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A Escrita Feminina ea Guerra Colonial Na tratiso dor grandes cus sobre temas eae cionados com Afi que a Vea tem langado, surge este eno inoradore inion gue ft um apanado ental das ciacteiicas mais mateants que a pena Feninina deinou ao ato period da ger sonia Centrando-se sobretado nas obras de Lidia Jorge € ‘Wanda Ramos, esa obra exrapola rapidamente para fob da escritafeminina que versou este tema. ara o global do entendimento feminine de uma guerra de homens, pelas mulheres apenas senida ‘Um manifsto exaordinito, um estdo india e pro- vocados, uma obra central que vem preencher lat as graves da hiseria da licracura portuguesa, Carina Faustino Santos A Escrita Feminina ea Guerra Colonial cares CARINA FAUSTINO SANTOS termi eck ‘Novos ELEMENTOS DO METODO NO ESTUDO LWSO-RORICALISNO Ua Trt Sc en Ones. (Ogu Aion Mein od Cov Yeo “saRaMAGo E soLLERS ANOOLA-A FESTA EOLUTO ‘oe enc ato Rei Sve Nant neg em Pau Ivete Quen utd dst ire LUGAR DEMASSACRECAPARIGAO tars Conte Heme Iie Be Gonna de asec Se gr ner ioe pore Stet iuionbe pys copa ‘apc pose pd oar segs a eens ‘itr pe ome pre pre abet A ESCRITA FEMININA {Son tite cater EA GUERRA COLONIAL Carina Faustino Santos A ESCRITA FEMININA E A GUERRA COLONIAL vega ‘Ao Emanuel, a Beatrice a Margarida Preracio Este primeiro livro de Carina Faustino Santos, desbastado de al ‘gum aparato académicoe, aqui al, escrito no sentido de uma maior agilizago textual, €a sua dssertagio de mestado feita na Universi «de Abert, a qual v8 assim enobrecid o seu patriménio de investigacio, Carina Santos, que tive o gosto de orienta, foi para mim uma agra ™ que no caso da pro- lagonista de Percusos se situa no espago alegrico de unt ro late Alege Megas, 0 Tone do Mathes p48 » Gaye Grane "Tel Alege de Maps, sv de Ams slg ps is ania tora eins Colds nS 18 fl esp ST * Rl Bosc Rel Owls, rr dona, Ci Livi Amen, 1% 2 le Alege Magan, 0 Tene da ater. 0 el Ao de Magan 50, Acexpergncia espacial ue em Murmurios ir condicionr othar 4a protagonistacinge-se a um conjunto de espagos fechados que se ‘opdem a0 espago aberto do mato, por radio masculine, onde decor- remos combates de gues. A Beira € a cidade mogambicana que serve 6e ceniioaeste romance, sendo o Hotel Stella Mars o principal paleo 4e acgio, E precisamente neste hotel-messe que 0 acontecimento nu clear da primeira narativa do romance (Os Gafanhoos) tem lugar ~ 0 ‘asamento de Evita, vinda de Lisboa, com Lufs Alex, exestudante de matemitica que vai para Mogambique defender a Pétia como alferes, Apss 0 casamento, patindoo noivo para 0 mato, é no espaco contin so do Stella que decorerio os dis de Evita e€ realidade dos qua {0s de hotel que irdo marcato tema de uma vivénca pessoal que vé re- fletida nas gentes que os habitavam - os oficiaserespectivas familias, =a imagem global da guerae da sociedade colonial, Se em Percursos€ a trajectéria de precagonista, da infnca ats & ‘dade aduta a determina a visto alargada de ura Sociedade mareada ela represso, em Murmirios& a vivéncia temporiria num espago pe- «queno a propiciar protagonist um olhar mais amplo do que se pode Fia supor que uma vida fechada pudesse,& partida, acuta. A obser- ‘acto critica de peripécias que se esgotam no tempo possivel de um ‘expago isolado" de uma colénia serve de trampolim para anise da sociedade, do regime e da Guerra Colonial, Lidia Jorge, numa entrevista 20 Jomal de Letras, afirma que «o resto do Poder € dado, em geral, pelo homem, o horem despiu-se de adjacéncas, despiu-se de coisas que eram essencias e que pensa que io sto essencais.A mulher ficou na retaguarda e como que numa es- écie de vinganga da vida, ficou na mio com coisas estenciais. E co- ‘mo se tivéssemos paps de idéntica importincia, mas quem assoma & Aste ste nna man nam a eae gue pe et ‘ect ala prom emg nai gu sea rc sb age a te cera al hee vin oa conc sn ao ‘ssecomovase mw Qed Howe Out. 9) Janela a mulher, quem passa na rua a cavalo 6 0 homems”, Dentro essa janela fica a mulher que sabe do dia-a-dia que compa a reali. dade de uma comunidade. Assim, ainda que sejadolorosa a vivéncia ‘num espago circunsrio, sob um olhar atento, ele est eplto de coisas ‘essenciais, nfo menos importantes do que as que convivem por perto «do Poder. Evita vive os seus dias em pequenos espacos que recria em des ‘rigBes pormenorizadss que nio sio nem gratitas, nem inocentes, ‘Mais do que revelaem o espaco que existe para além da narradora, a escricéo revea a relagio desta com a realidade que a rodeia. Num ‘mance onde a wrealdade nio & 0 real» (p. 85), descigSo apessa-se, sobretudo, a fazer sobressir as correspondéncias entre a historia € 0 meio em que decorre. O que a naradorsapreende do mundo éprofun damente marcado pelo angulo de abordagem com que ela pretende re Velaro espago ea vida que neleacontece. Sé assim se compreende ua Aeserigéo abertamente marcada pela acgi0 psicolégica da autora-texe tual: «Mas a outraspatentes desapareeram do halla medida que esse recinto foi rachando e morrendo, S60 General persist dep, falando, Aizendo coisas como estas que neste momenta recordo, Por isso mesmo no se deve falar da forma como poe a mio, nem do brilho dos lhos» (P-232), O modo de ecragolteria do tempo passado feito, essen ™, quando confrontads se havi tido conbecimento directo da guerra, Eva espon- {de que apenas conhece algumas «roupassujas (p. 130) ¢jusiicase: ‘para qué conhecerdirectamente? Quecerdesconhecer tio 6 uma co- bardia, € apenas colaborar com a reaidade mais ampla e mais profunda que € 0 desconhecimento» (p. 130), 0 testeraunho do (des)eonkecimen- to que Eva revitaliza através da palavra eserita é pois um conbecimen- to que dé afase A retaguarda, um conhecimento das pequenas bana- Tidades que foram enchendo o cenirio de um tempo de guerra, final ‘tudo é idéntico a tudo» (p. 141) ea Histéria é composta mais do que por jogos de causa e efeito, por «soberbassimultaneidadese(p. 168). Deste modo, de encontro com sua concepeio de Hist6ria esté 0 * Amora p28, modo como a naradora encara 0 que deve ser retido da guerra aur jogo de palavras em que o real pode io ser verdadeir: ss guar, herosnos das pues, snd hors deseo tegco, os dads pies ante de esonda melds ey ois ‘er com cots simples como sea targa dum honem pasar mam hal come o int ecado no dade fie, o gama descato.c rinko dana eno de eta, 0 podum pss que um di, per i ma mem aleve mous (60). “More, «massacre inl (p. 70) que substitu o combate sti, u- por um «patriotsmo sem patria» (p. 121), imagens de negros esfura dos, ealdias em chamas, «palhotas destruidae,fotografias de «um, Sokiado com a cabege dum negro expetada num pau», quando esse ssoldado que a agtava nio era um soldado, era 0 noivo»(p. 133) de Evita ~ so extas as imagens que preenchiam o sentido de uma gueera ‘comandada por uma ditadura «caindo aos pedagos» (p. 147). Mas aes: sas imagens juntan-se uns quantos fits divers que no seu coajunto ta (p. 216), mas sem um objetivo comum que aoriente 0 justfigue, tendo como comandante maior uma «pita que descia» (P,259). Por fim, € 0 sabor da more, a imecuperabiidade da vids, 0 ‘esultedo mais trigico de uma guerra sem herbis, sem patria, sem ra. 20. E assim que a guerra lemibra a Evita «a pata de todas as vidas Aesprendendo-se do seu dtimo cas, sem hipétese de regresso, a cami. ‘ho do absurd do fir, Nao era aguele um sentido da guerra?» (p. 75), Da eserita de Lidia Jorge de Wanda Ramos sobressai uma aten- ‘0 especial dada ao que at af, devido & Censura,tinha sido estond o. A liberdade conseguida aps 0 25 de Abril para além de permitir 0 ‘sparecimento de uma literatura muito mais liste, proporcionou igual ‘mente um certo olharfemiino sobre um mundo composto por «uma variedade de ambientes»” que, por tatigio ou por conveniBncia de in teresses,escapara a palavra oficial mascalina ‘Asse olhar nfo escapa aeftica aguda a um colonialismo & det ‘8, .uma patria sem leme, a uma guera débil composta por herds fa: {almente condenados a uma luta sem voo e sem meste. A esse olhar io escapa, com certeza, a perspectvahistérica dos romances contem. ordneos, o que implica wa ficionalizagio dos mundos alterativos 8 construgo da fico como Histrias™. A litara(hstrica) da guerra ‘seré enti uma Ietura que inevitavelmente equaciona a wperspectiva os vencides, dos grupos dominados, dos que sempre so visto [1c ‘mo 0s outros, os exterioes»", em que uma vor individual e soz ape. |a a0 entendimento da propria existénci, na medida em que a verdade <6 posta em causa, epresentando-se muido pelo uso da habilidade de Palavra, pela analogia que encontra na fiegéo 0 modo certo de conta, ‘essencialmente,o sentido da realidae. fie Atigr de Mps, 0s doers ts 9.38 pésmadersionon, Coliguifeap.108 Hemp oncnns o Maa Sona pT. 0 13.4 desmititicagio do heréi Desde a Antiguidade Clissica que os herds ocupam uma posigo privilegiada na centalidade da naratva. Epopeias como a Hada, Odisseia ow Os Lusiadas, fazem-nos chegar através dos tempos 2 ‘meméria de herds que incorporam valores e referéncias culturais que apelam a0s mais alts valores moras e éicos do cidadlo. Veiculando «0 passado épico nacional>, a tradigio nacional» (espethada nas ac es valentes de um her e «8 distncia pica aboluta>®, entre otem- o da enunciagaoe o tempo presente, 0 hei, individual ou olectivo, ‘entra na sua personagem um sistema de ideisse valores excepcionais, ce imepreensveis, Mas, com o aparecimento da sociedad burguesa © 0 desenvolvimento do romance moderno, 0 hers da Antiguidade deixa ‘er espugo pois «a affrmagio de empreendimentos excepeionais, a com- peti dos deuses com os homens, a representagio do destino eo- lectivo de comunidades de alcance nacional, deixam de fazer sentido ‘quando esti em cena a personalidadeindividualizaa, trivial e muitas, veres problemstica que no romance [.] © nos apresenti>". Nos principis do séeulo passado 0 romance mademo constGi-se or oposigdo aos romances de Bourget ou Balzac, lineares, esrutural- ‘mente ordenatos. Surgem os romances de formagdo («Bildungsroma- ne») que tém como objetivo a formagko afectiva de um individuo, inserido num meio social ehumano, assim como os romans flewve re- tendem apreender todo o lui de ura vid, © periodo simbolista foi decerto bastante importante na transfor ‘magio do romance tradicional, O romancista Paul Vary & um exem- Plo claro de como a licaridade do romance ea prépri intiga passarn 8 ser secundérios, ganhando terreno a exploragio do intelecto, em toda Cat Reis Am Cisin Lape Donde Narang Cn, Li lin, tod, he p18 : += reba stun Rone Caine, La Amadi 34 Tp. 4a rr 4 sua complexidade. A psicologia das personagens comega ser an sada ‘A quebra de lagos com o naturalismo e o realismo faz despontar uma literatura eujo campo de acgio € a reflexdo sobre o individuo, 0 ‘gue, segundo Lucien Goldmann, desemboca no aparecimento do uhe- 161 problemtico»®, fro de uma sociedad tamibém em si problema. 8. Ais, eno interior de uma sociedade que ignora fos hers) ¢ eles quase perdeu a memsra, 0 romance foi tlveza primeira ente a gran. des formas literérias predominanies numa ordem social ater um na lureza essenciaimente etic, nio podend comportar um hers posit ‘yo nem uma filosofia correspondent». Assim, nos padees dos dfs romances em ands, mio hi espago para hers radicionais, quer eles ‘cjam individusis ou coletivs, pois mesmo tritandovse de uma s6 ersonagem, ela incompoca todo um sistema de valores nacionals, 08, morais, que em stim alse sho poduts cultaras que io po ‘dem fazer sentido em dois textos que se alimentam dos paradigmas da modernidade Confirma-nos a Histria que ecada una de ls naciones se aban {estabelecidoaltas normas morales para el individuo, de acuerdo a las ‘uals éstedebia conforma a conducefon de su vida si petenda tomar * len Golinan, 4 Co Cun ne Side Mole pure wna da de Libs Esl reat I eo * Len Goldman pp. 34 fyi come ene desc i ndmaswstn oe ngio Imad else pe apes pfs flr mgs en ‘eas eon ose une i neq desea ae, felons ela queé avn (18s ielwersono pre sane neo traps ae mises Nan tcsann pen ease a ‘mht amc eee ant pry fl ms opts ee ii cs Cau ees pss Ea um see ed an Dove osm leis af to clssper Sencre 2 Parte en la comunidade cultural, No entanto, 0 que a relidade com- Drova e o que a literatura individulista vem confirmar € 0 que & pi. candle também corrobora:westespreceptos, muchas veces severos en ‘excess, le exigian no poco: un amplio dominio sobre s{ mismo, una ‘rofunds renuncia a satistacién de sus instintos»®, Nesta perspectiva, ‘nenhuma guetrapoders formar heris, pois sero paleo de simpulsos ‘malévolos», «actos de crueldad, de malcia, de taiciny de beutali- dodo ns, qu dfictimenteserdo compaives com os pades culturais da sociedade contemporinea. Mesmo quando questdes de patriotism se vislumbrum, a decepeio perante a guerra €inevitével: «por un lado el bajo nivel moral que los estados exhien hacia fuer.) por el ov ‘20, la brutal conducta de individvos alos cuales, como partiipes de la ‘mis clevada cultura humana, no se haba credo capaces de ellax”, Se ‘tudo sso juntarmos duasescitoras que se pautam por um dscurso de. fensor das minoras, que rejeitam o colonialismo portugués em Attic, desacreditam no regime ditatorial que orientava a sociedade e coma: davaaguern, facilmente percebemos por que rzdes, tanto em Percur. 408 como em Murmirios, as personagens intervenientes na cena de _uerra so retratadas nos antpodas do heros tradicional, que entre tanto se trnsfere para uma esfera muito pouco representativa dos valo- res da maiora social, o que se epercute numa «exigénca explicta do (p. 68) dina deter sentido, Como no tem entioexib-la po debaix de wca- misas que ele usava mis transparentes que ningém» (63). Corde or ura narativainnic, Forza Leal é mada mais que um idiculoas- Pirate a her, no fundo um «bom matador de pros com um edigo de honra e uma flta de saesificio»(p. 223) a que Azevedo Teixeira enconracuma excelente oportunidad para que Eva transform asi plicidade subsancelsta do hers militar em simpismo caicto-. ‘Asus espos, Helena de Tdi, mas no era que una personagem despa de individualdade, pois hastavate ser «a mulher do capitio Jaime Forza Leal (p 29) para que a hericidade do mario a conts- issse de protagonismo. Helena de Tiia, nome que nos remet para a ° Rae Aree Tei, 273 in ae ritologia grega para 0 conceito de herofnas que psiravam acima do ‘comum dos moras, de grandiosos6 tem a beleza,sendo a simagem do ferinino absoluto» (p, 69) crivada de uma fulidade ao jito de uma personagem de um romance tradicional, sem profundidade pscolégica ‘© com a «iteligéncia de pombo»(p. 226). Contrastando com Evita pe- Jo vazio intelectual, é uma mulher sobjecto de amor mutivel coforme {quem a procure (p. 224), que apés er taidoo marido, vive fechads em ‘asa enguanto este esté na guerra, tal donzea pura de uma Cantiga de ‘Amigo que espera lea e rise, na clausura do seu lar amado que partis. A séculos de distincia que separa o registo ltico do regiso ac- ‘wal, a mulher-donzela, a versio feminina do que representa ser hers, ‘no tem espago possvel de credibilidade Confessando um dtio profundo pelo mario, culmina revelando tum secreto deseo de liberdade:«o aprisionamento dela em toea da i- ‘eric que aspira, por rebentamento dele» (p. 201). Fechads,subjuga~ «4a vontade de um homem, vé em Evita uma oportunidad de vingan- ‘8 conjugal. Helena, que é uma mulher apenas composta por «corpo & vor» (p. 201), num esforgo de sinteligencia que suava gotas»(p. 225), ‘opera na nareativa um momento de convite& homossexvalidade («Va ‘mos vingar-nos deles?, p. 225), ao que Evita responde, nto deixando ‘vidas para a distincia que as separa: «No poss, Helena, Se me pro- imasse de i até te tocar. merglhara num lodo cor de sangue» (p.225),, pois tudo o que Evita impede-a que Ihe toque «para outa intengao, ‘que io seja ade (a}conterplar»(p, 226). Evita e Helena estio nos ‘opostos de ser mulher. Consciente de uma feminilidade distin a pro- tagonista no hesita em salientar essa diferenga: «Entre tie mim a identidade 6 um espelho que nos reflectee implacavelmente nos isola» ©.26, Luis Alex 6 petsonagem que tem dupla responsabilidad na vi- ‘so deserente que Evita tem da Guerra Colonial. Sendo seu noivo, 10 Pantithar 0 gosto pela péticas militares, esta personagem operaré em, [Evita uma espécie de aprendizagem do sofrimento, em que a jover recém-casada descobre que afnal 0 homem por quem se apaixonara re desaparecer, dando lugar a um outro. perante 0 enredo de um tempo de guerra que o seu casamento se desar¢,paraelamente& escober- tude uma nova faeta de Luts, Evita descobre também a decadénca de um impéroe de grande parte dos rst que compunham o quadro da suera. Saber sted sido o sistema acorompe Las, u sa sua nova fa- ta conhecida em Afi afinal sempre exsira no estuante de Mate- rmtica, € uma divid qu fica. Noentano, a sua acgo ma uta armada leva a protagonista arto, a irnizlo, a destu-to como perso ager, pondo por tera a sua candidatua a het. Lis Alex é um admiradorincondcional de Forza Leal que apee- senta a Evita como sendo «um heed (p. 13). 6 0 modelo de heroic dade do captio gue tetra segue O primero momento em que Evita descobre que o seu estudante de Matemstica anal um homem de g0s- to apurado pela gue, é justamente no dia do seu casament, quando sedi conta da inveja de Ls pola cicatiz que 0 eapitio exie ridica- lament (ef. p. 30). medida que os dias passim esa descoberta tor- 1na-se to clara ao ponto de «ndo reeoahecer um dnico som do novo, como se dele, ele mesmo, s6tivesse de facto corpo como ua con- cha fechada ea alma tives desaparecidos (p. 54), ede repent le fi- Jasse a mesma lingua mas com soutra inguagem (p. $4). De inelec- tua, estuante académio, La Alex psa ao soldado fio que age como tum selvagem ou mesmo como um eriminoso. A mudangaé to grande aque lemba absurd eprovoca em Evita uma questi inevisve: ser que 0 mesmo nervo que o impel pesquisa de uma féemala agg twice genealzadora dentro da tora dos grupos sera aguele que 0 8 tava levando para cima dam palota com una cabegs de negro nsan- _guentads, spergindo, efi nim pa» (. 141), Se assim 6a teste constatglo de que afinal a cici oxime poderians ter entre pe nas uns passos de danga ¢ umas flexes de ginistca. Entre o Bem e 0 mal uma mortaha de papel de sda» (p. 141). A medida que a ircuns- tncias vo separando os novos, a protaonisa vai ganhando &-von- {ade sufciente para correr a personagem de Alex peo tom nocivo da iron © que ir contibuir para a leytimagdo da narradora como per- sonagem Sensata e critica. Deste modo, Evita mio hesita em salient: «Nao & mais pessoa ‘com quem fz namoro,a primeira pessoa com quem me deiti na carr ‘gem do comboio [J Agora no & mas ele [..] Estamos deitados lado ‘lado na area, masa ccariz do captio separa-nos» (pp. 66-67). Anun- ‘iando a morte de uma relagio que he apresentava um homem ej inte- ‘ectwaidade fora tansfigurada na lta do mato, Eva mostra-se dspos- ta cagitara matéria de que si fits os hersis (p. 73) tendoaeereza cde que um dia as criangas shaveriam de mandar para a terra das pala ‘as imundas 0s acts herdicos de seus pais» (P- 76. ‘A iron de Eva Lopo, «junto com a sua insisténcia em apresentar «guerra na plasicidade dos seus massacres, do medo e da histeria™, auina toda e qualquer possibilidade de ecuperagio positva da vio- 1éncia ou dos seus agentes ~ 0 ditos hers. A morte do her6i tadicio- ‘al que comega pela aprendizagem pessoal de uma desilusio amorosa, ‘i por fim, de enconto a efica 2 um regime e auma guerra sem sen- tido, Assim, s6 pela ironia podemos entender como & que em Murmi- rios 0 herofsmo e o crime andam de mos dadas: «De novo no havia eahuma fronteira, ou ela eraimporeépile irelevant eninguém po- 4a ndicar se era grandioso ou mesquinhe2 0 impulso das pessoas que ” ~ 08, soldados, os capitis, os genera. (© massacre a violéncia esto assim representados nas persona- ‘gens de Luts Alex ede Forza Leal, a cltecultualmeate fechada ec3- {daca nas personagens do capitio, real e metaforicamentecego, edo ge- eral AA semelhanga deste romance, também em Percursos no existe avn ecu Sno Pls dele Osc lic mp adem, ‘ut Ein Atoms 7d 89 50 "relia ¢ sd cota ape: Po Agim Aka Ma canoe.) Cas Cen gn ail pl mn, Lis Eger Sto XXL, 198. ‘qualquer tentativa de recuperacio do her6i tradicional, parecendo co ‘mungar a tendéncia dos romances modernos que se pautam «par la rupture insurmontabe ene le héros et le mondes", em que ale héros 20 de ser (p. 26) onde «a medida da civilizagio era. a quantidade de porrads dada ao negro» (p. 26). Subjugada a um homem no menos re ‘pressor que o seu pai eimpedida de cultivar o seu gosto pela leitua pe- To mario que no queria que «he passasse frente em matéria de ca- ‘cinha fesca» (p. 26), v-se abandonada ao seu papel de mae, esposa ‘edona-de-casa Era assim a mile da protagonist, ama mulher «frustra~ (p. 83). ‘A semelhanga de Murmrios, também o fiasco da relagdo amoro- ‘se inicia quando a protgonista v8 0 seu companheiro confrontado ‘com o ambiente de guerr, que afinal descobre composto por uma fra ‘exe frouxa forga militar. Tal como M: Irene Ramalho de Sousa Santos, firma, «0 fracasso da rlago amorosa¢ simultaneamente resultado © simbolo da trgédia colonials. © Metre Ramu de Sos Soe. Rae "Pra Lain a Ln)” Wands Kanan Cours, Saree 2° 8.1982 p78 Otvigad a viver com o marido num quartel, af qu ini tam ‘bm uma aprendizagem maior sobre o soldado portagutsem Angola [Nao acreitando no colonialism «que no fata investimento em ter sade cafes (p. 62) econdenando 0 «grotesco rol de capital colonial» (0. 62 que ia cenrctcendo de represso e medo a fachad de prospe- rida» (p82), cedo também se apercebe que oexécitoportugus era final composto po falsos esis que, oa se vanaloravam dose ehe- rofsmo inocalado de mstra com atrcidades traumas» (p. 146), oF eam arastados plo eatozdesengan da realdae frgados a iver» 0.46) ‘Oconhecimento que tem do soldad no se fz em Percurosatra- +s de uma personagem que persoifigueo combatene, mas sravés de uma visio alargada que o quotidian de um quartl Ihe proprciona, ‘endo assim os wentevisos destino da guer (p16 serem conds- 2dos por «puri estatégas de defesa (p. 16) abrigadas pela ideale {ia impost: «Matar o tur, estoirarsheo& motos, arasathe aera {eesvaiar hea meméeia d esisténcia dos antepastados &conguista © rogresiva presto do ranco, nomisso na sua cultura modos de vidas (9.59. (0 soldados, ja heroicidade nunca ches a sobressir, sioentio cov agents do «crime mitiplo» (p47) qu ers guem. O discus he- ico dos romances épicos é nto alteado porum discurso que descre- ‘eo militar como ", Assim, 0 mito no qual habitava o het, passa ser conotado com «a zona da linguagem esteretipads, episads,repetida, fossilzada nas suas formulas referéncias, ao passo que &palavraescrit, ao texto, corresponde agora «a zona utépica que se perfil onde quer que & _2uagem assume a sua vocaeosignificante, conquistao seu amor da i= berdade,e ve projecta “numa regio aérea, lev, espagada, aber, des- entrada, nobree ivre"»" sn ies 157 p17. Cartruwo 2 ALIBERTACAO DA PALAVRA Digo que a noise iguagem aquela que 05 sere para lar 6a, sem fore digo que de eno pare sue, a alr we pli s dfn ehesow aun mixin de lr. ‘nia, cada pala com gue emda doe dss erqua ‘os palarsetencas adem onde eta sane at hs come a ut, Toe quedo, do a Bela no Borge ormecde da ingugem Pareceme que agua que cham cone cara de arras 0 sinfeado (acho estes dis temas siicate © sgn it insignias! que condo cams meme) {Lingagem qu xe mca! Par arar 0 eiet, a 2? Ma objeto ml, 6a pega mole gece sures fads de 0. Quanda a separanos, ritmo qeina osdetor Domingue Carl, ere mon homme mene 2.1 A atitude transgressora € 0 corte com 0 tradicional Feita uma abordagem sobre o posicionamento das autoras face & ‘emética da guera a forma como ess temitica foi desenvolvda, tan ‘oem Murmiris como em Percursos, no segundo capitulo, partindo entéo dessa abordagem, tentaremos prosseguir esa viagem de anise, sendo a proxima paragem feta 20s meandros do texto Hierro. As- ‘sim, tentaremos identifica os trilhos da nova linguagem subjacente 20 {sito particular como Lidia Jorge e Wanda Ramos expuseram © modo de contara guerra cde conta opréprio conta. Veremos que nfo sers apenas 0 posicionamento relativamente ao tema da guera (que evol- ve 0 discurso do Outro, do marginalizado, come ates foi referdo) a conter marcas da diferenca elativamente so dscurso oficial. Tambéma as palavas em que se apoiava esse discurso buscam a diferengae alin _guagem dat resultantecorta com os dogmas que prendiam a tradigfo, {tansgredindo 0 modo como até a se tinha dito 0 exert, ‘A uma nova visto da guera 6, ento, indissocivel uma palavrs nova que explode de sentido de liberéade politica, sociale, 0 que aqui ‘mais nos interessa estética. Esta palavra 6 responsével pela desi ‘cago de regrassociis e de temas radicionas, ao mesmo tempo que ‘otha par si, encontrando na linguagem 0 poder imenso de recontat © mundo. O que se conta e como se conta assumem um corte radical com atradigao, A lta armada contrapae-se,deniro destes dois texts, alta feita pela palara.E justamente a forma dada a ess palava que agora Jmpte ser analisada ‘Atendendo a0 coaceito de cigo lito veiculad por Vitor Ma- rel de Aguiar e Siva, como senda «um conjunto fnito de aonnas € convengaes [.] [que] estabelecem os pardmetros da semiose litedria ‘magna guerra verde mt eter pea ‘ae anengies do sma emi lero qc mu spss oa Fr “correcta, formulando norma [..] qe o emissor deve actualizar nos seus textos, prescrevendo proibigoes, fixando eritérios de valorizagio estticav™, quando um autor provoca euma rupura declarda com 0 ‘bdigo prevalecente, ifringindo as suas regras e convenges»", i= bberdade criadora do atta que emerge num impeto de negaso da or- {dem estabelecida, num esforgo de construg de algo novo. Fazendo wma breve andlise sobre as carateisticasplurais do r0- ‘mance contemporaneo, tomas evidente que os tagos da nova fio portuguesa vio de encontro as correntesliterdras que desde a década {e 60 proliferam pelo mundo®. Detendo-se sobre asituago da litera + portuguesa, Eduardo Lourengo faz 0 alango da revolugio de Abril no seio da cultura no nosso pais, aque chama «explosto Fantéstica do 25 de Abril», que jd vinha germinando desde as lta estudantis de 1968, Assomando o que essa nova literatura tazia de novo, comenta ue «0 afloramento escrito do proibido ou recalcado, em termos de ex reso ou de conteio, traduziu-seem obras onde as aventuras ou des ‘ventura individuais ou coectivas[..]encontram o seu lugar (in)espera- do" na revolugo da eseria. Assim, o perodo da revolugao de Abril é {ido como referéncia no ponto de viragem das novas tendéncias do t0- ‘mance portuguscontemporineo, que soube aprovetarofim da Censura, para uma maior liberdade de expresso que agora podia debrugat-ses0- bre temas ints, ao mesmo tempo que explora novas formas de eseri, Mier pears pa + Gi Carorcn p10 Sede onreumene onde tenn, ee sea Ia ant comes eae moon cane eos pit tect vaio (um anni ei, gt eae on xeneme dzone aero Sana, im Suppose Be nortan dino Senseo deta dim.) Pas sna tat compen tr oeaeno ls mrs tr a anc {Poe ae as Gli 986 en rane oA som pa = hho Leg, conn do tne i trans (19511993 sa, Eo ‘icp p Face @ uma auténtica evolugio de comportamentos na literatura, Eauardo Lourengo confirma ainda a imporcncia da emergéncia da Ii- teraturafeminina: «Nenhum fenmeno cultural fl mais importante nas thimas décadas que o do ascendentelitréro representado pela cra ‘lo feminina. Nenhum fenémeno ico e sociol6gico mais dcisivo que A ruplura do universo ertico milendrio do macho ibérico»” 'M* Alzira Seixo, num estudo sobre a fioga0 em Portugal no perio- o do p6s-25 de Abri, dando conta do desenvolvimento de experi cias eda prolferagdo de novos fieionista, aponta os tragos da nova ficedo portuguesa: wdiversidade na composigo: valorizagio da esri- 1a, recurso a formas de pluralizacio dscursiva(diversidade de registos, fragmentacio narrativa}, modaizagbes homogéaeas e decortent pri ‘mado da subjectvidade com acentuado recurso 8s intromissbeslircas| (00 20s desenvolvimentosreflexivos,nitido primado da enunciagso;, aglomeragio de estéticas, [eum sedugio particular por femas fic tivas que justamente atacam a sua orgaizacio tradicional de nexos pe {eitose que soo fantistico(e tiposafins) eas marginalidades narati- ‘vas (géneros da primeira pessoa, dros, erdnicas, ec)» ‘Assim, nfo entendamos os dois romances em andlise como dois actos isolados no panorama liteivio portugués, na medida em que se irigem rumo a este nove discurso, sendo justamente no plano da lin- _uagem ou na artiulago dos niveisefabulativs da pluralidade (nar- rativa} onde mais se evidenca oafastamento em relaso ao tradicio- nal, Decorente da dimensio que o plano da linguagem adquire, 0 txto ccomesa a olhar para si prOprio. A auto-referencialidade textual, apon- tando tantas vezes para a difculdade em capar a ealidade que existe seu lado, evidenciao «confit entre 0 mundo €o texto»™. Daf que a NC Ala Se Apter do rman - uu de eo ede, Lt, Lie eset 8 pp. "Me Aloa Sone p28 realidad veiculada por Murmirios ou por Percursos se apoie numa lin ‘guagem que prefer o significado da verosimifhanga do que o da ver- dade, [M"Irene R. Sousa Santos refere a experéncia da Guerra Colonial como grande centro temético de Percursos, mas salienta que o oman- ‘ce apresenta-se «como testemunho dessa precéria viagem ao dese de ser que 6 a propria eserita», pois sew génese do ivr 6a idea de per- curso, centers, ele préprio rio, ou meméria de ros, esse outro espa {0 a possui [..] 6a obra de figo»®. Ao processo de desenvolvimen- {0 da protagonista fixam-se reflexdes sobre a escrita, 20 nivel de uma id auto-referencialidade™, numa narativaessencialmentefragmen- ‘ada que sustenta os actos descontinuos de uma meméria também ela fraccionada, ‘A desiruigio da ordem temporal € assim a consequéncia de uma recordacio vaga. Ao sabor desta recordacio surge um romance curt, ‘composto por quarentae seis «reminiscéncias» (que no seu conjunto io aingem as cem piginas)ordenadas deforma descontnua, 20 jeito !". Deste mode, é «indo, Devolvendo, ant Jando» (p. 259) que Eva desmitiicae deste «a narativa tio confor. me» (p. 88), Os Gafanhots, através de uma ionia profunda que atinge ‘0s modelos tradicionais da criago liter CConsiderado o romance como a warte temporal” por excelénci na medida em que esta «organiza & maneira de uma sucessio de qua. ros sobre um fundo fisico que dé 3 narrativa a sua configuragio pré- ray, em Murmurs, eeitando-se a canonicidade romanesca porque se pautavaaiteraturacléssca, a propria lineardade temporal também, MA Sein. Aper do romance — is de ee andi, 216 "Sep Cars ei Am Cie Laps ama eee nee ‘ins ae en ia ss ci mn th ‘eran ment earn gg dingo cate mmol ee Stn amie modo ep tars 89) ‘Mee Rama Ste Sas ener Cae "A Cor os Mara Leta alga 18 9 68 tio necesséria ao conceito de cragio histérica ~ é reduzida a inutili- dade enquanto recurso ltedrio - processa-s através de uma palavea die. rente, que, a0 distanciarse da cultura dominante, da heranga recebida, ‘se transforma em palavra inédita, que se liberta conscientemente ds formas fixas que davam consistéacia a essa heranga opressiva. Assim, surgem dois romances que, tal como Jean Ricardouafirmava a propo sito dos problemas do nowveau roman, sio menos «a escrita duma ‘aventura do que @ aventura dma escritas" que se invent, nova, lie ‘era, Sota, mas profundamentereflexivae auocrtes, 22. A escolha pela paluvra eserita ‘Questionando 0 acto de eserever, diz Jean-Paul Sartre que «on n'est pas éerivain pour avoir chosi de dite cetanes choses mais pout avoir choisi de les dire d'une certain fagon»". Sendo cero que a cai sasexistem por elas mesmas,o escrito, ao coneretizarnaescrita 0 de ‘sejo de comunicar, pretende apreender o mundo que ocircunda de uma determina maneira,testando propor uma lira ou um significado Panticular da realidade™ veiculada na sua obra, Para tal, tenta adequat| EM Loud Fnag, sn fron. Poo, Mrs Ete 198,99. 385. Apa Kl Hore Onl 9.390 Ii oem ean-Pal Sar u're gu a ana Ene Galina 1948, p32 "*Niotem iol pon snes, tingid insets smart fon stm gesture fo pet, Em se Peet Mra ss ua pos arin alin at beep imal ea (Dini de Flo hn Paes Boe Ont, 3 1 apn dt oman etme ose telcos on eit, pelo cin on mr een No ‘Selo cr iifsdeiggen to uninesmcom geen home ib ‘rote eal coms» imag opeec vee pl secs ‘tm ane ou imagem mara rsa, na ln se i {gem hie quo oro on os.) Ain. ogmgen eat wt cane ir pena ns sentido da sua mensagem i linguagem e 3 ténica de elaborar em pa lavras o seu pensamento, uma vez qu, nas palavas de Perre Mache- ‘ey, son peut parler d'une complete adhésion du “message” au véhict- Je de sa transmission», "Ao escolher o tema ¢ 0 modo como oir tratar,o esritor adopta um sistema de eferncias que servrso de instrumentos de anise & sus cobra. Neste sentido, Macherey falanos também de filosofia literria, inerente a todos 0s textos e que define deste modo: «il ne s’agia pas de proposer une interpretation philosophique des [.] euvres, qui les raménerait au fond commun d'une pensée dont elles donnecaient les diverses manifestations, mais d’en suggérer des lectures, dans lequel- es le mode d'aproche philosophique des ert litéraires sera chaque fos impligué singulitrement, de manige determine et diférencie>". Eserever ser, assim, encontaro sentido preciso com que se pretende ‘ransmitir um argumento, una histria ou, simplesmente, um poato de ‘Ao reslver dar uma forma, um sentido 20 seu préprio mundo, 0 cscritorcondicionae transforma a pereepgio que o leitor tem do mun- o extratexto, Segundo André Dhdtel, é na distracedo conseguida na ‘obra que, ao transportaro leitor da realidade vivida pare a realidade fietiva de um texto o romance encontra a sua maior riqueza, visto pro- poreionar uma visio-outa da ealidade: «A distracg0, pretenso poder ' Serve esta breve sintese sobre a fungio da escria para nos deter- mos na andlise da reflexo sobre o texto operada tanto em Murmirios ‘camo em Percursos. Se, por um lado, a attude transgressora das a= toras conduziu a elaboracdo de textos onde, 3 originalidade temitia se entrelaga a inovacio formal, por outo, a exploragio do nivel linguts- tico esemintico dentro e sobre o préprio texto conduz-nos a reflexso sobre a prdpria eserita Paralelamente &luta feita pela palavra, que encontra no texto li- tecirio uma forma de reivindicagio, emerge uma escritaautorefexiva. Assim, a serem evocados os acontecimentos da Guerra Colonial, pro: _Be-se pensar a fungo do pripro texto, em que a perspctiva feminina ‘mais uma ver sobressi, A mulher eseritor,exploranda, de uma parte, "ern ar Si, or de arta 9.185 "itr Nw de sare Sih. 195 195, temas da Guerra Colonial e de outa as estruturas daescita da cra tividade femininas,reliza dois modes distintos de conftonta 0 texto {que se complementam. Aes comentiros tecdos em relagio & guerra, prolongam-se consideragoes sobre a representagdo da figio e sobre a ‘questio da prépria Histéia, ‘Vimosjé que em Percursos as reflexes sobre aescritaacontecem ‘essencialmente nas pausas Limbo, Hiato,Interlidio e Proscénio,tex- {os que traduzem 0 modo como Wanda Ramos encara 0 acto de exere- ‘ere que funcionam como perfeitas explicagbestericas elativamente 8 atitudecriatva subjacene & matéianarrada nas reminisetnias. ‘Assumindo que a escrta se toara numa «obsessfo para um es- Pirito que desperou para a artes", dentro do préprio texto que a au- toca relizaa conscitncia do seu proprio ato de conta. E assim que a ‘ulora se apresenta também como critica, como sea materia narra, & nivel diepéico fosse a concretizaglo da premissa lteréria defendida por Wanda Ramos. ‘Ao optar por dividir 0 seu texto em brevesreminiscéncias, @ au tora desde logo assume a forma através da qual se processao saber in- ‘ratextual. Assim, na elaboragio da reconstituig de uma trajectia de ‘ida, Wanda Ramos opta por veicular uma posigo clara perante 0 acto e recraro passado, coneretizando a escrita pea busca interior de um, tempo passado, vivid. (0 titulo do romance (Percursos —do Luachimo ao Luena) remete ‘de imediato para uma linearidade precisa, sugerindo propria palavra pereurso a ideia de acto ou acco de percorer um espago. Esta nogso {de acso€ sinda mais eoncretizada ao ser metodicamenteassialado 0 itinerdrio dessa caminhada de um panto preciso (do Luachimo) a um ‘outro (a0 Lena). Portanto,ndo é apenas a nago de acgdo, é também ‘dein de uma acgdo pré-definid, linear, com ponto de partda e com, Ania Cee, Ponto de chegada desde logo determinados. Contudo, a recuperagio do tempo passado~ longe de ser conseguida a jeito de um romance tradi ional, em que a sucesio perfeita dos acontesimentosreconst6i toda ‘uma vida ~ € conseguida numa escritafragmentada, livre de regras sin tctieas, io espontinea como um pensarento que anda no se artic Jou & forma da linguagem imediatamente comunicativa, Aliés, Wands Ramos parece menos querer informa 0 leitor sobre a preisio do seu pereursoautobiogréfico, do que expor uma atituée perante a vida, sen- do entio que a leitura de Percursos nem sempre sea cil ou evidente. ‘A comunicagdo com o letor fz-se de um modo dissimulado, pelo que ‘Wanda Ramos deixa pavsas,winervaos,na sua construsio sintagms- tica, que nos fazer deslizar para ono dito da palavras", 0 que se ans forma numa mensagem de apelo&diferenca. A enunciagao do ndo dito 6 entendida por Julia Kristeva como muito proxima dalinguagem poé- tia, em que eada «mensagem contém uma measagem subjacente que a0 mesmo tempo um duplo eSdigo, cada texto € um outro texto, cada ‘unidade poéica tem pelo menos uma sigificagio dupa, sem vida inconseiente e que se reconstitui por um jogo do significante>". Een- to nest jogo de linguagem de sentido, que, ainda segundo a autora, ‘evemos como & que uma tl concepcdo refutaa tee da linearidade da ‘mensagem [..] a substitu pela linguagem podtica como uma rede complexae estratficada de nveis semdnticos". ‘Sendo sugerida, no tuo, toda uma lineardade que acaba porno scontecer (nem a nivel diegtic, nem a nivel seméntico), em vez da «ivi habitual em capftulos, o texto surge repartdo,entio,em remi- niscEneias. Num romance de pressuposta meméria autobiogtic, a steminisc&ncia» remete para uma aitude espectfica perante 0 que aau- {ora assume como viagem a um tempo passado. “Lael Aeo de Noses, Os vse emis sn ge de ebm de a ts tos Calg Conduz o seu significado para 0 conceito de reconlacio, que, em {emos filosocos, se dstingue da memeria, José Ferrater Mora classi- fica a primeira como «o acto de recordar ou entfo como aquilo que é Fecondado», € a segunda como «uma capacidade, dsposigo, faculda- de, fang (|; um processo psiquico diferent de “uma relidade ps- {quica”»'®, Percursos, mais do que sugerir um exerci tabalhado de ‘memra, prope 0 dominio do passado nio através de uma operagio siguica, de rciocinio, mas através da recordaco, Esta enconta-sein- ‘imamente reacionada com a reminiscénca, ou seja, com a «recorda «0 sem reconhecimento»'*, acto que, se nos detivermas no facto de a propria Tinguagem do romance ser essencalmentea-sntitca, fui, ‘ispets, sem um trabalho rigoroso de laborasio de nexos pereitos de ‘sentido, parece complementaraatitude da autora em paula texto pe- Ia espontaneidadecratva “Mas esta espontaneidade 6 conseguida no Sem um atitude pen sada sobre o acto de escrever. Na pausa Limbo, Wanda Ramos parece assomar pela metforao objctivo das suas palavras, que visam essen- cialmente «a nova perspctiva dos varandins que ito abritse sobre a fachada e consentr tomadas dear a0spossives utentes, pelo remate rellectido e permissivo do telhado, que nto hi-de esmaga o que Ihe fi ‘caabaixo, enfim,[.] desfruta no interior de quanto nee haa ou possa por-se, acescentar» (p. 43). Ese acrescentar parece reflectir © gesto in Fee Man 28, Amcor en cohen avi yf de, ns Pa, gt i: tars en loa um mde, de qs bons recanem prem 9. teins Efron do Agua srs saa ren ‘icv geal ¢ ita eo pens (amaso ao mare cons ‘pce om us rca} tas, a tr veel omega ace oh tor au de Hides piste ut © Feel Fein nen ima upon a © ‘hin map cosines eds pt gu nano ase. {Si hme chan eh int Pe es (hoist de tbe Vin thn nt pp 40) linerador de alguém que pretende desprender-se dos wesconsos da mae \éria amorfa da memériay(p. 43), seguindo os mundos possiveis que ‘emergem na ponta de um lips, perfazendo «a renda desta esi, se- _guirthe 0s meandros, inventanar he 0 fundo»(p. 43) Em Hiato conta a autora como se processa em si o proprio acto de ‘escrever: & scomo um quadro negro, Produz-se a esponja © apagamse (06 tesfduos» (p, $7), 8 que se segue um ustbitoesvariamento» (9. 37), avontecendo enti «ofluxo da fala congelado —imobilidade da mio» (p57), Ocorre depois 0 inexplicével ewassincrono»(p. 7) acto cria- tivo, que dé lugar 20 eestlhago da palavra,recusa, ava, letras desfa- z2endo-se entre os dedos como algodio»(p. $7), que culmina, por fim, 1a sensual consumasio da «cuforia da escritay(p. 57). Nas piginas de Percursos, o espago ¢ invadido pelo poder da es- rita (ea nesga do tej ao acance quase do brago estendido»,p. 79)", dominando a fuider discusiva todo o registo da autora. Assim, as ecordagées slias, as imagens espontineas, do lugar reconstituigio do passado: ma fala sm eto rand ma mura dada ds pesos. sim- ales woes de objeto, jindung ging por mga decease ‘anc loses tia inns etcorend ainda pels mad ‘da de ago (9.79 ‘Tendo-se desprendido «a quietude da palavras nos ainda pri- més desta aventura narrativay(p. 80), essaltam das linhas Jo 0- ‘mance fragmentos de escrita inquietos, que visam adespudoradamente fabricar inimeras escritas»(p. 80). Se a art, conforme diz Eric Buys- seas, «répond au besoin de manifestr, 'extérioriser les sentiments es thétiquess" entio o despudor, a insia de rir essasindmeras esritas, ‘num desejo de seatarse (p. 80}, levaa qu se snta a posigdo de Wanda "Apa Vor Mauer Tod ror, 83 Ramos perante a escita como uma quase sepifania individual» que, ‘fo fosse a critica socal e politica latente ao longo das quarenta esis, reminiscéncias, podetia conduzir 4 conclusio de que a escrta para a rnarradora seria apenas uma motivacdo emocional. Reforga tal percep 0, a considerago feta pela propria autora sabre o trabalho realizado 0 Tongo de Percursos, quando reconkece que tudo o que narou fi «0 ‘ue resta de muito eserever em quase deméncia» (p95), Eserever ser, nto, assumir uma acgo onde parece rena um cero cads criti: taco poral pacientes se deste, ree beads amoroseoos. jaa, sobre os, um um, vag como cro de comte pe eae emarisador de ais, destgt se 0.99. (Quanto 20s fragments das reminiscéncias, ‘sero eno eset, negative de plcl tsoseot prj, igo pro que der er, forma aque tei ve and ese feando onde sempre eee) tempo, min, nd, ore, pntin, ese ripen, vt, cine, comico (9 96. ‘Wands Ramos termina as suas reflexes sobre a esrita, tecendo também consideragées sobre a literatura tradicional, jos agentes er tica som embarago: ese vrs unidano hens, sigmuzaton, de span res soso qu ize ds fas, enediavelnene meando no Or ‘05 eaguemas Stic, enolndo vor neler, samindo una alsa acrid como objeto depose a mes gue pena cont -,qutitaos de mento ia nem mexn em romp i (p79). Acusando afalsalnearidade da literatura tradicional esta entio saber por que meandros correo itnerério de Percursos. Assi, mais do, «que a tajestria de uma vida o romance parece orienarserumo &bus- ‘ca de um percurso metafsico, concretizado na fuga constante para 0 ‘espagoales6rico de um ro, de uma caminhada tragada para um local sem mateialidade covereta, que afinal no conta tanto a linearidade, mas a busca metafsia, porquano se poss considerar esta como «af losofia primeira que trata de questées como a exstécia,[..]cigncia do transcendent (que] se apoia, em muitos casos, na absolutaimedia- {ez eimanéneia do eu pensante» © fim da Censura em Portugal, no periodo do pés-revolugio, ter {ito desabrochar 0 deslumbramento pelo poder da linguagem em tra- Auzie a realidad social, tal como o debrugar livremente sobre temas controversos, tal camo a Guerra Colonial. Na rgéncia de escrever a histéra das colénias portuguesas, os escritoes sentem a dificuldade de representar a guerra. Ana Paula Feria coloca a questio do sequinte ‘modo: de que forma um acontecimento que sempre estivera sob o lar stento da dtadura, poder ser «(fe)consruced and objecified throught the written word so as to effectively exorcze a national trauma?» Lia Jorge, em Murmaros, apresenta um romance que prope tematica da guerra, equacionand a0 mesmo tempo a pro- ‘lemética da histéra, da representagoe da linguagem,Iniciando ro- ‘mance com uma attude ertca relativamente ao relato Os Gafanhors, 4 autora manifesta desde logo a sua attude contestatriarelativamente As narrativashistreastradicionais. Na desruigio de um modo de ver cenarar o mundo da gucrra, Lia Jorge conrapse uma escita onde 0 thar particular da escrita feminina subvert pensae maseulino, sendo ,p. 125), pereebe-se que & presenga do jornlisa no romance nio 6 inocente, contsibuindo para a reflexdo global de Eva sobre © modo como a escrita deve intervi na scusagio da vida piblica, ‘Sea forma de Evita combater 6 lutar sem «ferocidade» (p. 124), vsando «a voz que clama» (p 126), e, através do riso»(p, 124) acu sar «o grande envenenamento que cai sem se saber donde, sobre todas as coisas" (p. 126) entio, quando Sabino afirma que € preciso saber ‘escrever sem denunciar, em lad» (p. 127) e que «os regimes como ‘exo, mesmo caindo aos pedagos, no se escreve, citfase, [ni se I, ecifea-seo(p. 147) asua atitude vem coroborar a posigao que a0 lon- {0 de todo o romance a protagonistadefende: na impossibilidade de a palaveaescritatraduzir ofluxo da verdade, a sugestio, a metifora, 0s, «sons» (p. 259) ou os «murmirio» (p. 259) sao o que resta de qual- ‘que pesibilidade de corrspondéncia com a vida que acontece fora da palavea, Deste modo, quando o jornalistaafima que «as pessoas nascem, ‘mortem mais, ea hiséria natural € trgica e nunca escrit, (el para que ser escrita, se no tem remédio?» (p. 208), apenas vem confirmaro sen- {ido da mensagem de Eva: shistory happens outside language (.]tap- ed i its endless chains of meanings»". Murmiris, 0 denuncia € destrir pela ironia odiscurso tradicional de guerra, reflect e eoriza uma nova posigio perante a literatura de guera, propondo ums outa linguagem e um outro posicionamento face as elementos histricos ‘contidos no romance. Nos dois romances objecto do nosso estudo, a palavea flu sem constrangimentos. partir de um tema central ~ a Guerra Colonial ~ ‘aminha-se rumo a um destino que pati nio se antevia. Podemos,, deste modo, falar de um diseuso feminino feito em jeito de espiral, 0 {ue acaba por posiciont-io pert do discurso psicanalitico. No estudo «Peychanalyse do 'art, Charles Baudouin fala. do significado encober- to da obra de arte, que se afasa progressivamente, mas em consequén-

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