Você está na página 1de 8
CN s~””"_"*~=—— Beethoven: de um cérebro* * Publicado originalmente no suplemento “Sesquicentenério da morte de Beethoven", O Estado de Sio Paulo, 27.3.7. 137 “Beethoven: proprietari de um cérebro” Avante, pensemos juntos o sistema tonal: Unidades de 2.* articulagio*: unidades distin- tivas — conjunto de doze sons da escala cromatica (resultado da evolugdo permanente desenvolvida pela praxis dos compositores no Ambito do sistema modal). Unidades de 1.# articulacao: unidades signifi- cativas: a) hierarquia de graus, melhor: a supremacia da TONICA — como verdade necessdria — reali- zando-se com 0 apoio da DOMINANTE e da SUBDOMINANTE. b) relagdes intervalares: possibilidade de 24 mo- dulagées significativas da escala diaténica, se- gundo os modelos modais: maior e menor. Em seu aspecto horizontal: escalas, segmentos de es- calas, arpejos. Em seu aspecto vertical: acordes e encadeamentos de acordes. Observagao: As unidades de 1.4 articulagao sto definiveis semanticamente (fungées) a partir do contexto sintatico ao qual se circunscrevem. * A anélise lingiistica do sistema tonal fol executada a quatro méos com © prof. José Miguel Wisnik; a possivel colisio de alguma nota estranha & de ‘minha responsabilidade (N. do A.) 139 Eixos da Linguagem: 2.2 articulagéo: paradigma: as notas. - sintagma: combinagées de notas, relagGes intervalares possiveis (quaisquer). Nestes termos, a possibilidade de se evidenciar uma manifestacdo tonal sera fruto de um mero acaso. Pode eventualmente surgir uma sec¢ao dodecafénica, modal, atonal. “Um lance de dados jamais abolira 0 aca so”. 1.4 articulagao: paradigma: relagées intervala- res submetidas a uma hierarquia de graus —anecessidade absoluta do sistema. A im- posicéo da “cultura” modulando os dados da “natureza”. sintagma: motivos, frases, temas, seccdes subsididrias, a forma expressa. Um discur- so ordenando 0s paradigmas brutos do sis- tema, seqiienciando-os segundo um cixo de direcionalidade (escolhido pelo compo- sitor), mas que exprima uma ampliacao indubitavel do segmento T — E — D — T; (Tf —D7 —T, em ultima anilise). A expo- sigéo como fundamentagao da Tonica (T° o desenvolvimento (modulatério, em pro- gresso), veiculando a fungao de Dominan- te (D7); a reexposicao exprimindo a hege- monia final da Ténica (T). P.S.: E esperar que 0 tempo banalize a aparén- cia (superficie) do discurso, deixando-o apto para um uso improcedente; que a aparéncia seja substi- tuida pelo repertério solipsistico: operagdes de or- dem subjetiva pela imposigéo de conotacdes alheias & semantica original. Que cada individuo se torne um proprietdrio privado de Beethoven. “O meu Beethoven.” Hélas. A verdade absoluta do sistema tonal para Bee- thoven é para nés (hoje) uma verdade apenas ne- cessdria ao sistema tonal. O que importa — pensa- mos — é que a verdade necessdria se torne uma ver- dade absoluta, quando se impée a realizacio de um sistema. E cada sistema se impée 4 medida que, sintetizando os dados do sistema anterior, mostra-se capacitado a solugio das contradigées advindas da aquisigao de dados novos. Assim, tornar uma verda- de necessdria a um sistema em verdade absoluta é uma questio de principio. Também é€ uma questao de principio a oposigdo a um sistema invid- vel para a solucio de suas contradicées. inter- nas, mas que ainda se mantém como verdade abso- luta. A verdade de um sistema se revela absoluta por mérito de sua aptidio (competéncia) para a solugao das contradigées de dado momento histé- rico; quando isso deixa de ocorrer, a verdade € ne- cessdria como princfpio unificador do sistema em si mesmo independentemente de sua viabilidade dian- te de novas contradiges. As contradigdes de cada momento histérico estao sempre a reclamar a neces- sidade de uma nova verdade (de outro sistema). Tudo vai depender da capacidade do sistema, ou melhor: da consciéncia e capacidade do homem diante dos sistemas. Desde que os sistemas sio cria- dos para resolver as contradigées, e as contradicdes sdo © motor a por em movimento a propria Histé- i 1 tia, a vida; cada sistema j4 contém em seu interior elementos suscetiveis de degenerd-lo. Os que sao permanentes sao: o Homem e a Informagio, abso- lutamente necessdrios. Assim, o desespero pela man- tenca de um status quo é impertinente. Beethoven pensa concretamente a necessidade absoluta do sistema; sendo o sistema a condi¢ao ne- cesséria para que se opere uma decodificacao cor- reta do trabalho do autor da Appassionata. (Assim sem lagrimas, mesmo goethianas:) Beethoven acabara de executar algumas pecas para Goethe e, vendo-o assim tao emocionado, disse: — “Meu caro! nfo esperava isso de vocé. Ha alguns anos dei um concerto em Berlim: me esmerei, acre- ditei haver bem realizado o trabalho e esperava um forte aplauso. Eu havia expressado todo o meu en- tusiasmo e nao houve o menor indicio de aplauso. Jaera demais, nao conseguia entender. Logo o enig- ma se aclarou: todo o publico de Berlim, que se compunha de gente muito instruida, vinha em mi- nha dire¢ao, emocionado, com lengos umidos para me agradecer. Era muito para um rustico entusiasta como eu. Dei-me conta de que havia tido um audi- tério romantico, mas nfo artistico. Mas de vocé, Goethe, no posso consentir. . . a que classe de gen- te devo dirigir-me para ser compreendido?” (Ano- tado por Bettina von Arnim, em Teplitz, em 1812). “No momento em que .Beethoven legou ao mundo riquezas devidas em parte a recusa do dom mel6dico, um outro compositor... Bellini...” dis- se Stravinsky. E que as melodias beethovenianas sao proposig6es tautoldgicas de paradigmas brutos do az sistema. Isto deve explicar até mesmo a pobreza me- Iédica — mas regida perfeiczo no que concerne as regras da sintaxe do discurso beethoveniano. Este discurso veicula pensamentos actstico-temporais em (ao menos) dois niveis: I) Inter-relagdes (organicas) das esséncias da linguagem; estas sio independentes do sistema de referéncia histérico: combinatéria dos parametros do som; intercambio de estruturas motivicas; grada- Ges de intensidade, e.. . II) Variagdes semintico-sintaticas sobre 0 ve- tor tonal. A Beethoven importava sintagmatizar o sistema. Também relacionar o sistema a parame- tros ignorados: a intensidade, nao ao nivel expres- sivo, ou bem ainda segundo a cinética de contraste de origem barroca; e 0 timbre, ambos como forga a movimentar o discurso tonal; a instaurar uma nova realidade musical. Mas nisto ele extravasa do ambi- to (se restrito) do sistema, em indicagaéo profética para as pertinéncias de uma outra realidade: We- bern e a generalizagao da série. E dizer que exata- mente o timbre e a intensidade como inteng6es ra- cionais — atos de vontade — foram instaurados na Histéria por um surdo, como bem a propésito ma- nifestou-se Boucourechliev em sua analise da fami- gerada Appassionata. (Veja-se em Beethoven na Collection Solfege, Edition du Seuil — Franga.) Franco. Notifique-se que nao pretendemos ne- gar um contdégio da paixio com 0 pensamento beethoveniano. Perduram os gestos: certos sforzan- di; dinamicas ressoantes da outra area do discurso; dados harméninos ja carregados de conotagdes pas- 13 sionais; inspiragdes de carater quase descritivo. . . Mas 0 que nos parece forcoso denunciar é que Beethoven responde aos apelos da paix4o com tessi- turas de estruturas (com arquiteturas de idéias) ideologicamente comprometidas com o pensamento légico, com o sistema tonal. Que o discurso beetho- veniano se imante de paixées, da-se por nao interfe- rir — com danos — no enunciado claro (nao ao claro da lua) de sua trama légica. Beethoven — o proprie- tario de um cérebro —, como ele préprio escreveu no verso de um cartao de boas-festas enviado por seu irmio (que se dizia: proprietario de terras). Musica é a criagao (adigées ao repertério) de estruturas em que os elementos componentes sejam relacionados de tal maneira que se intercambiem informagoes e se fundam para a configuragdo de um todo organico. Beethoven concretiza esta idéia. A producio de “Ludwig van” é uma incontes- tavel _manifestacao_semAntica, se entendida como uma equivaléncia da sintaxe. A parte o testemunho de sua obra, sublinhando esse aspecto a cada propo- sigdo, a cada encadeamento, resta-nos ainda a veri- ficagéo de seus propésitos estruturais, tais como transparecem nas transformagées evolutivas impos- tas aos temas inscritos nos cadernos de notas. Nes- tes cadernos, encontramos os temas beethovenianos, hoje tao caros aos proprietarios particulares de Beethoven, a ponto de servirem de mtisica de cena (incidental) para as suas frustragées, magoas, pou- cas fantasias, alegrias, amores. . . E pensar que sobre esses temas, Beethoven tra- balhou a duras penas...: mudangas de andamen- 146 FU. 00 EE ——————— tos, adicdes/subtragées de ornamentos, cimbios de tonalidades, eliminag6es de cesuras, deslocamentos de apices, retratando com 0 propdsito de direcio- nd-los em seqiténcias (e vice-versa), adaptacdes a di- ferentes compassos, aqui uma anucruse era retirada e ali acrescentada, transformacées de (até) arquéti pos de estruturas de frases, até intercalag6es de in- terligagdes. .. até que o tema expressasse inteligi- velmente uma idéia... até que ele pudesse dizer: “...altero um bocado, me descarto, tento outra vez e ainda, até me sentir satisfeito”. Satisfagao — subli- nhemos — do proprietario de um cérebro. Lutemos, sim, pela abolicéo da propriedade privada do obje- to Beethoven. — FE necessario. 145,

Você também pode gostar