentes, refere-se_ao_privilégio que ssa_teoria_tem dado _aos_ componentes iti i do. sucesso_profissional, rentabilidade, etc. Contrastam-se pesquisas que buscam evidenciar que os aspectos ligados a atitudes, valores, resul- tado do processo de socializagéo que se efetiva na escola sdo mais importantes para a produtividade das pessoas na organizacio enquan- to fornecem habitos de funcionalidade, respeito 4 hierarquia, disci- plina etc. ' Os trabalhos que enfatizam a funcionalidade da escola enquanto desenvolve atitudes, valores, etc., tm, ao nivel de critica interna, como base, apelos distintos, Um primeiro conjunto de trabalhos deriva de uma inspiragio tipicamente da sociologia funcionalista, em cuja fonte encontramos 19. Para uma idéia dessa tese, ¢ para uma orientagdo bibliografica perti- nente ao assunto, ver Lima, Ricardo. Mercado de trabalho: o capital humano ¢ a teoria da segmentago. Revista Pesquisa e Planejamento Econémico. Rio de Janeiro, IPEA, 10 (1): 217-72, abr. 1980. Outros trabalhos, desenvolvidos por autores como Edwards, Reich e Gordon, preocupam-se em caracterizar a seg- mentacao do mercado como um processo decorrente da transigéo de um capita- lismo competitivo para um capitalismo monopolista. Ver, a csse respcito, Gor- don D. M. Theories of poverty an underemployment: orthodox, radical and dual labor market perspective. Lexington, 1972; Reich, M.; Gordon, D, M. & Ed- wards, R. C. A Theorie of labor market segmentation. Industrial Relations Research Association, 1972. 46 os trabalhos de Parsons.*? Robert Dreeben desenvolve um trabalho “sistemdtico defendendo a tese de que, dadas as caracteristicas estru- turais préprias da escola — composigao dos agentes, hordrios, pré- mios e sangGes, complexidade, diferenciacdo de papéis —- aprende-se nela um conjunto de normas que vao definindo atitudes de indepen- déncia, realizagio, universalismo, especificidade, funcionais as orga- nizagGes da sociedade industrial. Outro conjunto de trabalhos, com apelo 4s andlises marxistas, tem-se desenvolvido ultimamente nos EUA valendo a esses autores a identificagao, nos meios académicos, de os “Radicais Americanos”. Destacam-se, entre os mais citados na literatura nacional que aborda esta questéo, os trabalhos de Bowles, Gintis, C. R. Edwards, Levi, Carnoy, entre outros. ‘ Bowles, contestando a possibilidade de prover_a equalizacio via escola, destaca que esta fornece uma forca de trabalho disciplinada é habilitada, ao mesmo tempo que fornece os mecanismos de controle social para a estabilidade do sistema social capitalista.?? Gintis, ao refutar o vinculo existente entre a escolaridade e sa- lario, enfatiza a relevancia da formacgao_de_atitudes requeridas pelo mercado _de_ trabalho. “Na realidade.a escola conitibui para fommar yma forca de trabalho socialmente ida incuicando_uma_mentalidade burocrati estudantes, ‘intis, 1 . A escolarizagio, de acordo com Gintis, “que influi de maneira considerével sobre a personalidade dos indi- viduos, € reduzida progressivamente ao seu papel funcional: ela favorece as condigSes psicologicamente requeridas para formar a forga de trabalho alienada que é desejada”. (Gintis, 1974). ~ 20. Parsons, T. The School class as a social system: some functions in American society. In: Helsey, R. H. et alii, Educations, economy and socie- ty. New York, 1961. 21. Dreeben, Robert. On what is learning is school, Massachusetts, 1968. 22, Bowles, S. Unequal education and reproduction of social division of labor. In: Carnoy, M, Schooling in a corporate society: the political economy of education in American, New York, 1972; Bowles & Gintis. The problem with the human capital theory. A marxian critique. American Economic Review, May 1975, 47 a e Edwards, igualmente, enfatiza os tracos desenvolvidos na escolae sua funcionalidade na hierarquia_ ocupacional da empresa moderna. (Edwards, 1976). Em suma, para esses autores, a educacdo escolar ¢_um_aspecto da reprodugéo_da diviséo_capitalista_do trabalho, A_organizacao_es- cola, em seus principais aspectos, é uma réplica das relacées de do- minagao_e submissao_da_esfera_economica, Estas andlises, ainda que apontem para alguns aspectos signifi- cativos, apenas se desenvolvem dentro de uma linguagem marxista, mas se afastam do método e teoria marxista. Trata-se de andlises que, sob um aspecto, apenas deslocam o vinculo da relagéo economia-educacao, educagao-trabalho, dos tragos cognitivos (treinamento de habilidades) para o campo afetivo, valo- rativo, comportamental, no transpondo o quadro das andlises ante- riores, de caréter funcional. (Ver Salm, Cléudio, 1980, p. 49-54), Madan Sarup, ao analisar_os trabalhos de Bowles ¢ Gintis, sa- lienta que “embora tenham uma posig¢ao marxista, sua visio de so- ciedade é funcional-estruturalista derivada de Durkheim e Parsons”. (Sarup, Madan, 1980, p. 155). E isto “parece constituir uma justificagao Iégica para a sua epistemologia, que € 0 positivismo, para sua metodologia, que & o empirismo, ¢ Para sua ontologia, que é o determinismo”. (Id., ibid. p. 155). A postura epistemolégica positivista pode ser depreendida através dos métodos empiricos que adotam, usando uma “barragem de estu- dos para fazer estatisticamente suas demonstragées”. Utilizam-se da andlise estatistica de uma forma acritica, de sorte que seu método parece sempre referendar comprovagées inequfvocas, cientificas. Sarup salienta, também, o uso de diferentes estruturas concep- tuais, imprimindo as an4lises um cardter eclético, Finalmente, Oca Titer funcional-estrutural de suas andlises se reflete na insistente visdo linear e determinista da “correspondéncia entre as relagGes sociais da producao e as rélacdes sociais da educagdo”, ou a “correspondéncia aproximada entre as relac6es sociais de producio e as relacdes sociais da vida familiar”. (Id., ibid. p. 158 e 160) Este tipo de enfoque nao _vislumbra_que_as_relages_capitalistas de producao nao determinam, necessariamente, um total dominio sobre 48 o homem ¢ que este nao é deterministicamente passivo. Certamente, nas relagoes escolares, familiares e de trabalho, ndo_se_reproduzem linearmente as relacdes capitalistas. Aceitar a andlise dos autores, tal qual € apresentada, € cair no imobilismo e na crenga da impossibi- lidade de organizar, no interior da escola, familia, fabrica, e na so- ciedade civil em seu conjunto, os interesses dos dominados. O carater reducionista da andlise nado permite aos autores perceberem que a teprodugao, via escola, familia, etc., que efetivamente ocorre, nfo se d4-de forma tao linear, mas por mediagdes de diferentes naturezas. Da mesma forma, nao percebem que o trabalho escolar pode, igual- mente por mediacdo, desenvolver um tipo de relagéo que favorece a ética dos dominados. O problema bésico da linha de andlise dos citados autores reside _na_ndo_apreensdo: das categorias fundamentais de andlise do método histérico_dialético. 1.4. Da andlise que “determina” as variagées na renda (individual. ou social) aos “determinantes” de rendimento escolar: _ 0 determinante que se torna determinado Um volume de trabalhos, cada vez maior, vem sendo produzido aplicando-se o modelo de “fungdo de produgio” neo-classico utili- zado na andlise dos vinculos entre educacdo e desenvolvimento, para a andlise da escola. Trata-se tipicamente do uso dessé paradigma eco- nométrico para as varidveis do processo escolar. £ neste dAmbito que podemos demonstrar uma das faces da andlise circular da teoria do capital humano. Busca-se averiguar quais os principais fatores respons4veis pela Tepeténcia, evasao, atraso e fraco rendimento, através de uma matriz de varidveis relacionadas com as caracterfsticas da familia (educagao dos pais, status ocupacional, renda etc.), caracteristicas do meio-am- biente, caracteristicas pessoais do aluno, caracteristicas da escola, etc. O rendimento escolar, a permanéncia ou no ao longo da traje- téria escolar so tidos como fung&o de um conjunto de “fatores”, As anélises multivariadas, com elaborada sofisticagao estat{stica, chegam sempre 4 mesma conclusao (quase metafisica) —_o fator sécio-eco- némico é que tem_o peso_maior na “determinacéo” das giferencas encontradas; em seguida, os fatores ligados & educagiio dos pais, etc. 49 ~ - O trabalho mais conhecido internacionalmente é o Coleman Re- port. (Coleman, J. S. et al., 1966)./No Brasil, estes estudos foram Feseavolvidos particularmente pelo Programa ECIEL.2* Hé, entre- tanto, um crescente numero de dissertagdes ¢ trabalhos de pesquisa que se desenvolvem nesta 4rea. Os mesmos supostos tedrico-metodolégicos que embasam a teoria do capital humano sao transpostos para a analise dos “deter- minantes” da escolaridade. Apenas mudam os fatores ou varidveis que entram na funcao, porque muda a conexdo que se busca fazer. Como vimos anteriormente, 9 raciocinio da concepgao do capital humano, tanto do.ponto de vista do desenvolvimento econdmico como da_renda individual, é que a educac4o, o treinamento sao criadores de capacidade de trabalho. Um investimento marginal (pelo menos até certo nivel) em educacao ou treinamento permite uma_produtividade Marginal. Concebendo o salatio ou_a renda como _preco do trabalho, g individuo, produzindo mais, conseqiientemente ganharé mais. A_de- finigao da renda, | neste racidcinio, é uma decisao individual. Se passa fome, a decisdo é dele (individu); se fica rico, também. (Aqui re- side, como veremos adiante,.o amago da ideologia burguesa que jus- tifica. e mascara a desigualdade estrutural do modo de producdo capitalista}. Retomando o esquema da fung&o de produgdo anteriormente apontado, teriamos entdo que Y (renda nacional, ou renda individual) é determinada por K (capital fisico), L (trabalho), H (capital humano). Q fato de nao ser_proprietario, nao dispor de_um capital fisico, ou_de ndo_pertencer_a classe _burguesa, nesta _dtica_pouco_importa, uma_vez_que 0 individuo, investindo em capital humano, podera au- mentar_sua_renda (isso depende dele, pois a deciséo é dele); ¢ a médio_ou longo prazo, este _investimento Ihe permitira ter_acesso_ao capital fisico ou_dispor do mesmo status ¢ privilégios dos que_o pos- Suem. Essa tese, veremos adiante, sera encampada pela visio do neo- 23. ECIEL — Programa de Estudos Conjuntos de Integracio Econémica da América Latina, Ver, também Castro, Claudio Moura. Educagdo, educabilidade € desenvolvimento econémico. MEC, 1976. sO capitalismo ao postular a superacio do conflito de classe pelo que se convencionou chamar a revolugio gerencial. Mas como se forma o “capital humano”? Pelo investimento_em- escolaridade, em treinamento, de acordo com _a teoria. O “fator H” seria, entio, determinado por_um_conjunto_de_anos de sscolaridade ou_de_treinamento. Variando_o_tempo eo tipo de educacao ey; tiando_o rendimento escolar, o desempenho, ou oO aproveitamento, irfo_variar_a_natureza_do_capil umans Ons’ retornos futuros, : Mas o que determina tanto 0 acesso a escola, aos diferentes niveis e tipos de escolas, as diferentes carreiras, os diferentes rendi- mentos escolares ou os niveis de desempenho? Ao aplicar 0 modelo de funcdo de produgao aos determinantes da escolaridade, as andlises econémicas da educagio nos d&éo a se. guinte funcao: Y (tomado quer como’ acesso & escola, tipos e niveis de escolas, carreiras, ou tomado como o tempo de permanéncia na escola, ou ainda, tomado como o desempenho ov rendimento escolar) seria fungao de um conjunto de fatores sécio-econémicos ou do chamado background sécio-econdmico familiar, fatores ambientais, nutricéo, fatores escolares (escola, professor, equipamento, tecnologia educa- cional, curriculo, ete.). A matriz de fatores ou ‘varidveis pode se estender ao “infinito”. Ocorre neste tipo. de andlise uma inversio que caracteriza o modelo circular de anélise. fo-é tida, na Gtica do capital humano, como fator_basico de mobitidade social e de aumen- to da renda individual, ou fator de desenvolvimento econémico, nestas analises, 2 “fator econémico” traduzido_por_um coniunto de_indi- lores_s6cio-econSmicos, é posto coma _sendo_o maior responsavel pelo_acesso, pela permanéncia na _trajet6ria_ escolar ¢ pelo rendimento ao longo dessa trajetoria. O que é determinante vira determinado. Ou seja, a. escolarizacdo é posta como determinante da renda, de ganhos futuros, de_mobilidade, de_equalizacdo_social_pela_equalizacao das gportunidades_educacionais (tese bdsica do modelo econémico con- centrador), € 0 2 eSs0_ a escola, a permanéncia nela ¢ o desempenho, m_qualquer_nivel, sfio explicados fundamentalmente pela _renda_e outros _indicadores que descreyem a situacio econémica familiar. 51 oe Este exemplo exprime apenas. uma faceta da circularidade da teoria do capital humano. Esta circularidade, como veremos no item a seguir, decorre do car4ter burgués desta andlise econémica — uma anélise que representa uma apologia das relagdes sociais de produ- cdo ¢ da pratica educativa inerente ao modo de producao capitalista. 2. A CONCEPCAO DO CAPITAL HUMANO: DO SENSO COMUM AO SENSO COMUM Nao é propésito deste trabalho tentar acrescentar mais uma cri- tica sobre a incoeréncia interna da teoria do capital humano, ou mais especificamente, da viséo neocl4ssica marginalista na qual esta teoria se funda.?# Nem objetivamos fazer uma demonstracio detalhada do movimento circular da teoria do capital humano, Simplesmente, no item anterior, buscamos evidenciar diferentes deslocamentos nas and- lises, acenando para o fato que em nenhum momento so postos em quest&o os supostos da teoria, para que e para quem ela serve, : E_nosso_interesse-tentar_demonstrar_neste_item-que 0 cardter -citcular_da_teoria do capital humano deriva necessariamente da con- sepaio ce bomem, de sociedade, que ela busca_veicular_e_legitimar, e da fungao_de escamoteamento das Ges_de_producao_que_ocor- rem_concretamente_na_sociedade_capitalista. Ou seja, a questdo fun- damental da necessdria_circularidade desta visio do capital humano é que o método em _que ela se funda e_desenvolve na andlise do real traduz_¢, ao_mesmo tempo, constitui-se_em_apologia_da_concepgao burguesa?> de homem, de_sociedade, e_das_relagdes_que os homens estabelecem para gerar sua existéncia no modo de produgao capitalista. 24. Indicamos aqui alguns trabalhos que se ocupam desta critica. A obra de P. Sraffa (Producdo de mercadorias por mercadorias. Rio de Janeiro, Zahar, 1977) representa o trabalho que deflagra, dentro da chamada “critica de Cam- bridge”, um questionamento A teoria do valor e do capital dos neoclassicos. L. G, Belluzzo (em sua obra Valor e capitalismo — um ensaio sobre a economia politica, Sio Paulo, Brasiliense, 1980) retoma Sraffa e tenta mostrar alguns de equivocos. 25. Concepeio burguesa é utilizada aqui com uma dupla intengao: Para caracterizar a marca de classe do pensamento econdmico neoclissico e da visio do capital humano; segundo, para identificar, nesta concepgio e nesta classe (fundamental), nao s6 os donos dos meios e instrumentos de produgho, mas também aqueles que administram, gerenciam, organizam em nome dos donos do capital. 52 Postas as premissas positivistas — tidas a priori como universais, e neutras — o carater de “aparente cientificidade” impGe um continuo debate ¢ renovadas criticas metodolégicas processuais, tendo como elemento-chave a verificagéo empirica das premissas. Os modelos ma- temAticos, cada vez mais sofisticados,?* serao utilizados para efetivar uma completa assepsia na linguagem nao-formal ou valorativa no campo da ciéncia econédmica em geral e na aplicagio da economia nas andlises do fendmeno educativo, Discutiremos, pois, num primeiro momento que a circularidade das andlises decorre do método positivista adotado e que este, por sua vez € decorréncia, da concepgio de homem, de sociedade que interessa A classe burguesa (dominante). Trata-Se, pois, de explici- tar que uma das fungées efetivas da teoria do capital humano reside nao enquanto revela, mas enquanto esconde a verdadeira natureza dos fenémenos, Sair do aparente, da pseudoconcreticidade, do empi-~ rico imediato, implicaria uma mudanca de método — o que parte do empitico, do concreto, ¢ que por via, do pensamento, pela anélise progressiva das contradigGes internas dos fenémenos chega as leis que produzem tais fenédmenos.27 Essa mudanga implicaria que a andlise mostrasse a verdadeira natureza das relagées de produgdo capitalista, das relagdes de classe. Isto significaria que a teoria do capital hamano — especificidade da ideologia burguesa no ocultamento da natureza da sociedade capita- lista — revelasse seu carater falso. A _teoria do capital humang, fundada nos supostos neoclassicos — apologia da sociedade burguesa — para_manter-se_teré de_ser Y 26. N&o h4, por parte do autor, nenhuma intengdo de subestimar a rele- vancia da estatistica, da matemética, da quantificagio no trabalho cientifico. 0 problema aqui situa-se no tipo de uso e de manipulagio que se faz do real, através desse instrumental. Ver a esse respeito, Pinto, A. V. Ciéncia e existéncia. Rio de Janeiro, Zahar, 1979, p. 397-417. 27. A pseudoconcreticidade se caracteriza exatamente pelo mundo dos fenémenos externos, pela aparéncia do real, pelo mundo dos objetos fixados que dao a impressio de serem condigdes naturais e nfio sio imediatamente reco- nheciveis como resultados da atividade social dos homens. (Ver Kosik, K. Dialética do concreto. Rio de Janeiro, Paz e Terra, 1969. p. 9-23; Savia Dermeval. Educagao: senso comum @ consciéncia filosdfica. Sio Paulo, Cortez, 1980. p. 9-23; Mao Tse Tung. Sobre a relacho entre conhecimento ¢ pritica — 4g relacgdo entre conhecer e agir. In: Sampaio, Carlos Augusto. Filosofia de Mao Tse Tung. Belém, Boitempo, 1979. p, 12-29.) 53 ‘ circular; ou seja, em vez de ser“a teoria instrumento de elevacao_ do senso _comum a consciencia critica, seré_uma_ forma servar aquilo_que é mistificador, deste_senso_comum. Finalmente, mostraremos que a superaco_da circularidade_da teoria do capital humano implica na_utilizagéo_de_um_método_que Veicule a otica da classe interessada na mudanca das relagdes sociais de produgdo vigentes. Trata-se do método que veicula a otica da produgao_vigentes. ‘Trata-se do méiodo que veicula a otica da Classe dominada, unica interessada na mudanga estrutural e, por con- seguinte, unica interessada em analisar as leis que produzem as rela- gdes sociais de exploracéo no interior da sociedade capitalista. E o método histérico-dialético, como instrumento de rompimento e su- peracao da circularidade, da elevagdo do empirico aparente ao con- creto do real, do senso comum & consciéncia critica. Método que € a ‘um tempo instrumento. de-produgao do conhecimento do real e ins- trumento de intervengdo pratica neste mesmo real. 2.1. © carater de classe do método de andlise da teoria do capital humano — o mito da objetividade ¢ da racionalidade A anétise econédmica da educacio, veiculada pela teoria do capital humano, funda-se no método e pressupostos @& interpretagio da realidade da economia neoclassica. Este modo de interpretagao da realidade é um produto histérico determinado que nasce com a sociedade de classes € se desenvolve dentro e na defesa dos interesses do capital. Ocupamo-nos, neste item, da caracterizagéo dos elementos basi- cos do método da-economia burguesa que fornece a base de analise da teoria do capital humano, os supostos sobre os quais se desenvolve, e as implicagdes concretas para a compreensdo das relacgdes que se estabelecem entre educacio e a realidade econémico-social. Uma das preocupagées fundamentais do pensamento econdmico burgués é veicular a idéia de que a_sconomia ¢ uma ciéncia neutra, isto €, que existe uma independéncia entre os valores e posigdes do pesquisador € 0 processo de investigacio. A economia, neste sentido, expungida de valores, envolve apenas uma busca imparcial de verda- des econémicas. Seu método de investigagao sera, pois, um método 54 positivista, isto é, que busca apenas fazer afirmagdes positivas acerca de fatos verificdveis.28 . A primeira conseqiiéncia seré isolac a economia da filosofia ou da politica, A andlise da estrutura econémica, 0 campo da economi: se reduz ao “fator econémico”. ° . Duas lealdades bdsicas caracterizam, entio, os articuladores e defensores da economia burguesa: adotam um empirismo geral, com seus desdobramentos positivistas na busca do conhecimento, e um conseqiiente jndividualismo metodolégico do comportamento huma- no. Trata-se de um método que concebe o processo de conhecimento como resultante da andlise de fatos, unidades (individuo, firma, fami- lia etc.) isoladas cuja tarefa basica é analisar o {uncionamento destas unidades para, a partir da agregacio das mesmas, elaborar uma teoria do comportamento da economia como um todo. (Green, F. & Nore, P. org., 1978, p. 38). Nao & nosso propésito, neste trabalho, retomar uma discussaq sobre as diferentes correntes do empirismo e de seu desdobramento mais significativo — o positivismo e o positivismo-légico. Interessa- nos apenas identificar os principios basicos destas correntes que se constituem no estatuto epistemolégico angular da economia neo- classica. © pensamento econdmico neocldssico ¢, a partir dele, a teoria do capital humano tragam seu estatuto cientffico dentro do quadro epistemoldgico do positivismo-légico que postula que, em termos de cognicao, apenas dois tipos de proposigdes sio validos: as propo- sigdes analiticas eas sintéticas. As primeiras s&o _proposigdes de liagwigem, e as segundas factuais. Em outros termos, unla proposigiio ~ verdadeira é analitica se ndo puder ser negada sem contradigao ou se sua verdade decorrer do significado dos tetmos; é sintétibqa se existem circunsténcias possiveis em que serig —/ou teria sido — falsa. As. primeiras nos déo uma verdade iat e as segundas uma verdade empirica, cuja validade depende da resisténcia que a teoria ou hipdéteses oferecem aos testes de verificabilidade e falseabilidade. 28. Nao ¢ ao acaso que a maioria dos textos de economia que veiculam o idedrio burgués comegam por uma “confissio” de fé no método positivista. 55 . ‘ ‘ A filosofia apenas ¢ aceita énquanto instrumental légico que permita uma assepsia total da linguagem. Uma supergramatica da ciéncia.*9 te A andlise de cada uma das prémissas da economia neoclassica e da teoria do capital humano, ‘sobre as quais se desenvolvem tanto os modelos conceptuais quanto as andliseg sob uma sofisticada lin- guagem matematica, encontram respaldo no conjunto dos principios a seguir enunciatios: “.— as afirmagées de conhecimento do mundo sé podem ser justificadas pela experiéncia; — © que quer que se tenha conhecidd através da experiéncia poderia ter ocorrido de maneira diversa; — todas as proposig6es_significativas em termos de conheci- mentos so as analiticas ou sintéticas, mas nunca ambas as coisas; — quanto as proposicées sintéticas, por serem refutdveis, nfo se pode saber a priori se sio verdadeiras; — as proposigSes analiticas nao possuem conteiido factual; — as proposicées analiticas sio verdadeiras por convengao; — uma lei causal conhecida é uma hipétese empfrica suficien- temente confirmada; — 0 teste de uma teoria é 0 sucesso de suas previsbes; — na ciéncia nao cabem julgamentos de valor; —_as ciéncias se distinguem por seu objeto, ¢ nao por sua metodologia”. (Hollis, M. & Nell, E. J., 1977, p. 21-2. Ver também Kneller, G. F., 1969). E baseada neste conjunto de principios que a economia neo- cldssica e seu desdobramento ou aplicacéo no campo educacional, se apresenta com postulados que entende como baseados em resultados de pesquisa cientifica cuja racionalidade empiricamente comprovada é tida como incompativel com qualquer juizo de valor ou ideologia. O rigor ldgico dos enunciados e a matematizagao da linguagem econémica neoclassica sio tomados como critérios suficientes para 29. Ao leitor interessado em aprofundar esta problematica, sugerimos a leitura, dentre outros trabalhos, dos seguintes autores: Strawson, P. F. Escritos L6gicos-lingiiisticos. In: Os Pensadores. Sho Paulo, Ed. Abril, 1975, v. 52; Simpson, M. T. Semdntica filoséfica. Buenos Aires, Siglo XXI, 1973; Muguerza, concepcién analitica de ta filosofia. Madrid, 1974; Ayer. El positi- ico, México, Fundo de Cultura, 1965; Weimberg, J. R. Examen del positivismo ldgico. Madrid, Aguilar, 1959; Kenneler, J. F. Introdugao @ filosofia da educacao. Rio de Janeiro, Zahar, 1966; Kneller, J. F. La Jégica v. y el lin- guaje en la educacidn. Buenos Aires, El Ateneo, 1972. 0 pensamento popperiano constitui uma das mais refinadas formulacdes positivistas que dA respaldo 4 postura metodolégica da economia burguesa. Ver a esse respeito Williams. K. Facing right — a critique of Karl Popper’s experience. Economic and Society, 4 (8), yang, 1975. Apud Green, F. & Nore, org. op. cit. p. 35. 56 gerar um conhecimento neutro, objetivo, livre da contaminagio ideo- Jégica e da linguagem comum, \ _ A objetividade, entendida como a isenc&o e neutralidade do sujeito cognoscente, e a racionalidade, entendida como a capacidade do individuo de ter esta isengdo, sio os jarg6es basicos do discurso burgués. Coerente com a base positivista, a economia‘ neocléssica bur- guesa se concebe como uma teoria formada por um arcabougo ana- litico atemporal, sendo uma questdo empirica saber onde ela se aplica de maneira mais Util. Trata-se, pois, de uma teoria econémica que se julga geral para qualquer sociedade e momento histdérico. Calcada no argumento da neutralidade de seu método de anilise, busca passar a idéia de que o sistema capitalista, suas leis, as relagdes , que se estabelecem na produciio, etc., so algo de Iégico e natural. 7 Trata-se de uma visdo utilitaria, do status quo, das relagGes sociais da sociedade de classe. ‘ A primeira e mais fundamental atomizagao elaborada pelo pen- samento econédmico burgués é a do homem concebido como um individuo natural e cuja caracteristica é o seu comportamento ra- cional. , 2.1.1. O “homo oeconomicus” racional:* O individuo como unidade-base de andlise Para entendermos como a visao veiculada pela economia bur- guesa na andlise da realidade em geral e especificamente nd campo da educagdo se constitui num instrumento de reforgo as concepcges do senso comum, nado em seu niicleo sadio mas‘ na mistificagdo ¢ fetichizagio do real, temos de partir para demonstrar a concep¢do de homem e de sociedade construida por esta visio burguesa. Quem é o homo oeconomicus racional? Nao sabemos quem ele €, © que compra, 0 que come, como vive ou vegeta, se faz parte do 30. Para uma anilise mais detalhada do conceito de homo oeconomicus racional, ver Kosik, K. Metafisica da ciéncia e da razfio, In: DiGlética do concreio. Rio de Janeiro, Paz e Terra, 1969, p. 81-97. 37 x ‘ ~ . conjunto dos milhdes de brasileixos desempregados ou subempre- gados, dos indigentes, dos subautridds, ou de um tergo da humani- dade que se encontra na-inesma situago. Sabemos que ele é um maxi- mizador. No lugar’ da ‘sua histéria concreta, das condigdes concretas de como sua existéncia é ‘produzida, temos dele um retrato falado: “Ble € um filho do iluminismo e, portanto, um individualista em busca do proveito proprio (...). Como produtor maximiza sua fatia de mercado ou de Iucro, Como consumidor maximiza a utili- dade por meio da comparagao oniciente ¢ improvavel entre, por exemplo, morangos ¢ cimento marginal (...). Da diferenca indi- vidual, a0 comércio internacional, est sempre alcangando os melho- res equilibrios objetivos entre desincentivos ¢ recompensas.” (Hollis, F,, 1969, p. 37). Q homo. geconomicus é, pois, o produto do sistema social capi- talista. Para a economia burguesa nao interessa o homem enquanto homem, mas enquanto um conjunto de faculdades a serem trabalha- das para que o sistema econémico possa funcionar como um meca- nismo. Todas as caracteristicas humanas que dificultam o funciona- mento desse sistema (reflexdo, ética, etc.) sdo indesejaveis e tidas como ndo-cientificas.*t As duas caracteristicas basicas exigidas deste homem desprovido de si mesmo enquanto totalidade, sfo a raciona- lidade do comportamento e o egoismo. © homem reduz-se a uma abstracio genérica, indeterminada, a-histérica, cuja racionalidade e egoismo lhe permitem escolher sempre © melhor. O argumento simplificado deste raciocinio é ana- lisado por Himmelweit da seguinte forma: “Pessoas desejam satisfazer, pelo consumo, necessidades. A divisio do trabalho ¢ a troca resultam em maior satisfagio para todos. Isto se aplica & venda de qualquer bem, inclusive a capacidade de trabalho do individuo. Ninguém € forgado a vender e, se vende, deve forgosamente ganhar algo ao fazé-lo. O método mais natural de organizacio da sociedade, por conseguinte, consiste em deixar que cada pessoa faga qualquer troca que descje. Outros sistemas de organizac&o econémica (...) onde no se permite a livre troca dos individuos (...) so antinaturais, Logicamente, o sistema capita- lista onde se permitem todos os tipos possiveis de troca, é o mais natural.” (Himmelweit, S., 1979, p. 39). 31. Para a economia burguesa o homem existe enquanto uma grandeza fisi- a, como todas as demais, tratavel matematicamente. O homem transforma-se num objeto-mercadoria, 0 mundo humano em mundo fisico ¢ a ciéncia do homem-objeto em fisica social. Ver, Kosik, K. op. cit. p. 82 segs. ' 58 eco de_hon 1 “livre”, mon- tam-se_os principios do Jiberalismo individual que constituem o arca- bougo da teoria econémica neoclassica, Um dos supostos bdsicos, do qual derivam intmeros outros, é de que num mercado em con- corréncia perfeita “o étimo de cada um, racionalmente calculada-a longo prazo, cons- titui para o dtimo de longo prazo de todos. O edlculo é a maximi- zagio da utilidade”32 (sic). y Tudo o que cai fora deste sistema é concebido como imperfei- g6es, desequilibrios (relagdes de poder, monopélios, etc.) e resolvido pela suposi¢éo das condigées ceteris paribus ou por explicagdes ad hoe38 Caricaturando } mundo harménico da visio burguesa, mundo que tende sempre ao equilibrio, nado importa se estdtico ou dindmico, Marx no-lo apresenta da seguinte forma: “A esfera que estamos abandonando, da circulagéo ou da troca de mercadorias, dentro da qual se operam a.compra e a venda da forga de trabalho é realmente um verdadeiro paraiso dos direitos inatos do homem. S6 reinam ai liberdade, igualdade, propriedade e Bentham. Liberdade, pois 0 comprador ¢ o vendedor de uma mer- cadoria, a forca do trabalho, por exemplo, séo determinados apenas” por sua vontade livre. Contratam como pessoas livres, juridicamente igvais. O contrato € 0 resultado final, a expressio juridica comum de suas vontades. Igualmente, pois estabelecem relagées mutuas ape- nas como possuidores de mercadorias e trocam equivalente por equi- valente. Propriedade, pois cada um s6 dispde do que é seu. Ben- tham, pois cada um dos dois cuida de si mesmo. A tinica forga que os junta e os relaciona é a do proveite proprio, da vantagem indivi- 32, “A maximizagio fornece a forga motriz da econothia (neocldssiga). Esse principio afirma que qualquer unidade do sistema se moverd.na diretio de uma posigio de equilibrio, em conseqiiéncia de esforcos universais para maximizar a utilidade ou retornos. A maximizagao é uma lei bésica geral que se aplica a unidades elementares e, por meio de regras de composicao, a cole- ees maiores e mais complicadas dessas unidades.” (Krupp, Sherman Roy. Equi- librium theory in economics and umfunction analysis as types of explanation. Apud, Hollis & Nell, op. cit. p, 78.) ___33. Argumentariio os economistas burgueses hodiernos que a ciéncia econé- mica evoluiu, ¢ a visio simplificada da concorréncia perfeita e de “mio invisi- vel”, diante das crises ciclicas da sociedade capitalista, foi amplamente revista. Keynes ¢ os pés-keynesianos estdo ai para demonstra-lo. Realmente, isso ocorreu. O que nos interessa mostrar, porém, € primeiramente que estas andlises pouco alteraram na substincia os supostos bésicos da visio burguesa da realidade social ¢ econémica e em nada mudaram a visio de homem. De outra parte, embora intername:*e a andlise econédmica tenha “evoluido”, a concepcio do capital humano funda-2+ sobre a visio neocléssica ou marginalista. 59 dual, dos interesses privados: f. justamente por cada um cuidar de si mesmo, nao cuidando ninguém des outros, realizam todos, em virtude de uma harmonig: preestabelccida das coisas, ou sob os aus- picios de uma providéncia onisciente, apenas as obras de proveito tecfproco, de utilidade comum, de interesse geral.” (Marx, K., 1980, livro 1, v. 1, p. 196). A. seguir, Marx nos mostra que para entender o que de fato ocorre com os personagens do drama, é mister sair da esfera da circulagéo ou da troca de mercadorias: “Ao deixar a esfera da circulagio ou da troca de mercadorias (...) parece-nos que algo se transforma na fisionomia dos personagens do nosso drama. Q antigo dono do dinheiro marcha agora & frente como capitalista; segue-o 0 proprietirio da forga de traba- tho como seu trabalhador. O primeiro com um ar importante, sor- indo, velhaco e fvido de negécios; 0 segundo timido, contrafeito, como alguém que vendeu sua propria pele e apenas espera ser esfo- lado.” (Id., ibid., p. 197). A andlise econdmica burguesa, ao negar-se a transcender a esfera da troca de mercadorias, apenas glorifica a liberdade superfi- cial do mercado, mercado que alcanca seu desenvolvimento m4ximo sob © capitalismo. Desenvolvimento esse onde as relagdes entre pes- soas acabam se tornando relagdes entre coisas. Descreve, entdo, apenas as aparéncias superficiais desse modo de produgio. Ao apresentar essa descrigéo do real, como uma anilise cien- tifica, neutra, objetiva, acaba por reforgar o mundo da pseudocon- creticidade, da visdo fetichizada do real, uma anélise que nao trans- _cende o senso comum. E é nesta esfera que a teoria do capital humane se inscreve. 2.1.2. O “fator econémico” e estratificagéo social: a transfiguragdo da classe social em varidvel A decorréncia imediata da postura metodolégica da anilise econémica burguesa, centrada sobre a visio atomistica do real, é a concepgao da estrutura social como sendo resultante de uma cons- trugéo do comportamento individual. Esta postura, vale lembrar, no é resultante do processo do pensamento — uma criagdo ilumi- nista — mas decorre de “determinadas formas histéricas de desenvolvimento, nas quais as criagdes da atividade social do homemi‘adquirem autonomia, e sob este aspecto se tornam fatores ¢ se transferem & conscigncia acritica como forgas auténomas, independentes do homem ¢ de sua ativi- dade.” (Kosik, K., 1969, p. 100). 7 Trata-se da dtica burguesa de conceber a realidade, ou seja, 0 modo pelo qual os interesses da birguesia a condicionam a perceber a génese do real. Se todos os individuos sao livres, se todos no mercado de trocas podem vender e comprar o que querem, o problema da desigualdade é culpa do individuo. Ou seja, se existem aqueles que tém capital é porque se esforcaram mais, trabalharam mais, sacrificaram o lazer € pouparam para investir. Dentro desta ética, a sociedade“capitalista nao esté dividida em classes, mas sim em estratos. A estratificagdo decorre de uma ana- logia do mecanismo de concorréncia perfeita. Os individuos ganham seu lugar na hierarquia de estratificacdo segund6 o critério de mérito. O mérito € definido em termos de talentos individuais e moti- vagio para suportar privagées iniciais, como longos anos de esco- laridade, antes de galgar os postos de elite. O modelo de concorréncia perfeita nio admite direitos adquiridos, dominagdo, pois supée-se que o somatério das decisdes feitas, fruto das aspiragGes pessoais, resultaré num equitativo equilibrio de poder. x. Este tipo de anélise, historicamente determinado, decorre da redugo que a visdo burguesa faz da formacio social, Esta, em vez de ser concebida como sendo constituida — ent qualquer modo de produgio — pela estrutura econémica que forma a unidade e a conexdo de todas as esferas da vida social, é transmutada em fatores (econémico-politico, social...) isolados. Apés dividi-los, passa-se a fazer conexdes mecdnicas, exteriores, para averiguar a preponde- rancia de um ou de outro fator na determinagio do desenvolvimento social ov mesmo na situacdo individual. O antagonismo de classe — exploradores e explorados — trans- figura-se numa estratificacdo social formada por escalas de “possui- dores e nao-possuidores, de ricos e pobres, de gente que dispée de uma propriedade e gente que dela nfo dispde”. (Kosik, K., 1969, p. 105). 61 A relagao entre ‘classes transforma-se numa relago entre indi- viduos, A classe passa a coristitdir uma varidvel (classe média, alta e baixa) medida por “indicadores de posse e de riqueza pessoal”. De outra parte, a separagaio estanque do econémico, do politico, do social faz parecer que existe uma autonomia supra-histérica entre a posigéo econémica, a posicéo social e a distribuicéo de poder na sociedade. (Kosik, K., 1969, p. 105). Os diferentes fatores — econdmico, social e politico — se alter- nariam, de acordo com o estégio do desenvolvimento, na determi- nagdo fundamental da estrutura social. O econémico seria o deter- minante apenas na fase de um capitalismo nfo desenvolvido. Des- carta-se com isso a questéo metodoldgica e politica de que “q distribuigio da riqueza (economia), a hierarquia e a estrutura de poder (poder) e a escala da posicéo social (prestigio) séio deter- minadas pelas leis que tém origem na estrutura econdmica da ordem social em determinada etapa do desenvolvimento”. (Id., ibid., p. 107). Este viés de andlise que separa as dimensdes econémicas e de poder e que coloca, de outra parte, a determinagiio de um “fator” ou de outro, como dependente do estdgio de desenvolvimento capi- talista, faz com que as andlises passem a postular a superacgio do conflito de classe sem uma mudanga do modo de producao capita- lista. Esta é tipicamente a visio neocapitalista. A passagem do capitalismo mercantilista para o concorrencial e deste para o monopolista foi determinada uma crescente diversi- ficagdo e complexificagdo interna da classe dominante. O surgimento dos gerentes, dos administradores, dos executivos configura aquilo que se convencionou denominar revolucao gerencial.% 34. & importante assinalar que o movimento circular das explicagdes da teoria do capital humano, como vimos anteriormente, decorre de transmutagao da anélise das classes sociais para a anélise do individuo dentro de uma estra- tificagdo. A investigagio ento s6 pode girar em circulo — a renda é fungao de mais escolaridade, esta é fungdo do “fator econémico” — posse de bens, etc., dai a anilise dos determinantes da escolaridade. ' 35. Para uma andlise mais detalhada da questiio da revolugho gerencial ¢ a suposta sepatago entre a propriedade dos meios de produgdo ¢ 0 controle @ a conseqiiente superacio do conflito de classes, ver Beutel M. Classe ¢ estra- tificagdo social. In: Green, F. & Nore P., op. cit., p. 52-74. Ver também, Bra- verman, H. Trabalho e capital monopolista: a degradagdo do trabalho no século XX. Rio de Janeiro, Zahar, 1977. Especialmente parte IV ¢ V, p. 243-246. Re- tomaremos esta questo no capftulo 2, quando discutiremos’ mais detalhada- mente a ligagko da tese do capital humano com as visdes neocapitalistas. 62 a . 5 \ - A partir desta complexificago interna da classe dominante, onde o grupo gerencial é concebido como ndo-pertencente a ela por nao ser proprietério, mas gestor, administrador da propriedade de outrem, postula-se que a propriedade e 0 controle dos meios de pro- dugdo se divorciam e ndo estio mais em poder do mesmo grupo de pessoas. Terfamos, entdo, chegado a sociedade pés-capitalista, onde o grupo gerencial, selecionado meritocraticamente entre todas as clas- ses sociais — onde a escolaridade seria critério fundamental — teria o poder de subordinar a ganancia do lucro a objetivos mais “dignos € justos”. A separagao entre a propriedade dos meios de produgdo eo controle demarcariam o fim da determinacdo do “fator” eco- némico, e com ele“o fim da luta de classes. Este tipo de andlise decorre justamente da redug&o da classe a questéo de ser ou nao ser possuidor de uma propriedade. Dentro da viséo marxista, embora a concepgdo de classe dominante descréva o papel predominante dos proprietérios dos. meios de produgao, os quais, por este fato, tem poder de decidir sobre a vida dos que deles dependem, nao significa que ela’ se defina apenas em termos de posigéo econdmica. Na sociedade capitalista fazem parte da classe dominante também aqueles cujos interesses coincidem com os inte- Tesses da burguesia. Os gerentes, os administradores, embora nio-proprietérios, sao escolhidos e controlados por estes de tal sorte que administram em nome do capitalista. De outra parte, mesmo que quisessem administrar, nado de acordo com a ganancia do lucro, mas movidos por objetivos distributivos, seriam impedidos pela prépria natureza das relagdes econdmicas capitalistas, onde a maximizagio do lucro é a meta basica e a con- digéo de sobrevivéncia enquanto empresa capitalista. A acumulagdo nao é uma questdo de decisdo individual, mas uma lei imanente da sociedade do capital e da competicéo entre os capitalistas, : __Em suma, a diversificagio crescente no interior da classe domi- nante nao implica uma divergéncia de interesses e nem transgride o modo de produgéo capitalista a ponto de gerar mudangas funda- mentais na estrutura de classe. 63 A transfiguragio da classe em varidvel deriva da prépria con- cepgdo marginalista que substitui “a idéia de contradicao pelo paradigma dé harmonia. Nao se trata mais de desvendar as leis de moyimento nascidas da oposigio de classes sociais no Ambito da produgio, sendo de postular as condi- gées de equilibrio do proceso de troca”.36 A teoria do_yalor-trabalho que privilegia as condigées de pro- dugdo é substituida pela idéia de utilidade que enfatiza a drbita de troca de valores de uso. A idéia de roca, por sua vez, supde de imediato a idéia de igualdade de condigdes dos agentes. Esta redugao estabelece o conceito de fator de produgdo. Capitalistas ¢ trabalha- dores apresentam-se no mercado, ambos legalmente iguais, como proprietdrios de fatores de produg&o. O primeiro entra com dinheiro e 0 segundo com forga de trabalho. Elimina-se do 4mbito da andlise econdmica o problema das classes. O conceito de capital, uma relagdo social especifica, propria de uma sociedade especifica, delimitada historicamente, transfigura-se num “fator de produg&o” universal, existente em qualquer sociedade humana. Reduz-se o capital aos seus aspectos puramente fisicos. (Id. ibid.). A remuneragéo do capital é explicada dentro desta 6tica, como conseqiiéncia da privagio, abstinéncia e poupanca do capitalista. Em sintese, o cardter de classe da andlise econdmica burguesa reduz e transfigura 0 conceito de homem, de classe, de capital e de educacao. O homem, um devir que se define no conjunto das relagdes sociais de produgio de sua existéncia, um ser histérico, concreto, ativo, que se transforma na medida em que transforma o conjunto destas relacdes sociais, (Gramsci, A., 1978, p. 38-44) é reduzido a uma concep¢do metafisica do individuo com uma natureza humana dada, genérica e a-histérica, A natureza de cada individuo, que é 36. Belluzzo, L. G., Distribuigiio de renda: uma visio da_controvérsia. In: Tolipan, R. & Tinelli, A. C., A Controvérsia sobre distribuicéo de renda e desenvolvimento. Rio de Janeiro, Zahar, 1978, p. 17. Ver também, do mesmo gator, 4 sransfiguragio critica, Estudos Ceprap, n. 24, Sio Paulo, Brasiliense, s/d., p. 7-39. 64 apenas um ponto de partida que se constrdi nas relagdes sociais de - producao da existéncia, num aeterminado contexto histérico, é toma- da como ponto de chegada. O homem, uma totalidade histérica concreta, que se distingue dos demais animais e da natureza, e se constréi pelas relagdes sociais de trabalho (produg&o) que estabelece com os demais homens, no thodo de producio capitalista, reduz-se e transfigura-se num individuo abstrato, cujas caracteristicas fundamentais sfo 0 egoismo e a racio- nalidade.87 . A produgio historicamente determinada das classes fundamen- tais,°8 capitalistas — donos dos meios e instrumentos de produgio e do capital, agambarcadores de mais-valia — e de trabalhadores assa- lariados — “donos” apenas de sua forga de trabalho, produtores da mais-valia cuja sobrevivéncia depende de que os primeiros thes cumpram esta forca de trabalho, € tida como um dado natural. Entretanto, _ “a natureza nfio produz, de um lado, possuidores de dinheiro ou mercadorias e, de outro, meros possuidores das proprias forgas de trabalho, Essa relago nio tem sua origem na natureza, nem € mes- mo uma relagio social comum a todos os perfodos histéricos". (Marx, K., op. cit, p. 189). No lugar do antagonismo de classe definido, de um lado, pelos interesses do capital de expropriar o trabalhador e, de outro, pelos interesses dos trabalhadores, passa-se @ idéia de um continuum defi- nido por uma estratificagdo social, resultante do esforgo e mérito individual. A desigualdade real, elemento fundamental que define a socie- dade de classes, transfigura-se numa igualdade legal fundada numa liberdade abstrata da forma do Estado Liberal. \ 37. Para um aprofundamento das influéncias do pensamento de Hobbes, Locke e Hume nia teoria econémica do capitalismo nascente, ver Napoteoni, Claudio. Smith, Ricardo, Marx. Rio de Janeiro, Graal, 1978, p. 41 segs. 38. As classes dos capitalistas ¢ dos trabalhadores assalariados sho fun- damentais no sentido de que definem a especificidade, a esséncia das relagdes sociais que se estabelecem no modo de produgio capit - Estado Liberal. Ver 39. Em relac&io as categorias bésicas da forma de . Pereira, Luiz. Capitalismo — notas tedricas. Sio Paulo, Duas Cidades, 1977. ‘Ver também cap. 2. 65 t rr ae Na melhor das ‘hipoteses,~a liberdade que o trabalhador tem é escolher o capitalista para quem trabalharé, mas a liberdade de nao trabalhar para capitalista Algum é simplesmente a liberdade de passar fome ou sofrer degradacao social. (Green, F. & Nore, P., 1978). Em iiltima instdncia, o trabalhador depende, para sobreviver, de que o capitalista se disponha a comprar sua forca de trabalho. “Quem diz capacidade de trabalho, nfo diz trabalho, tampouco quem diz capacidade de digestio, diz digestio, Sabe-se que para digerir nao basta um bom estémago. Quem diz capacidade de trabalho no pde de lado os meios de subsistancia necess4rios para sustenté-la (...) A capacidade de trabalho (...) nada é se nfo se vende.” (Marx, K., op. cit., p. 194). © conceito de capital reduz-se a um mero fator de produgio onde as mAquinas em si, como capital constante e técnico, sdo tidas como capazes de criar valor independentemente da intervencdo do trabalho humano. Mascara-se, desta forma, a origem real e unica da produgdo da mais-valia — o trabalho humano excedente apro- priado pelo capitalista. O centro unitdério de andlise deixa de ser o valor-trabalho, e a relagio de classe entre o trabalhador e o capi- talista transfigura-se numa relagdo de troca de agentes de produgéo igualmente livres. : Em suma, o conceito de capital humano, desenvolvido sob a heranga da concepgfio burguesa de sociedade, que busca dar conta do investimento feito em educagio para produzir capacidade de tra- balho, e explicar, de um Jado, os ganhos de produtividade nado devidos aos fatores capital fisico e trabalho, e, de outro, os ganhos salariais resultantes das taxas de retorno do investimento feito em educagéo estabelece: a) um nivelamento entre o capital constante e o capital variavel (forga de trabalho) na produgdo do valor, ou seja, coloca-se o ¢rabalhador assalariado, néo apenas como “proprietario” de forea de trabalho, adquirida pelo capitalista, mas proprietario ele mes- mo de um capital — quantidade de educagfo ou de capital huma- no; considera o salario recebido, néo como preco desta forga de trabalho, mas como uma remuneragio do capital humano adian- tado pelo trabalhador, mascarando, desta forma, as relacdes capl- talistas de produgao e exploragdo. (FGV/IESAE, 1981, p. 52). b) Uma redugio da concepgao de educacdo na medida em que, ao enfocdé-la sob o prisma do “fator econédmico” e nao da estrutura econémico-social, 0 educacional fica assepticamente separado do 66 politico, social, filoséfico e ético. Como elemento de uma fungao de producdo, o educacional entra sendo definido pelos critérios de mercado, cujo objetivo é averiguar qual a contribuicdo do “capital humano", fruto do investimento realizado, para a pro- dug&o econémica. Assim como na sociedade capitalista os produ- tos do trabalho humano sao produzidos ndo em fungdo de sua “utilidade” mas em funcdo da troca, o que interessa, do ponto de vista educativo, no 6 o que seja de interesse dos que se educam, mas do mercado. Neste contexto o ato educativo, definido como uma prdatica eminentemente politica e social, fica reduzido a uma tecnologia educacional. Esta redugdo estabelece uma dupla mediac4o produtiva no movi- mento global do capital. Um determinado nivel de adestramento geral, basico, funcional & produgao capitalista, quer a nivel de uma educa- gao elementar em ‘‘doses homeopdticas”, quer em sistemas escolarés particulares do tipo SENAI, SENAC, SENAR, etc., € uma produti- vidade resultante da desqualificacdo do trabalho escolar, . Por outra parte, a visio de capital humano, além de estabelecer este tipo de redugdo, vai reforcar toda a perspectiva meritocratica dentro do processo escolar. Assim como no mundo da producao todos os homens sao “livres” para ascenderem socialmente, e esta ascensio “depende unica ¢ exclusivamente do esforgo, da capacidade, da inicia- tiva, da administracdo racional dos seus recursos, no mundo escolar a nao-aprendizagem, a evasio, a repeténcia stio problemas individuais. Trata-se da falta de esforgo, da “nao-aptidio”, da falta de vocacao. Enfim, a dtica positivista que a teoria do capital humano assume no ambito econémico justifica as desigualdades de classe, por aspectos individuais; no Ambito educacional, igualmente mascara a génese da desigualdade no acesso, no percurso ¢ na qualidade de educacao que tém as classes sociais. - . A desarticulagio da concepgio burguesa veiculada pela teoria do capital humano implica sair da visio de superficialidade e de pseudoconcreticidade que a mesma instaura na andlise dos vinculos entre_economia.e educagio, educago e trabalho, e voltar o foco de andlise nas relagdes sociais de produgdo especificas & sociedade do capital. Implica o abandono da andlise das relagdes de troca-e a volta & andlise das relacdes que se estabelecem entre as classes sociais nas relagdes de producao da existéncia. Implica o abandono da idéia de equilibrio, harmonia, e a identificagdo das. contradigdes inerentes ao antagonismo de classe, oriundo da contradigao fundamental capi- 67 \ tal-trabalho; implica, finalmente, superar a idéia de utilidade e voltar a idéia de valor-trabalho. Nao é propésito deste trabalho retomar aqui andlises ja efeti- vadas a esse respeito. Os trabalhos abaixo mencionados, entre outros, tanto no ambito da economia politica, quanto da economia (politica) da educacdo, sio exemplos indicativos dessa volta. No Capitulo que se segue, buscamos delinear as condigdes his- téricas dentro do modo de produgio capitalista em que efetivamente a teoria do capital humano é demandada. Essa abordagem histérica n&o visa apenas a esclarecer 0 presente para compreender-se como o modo de produgio capitalista busca utilizar-se da pratica educa- cional (escolar ou nao), mas, especialmente, como é possivel utili- zar-se desta pratica na perspectiva da mudanga deste modo de pro- ducio. 40. Belluzzo, L. G. Valor e capitalismo — um ensaio sobre a economia politica, So Paulo, Brasiliense, 1980; Salm, C. Escola ¢ trabalho, op. cit; Lau- tier, B. & Tortajada, R. Ecole, force de travail et salaire. Grenoble, 1978, Gorz, André, org. Critica da divisdo do trabalho. Sdo Paulo, Martins Fontes, 1980; Finkel, Sara et alil. El capital humano: conceptién ideolégico. In: La educa- cién burguesa. México, Nueva Imagen, 1977; Attalai, Jacques & Guillaume; Mare. Desigualdades, injustica e exploraciio. In: A antiecopomia, Zabar, 1975; Braverman, Harry. Trabalho e capital monopolista. A degradacao do trabalho no século XX. Zahar, 1977; Maigneim. Y. La division du travail manuel et intelectuel. Paris, Francois Maspero, 1975. 62 *

Você também pode gostar