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COLEGAO ANTROPOLOGIA E CIENCIA POLITICA Victor Turner FLORESTA DE S{MBOLOS Aspectos do Ritual Ndembu Tradugao Paulo Gabriel Hilu da Rocha Pinto ‘Tradugao (capftulos I, III ¢ IV) ¢ Revisdo Técnica Amo Vogel EDITORA DA UNIVERSIDADE FEDERAL FLUMINENSE Niter6i, RJ 2005 Jogo das lealdades e, pior que isso, dos valores em conffito, 0 que tesultava sempre no dilema de decidir entre normas ou valores inco- ‘mensurdveis entre si. © ponto de vista segundo o qual os sistemas humanos so estruturalmente marcados por uma espécie de praga impressa na prépria condigao de escolha ¢ liberdade humana. Sendo assim, néo haveria perfeicio, repouso ou recompensa perfeita nesse vale de lagrimas. Se 0 amor nao consola, se a ideologia desaponta, se a religido nao consegue apagar a terrivel sensacdo de perda e de finitude — para no falar da imensa frustragio e do mais penoso so- frimento a que somos sistematicamente submetidos -, as florestas de simbolos, as mitologias e os carnavais nos ajudam na travessia, Jardim Ubé, 23 de fevereiro de 2005 NOTAS " Prolessor Emo da Universidade de Notre Dame o professor de Antropologia da Pontificia Universidade Catélica do Rio de Janeiro. 7 Nopstega + Publoado no Bras, em 1983, no tvvo E. A Leach, que organize pra Colegio Grandoe Cienistas Socials, coordonada por Foresion Foreondca wecieace Editora Atica. ° 2 Vojase DOUGLAS, May. Purezae périge. Sto Paulo: Perspective, 1976. “Vor © mau eneao, indvidualidade e lminarisade: considorages sobre ce rtos de passagom © a modomidade" Mana, (el), v6, m1, abe 5005 * Estoy abviamento pensando no vo de Mary Douglas ¢ Baron Isherwood, © mundo des bons: para ua antopologia do consumo. io de dansko: elton da OEE, Billa, no ensaio nthe vilormess: the doctin of datlomert in tho Booker Naneere ublendo polo oual tho Study ofthe OX Toctamont Seton een ‘Sheffield Academic Press, 1993. Snore Se a * Vor © mau *Conratzagae, estat 76. Plo Go ant! Tory Br €.0 processo ritual", Anudiio.Antropoligica’ 1977, 28 INTRODUCAO Colegas de profissio nos Estados Unidos e na Inglaterra encorajaram- me a reunir em um volume uma série de artigos e trabalhos a espalhados em revistas ¢ antologias. Todas estas publicacdes direta ou indiretamente com o sistema ritual do povo Ndembu no noroeste da Zambia (antiga Rodésia do Norte) no centro-sul da Africa. Estes estudos antropoldgicos esto dispostos em duas secées: (1) andlises teoricas do simbélismo e da bruxaria; e (2) relatos descr de aspectos do ritual. Um inédito relato exten: € absoluta, uma vez que a parte teérica contém bastante material as descrigdes s4o, por sua vez, intercaladas com pas- sagens tedricas. Os ensaios de cada seco estio dispostos na ordem em que foram escritos de modo a permitir que o leitor siga 0 desenvol- vimento ¢ as modificagdes nas idéias do autor e na andlise dos dados. Inevitavelmente ha alguma repeticéo, mas, quando o mesmo material aparece em artigos diferentes, quase sempre € para ilustrar diferentes aspectos da teoria, ou para levantar novos problemas. * Ima vez que um relato das principais caracteristicas da organizacaé il ¢ do parentesco Ndembu ja foi apresentado no meu estudo di la alded dos Ndembu, Schism and Continuity in an African Society 157), esta introducao se limitaré a uma exposicdo abreviada das caracteristicas relevantes da aldeia ¢ da estrutura da regio ¢ a uma exposicao geral do sistema ritual. Estes sfo os contextos nos quais 08 estudos especificos da “pritica” ¢ da “manipulacao” do ritual (Spiro 1965, 105) pelos Ndembu adquirem boa parte do seu sentido, Em muitas partes da Zambia, as antigas idéias e préticas religiosas dos africanos esto desaparecendo em virtude do contato-com o ho- mem branco € seus costumes. O trabalho nas minas de cobre, na ferrovia, como empregados domésticos ¢ lojistas; 0 contato e mistu- rade tribos em um ambiente nio-tribal; a longa auséncia dos homens de suas casas — todos estes fatores tém contribuido para a desagrega- ‘cdo das religides que enfatizam os valores dos lagos de parentesco, 0 29 espeito aos ancifios ¢ a unidade tribal. No entanto, no extremo no- roeste do territério, este processo de desintegracio religiosa est sendo menos rdpido ¢ completo. Alguém com paciéncia, simpatia e sorte ainda pode observar nesta regio as dancas e rituais de outrora. Em Mwinilunga, por exemplo, onde fiz dois anos e meio de trabalho de campo como pesquisador do Instituto Rhodes-Livingstone, pude ir a muitos rituais dos Ndembu e obter material sobre outros rituais com 0s informantes. Gradualmente tornei-me consciente do vasto e com- plicado sistema de praticas cerimoniais que estavam acontecendo a0 meu redor, de maneira semelhante a alguém que percebe a silhueta de uma cidade distante sob a luz cada vez mais forte do amanhecer. Foi uma experiéncia espantosa ¢ enriquecedora ver 0 contraste entre a relativa simplicidade ¢ monotonia da economia e da vida domésti- ca desses cagadores ¢ agricultores e a organizagio ordenada e 0 simbolismo colorido da sua vida religiosa, Para ressaltar 0 contraste mencionado acima, olhemos rapidamente para os Ndembu na sua vida cotidiana e secular, Existem cerca de 18 mil Ndembu no distrito de Mwinilunga, dispersos em aldeias com cerca de 12 cabanas, espalhadas por cerca de sete mil milhas quadra- das de floresta temperada, cortada por centenas dg rios e cursos d’4gua que correm para o Zambezi. Os Ndembu vivem a oeste do rio Lunga, que corta o distrito de norte a sul, ¢ os Kosa vivem a leste dele, € ambos os grupos chamam a si préprios de Lunda, e dizem ter vindo da terra de Mwantiyanvwa, o grande chefe do Congo. No correr dos dois séculos que se seguiram & suposta migracio, os Lunda, tanto Kosa quanto Ndembu, parecem ter perdido qualquer autoridade cen- tral ¢ organizaco militar que pudessem ter possuido e ter-se fragmentado em grupos pequenos e virtualmente independentes, sob a lideranga de seus chefes. No final do século XIX, os grandes che- fes Kanongesha 0 Ndembu e Musokantanda o Kosa, cujos ancestrais tinham liderado os grupos guerreiros de Mwantiyanvwa, ainda eram respeitados pelos seus chefes Subordinados, mas tinham pouco con- trole sobre eles. Um niimero considerdvel de casamentos foi realizado com os Mbwela e Lukolwe, povos organizados de forma simples que foram conquistados pelos primeiros Ndembu. Mais tarde, os mercadores de escravos Ovimbundu ¢ os cagadores de escravos Lwena e Chokwe de Angola, encorajados pelos portugueses, com- pletaram a desintegracao destes postos virtualmente isolados do império Mwantiyanvwa, que estava enfraquecido na sua propria ter- 30 ra de origem. Mais tarde ainda, sob 0 dominio briténico, foi estabelecida uma hierarquia consistindo de um chefe (a Antoridade ‘Nativa) e quatro subchefes. Anteriormente, estes subchefes perten- ciam a uma classe de lideres aldedos que possuiam importantes titulos hist6ricos, mas tinham pouco poder efetivo. No entanto, os Ndembu, como 0s aristocratas émigré em Cannes e Biarritz, ainda vivem em suas conversas em torno das fogueiras no passado de desafios heroismo nas aldeias. O que quer que o tempo ¢ as expedig6es te- ‘bam feito a eles, eles dizem “Nos somos 0 povo de Mwantiyanvwa”, c isso basta! No seu planalto coberto de florestas, os Ndembu praticam uma for- ma de agricultura de subsisténcia na qual 0 Cultivo da mandioca é associado & caga. Além da mandioca, a cevada € cultivada em pe- quenas clareiras, limpas por meio de queimadas, principalmente para a fabricacdo de cerveja; 0 milho é cultivado em hortas na beira dos rios para a alimentacao ¢ também fabricacao de cerveja. (Qs Ndembu séo um povo matrilinear, virilocal, com um alto grau de mobilidade espacial. Eles habitam pequenas aldeias com grupos de homens ligados por parentesco matrilinear, que sio geralmente lide- radas pelo membro mais velho da geragao mais antiga. Entre os Ndembu, nfo apenas as aldeias, como também os indivi- duos ¢ as familias, tém alto grau de mobilidade. Os homens, por vontade propria, € as mulheres, pelo casamento, divércio ¢ novo ca- samento — cada etapa, geralmente, levando a uma mudanga de domicilio ~ esto constantemente se mudando de uma aldeia para outra, sendo que os homens geralmente vdo para os locais onde tém parentes. Isto € possivel porque os grupos de parentesco estio dispersos pela regio. ‘Temos entio uma sociedade éujas aldeias se movem larga € freqiientemente no espaco ¢ recorrentemente tendem a se dividir, ou mesmo se fragmentar, ao longo do tempo. Os individuos circulam continuamente através destas aldeias méveis. Nao € de se estranhar que os estudiosos da Africa Central, que trabalham nessas reas, ca- racterizadas pela grande mobilidade residencial, tivessem se interessado por problemas de dinamica social e por processos de ajus- tamento, adaptacdo ¢ mudanga. 31 A ESTRUTURA DA ‘ALDEIA Embora a maioria dos grupos locais, na sociedade Ndembu, seja re- Jativamente efémera e instavel, os principios organizacionais por meio dos quais eles sio criados e recriados sio persistentes ¢ duradouros. Aldeias especificas partem-se ¢ dividem-se ou se dispersam, mas a forma estrutural da aldeia Ndembu permanece. Se olharmos para uma grande amostra de aldeias Ndembu, podemos abstrair das suas variagOes concretas uma forma geral ou normal. A partir dos comen- térios dos informantes sobre as regras que eles acreditam que deveriam reger a residéncia na aldeia, 0 antrop6logo é capaz de avaliar aproxi- madamente a extensio e o modo da correspondéncia entre as normas estatisticas ¢ ideais da estrutura da aldeia. De forma geral, descobri que as aldeias Ndembu so “na realidade” bem préximas do que os informantes achavam que elas deveriam ser. Entretanto, também descobri que os princfpios a partir dos quais clas sio organizadas sio situacionalmente incompatfveis, uma vez que eles geram conflitos de lealdade. As pessoas que obedecem a um grupo de normas desco- brem que esta obediéncia faz com que elas transgridam regras igualmente vilidas pertencentes a outro grupo. Dois grandes princfpios influenciam 0 padrio de residéncia: descen- déncia matrilinear e casamento virilocal. A matrilinearidade rége direitos prioritérios & residéncia, & sucesso em cargos ¢ & heranca de propriedade. Um homem tem o direito de morar com os seus pa- réntes matrilineares primérios ou classificatorios. Ele pode morar na aldeia do seu pai, se sua mae residir 14 ou, caso nio resida, como um. privilégio dado a ele pelo pai, em virtude dos seus direitos como membro da linhagem matrilinear da aldeia; um homem tem o direito de set considerado candidato a lideranca da sua aldeia matrilinear ¢ também & parte da propriedade de um parente matrilinear falecido. Por outro lado, um homem tem o’direito de levar sua esposa para ia. Este fato pode gerar uma situacdo problematica na qual as mulheres, de quem a continuidade social depende, nao moram nas suas aldeias, mas naquelas dos seus maridos. Este pro- blema podefia ser reduzido se existisse um costume claramente definido que determinasse que os garotos fossem viver nas aldeias dos irmaos das suas mies ao atingirem uma certa idade, a puberda- de, por exemplo. Tal costume nio existe entre os Ndembu e a conseqiiéncia do problema € deixada em aberto. O énus da escolha é 32 colocado sobre 0 individuo. Os homens tentam reter seus filhos con- sigo pelo maximo de tempo possivel e realmente a telagis pai-filhé, 6 altamente ritualizada, particularmente nos cultos dos cagadores € nas cerimOnias de circuncisao. O efeito final € a presenca de fortes tendéncias patrifocais em uma sociedade matrilinear. MATRILINEARIDADE E VIRILOCALIDADE: ALGUMAS IMPLICACOES © quadro geral que se delineia € composto por grupos méveis de parentesco matrilinear masculino, mudando de locais de residéncia duas vezes a cada década e em competicdo entre si por mulheres ¢ criancas. As criancas pequenas geralmente permanecem com suas miles, as quais recebemn sua guarda apés 0 divércio. Para conseguir a alianga das criancas, 0 tio materno delas tem de conquistar a simpa- tia de suas mies. Assim, surge uma contradicao entre 0 papel do homem como marido e pai, que quer manter sua esposa e seus filhos consigo, ¢ seu papel como immio uterino ¢ tio, que o impele a con- quistar a alianga residencial da sua irma e dos filhos dela. Este conflito, embora seja freqiientemente velado € mitigado pelos costumes que comandam a amizade entre parentes por alianga da mesma geracéo, se reflete em uma taxa de divércios excepcionalmente alta mesmo para a Africa Central. A importancia da matrilinearidade também! aparece no costume de as vitivas voltarem para as aldeias de scus parentes uterinos ou préximos na linhagem matrilinear, apés a morte de seus maridos. Nao existe levirato ou heranga de vitivas entre os Ndembu livres. Assim, na prética, a estrutura matrilinear da aldeia é constituida, em qualquer momento dado, ndo apenas de relagdes en- tre os parentes matrilineares masculinos, mas também entre estes homens um néimero variével de parentes matrilineares femininos que voltaram para junto deles ap6s 0 divércio ou a viuvez, trazendo suas criangas. +. Permitam-me colocar a questio de outra maneira. Em nossas con- versas, os Ndembu enfatizaram a solidariedade entre dois tipos de parentes masculinos: entre pais ¢ filhos entre irmfos. Essas sio as relagées, por exemplo, ritualmente reconhecidas no rito de circunci- sio dos meninos. Freqientemente dois ou trés irmios séo ‘circuncidados na mesma cabana ritual —e esta € uma das razées para 33 ' a grande variagio de idade entre 05 novicos (entre sete ¢ 17) - ou 0 inmao mais velho age como guardido dos novigos que forem seus immaos mais novos. Nao é raro que o pai aja como guardiao, Nesta ‘sidades dos novigos, os instrui em varios 'm os repreende, se eles nao seguirem a disciptina ‘ses sexuais até as feridas de sous filhos estarem cicatrizadas, Diz-ce gue no passado um homem mataria o ciseuncidador que mutilasse seu filho. Por outro lado, a relacdo entre 0 irméo da mie ¢o filho da ima nfo ¢ ritualizada em todas as circuncisdes, nem o irmao da mae tem de praticar a abstinéncia sexual até que as feridas da circuncisao estejam fechadas. Os rituais de caga também enfatizam os lagos en. tte pai e filho. Como eu disse antes, vejo em tudo isto um elemento Patrifocal em uma sociedade basicamente matrilinear, Existe um ‘ideal masculino, nunca realizado completam¢ munidade de parentes masculinos, consi mulheres e filhos. No entanto, a matrilinearidade, que é fortemente ritualizada na cerimOnia de puberdade das meninas.e em muitos cul, tos ligados a fertilidade feminina, previne uma completa realizacao 's Ndembu dizem que eles tracam a des- uulheres, porque “o sangue da mie € evidente se pode ter certeza sobre quem € 0 genitor”. A ferece uma base mais segura para se tracar a des- cendéncia, pois sabe-se inquestionavelmente quem so os parentes matemnos de alguém. Assim, o parentesco matrilinear oferece um quadro de referéncias para os grupos permanentes e controla a su. cessdo © a heranga dentro destes grupos. Entretanto, devido a ‘matrilinearidade, uma aldeia Ndembu s6 pode continuar a existir através do tempo, se os filhos das irmas vierem viver nela. Conco, mitantemente, os filhos devem abandonar a aldeia para repovoar as aldeias dos seus tios maternos.-A aldeia permanece essencialment uma estrutura de relagdes entre parentes masculinos, porém a matrl nearidade determina a forma da maioria dessas relagSes. A unid Gos irmaos € ainda enfatizada, mas os irmios que vivem juntos sao irmaos uterinos, filhos da mesma mie. Eles podem ser também filhos do mesmo pai, mas o lago uterino € crucial icia. Muitos filhos adultos moram com seus pais, mas, ap6s a morte destes, eles devem ir para onde possuem parentes matrilineares. 34 qualquer momento dado, irmés ¢ filhas adultas das irmas dos mais antiga moram na aldeia. Ao longo de seu , estas mulheres sao residentes apenas durante intervalos entre sucessivos casamentos, mas, depois da menopau- clas podem Ié permanecer permanentemente. Os filhos das irmas (0s filhos das filhas das irmas tendem a se agrupar em cada aldeia, vezes com suas mies, as vezes ficando para tris, depois que suas "andes se casam de novo. O resultado disto € que qualquer aldeia con- - tém um mimero de a relacionados por lacos matrilineares érios ou classificatérios, e um ntimero menor de pessoas ligadas rilinhagem da aldeia através de seus pais. Os parentes masculi- ultrapassam os parentes femininos em uma proporgio de mais dois para um. Em outras palavras, cada aldeia tura um compromisso entre matrilinearidade © le (que defino aqui como a residéncia de alguém com ‘irmios uterinos morem juntos. Se 0 casamento fosse uxorilocal, os ‘mmios uterinos estariam dispersos pelas aldeias das suas esposas. _ ALGUNS TIPOS DE RITUAL Rituais de crise de vida © que 6; por exemplo, uma crise de vida? Resumidamente, trata-se de um ponto importante no desenvolvimento fisico ou social do in- dividuo, como o nascimento, a puberdade ou a morte. Nas sociedades mais simples do mundo, ¢ também: em muitas sociedades “civiliza- das” existe uma série de éerimOnias ou rituais destinados a marcar a transigio de uma fase da vida ou do status social para outra. NOs, por exemplo, temos o batismo ¢ as ceriménias de formatura: 0 primeiro Para indicar a chegada de uma nova personalidade social & cena hu- ‘mana; as segundas para celebrar 0 resultado bem-sucedido de um longo © freqiietitemente érduo processo de aprendizado ¢ 0 lanca- ‘mento de um novo trabalhador. Estas ceriménias de “crise” nao dizem respeito apenas a0 individuo que ocupa o lugar central nelas, mas também marcam mudangas nas relagdes de todas as pessoas ligadas a ele por lagos de sangue, casamento, dinheiro, controle politico 35 muitas outras formas. Quando uma mulher Ndembu tem sua primeira ccrianga, digamos que seja um menino, ela pode estar presenteando seu irmio, um lider da aldeia, com um herdeiro, ao mesmo tempo em que, © marido se torna pai, e sua mie se torna av6, com todas as mudancas de comportamento e status associadas a estas novas relagées. Logo, a prépria sociedade sofre mudancas junto com sua importante pas- sagem de jovem esposa & mie. Qualquer que seja a sociedade na qual vives, estamos ligados uns aos outros, ¢ nossos “grandes momen- tos” sio “grandes momentos” para os outros também. Ceriménias de iagdo Embora tanto os meninos quanto as meninas passem por ceriménias de iniciago, a forma e 0 propésito das ceriménias diferem enorme- mente em cada caso. Os meninos, por exemplo, sio circtincidados, mas niio é praticada a clitoridectomia nas meninas. Os meninos sao iniciados coletivamente; as meninas, individualmente. Os meninos sio iniciados antes da puberdade; as meninas, logo no inicio da mes- ma. O principal objetivo da iniciacao dos meninos é inculcar-lhes. valores tribais, habilidades da caga ¢ instrugio sexual; 0 da iniciacéo das meninas é prepari-las para 0 casamento, que, na maioria dos ‘casos, se segue imediatamente a esta iniciagao. Os meninos sao iso- Jados ¢ ensinados na floresta; uma cabana de palha é construida na prépria aldeia para as meninas. Existem outras diferengas marcantes que sero apontadas nas descrigdes abaixo. Os principais pontos a serem notados, no entanto, s4o: o contraste entre a natureza coletiva da ceriménia dos meninos e o tratamento individual dado as meni- nas; a énfase na obediéncia & disciplina dos anci6es e em suportar provas duras ¢ dificeis para os meninos, em contraste com a énfase no sexo e na reproducio ¢ a libertacéo do trabalho manual, associa- dos cbm a ceriménia das meninas; 0 contexto da-floresta para a ceriménia dos meninos, contrastando com 0 contexto doméstico € aldedo daquela das meninas. Em relagio & diferenga entre a natureza coletiva das ceriménias dos meninos ¢ a iatureza individual das ceriménias das meninas, 0 co- mentério de um Ndembu pode ser esclarecedor. “Se muitas meninas € suas instrutoras fossem embora por um longo perfodo, quem traba- Iharia nas hortas, buscarid 4gua e cozinharia para os homens?” Jé que o trabalho agricola masculino era confinado no passado a quei- 36 juséncia ein grande ntimero das atividades econd- .diiz um efeito tio marcante. . ‘a, Mukanda, a circupcisio dos meninos, qualifica 0 ara entrar nos cultos de caga, e Nkang’a, jal de puber- .eninas, prepara a mulher para participar dos cultos de , de.'No entanto, os rituais de crise de vida sao comuns a todos mibu ¢ automiticos, enquanto os cultos de caca ¢ fertilidade ja afligdo das pessoas por sombras de individuos ja fale- nao so automiticos. ssante que o tema principal do Mukanda deva ser a fa (isto €, caca), enquanto o do Nkang’a deva sera iva. A atividade econdmica feminina que é, no fim das con- sencial para a existéncia da comunidade, €raramente ritualizada, AS, sexo e maternidade para as mulheres parecem ser os valo- is claramente ressaltados nos tituais de crise de vida, sendo 0 pelos ancides e superiores, que é dramatica e impressionan- ‘incorporadono makishi dos meninos, um elemento constante mbos. indnia funeréria na maioria das sociedades, a quantidade de “pompa e circuns- ” de um funeral dependé da riqueza e importancia do morto. ido o professor Radcliffe-Brown, os funerais tém mais a ver i 0s vivos do que com os mortos. J foi mencionado antes que em osrituais de crise de vida mudancas acontecem nas relacGes de todos aqueles fortemente ligados com o objeto do ritual. Quando ima pessoa morre, todos estes lagos so rompidos, ¢, quanto majs importante for a pessoa, maior o mimero ¢ a variedade dos lagos que existem para ser rompidos. Neste momento, um novo padrao de ré; lagbes sociais deve ser estabelecido: se 0 morto era, por exemplo, uum lider, um sucessor deve ser encontrado para el devem dividir sua heranca en suas dividas, o destino de sua vitiva deve ser decidido, ¢ todos que mantinham determinadas relagdes com ele tém de saber qual € sua 37 posicao junto a seus herdeiros ¢ sucessor. Antes que todas estas coi- sas possam ser feitas, deve existir um perfodo de ajuste, um intervalo durante © qual a sociedade passa da velha para a nova ordem. Entre os Ndembu, este perfodo coincide com a duragéo de um acampa- mento de luto, Chipenji ou Chimbimbi. Acredita-se que durante este periodo a sombra do morto est mais imequieta, sempre tentando revisitar os locais e comunicar-se com que melhor conheceu em vida. Os Ndembu acreditam que itual do Tuto a sombra jamais descansaria no timuld, mas estaria constan interferindo nos assuntos dos vivos, com citi- me de cada novo ajuste, como 0 casamento da sua viva ou a escolha de um sucessor que ela desaprovaria, e que certamente ela poderia * trazer doencas a todas as pessoas que deveriam ter honrado sua me- méria fazendo um funeral, mas nfo 0 fizeram. Rituais de aflicao que consideramos aqui como “rituais de afligéo”? A resposta a esta questéo identifica o tema principal da vida religiosa Nd Por alguma razo, os Ndembu associaram mi sorte na caca, pr ‘mas reprodutivos femininos ¢ varias formas de doenga aos es + dos mortos. Além disso, quando se: diagnostica que um individuo “apanhado” por tal espirito, ele ou ela se torna 0 objeto de um elabo- rado ritual, 0 qual atrai muitas pessoas das cercanias e de lugares distantes. O ritual € destinado a simultaneamente apaziguar e elimi- nar 0 espirito que esti causando 0 problema. Estas afirmagées dio margem a outra série de questdes. Que tipos de “espititos” so con siderados causadores da aflicio nos vivos: os de parentes, de estranhos, “espfritos da natureza” ou deménios? A resposta é sim- Ples € direta. Eles so os espiritos dos parentes mortos. O termo ‘Ndembu para tais & mukishi, no plural, akishi. Gostaria de esclarecer que akish fr nao deve set confundide com whi), que significa “dancarinos mascarados nas ceriménias de iniciagdo ou funerarias” ou os trajes nos quais eles se apresentam. Por motivos priticos, usarei o termo “ ; cuahado pela professora Wilson, em vez de “espirito” ou “espfrito ancestral”, para definir mukishi. Certo ou errado, “espitito ancestral” sugere para a maioria das pessoas um “ancestral remoto ou distante”, enquanto estes atormentados habitantes de um “timulo 38 ‘sem’ sossego” sempre sao os espiritos daqueles que tiveram um pa- pel importante na vida das pessoas que eles esto atrapalhando. as sombras “‘saem de seus timulos”, como colocam os Hein. pom scar cus par “arias razOes S40 apontadas, ado a mais importante que estes “esqueceram” as somibras ou se comportaram de alguma forma que elas reprovaram. “Esquecer implica deixar de fazer as oferendas de cerveja ou comida nas arvo- 1s muyombu que sio plantadas como santuérios vivos no centro das aldeias ou nfo mencionar 9 nome das sombras quando lé se reza. Este termo também quer dizer deixar de derramar 0 sangue do ani- a abertura feita no timulo de jgnificar que alguém esqueceu 0 morto ovavel” pode significar causar um cor 16800, mudando-se da aldeia do morto para viver em outro lugar contra jo expresso pelo(a) morto(a) em vida. Qualquer que seja 0 , sempre se acredita que exista algo distinto e importante em “apanhado por um mukishi”. Para comecar, a pessoa se torna a figura central de um grande encontro ritual, no qual todos os partici- pantes desejam que cla melhore ou tenha melhor sorte. Entio, se 0 tratamento que receber for bem-sucedido, ela pode se tornar um cu- randeiro' secundério (chimbuki), quando o mesmo ritual for feito para outras pessoas, chegando talvez. com o tempo 20 papel de cu- randeiro principal. Assim, o caminho para o prestigio religioso passa pela aflicao. Freqiientemente escutei curandeiros ponderem & pergunta “Como vocé aprendeu o seu oficio?”, alavras “Comecei ficando eu mesmo doente”, o que significa que a sombra de um dos seus parentes o afligiu com uma doenca. Existe tum duplo sentido em ter sido apanhado por uma sombra. A pessoa é punida por ter negligenciado sua meméria, mas, ao mesmo tempo, ela € “escolhida” para ser um intermedirio nos futuros rituais que coloquem os vivos em comunicacdo com os mortos. Se o ritual fa- Ihar no seu propésito e a doenca ou a mA sorte continuam, isto pode ser um sinal de que a pessoa nao redimiu sua ofensa. Por outro lado, pode também significar que a pessoa est sendo atacada por feitica- ria feita pelos vivos. Quais sio as maneiras pelas quais uma sombra vem afligir alguém? Elas se dividem aproximadamente em trés tipos principais: (1) a som- bra de um cagador pode levar seus parentes a nfo alcangar seu no grupo de paren- 39 objetivo, ndo encontrar animais em que atirar, ou colocé-los fora do alcance de seu tiro; (2) a sombra de uma mulher pode causar varios problemas reprodutivos nas suas parentas, desde a esterilidade até uma série de abortos espontaneos; (3) sombras de ambos os sexos podem fazer seus parentes vivos ficarem doentes de virias formas: eles podem “definhar”, softer de “sores ¢ tremores” ou “dores por todo © corpo”, conforme descricio dos proprios Ndembu. A estas tres formas de aflicio correspondem trés tipos principais de rituais para remové-las: os cultos de caca, os cultos de fertilidade e os cul- tos curativos. Os primeiros sao realizados para os homens; os segundos, para as mulheres, ¢ os terceiros, para ambos os sexos. A forma da aflicdo e o rito para eliminé-la sio chamados pelo mesmo nome. Por exemplo, se uma mulher sofre de menstruacéo dolorosa e prolongada, ela é considerada como tendo sido “apanhada pela som- bra que apareceu no Nkula” ¢ o rito para livré-la da sombra também. € chamado Nkula. Em cada culto hé um ndmero de rituais separados, sendo os do culto de caca ordenados huma gradagio, enquanto os dos outros cultos no tém ordem fixa de performance. A sombra agressora em um dado ritual é percebida como tendo sido afligida da mesma forma enquanto viva. Desse modo, o paciente, 0 curandeiro Principal e os curandeiros secundirios, e a propria sombra perten- cem a uma Gnica comunidade sagrada, consistindo do eleito ¢ do candidato a cleigio. Cultos de caga O alto valor atribuido & caga como ocupagio masculina jé foi assina- lado em conexfo com a iniciacéo-dos meninos durante a qual os valores bisicos dos Ndembu sio ensinados e expressos. Para nés, a caca € uma mera atividade econémica ou esportiva na qual, havendo talento natural como base, a habilidade aumenta com a pritica. Os Ndembu nio véém o assunto dessa maneira. Um jovem rapaz.recebe um “chamado” para se tomar um grande cacador, de forma muito semelhante a como uma pessoa recebe um chamado Para se tortiat um missionério na nossa sociedade, quer dizer, ela recebe uma mensagem de uma fonte sobrenatural dizendo a ela que esta é sua vocagio. No caso do jovem Ndembu, a mensagem vem Sob a forma de sonhos sobre a sombra de um famoso parente caca- dor, acompanhada de azar na caca. Ao consultarum adivinho, ojovem 40 que a sombra quer que ele se tome um cagador famoso € je deve entrar no culto dos cagadores, sendo 0 primeiro dos rituais realizado para ele. A partir de ento, a mesma seqiiéncia nua—mi sorte e sonhos, seguidos de ritual para ganhar os favo- ‘da sombra, seguidos, por sua vez, de maior.sucesso na caga~ até mento em que ocacador € reconhecido como sendo um mestre seu oficio. A arte da caca pode assim set vista como a acumula- je um poder sobrenatural crescente, através de graus sucessivos iniciacao no culto das sombras de cagadores. Este poder permite ‘ges no parto. Minha esposa foi convidada a ajudar em meia diizia de casos de parto prolongado ou gravidez interrompida nas aldeias ‘vizinhas 20 nosso campo, em cerca de trés meses. Muitas mulheres, mostraram sinais evidentes de anemia e algumas revelaram que ti- nham problemas menstruais freqientes. E possivel que a , _predominancia atual de tais problemas esteja associada, por um lado, A escassez de came e peixe em muitas reas, como na parte nordeste do distrito, onde os animais de caca quase desapareceram, c, por outro, 20 baixo valor protéico do principal produto cultivado, a man- dioca, que possui apenas um oitavo do valor protéico da cevada. Os ‘Ndembu no mantém gado bovino, e seu gado mitido no é suficien- te para a sua demanda de carne. No entanto, apesar de estes rituais de fertilidade (ou melhor, antiinfertilidade) estarem em expansio nos anos 50, a maioria pare~ ce ter existido no passado remoto, vindo “de Mwantiyanvwa”, como 41 dizem os Ndembu. O tema da aflicdo aparece de novo. Acredita-se Que a mulher que tem gravidez interrompida, abortos, ou um fluxo menstrual excessivo, ou que é estéril, ofendeu uma sombra, a qual sai de seu ttimulo ¢ “senta” no seu corpo até que seja apaziguada por um do: prescritos para a mulher pelo adivinho. Descobri que a mae da mae da mulher éra de longe a sombra ofendida mais fre- fo pareceu sig- nificativo tendo em vista o fato de que as mulheres, por intermédio de quem a sucesso e a heranca so passadas, vio para as aldeias de seus maridos depois do casamento, ficando freqientemente longe das suas aldeias de origem, e que podem, portanto, no correr do tem- po, deixar de lembrar seus parentes mais velhos no lado materno que Jé tenham morrido. Além disso, quando elas eram meninas, teriam passado a maior parte do seu tempo nas aldeias de seus pais, onde clas estariam vivendo com suas mies. Entretanto, apesar de terem passado tanto tempo das suas vidas longe das suas “préprias” al- dcias, espera-se que mandem seus filhos de volta para lé no tempo >. Se elas préprias so divorciadas ou vitivas, suas aldeias matrilineares sfo vistas como seus santuérios até um novo casamen- to. Ao que parece, ser “pega” por uma sombra matrilinear serve como uma clara lembranga de que sua lealdade primeira € para com suas aldeias matrilineares ¢ que elas tém filhos nao para seus maridos, ‘mas para os irméos da sua mae e seus irmaos “em casa”. Verificamos que “esquecer” a sombra € a causa principal de aflicao. Quatro rituais sio feitos para mulheres com problemas reprodutivos: (2) Nkada, quando uma mulher tem um fluxo excessivo de sangue menstrual; (2) Wubwang’u, quando uma mulher tem — ou espera ter = gémeos, ou quando parece ser estéril; (3) Isoma, quando uma mu- her teve alguns natimortos ou abortos; e (4) Chihamba, que pode ser realizado. para doengas, assitii como para problemas reprodutivos, tanto em homens quanto em mulheres. Nkula, Wubwang’u ¢ Chikamba também podem ser realizados para criangas doentes, nes- te-caso, a mae’ a crianca sfo tratadas juntas. Freqiientemente o marido € tratado com a esposa, “para fazé-lo sagrado ¢ tabu (kunbadyi nakwajila)”, pois cle tem de comer e dormir com ela, ¢ 0 contato intimo, entre pessoas ou objetos sagrados e profanos, € considerado como sendo perigoso, ou, ao menos, capaz de anular os efeitos do 42 nento. Cada um destes rituais tem trés fases bem demarcadas: “sagrados”; (2) um periodo de reclusdo, s sdo parcial ou totalmente separados da existéncia jiana e tém de observar certos tabus alimentares; ¢ (3) Ku- figibuka, um tratamento avangado e danga que celebra o fim da reclusdo e prepara os pacientes para entrar novamente na vida coti- diana. ‘Apesar de serem rituais femininos, 0 principal curandeiro em cada tum deles é homem, No entanto, ele deve ter sido “consagrado” ou jmo um irmao, filo ou marido de uma mulher que passava por ct al, antes de poder aprender as pocdes ¢ os procedi- jos. Cada curandeiro (chimbuki ou chimbanda) tende ‘mentos aprop! a'$¢ especializar em um ou outro ritual, embora alguns curandeiros Saibam as técnicas de muitos. Geralmente ele tem uma curandeira Servicos; comida e cerveja sio dadas as curandeiras. Se a cura é alcangada e a mulher consegue ter uma gravidez bem-sucedida, 0 curandeiro recebe 10 shillings ou uma libra est a, que ele pode diyidir com suas assistentes da forma que achar mais adequada. O dinheiro € geralmente dado pela paciente ou por seu marido. Fazer ‘um ritual é algo caro para o padro econémico dos Ndembu. Custa 3 s. e 6 d. em pagamentos ao adivinho, mais de uma libra para 0 cirandeiro, e um grande investimento em dinheiro, tempo e trabalho para fornecer comida e cerveja para as as’ 0 piblico do evento. Além disso, as regras de reclusao freqiientemente profbem a mulher de recolher 4gua, trabalhar nas suas hortas de mandioca e carregar os tubérculos para a cozinha, privando assim a familia de seus servigos econémicos por varios meses. Cada uma das performances do Ku-lembeka e Ku-tumbuka tem trés estagios principais: (1) a coleta dos medicamentos;? (2) a Construgdo de um santuério; e (3) um longo periodo com o soar de tambores, ercalados com o tratamento da paciente pelos lavam com pocées, dirigem-se @ sombra agres- sora no santudrio e desempenham varias outras ag6es rituais. A paciente geralmente permanece sentada passivamente diante do san- 43 tudrio, embora possa, eventualmente, juntar-se ao cfrculo de mulhe- res que dangam em torno dela. Cada tipo de ritual tem seu préprio ritmio de tambores, sua propria “cangio tema”, sua prépria combinagao de pogées, seu proprio com- portamento estilizado, expresso em dancas e gestos, ¢ seu préprio tipo de santuario e aparato ritual. Geralmente, trés categorias principais de pessoas participam destes rituais: (1) homens e mulheres que foram eles proprios pacientes em determinado ritual e podem assim atuar como curandeiros principais ou secundérios (aiymbuki); (2) parentes matrilineares e patrilineares ~ da mulher e do marido que sao os pacientes (0 termo para “paciente” € muyeji que é também usado para um cacador sem sorte, quando ele esté sendo tratado em um ritual Wuyang’a; ele quer dizer, na verda- de, “uma pessoa que esté sendo afligida pela sombra de um de seus parentes”); ¢ (3) outros Ndembu, que podem ou nio ter lagos de Parentesco com os pacientes, mas compartilham a dana e a bebida, pois cada ritual, principalmente em sua fase final, 6 uma celebracdo pablica, uma reunigo tribal geral que pode reunir pessoas de varias chefias diferentes. Se o lider da aldeia onde o ritual esté sendo cele- brado conhece as técnicas ¢ os medicaments, ele seré o curandeiro Principal, mas este no precisa necessariamente ser parente dos pa- cientes. Como regra geral, participar do culto confere a alguém um Papel mais importante do que o lago de parentesco com o (a) paciente, Cultos curativos 0 Chihamba (Turner 1962a) e 0 Kalemba parecem ser 05 tinicos cul- tos Ndembu realmente autéctones para a cura de doencas ¢ enfermidades, a no ser que se inclua o ritual Kaneng’a contra a feitigaria. Os outros cultos a que assisti, ou dos quais ouvi falar, como © Kayong’t, Tukuka ¢ Masandu, sto de origem Lwena (Luvale), Luchazi ou Chokwe, caracterizando-se por tremores histéricos, “fa- iguas” em idiomas estrangeiros,? e outros sintomas de dissociagao., Nestes cultos introduzidos entre os Ndembu, 0 curan- deiro administra a pocio a si mesmo e ao paciente, ¢ os dois se abandonam ao paroxismo dos tremores, algo bem desagradivel de se ver. No Tukuka ¢ no Masandu, as mulheres tém um papel bem mais proeminente que nos rituais tradicionais Ndembu. Estes dois tituais estdo-se tormando muito populares, no noroeste de Mwinilunga, 44 Efisc ou monbros de outas tbo, como os Lwena, ¢ pare do io consiste em dar ao paciente comidas européias servidas ’, imitar os europeus dangando em casais, usar rou- s, € cantar canes moderas como “Nés vamos para ais em infusfo, fazendo-o « ‘0 vapor. Este ritual também € realizado para uma pessoa que so- que uma sombra quer que ela se torne um adivinho. } Kalemba nao € muito visto nos dias de hoje, ¢ néo tenho informa- 's confidveis a seu respeito, exceto de que se trata de um ritual sminino, em que uma curandeira-dancarina faz. uma danca solo com “eacadores, embora pareca ser de origem Lwena-Chokwe. Este “também se torou popular no noroeste, onde existem muitas € poucos animais de caca. Ele oferece aos nao-cagadores uma forma “de participacio simulada no culto do’ cacadores ¢ ilustra a tenacida- “de com que as pessoas se apegam a seus valores mais caros, mesmo ‘quando a base material deles nao mais existe. ‘contemporines, Asim, os tennds em portugues ytilizados Ho: + Medicina: Termo utilizado para design 0 sistema de diagnéstico fente os Ndembu. Victor Tamer faz 2 dstingko explicia entre a “on ““medicina ocidenta” na nota 22 do capitulo IX, 0 que justitic a ulizagSo do tenmo na twaducio, + Medicamento: Termo utilizado para designar os elementos e as substacias terapéutias izadas 90 tratamento das docngas. Pogées: Termo ullizado para dsignar os preparadosterapéuticos uilzados no tatamento ‘docnges. (N. do TE], > Refere-se a0 fendmeno da glossolalia que consste na suposta capncidade de fata Ufnguas *desconhecidas, em estado de tras religioso (N. do T] REFERENCIAS Spiro, M. 1965. “Religion: Problems of Definition and Explanation” in Anthropological Approaches to the Study of Religion. AS.A. ‘Monograph No.3. London: Tavistock Publications. ‘Turner, V-W. 1957. Schism and Continuity in an African Society: A ‘Study of Ndembu Village Life. Manchester University Press. . 1962. Chihamba, the White Spirit (Rhodes-Livingstone Paper 33). Manchester University Press. - PRIMEIRA PARTE SAPIR, E. Symbols. In: SELIGMAN, Edwin R. A. Encyclopaedia of the Social Sciences. New York: Macmillan, 1930-1934. v. 14. p. 492-493. WILSON, M. Rituals of kinship among the Nyakyusa. London: Oxford University Press, for the International African Institute, 1957. 82 I SIMBOLISMO RITUAL, MORALIDADE E ESTRUTURA. SOCIAL ENTRE OS NDEMBU!_- Neste artigo, pretendo discutir a estrutura semintica e as praprieda- desde alguns dos principais simbolos encontrados no ritual Ndembu. ‘Cada tipo de ritual pode ser visto como uma configuracao de simbo- jos, uina espécie de “pauta musical” na qual os simbolos sao as notas. simbolo é a menor unidade de uma estrutura especifica no ‘Ndembu. O termo vernacular para simbolo € chinjikijilu, de kaj “abrir uma trilha” fazendo marcas em uma drvore com um machado ‘ou quebrando ¢ torcendo galhos para servir de guias de retorno da floresta desconhecida para os caminhos conhecidos. Um simbolo é, ‘nto, uma marca ou um destaque na paisagem, algo que liga o des- gonhecido ao conhecido. O termo Ndembu vem do vocabulério da _ ‘caga.e exemplifica o alto valor ritual ligado a esta atividade. Além 0, ao discutir seus prdprios simbolos com os Ndembu, é comum ‘ouvi-los usar constantemente o termo ku-solola, “tornar visivel” ou lar”, que associam com aspectos da caca. Efetivament fivados deste verbo sio freqtientes no seu vocabulirio ritual. Por ‘exemplo, o santudrio tempordrio construido para o ritual para saciar 9s espfritos de parentes cacadores mortos consiste com freqléncia, de um galho bifurcado da arvore musoli. Os Ndembu disseram-me que esta drvore € usada como um s{mbolo no ritual dos cacadores, porque seus frutos e brotos so muito apreciados por antilopes ¢ ou- “fros animais selvagens que sem dos seus esconderijos para comé-los © podem ser facilmente mortos por um cacador escondido ou apa- nhados nas suas armadilhas. Eles dizem que a érvore faz a caca ficar “visivel”, por isso pedagos dela sio usados como pocio (yitumbui) ‘om rituais realizados para livrar os cagadores do azar: Diz-se que esta pogio vai “fazer os animais aparecerem rapidamenté para 0 ca- ador” quando ele for novamente 2 floresta. A pocio musoli também & usada em rituais realizados para fazer mulheres estéreis ficarem 0s Ndembu dizem que eles vio “fazer as criancas ficarem 83 Vale a pena citar um outro uso da musoli. Os Ndembu tém um ritual chamado Shama, cujo principal objetivo é retirar com ventosas de chifre o dente incisivo central superior (também chamado de shamba) de um parente cacador morto que penetrou embaixo da pele. Diz-se que 0 espirito, materializado sob a forma de um dente, “morde” a sua Vitima porque esta esqueceu de fazer uma libacao de sangue no seu tiimulo depois de ter matado a caca, ou ainda porque houve algu. ma briga na aldeia da vitima. A vitima pode nao ser pessoalmente culpada do comportamento briguento, mas pode ter sido escolhida como representante do grupo de parentesco em desordem. O especia- lista que supervisiona o procedimento ritual geralmente insiste que aqueles membros da aldeia que tiverem ressentimentos (yitela) con tra os outros ou contra o paciente (muyeji) se apresentem e fagam uma confissao das suas animosidades ocultas. Somente depois dis- 80, segundo ele, o ihamba consentiré em ser capturado no chifre escavado. O principal medicamento usado neste ritual, aquele sobre © qual uma invocacio do espfrito ¢ feita, aquele que é colhido antes de todos os outros, consiste na raiz principal da drvore musoli. Meus informantes me disseram que a raiz representava o dente ihamba e ie musoli era usada “para fazer 0 dente ihamba sair rapi- » de modo que “as pessoas falariam verdadeiramente (ku-hosha chalala) ¢ abertamente”. Aqui a idéia 6, claramente, a de que tanto 0 paciente quanto 0 grupo social perturbado obteriio alivio Se Os maus sentimentos ocultos forem trazidos & luz. - Outro derivativo de ku-solola € “isolé” ou “chisolf”, termos que indi- cam “um lugar de revelacao”. Eles se referem a lugares especialmente consagrados, usados apenas nas fases finais de rituais importantes, onde se realizam ritos esotéricos ¢ revelam-se conhecimentos secre. tos aos iniciados. Finalmente 0 termo Musolu significa um tipo de ritual realizado ape- nas pelos chefes ¢ Iideres graduados para trazet ou “fazer visivel” chuvas atrasadas. Assim, um aspecto do processo de simbolizacio ritual entre os Ndembu € fazer visivel, audivel e tangivel crencas, idéias, valores, sentimentos e disposicées psicolégicas que nao podem ser percebi das diretamente. © processo de tornar piiblico o que é privado, ou ‘tomar social o que é pessoal, esti associado com o processo de reve~ Jar o desconhecido, 0 invisivel ou 0 oculto. Tudo 0 que nao pode ser Provado estar em conformidade com as normas ou em termos dos 84 valores da sociedade Ndembu € potencialmente perigoso para a sua coesio e continuidade, Disto deriva a importancia da confisséo no ritual Jamba. Ao expor seus sentimentos vis a forcas rituais benétfi- cas em um contexto ritual, os individuos so purgados de desejos ¢ emog6es revoltosos e se conformam de bom grado aos costumes piiblicos. ‘Em um ritual Ndembu, cada simbolo torna certos elementos da cul- tura ¢ da sociedade Ndembu visiveis e acessiveis a agio piblica direcionada. Ele também tende a relacionar estes elementos a certas regularidades naturais ¢ fisiolégicas. Assim, em varios contextos, a ‘musoli telaciona o valor da confissio ptiblica & restauracio da satide eda fertilidade feminina. Isto me leva a outra propriedade importan- te de muitos simbolos rituais: sua polissemia ¢ sua multivocalidade. Quero dizer com estes termos que um tinico simbolo pode represen tar virias coisas. Essa propriedade dos simbolos individuais é verdade para 0 ritual como um todo, pois uns poucos simbolos tém de repre~ sentar uma cultura inteira e seu ambiente material. O ritual pode ser descrito, em um aspecto, como um costume quintessencial, na medi- da.cm que ele representa a destilacao ou condensacio de muitos costumes seculares e regularidades naturais. Alguns simbolos domi- nantes ou focais possuem visivelmente essa propriedade de multivocalidade que permite a representacdo econdmica de aspecto- ‘chave da cultura ¢ da crenca. Cada simbolo dominante tem um “leque” ou “espectro” de referentes, os quais sao interligados pelo que é ge- ralmente um simples modo de associacio, cuja prépria simplicidade penmite a ele interconectar uma grande variedade de significata. Por exemplo, o elo associative oferecido por “brancura” permite & argila branca (mpemba) representar uma multiplicidade de idéias ¢ fon6- menos, que vio de referentes biol6gicos, como “sém« éias abstratas como “pureza ritual”, “inocéncia” de feiticaria ¢ “solida- riedade para com os espiritos ancestrais”. Quando falamos sobre 0 “significado” de um simbolo, temos de ter © cuidado de distinguir entre pelo menos trés nfveis ou campos de significado. Proponho chamé-los de: 1) 0 nfvel de interpret i va (ou, em resumo, o significado exegético); 2) 0 si operacional; 3) 0 significado posicional. O significado exegético é obtido por perguntas feitas aos informantes nativos sobre o compor- tamento ritual observado. Aqui se deve distinguir entre a informacio dada por especialistas em rituais € a informagio dada por leigos, ou 85 seja, entre interpretagées esotéricas ¢ exotéricas. Também se deve ser cuidadoso ao afirmar se uma certa explicagio ¢ verdadeiramente representativa de uma ou outra dessas categorias ou se é simples- mente uma opiniao pessoal. Por outro lado, o papel do simbolo ritual pode ser bastante esclareci- do ao se equacionar seu significado com seu uso, ao se observar que os Ndembu fazem com ele, ¢ nfo apenas o que eles dizem sobre ele. Isso € 0 que chamo de significado operacional, e este nivel tem as maiores implicagbes para questdes de dinimica social. O obser- vadar deve considerar no apenas 0 simbolo-mas a estrutura ¢ a composicio do grupo que o manipula ou teatraliza atos com referén- cia direta a ele. Deve observar ainda as qualidades afetivas desses atos, se eles sio agressivos, tristes, penitentes, alegres, satiticos, assim por diante. Ele também deve investigar por que certas pessoas ‘ou grupos esto ausentes em dadas ocasides e, caso estejam ausen- tes, se € porque foram ritualmente excluidos da presenca do simbolo, O significado posicional de um simbolo deriva da sua relagéo com ‘outros simbolos em uma totalidade, uma Gestalt, cujos elementos adquirem seu significado do sistema como um todo. Esse nivel de significado est4 diretamente relacionado com a importante proprie- dade dos simbolos rituais anteriormente mencionada, sua polissemia. ‘Tais simbolos possuem muitos significados, mas contextualmente pode ser importante enfatizar apenas um ou uns poucos deles. As- sim, a drvore mukula, considerada abstratamente, fora da sua relacao com qualquer contexto ritual especifico, pode representar “matrilinearidade”, “caca”, “sangue menstrual”, “a came dos ani- mais selvagens” ¢ muitos outros conceitos ¢ coisas. O lago associative entre os seus varios significados é dado pela sciva vermelha que ela Secreta, a qual os Ndembu relacionam com o sangue. J4 no ritual de circunciséo dos meninos (Mukanda), o significado da mukudla € de- terminado pelo seu contexto simb6lico. Uma tora de madeira 6 colocada junto ao local onde os meninos so circuncidados. Eles si0 circuncidados embaixo de uma rvore mudyi, que, como veremos, representa-inter alia a maternidade e a relagéo mie-filho. Depois eles sao suspensos sobre um pedago da arvore muyombu, que é costumeiramente plantada como um santuirio para os espiritos,an- cestrais da aldeia, e colocados ainda sangrando sobre a tora de mukula. Neste caso, a tora de mukula representa principalmente duas coisas. Representa 0 desejo dos ancifos de que as feridas da circunciséo 86 cicatrizem rapidamente (a partir do fato de que a seiva da mukula coagula rapidamente como uma crosta). Representa também, como fai informado, a masculinidade (wuyala) ¢a vida de um homem adulto que, como cacador € guerreiro, tem de derramar sangue. presenta: 1) a remocio do menino da dependéncia da sua passagem pela drvore mudyi); 2) sua morte ritual ¢ subs sociagio com os ancestrais (a passagem sobre a arvore muyombu); © 3) sua incorporacio & comunidade moral masculina dos membros da ttibo (0 contexto coletivo na drvore mukula onde os meninos so alimentados cerimonialmente como se fossem bebés pelos circuncidadores pelos seus pais. Cada menino recebe uma bola de’ iro de mandioca para comer diretamente da faca do circuncidador) Neste rito, a posico do simbolo mukula com referéncia a outros ‘objetos e atos simbélicos € o fator seméntico crucial Q mesmo simbolo pode ser reconhecido como tendo significados diferentes em fases distintas da performance ritual, ou melhor, dife- rentes significados vém a ser dominantes em distintos periodos. O c mina qual significado deve se tomar o mais importante € 0 ‘ostensivo da fase do ritual na qual ele aparece. Assim como um foguete espacial, um ritual tem fases, e cada fase é direcionada a tum objetivo limitado que se tomna ele proprio um meio de se atingir ~ objetivo definitivo da performance total. Assim, 0 ato de circunci- “Si0 € 0 objetivo ¢ o apogeu da fase mais carregada do ponto de vista ‘simbdlico do ritual Mukanda, mas se torna ela prépria um meio para |e atingir o objetivo final de transformar um menino em um homem * ali tribo. Existe uma relacao consistente entre 0 objetivo ou finalida- -_dede cada fase em um ritual, o tipo de configuracio simbélica usada aon fase, ¢ os significados que se tornam dominantes nos sfm- 16s multivocais naquela configuracao. taria de considerar agora o significado exegético de um dos prin- ais simbolos Ndembu, a érvore mudyi. Este simbolo € encontrado inais de meia diizia de tipos diferentes de ritual, mas o seu locus icus € ritual de puberdade das meninas (Nkang’a). Envolta ein um cobertor, a novica é deitada sob uma drvore mudyi esguia e “joyem. Os Ndembu dizem que sua flexibilidade representa a juven- ‘GUE da menina, A drvore foi previamente consagrada pela insirutora lll (nkong’u) e pela mae da novica. Elas pisotearam a grama 20 da arvore, tomando-a sagrada ~ “separada” (chakumbadyi) ou ida” (chakujila). © lugar, como o da circuncisio dos meninos, 87 € chamado de ifivilu ou “o lugar da morte”. Ambos os lugares sio também conhecides como ihung’s, “o lugar do sofrimento” ou _“ordalio”. Jung's também € o termo usado em relagdo & caban: ‘onde uma mulher esta dando 4 luz. E um. “lugar de sofrimento”, por que a novica no pode mover seus membros até quase 0 an Sob pena de ser beliscada por todo o corpo pelas mulheres is ve- Ibas; ela também no pode comer ou falar durante todo o dia. A. associagio da érvore mudyi com 0 sofrimento ¢ a morte deve ser lembrada como um aspecto do seu significado posicional. Os Ndembu comegam sua exposicao sobre o significado da mudyi ido que, se sua casca for arranhada, gotas de latex I mosti 350 S40 ua crianga”, uma relacdo social. Am- pliam ainda mais este sentido para significar uma matrilinhagem (vumu, literalmente, “um Gtero ou estémago”). Um texto que reco- Ihi expressa bem essa visio: Mudyi dtu kwakaminiy nkakulula hakumutembwisha ri aruba A drvore do leite 6 0 lugar onde dormia a ancestral (fandadora), onde ela e as outras ancestrais Foram iniciadas suka nimubovawe ni kudi nkala ni ud mama ninetu anyana; © (depois) outras-até a av6 e a mic © nés os filhos; ila tumchids wetu hutwatachikili ni amayala nawa ‘chock hamu. €0 local onde a nossa tribo (ou costume tribal — literalmente “espécie”) comegou, © of homens tam- ‘bém da jnesma forma, Meu informante acrescentou, entio, os seguintes comentérios: vore do leite onde a novica ests deitada. A rvore {do Ieite € 0 local onde os nossos ancestrais dormi- ram. Ser iniciado ali significa tomar-se ritualmente Puro ou branco. Uma menina n§o-iniciada, uma 88 ‘mulher menstruads ov um menino nio-circuncida- do séo chamados “aquele @ quem falta brancura (runabulakutooka). ente falando, a érvore do leite de uma novica especifica ominada “a sua matrilinhagem”. Em uma das fases do thas dessa Arvore sio consideradas como representando novica” — um sentido que se relaciona a uma realidade ‘vez de" ao passado ou ao presente. fases do ritual Nkang’a, a drvore do leite € considerada sm particular o aprendizado do “senso feminino’ yawambanda). Um informante disse que escola; “a ménina bebe sentido como o bebé bebe lei a semantica de mudyi pode ser jem, por diversas légicas, as séries dos outros significa- -co geral vai do concreto para o crescentemente abstrato, sm diversos ramos pelos quais a abstragao prossegue. Uma desenvolve da seguinte forma: seio, relacdo mae-filho, ‘idade, a tribo dos Ndembu ou 0 costume tribal do qual a jearidade € o princfpio mais representativo. A outra linha se- envolvimento dos seios, condicdo feminina, a mulher -maternidade. Ainda existe outra linha que vai de mamar a as tarefas, direitos ¢ deveres da mulher adulta. Como em tros simbolos Ndembu, os significados derivados tornam- [és prOprios, simbolos que indicam idéias ¢ fenémenos para além ‘éprios. Assim, “matrilinearidade”, um sentido derivado da relagio “Inde-filho”, e de “leite materno”, pelo principio do pars pro tofo, se torna ela mesma um simbolo da cultura Ndembu em sua totalidade. ‘No entanto, apesar da multiplicidade de sentidos, 0s Ndembu falam ‘© pensam sobre a arvore do leite como uma unidade, quase como um ‘poder unitario. Conseguem dividir cognitivamente 0 conceito de “Ar- ~vore do leite” em varios atributos, mas o véem como uma entidade ‘singular na prética ritual. Para eles esse conceito é como o “eterno feminino” de Goethe, um principio feminino ou matemal que per- passa toda a sociedade e a natureza. Nao se deve esquecer que os simbolos rituais nao so meramente signos representando coisas co- nhecidas; eles sio considerados como possuindo eficécia ritual, como carregados de poder de fontes desconhecidas, e como capazes de agir sobre pessoas ¢ grupos que entram em contato com eles de modo a mudé-los para melhor ou em uma dirego desejada. Os simbolos, em resumo, tém tanto uma funco oréctica (orectic) quanto uma fun- do cognitiva. Eles produzem emocdes e expressam e mobilizam desejos. Realmente possfvel ainda conceptualizar o significado exegético dos simbolos dominantes em termos de polaridades. Em um dos p6- los se junta um grupo de referentes de cardter grosseiramente fisiol6gico, relacionado com a forma emocional da experiéncia hu- mana. No outro pélo se agrega um grupo de referentes rclativos as normas morais ¢ aos principios que governam a estrutura social. Se chamarmos esses pélos seminticos de “oréctico” ¢ “normativo” res- pectivamente ¢ se considerarmos os simbolos rituais Ndembu em termos desse modelo, vemos que a Arvore do leite representa, 20 mesmo tempo, 0 aspecto fisiolgico da amamentacio, com os pa- ides afetivos que lhe so associados, e a ordem normativa governada pela matrilinearidade. Em resumo, um tinico simbolo representa tan- to 0 obrigatério quanto 0 desejavel. Neste ponto, temos uma unio intima do moral com 0 material. Uma troca de qualidades pode ocor- rer entre os pélos oréctico ¢ normativo nas psiques dos participantes sob os estimulos da performance ritual. O primeiro, através da sua associagio com o segundo, é expurgado de seu caréter infantil e re- gressivo, enquanto o p6lo normativo se impregna do efeito prazeroso associado ao ato de amamentar. Por um lado, 6 aco do leite se de- senvolve como 0 laco estrutural primério sob a matrilinearidade, mas Por outro, ¢ neste caso o modelo € apropriado, o primeiro se opSe © resiste & formacao do segundo. Outios importantes simbolos Ndembu tém uma estrutura polar se- melhante: Por exemplo, o Mukula, no contexto do Nkla, um ritual realizado para curar desordens menstruais, representa 0 pélo oréctico do “sangue do parto”, enquanto no p6lo normativo ele representa a matrilinearidade e a ligacao histérica entre os Ndembu e 0 império de Mwantiyanvwa no Congo, cujo primeiro lider, uma chefe mulher chamada Laweji Ankonde, sofria de menorragia. A dura e espinhosa 90 évore chikoli, que tem um papel importante no ritual de circunciséo dos meninos, é considerada como representante da “masculinidade” no sentido moral e social. Ela é vista como representando a coragem (wulobu), habilidade na caca, e 0 “falar bem em casos legais”, mas a chikoli também tem o seu pélo fisiolégico. Citando um informante: A chikoli € uma drvore muito forte, a sua madeira é ‘muito dura. Um dos nomes usados para designé-la ” € chikang’anjamba, de ku-kang'anya, falhar, ¢ njamba, o elefante. O elefante nio consegue quebré- la. Nem o vento ou a chuva podem quebré-la, ¢ as formigas brancas nio a conseguem comer. Ela se ‘mantém ereta como 0,6rgio masculino ou como 0 corpo de um homem forte. E por isso que dizemos que ela representa a forca (wukolu),. Chikoli, assim como wukolu, € derivada de ku-kola, “ser forte ow Potente”. Eu poderia mencionar muitos outros exemplos dos Ndembu ppara essa polaridade, que considero uma caracteristica universal dos simbolos rituais com um minimo de complexidade semantica. No entanto, voltemos a frvore mudyi, desta vez para observar 0 que acontece perto ¢ em tomo dela no dia da provacio da noviga, a fase menina (Nkang’a). Agora vamos considerar o. significado §peracional da drvore do leite. Imediatamente somos confrontados fa um problema, Embora se possa argumentar que, no nivel ‘eKEBético de significado, os referentes estruturais da drvore do leite 0 ligados aos aspectos harmoniosos e solidarios,dos grupos e ‘laces organizados pela matrilinearidade ou feminilidade, torna- "imediatamente Sbvio que boa parte do comportamento observavel lagdo a ela representa uma dramatizacio do conflito entre esses ‘grupos e relacées. fas primeiras horas da manhi, por exemplo, apenas as mulheres ais velhas da aldeia da'novica podem dangar em torno da rvore lidyi. Mais tarde, apenas as mulheres, ¢ nio os homens, podem incar af, e as mulheres atacam e ridicularizam os homens com can- iencionar um momento no qual todas as mulheres mais velhas com- tem para pegar uma colher de pirdo de mandioca e favas, chamado “0 mingau de chipwampwilu” pela instrutora ritual. Esse mingau 91 a Kwing’ija, ou “pedido”, com a qual comeca o ritual de puberdade representa a fertilidade e, especificamente, a fertilidade da novica, Se uma mulher de uma aldeia distante agarra a colher primeiro, con- sidera-se que isto significa que a novica ter4 seus filhos longe do local de residéncia de sua mae. Este episédio representa a competi- Gao entre os principios da matrilinearidade e da virilocalidade. Outros episédios do Nkang’a também representam esse conflito, embora a maioria deles nao se refira diretamente & arvore do leite. “Assim, durante ‘os epis6dios, 0 valor atribufdo & solidariedade ‘as mulheres € contestado, na prética, pelo conflito entre a mae da oviga © as mulheres adultas, que estio tratando de incorporar a filha dela as suas fileiras de casadas, removendo-a do colo de sua mac. contestado, além disso, pela separacdo entre as mulheres da ak da novica ¢ as demais mulheres; e, no Ambito da aldeia, pela rivali- dade das mulheres em tomo da fertilidade da novica, bem como das mulheres entre si, também a propsito de fertilidade. A-unidade da estada pela movimentagao das mulheres em torno da ar- em oposicéo zombeteira aos homens. O ordélio da novica, com a ameaga de punicdo caso ela se mova, representa um aspecto do conflito entre as mulheres mais velhas as meninas. O interessante é que os informantes nativos nao relatam esses confli- tos, por mais estereotipados que eles sejam, nas suas interpretagdes ortodoxas do simbolismo da drvore do leite. No entanto, esses con- flitos dramatizados tém de acontecer no ifwilu, 0 “lugar da morte” da novica, localizado perto da drvore do leite. Um psicanalista da esco- ser tentado a relacionar o contraste entre os niveis, exegético e operacional de’ significado, entre a énfase na harmonia e a 6nfase na discérdia & atitude ambivalente da crianca em relacdo a0 seio materno, que tanto a apazigua quanto suscita hostilidade devido as suas auséncias aparentemente caprichosas. Ele poderia atribuir a auséncia de interpretag4o do comportamentto conflituoso como re~ sultante do mecanismo psicoldgico da “divisio” que separa a atitude hostil da atitude amorosa em relagdo ao seio e atribui a hostilidade a psique inconsciente, mas ¢ inadmisstvel, em termos te6ricos, expli- ‘como os simbolos rituais, por meio de conceitos da psicologia. Uma hipétese sociolégica pode ser apresentada para dar fo entre os niveis de significado, consideranda-se ico o principio da matrilinearidade é abstrafdo do seu contexto social ¢ aparece na sua pureza ideal. Os conflitos entre ‘08 grupos ¢ as relages articuladas pela matrilinearidade que apare- 92 {vel operacional nao sio devido a inadequagées estruturais irilinearidade ou a fraqueza humana em relagio & capacidade sspeitar as regras, mas resultam de outros principios de organi- social que constante e consistentemente interferem no ynamento harmonioso da matrilinearidade. Diferencas de sexo atravessam a filiacdo matrilinear. O casamento virilocal ata- ca-q cocsdo de uma matrilinhagem local. A familia matricéntrica agi coats contraditorias lealdade dos membros da mi .gem. Conflitos tipicos dessa ordem sao representados pe- ranlé a 4rvore do leite, o simbolo supremo da continuidade martrilinear ypendéncia, em Giltima instancia, da sociedade Ndembu em ‘ao seio materno. O ritual de puberdade afirma que, embora a jearidade possa ser regularmente desafiada por outros princi- tendéncias, ainda assim, ela persiste ¢ triunfa. luindo, gostaria de chamar a atenco para a relagéo entre o si 10 da Arvore do leite ¢ o principio simbélico da “brancura” ( i) no nivel exegético de interpretagdo. No apice do conjunto tema simbdlico total dos Ndembu, esta a trfade de cores bran- -yermelho-preto. Em algumas etapas esotéricas do ritual de ‘Gircuncisdo dos meninos € no rito inicial das confrarias funerérias masculinas e femininas de Mung’ong’l © Chiwila, os significados dessas trés cores € ensinado aos jovens Ndembu. A alvura é mais freqilentemente representada pelo pé da argila branca (mpemba ou ‘mpeza); a vermelbidao, pela argila vermelha em pé (mukundu, ng'ula ‘ou mukung’u); e 0 negrume, pelo carvao (makala). Essas substan- cias $40 menos simbolos que indicativos de principios vitais, seme- hante as “Linhas da vida” mencionadas no Bhagavad-Gita. Recolhi ‘iuifos textos e fiz muitas observagbes sobre o uso dessas cores no posso assim afirmar resumidamente que a alvura representa, inter alia, “ondade (ku-waha), satide (kxu-koleka), pureza ritual (ku- tooka), imunidade aos inforttinios (ku-bula ku-halwa), autoridade politica (wanta) e 0 encontro com os espiritos (kudibomba niakishi). Representa, em suma, toda a ordem moral, mais os frutos da virtude; satide, forca, fertilidade, 0 respeito aos companheiros e.as béncios dos ancestrais. A alvura difere da vermelhidao, na medida em que cla enfatiza a harmonia, a coesio e a continuidade, enquanto a ver- melhidéo, associada com o derramamento de sangue, assim como com o paréntesco de sangue, tende a denotar descontinuidade, a for- a adquirida através do rompimento de certas regras © a agressividade 93 masculina (como na caca, que é representada, em muitos rituals, por argila vermelha e simbolos vermelhos). imbolos que os proprios Ndembu classificam como € que acreditam dotados dos atributos morais da alvura. A frvore do leite, que representa a matrilinearidade, € um deles. Para os Ndembu, a matrilinearidade € 0 que o professor Fortes chamou (1949, p. 344), embora num contexto diferente, de um “prin- cipio irredutivel” da organizacio social, pelo qual a ordem moral, com todas as suas prescri¢des e proibicdes, 6 mediada para 0 indivi. duo. A matrilinearidade € o quadro de referencias desses aspectos da moralidade Ndembu que as pessoas véem como imutiveis e como pontos nodais harmoniosamente interligados. Seria possfvel mostrar que as normas ¢ os valores que controlam essas relagées derivadas do lago de leite formam a “matriz” da ordem moral e possuem idealmente o que os Ndembu veriam como uma qualidade “branca”, A matrilinearidade dé forma e caracteristica especificas a moralidade que de outra forma seria imprecisa e geral. Aftican Seminar em Salisbury, Rodésia, em dezembro jez em African systems of thought (FORTES, REFERENCIAS FORTES, Meyer. The Web of kinship among the Tallensi. London: Oxford University Press, 1949, FORTES, M.; DIERTLEN, G. (Ed.). African systems of thought. London: Oxford University Press, for the International African Institute, 1965. if 94 m A CLASSIFICACGAO DAS CORES NO RITUAL NDEMBU: UM PROBLEMA DE CLASSIFICAGAO PRIMITIVA' [Nos tiltimos tempos, vem-se observando um notivel ressurgimento davinteresse pelo que Durkheim (1963) chamava de “formas primiti- de classificacao”. Nesse ressurgimento, destacam-se os nomes Strauss, Leach, Needham e Evans-Pritchard. Tem-se presta- ita atencéo & classificacio dicotOmica nos sistemas religiosos ede parentesco, bem como a outras classes de formacées isométricas de ipo quater ou octidico. A resturreicto, por obra de Needbam, os trabalhos de Robert Hertz (1960) e os recentes estudos de Needham (1960) e Beidelman (1961) sobre o simbolismo da laterali- dade c da oposicdo entre direita e esquerda, com suas implicacées gicas, constituem uma boa mostra de tal interesse. No decor- 4 simbolizagio ¢ formalizacio desse conflito. iam oposigdes entre os princfpios da mé das disputas jearidade e da entre os sexos fosse portadora de uma representacéo ritual ¢ lica. Descobri que isto acontecia, efetivamente, masnio tardei rceber que no somente o dualismo dos sexos, mas também qualquer outra forma de dualismo, estava contida num modo de clas- sificagao mais amplo, de caréter tripartido. 95

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