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(OS TRABALHADORES SE REVOLTAM: (© GRANDE MASSACRE DE GATOS NA RUA SAINT-SEVERIN ‘A.covsa mals ENGRAGADA que aconteceu na grifica de Jac- ‘ques Vincent, segundo um operério que testemunhou 0 {ao foi um sedicioso massacre de gatos. O opera, Nico las Conta, contou a histéria numa narrative que fez sobre feu estigio na grfica, na Rua SaintSéverin, Pais, durante im de década de 1750." A vida de aprendiz era dura, cle explicou. Havia dois aprendizes: Jerome, versio algo ficsionalizada do préprio Contat, ¢ Léveillé. Dormiam rum quarto sujo e gelado, levantavamse antes do amanhe- sm pats executartarefas o dia inteiro, tentando fur tarse ao insults dos oficias (asalariados)¢ aos mausra- tos do patrlo (mestre), ¢ nada recebiam para comer, a nfo ter sobras, Achavam a comida especialmente mortifieante. En vez de jantar & mesa do patrio, tinham de comer os restos de seu prato na cozinha. Pior ainds, 0 cozinheiro veadia, secretamente, as sobras, ¢ dava aos rapazes comida de gato — velhos pedagos de carne podre que nio conse- 105 gulam tragar e, entio, passavam para os gatos, que os re- Essa tima injusiga levou Contat ao assunto dos gatos. les ocuparam um lugar especial em sua narrativs, como focupavam na casa da Rua Saint-Séverin. A mulher do pa- Ito os adorava, especialmente Ja grise (a cinzenta), sua fa- Yorita, Uma paixBo pelos gatos parccia ter tomado conta das grficas, pelo menos entre os patrOes, ou burgueses, co- ‘mo ot chamavam os operdrios, Um certo burgués tinha inte e cinco gatos. Mandou pintar seus retratos e of ali- Inentava com aves assadas, Por outro lado, os aprendizes finham de aturae uma profusto de gatos de rua, e eles tam ‘bém proliferavam no disrito das gréficas, infernizando.a vida dos rapazes, Uivavam a noite toda, no tethado do sujo ‘de dormir dos aprendizes, impossibiitando uma noite de sono, Como Jerome’ e Léveilé tinham de sair ambaleando da cama as quatro ou cinco da madrugsda, para abrir porto para os primeirostrabalhadores assalaria- fos que chegevam, eles comesavam 0 dia num estado de exaustdo, enquento o burguts dormia até tarde, O pattéo sequer trabalhava com os homens, da mesma maneira como ‘coma com eles. Deixava o capataz edminisrar a offe- ne e raramente aparecia, a nfo ser para dar vazio ao seu temperamento violento, em geral 2 expenses dos apren- diz, CCerta noite, os rapazes resolveram endircitar ess ode coses desigual, Léveillé, que tinha um talento extraor- ‘indrio pare a imitasdo, rasejou pelo telhado até chegar a uma eva préxima 20 quarto de dormir do patrio e entfo comesou a uivar e miar, de maneira tio terrivel que o bur- fués © sua mulher nio progaram o olho. Depois de virias noites com esse tratamento, decidiram que estayam_sendo enfetigades, Mas, em vez de chamar © fra excepcionalmente devoto, e sua mulher excepcionalmen- te ligads a seu confessor — mandaram os aprendizeslivra- remse dos gatos. A patros deu a ordem, recomendando eos rapazes,acima de tudo, para evitarem assustar sua grise, ‘Alegremente, Jerome e Lévillé puseramse a tabalhar, sjudados pelos assslariados. Armados com cabos de vas: soura, barras da impressora e outros instrumentos de seu licio, foram atris de todos os gatos que conseguiram encon- ‘omeyar pela grise. Lévelllépartuthe a espinha com ‘uma barra de ferro ¢ Jerome acabou de matéla. Depois, enfiaram-na numa sarjeta, enguanto os assalariados perse- fiam 06 outros gatos pelos telhedos, dando cacetadas em todos o8 que estavam a0 aleance deles e prendendo, em sa- 3s estrategicamente colocados, os que tentavam escapar. ‘Alirram sacoscheios de gatos semimartos no pitio. Depois, ‘im todo o pessoal da oficina reunide em torno, encenaram ‘on fingido julgamento, com guardas, um confessor © um eieculor pablico. Depois de considerarem os animais cul- pados e ministrarthes os kimos rites, penduraram-nos em forcas improvisadas. Atraida pelas explosdes de gargalhe- dhs, 2 patros chegou. Solto um grito, logo que viu um sto ensanglentado pendurado num lago, Depois, pereebeu ‘qe poderia ser fa grse. Claro que néo, garantiram-lhe os homens. Tinham demasiado respeito pela casa para fazer uma coisa dessas. A esse altura, 0 patrio apareceu. Teve ‘un acesso de raiva pela paralisagso do trabalho, embora a e.posa tentase expliar-the que estavam ameasados por um ‘mais séio de insubordinagdo. Depois,o patrio e a pa- sm, deixando os homens em seu deliio de ‘legria”, “desordem” e “gargalhadas”.” | ‘As gargalhadas no pararam ali. Léveilé reencenou {edo espeticulo através de mimica, pelo menos vine vezes, ‘durante os dias subseqdentes, quando os tipégrafos queriam provocaralgumahilaridade repentina. As teencenagdes bur Ieseas de incidentes na vida da oficina, conhecides como ‘copies na gitia dos tipdgrafes, eram uma forma importante de divertimento para os homens. A intengfo era humilhar 105 alguém da oficina, satirizando suas peculiaridades, Uma ‘opie benvfeitaTariao alvo da brincadeira ferver de raiva prendre la chbvre (pegar 8 cabra ou arrelia alguém) na tira da oficina — enquanto seus companheiros zombayam dele com uma “mdsiea grossa”. Paziam correr os bastdes de composiedo sobre o alto da caixa de tipos, batiam suas ‘marretas contra as ramas, davam socos em armérios e be- liam como bodes. © belido (bai, em gftia) representava 1 humilhagdo as vitmas, como em inglés se diz get one's goat, Contatdestacou que Lévellé fara as mais engracadas ‘copies que j6 se vira e provocava os maiores coros de “me: fica da pesada”. O episédio em conjunto, o massacre dos ‘otos acrescide de copies, &destacado como a exp ‘ais hilariante em toda a earreira de Jerome. 'No entanto, o fate surpreende desagradavelmente © tor moderno, que nfo 0 acha engragado, mas quase repuls- vo. Onde esté © humor, num grupo de homens adultos ba- Jindo como bodes e batendo seus instrumentos de trabalho, fenquanto um adolescente reencena a matanga ritual de um ‘animal indefeso? Nossa incapacidade de entender a piada é fervir como ponto de purtida para uma investigasio, por- que 0s antropélogos descobriram que as melhores vias de foesso, numa tentativa para penetrar uma cultura estranha, podem ser aquelas em que ela parece mais opaca. Quando fe pereebe que nio se estéentendendo alguma coisa — uma piada, um provétbio, uma ceriménia — particularment ativa para os native, existe a possibilidade de se des- rir onde captar um sistoma estranho de sigificagfo, a fim de decifrélo. Entender a piada do grande massacre de alos pode possibility o “entendimento” de um ingrediente Tt, ppe © ade de sgt: oo air alsin. (73 106 Z fundemental da cultura artesanal, nos tempos do Antigo Regime. a EE preciso destacr, de inicio, que nio podemos obser- vyar a matanga de gatos em primeira mio. Podemos estu- ‘diva apenas através da narrative de Contat, esritacetea de ‘yn anos apés 0 evento, Néo pode haver divida sobre a ‘utonticidade da autobiografia quase ficcionalizada de Con- tat, como Giles Barber demonstrou, em sua magistral edicio do texto, Pertence a linhagem de escrtos autobiogrficos de tipégrafos, que se estende de Thomas Platter a Thomas Gent, Benjamin Franklin, Nicolas Restf de le Brettonne ¢ CChaties Manby Smith. Como os tipégrafos ou, pelo menos, ‘08 que compunham 0 texto, tinham de ser razoavelmente {nsruldos, para executar seu trabalho, eles estavam entre 0s ppoicos arieséos que podiam fazer seus proprios relatos so- brea vida das classes trabathadoras hé dois, tés ou quatro séctlos, Com todos os seus error de ortografiae falhas gra aaticais, o relato de Contat 6, talvez, 0 mais rico de todos. ))Mai nio pode ser encerado como reflexo exato do que real- mente acontecey, Deve ser lido como a versio que Contat-» 44é de um acontecimento, como sua tentativa de contar uma histéria, Como todas as narrativas, esta coloca a ago numa estrutura referencia; supde um certo repert6rio de associa: ‘es ¢ respostas, da parte de sua audiéncia, © proporciona lume forma significaiva & matéria-prima da experince Mar, como estamos, em primeira lugar, tentendo entender sua significagho, no devemos desanimar com seu cardier ‘como fegio, ‘uma explication de texte etnol6gia. A primeira explicagio da histria de Contat que, pro- ‘vavelmente, ocorreria maioria dos letores, & uma vislo do massacre de gatos como um ataque indiveto 20 patrio fesse mulher, Contat sitio 0 scontecimento no contexto| de observasSes sobre a disparidade entre a sorte dos operé- ios ea dos burgueses — uma questio de elementos funda- ‘mentais na vida: trabalho, comida e sono. A injustifa pa cia especialmente flagrante no caso dos aprendizes, que tram (ratados como animais, enquanto os animsis eram pro- movies, a revelia dagueles, para a posigdo que os rapazes ddeveriam ocupsr, o lugar 4 mesa do patrio. Embora os laprendizes patesam as maiores vitimas, 0 texto deixa claro ‘que tm Sdio pelos burgueses se espalhara entre os operé- ios: "Os patrdes adoram gatos; consegientemente (os ope- tis) o& odeiam’. Depois de liderar o massacre, Léveillé tomou-se o heréi da oficina, porque “todos os operris es tio unidos contra os meses. Basta falar mal dels (os mes- tres) para ser estimado por toda a assembléia de tips- rafos"" Os historiadores tendem_a tratar a era da fabricagéo ‘artesanal como um periode idilico) antes do inicio da in- dlustralizagdo. Alguns até descrevem o pessoal da oficins como uma espécie de familia ampliada, na qual patrio © fmpregados faziam as mesmas tarcfus, comiam & mesma mesa ¢, algumas vezes, dormiam debaixo do mesmo teto."” Seré que alguma coisa aconteceu para envenenar a alinos- fere das graficas de Paris, por volta de 17407 Durante # segunda metade do sfculo XVII, as grandes srifieas, apoiadas pelo governo, climinaram @ maioria das ‘ficinas’ menores e uma oligarquia de mestres assumiu 0 Controle da indéstria.” Ao mesmo tempo, a situago dos ‘empregdos se deteriorou. Embora as estimativas variem fs estatistieas nfo sejam confidvels, parece que seu nmero permanecea estivel; aproximadamente 335, em 1666; 359 fm 1701; ¢ 340, em 1721, Enquanto iso, o niimero de mes- tres diminuiu mais de metade, de oitenta e trs para trinta ses, 0 limite fixado por sm dito de 1686. Isto signifi ava menos oficinas, com foreas de trabalho maiores, como ‘se pode ver nas estatistcas sobre @ densidade das impres- Soras: em 1644, Paris tinha setenta e cinco gréficas, com 108 ‘um total de 180 impressoras; em 1701, tinha cingdnta © ‘uma oficinas, com 195 impressores. Esta tendéncia tornava pratleamente impossivel aos empregados chegarem & cate- govia de mestres. Quase que o Gnico eaminho para um ope- rir progredit na profissao era casar-se com a viva de um rmeitre, porque a condigio de mestre tornara-se um privlé- Bio hereditério, transmitido de marido a esposa e de pai pam filho. s oficaisasslariados também se sentiam ameagados de baixo, porque os meses tondiam, eada vez mais, s com tratar allows, ou tipSgrafos sem qualificagées, que nio hhaviam passado pelo aprendizado capaz de possibilitar 20 ‘assilriado, em principio, aleangar a condicio de mestre. Os allouds eram, simplesmente, uma fonte de trabalho be rato, etando excluides dos escaldes superires da profissio fixados a0 seu status inferior por um edito de 1725. A ‘degradago jd estava expressa em sua designacto: eram Tower (para alugat), ¢ nto compagnons (oficias ou assala- iados) do mest. Personificavam a tendéneia do trabalho para se tornar uma mercadoria, em vez de uma parceria, ‘Assim, Contat fez seu aprendizado e escreveu suss memé- ‘las em tempos difisis para os tipégrafosasslarindos, quan do.os homens da oficina da Rua Si ‘ameagados de serem eliminados do nivel supe ioe tragados pelas camadas inferores. ‘A mancira como essa tendéncia geral se tornou mar nifeta em ume oficina concreta pode ser vista através dos papéis da Socigté Typogrephique de Newchétel (STN). Na verdade, a STN era sufga, ¢ 56 comegou a operar sete anos depois que Contat esereveu suas membrias (1762). Mas as ppréicas de impressSo cram parecidas em toda parte, no sé culo XVHT, Os arquivos da STN correspondem, em deze nas de detathes, 8 descrigfo que Contat faz de’sua expe riércia,(Até mencionam o mesmo capataz da ofieina, Colas, ‘que supervisionow Jerome, por algum tempo, na Imprimerie Royale, e ficou encarregado da oficina STN por um curto 109 espao de tempo, em 1779.) E eles oferecem 0 nico regis {ro que restou da manelea como os mestres contratavam, ut Tizavanue despediam os tipSgrafos, no inicio de era moderna, O livro de pagamenios da STN mostra que os opers- rigs fleavam na ofieina, em geral, por apenas alguns me- ses.” am embora porque discutiam com 0 mestre, entr vam em rigs, queriam tentar a fortuna em oficinas mais istantes, ou fugiam do trabalho. Os composivores eram contratados por tarefa, labeur ou ouvrage, no jargio do t- égrafo, Quando terminavam um servigo, frequentemente fram demitidas ¢ alguns poucos impressores tinham de ser ddemitidos também, para manter 0 equllbrio entre as duas ‘metades Ja tipograia, a casse, ou setor de composigao, © 4 presse, ou sala de impressio (dois compositores, em geral, fencixam tipos suficientes pata ocupar uma equipe de dois Jmpressores.) Quando 0 capstaz aceitava novos trabalhos pata fazer, contratava mais miodeobra, As contratagées « domiss6es eram em marcha tio acelerada que a forga de trabalho raramente continuava a mesma de uma seman ppara a outra. Os companheitos de trabalho de Jerome, na Rue SaintSéverin, parecem ter sido igualmente voles, ‘Também eram contratados para labours especificos e, al- pumas vezes, iam embora do trabalho depois de discussbes com os burgueses — uma pritica bastante comum, a ponto de ter sua prSpria designagio no glossitio do jargao deles, ‘que Contat colacou como apéndiee de sua narrativa: em porter son Saint Jeon (levar embora suas ferramentas. ou ir embora). © empregade era conhecido como um ancien, se permaneca na loja por apenas um ano, Outros termos de giriasugerem a stmosfera na qual o trabalho era feito: tune chivre capitate (um acesso de raiva), se donner la gratte (entrar numa brige), prendre la barbe (embriagarse) faire 1a déroute (azer a ronda das tavernas), promener sa chape Cinterromper © trabalho), faire des loups (acumular dl- vids)!” pertences deles, como uma espécie de depésito de g A violéncia, a bebedeirae oabienteisio aparecem nas \ esatsticas de rendimentos © produgio que se podem com |pllar com base no livo de pagamento da STN. Os tipégr fos trabalhavam em surtes erritcos, — duas vezes mais | numa semana que em outra, com as semanas de trabalho vatiando de quatro a ses dies e os dias comegando desde as quatro da mani até quase meio-dia. Para manter aiere- agularidade dentro de certos limites, os mestres procuravam homens com duas caracterstcas supremas: assiduidade e soriedade. Se cram também galfiados, ano methor Un agente arregimentador de Genebra recomendou um pégrafo que queria ir para Neuchitel em termos tipios: "Bum bom trabalhador, capaz de fazer qualquer servigo que pegar, nfo & absolutamente dado a bebida e mostra ssiduidade em seu trabalho”."” © A STN utlizava recrutadores, porque néo tinha um ‘grupo de trabalho adequado em Neuchétel ¢ os fluxos de UipOgrafos, em seus tours de France tipogréfices, is vezes cewsavam. Os recrutadores e patres trocavam cartes que revelam um conjunto comum de ctengas referents 208 ar- tesios do séeulo XVIII: eram preguigosos, inconstanes, dis solutos e nfo-confifves. Nao eram dignos de confianga, por fsso of arregimentadores no thes emprestavam dinheiro / pwa despesas de viagem, e 0 patrio as vezes guardava os | para o caso de escapulirem, depois de receberem seu paga: mento. Conseqientemente, podiam ser dispensados sem com paixio, trabalhassem ow néo com diligéncia, ou tvessem fa- Indias para sustentar, ou adoecessem. A STN encomendava "ontimentor deles, exatamente como encomendava papel -iipos. Quefxou-se de que um arregimentador de Lyon: "Mandownos uma dupla em to mau estade que fomos abr alos a despuchilor”™, e repreendevo por nio ter exe minado as mercadorias: “Dois deses que mandou para nés chegeram, reslmente, mas tio doentes que poderiam con- ia) j m taminaro resto; entdo, nfo pudemos contraté-ies. Ninguém na cidade queria hospedslos. Portanto, p ce tomaram a estrada para Besancon, a fim de se internarem tno Adpital”°*" Um livesio de Lyon aconselhow-os a demi- tir a maiotia de seus operérios, durante um periodo de pou- co trabalho em su grifica, a fim de inundaro leste de Fran- f de mio-deobra e “nos dar mais poder sobre uma felvagem ¢ indisiplinével, que no podemos controlar J Os assulariados e os patrdes podem ter vivido juntos, como -Jimembror de uma femfis feliz, em algum perfodo, em \ alguma parte da Europa, mas no nas grificas da Franga \e da Suiga, no séoulo XVII (© proprio Contat acreditava que esse estado de coisas existira, antigamente, Comegou sun descri¢io da aprendi- zagem de Jerome invocando uma idade de ouro em que ‘impressdo acabara de ser inventada eos tipgrafosviviam ‘como membros livres ¢ iguais de uma “repablica” gover- nada por suas proprias leis tradigSes, num espirito de onigo e amizade fraternas”.° Ele alegava que a rept- blica ainda sobrevivia sob a forma da chapelle, a associagao de operirios em eada oficing. Mas o governo desfizera as associagdes geal ispersos pelos allouds; os assal sm excluides da possibilidade de atingir a condiglo de mestres; ¢ 0s mestresretiraram para um mundo separado de awe cuisine © grasses tmatinées, O pattdo da Rus Saint-Séverin comia uma comida diferent, inha um horéio diferente falava uma lingua- gem diferente, Sua mulher e as fihas flertavam com abbés {abades) mundanos, Tinham_bichinhos de _estimagio. Obviamente, o burgu’s pertencia a uma subculture dife- rente — 0 que fgnificava, acima de tudo, que nfo. trabe- Thava, Ao apresentar seu relato sobre o massacre de gatos, Contat deixou claro 0 conlraste entre os universos do tra balhador e do patrio, que se faz sentir em toda a narra “Operirios, aprendizes, todos tabulham, 6 os patrGes € 12 8 patroas gozam a dogura do sono. Isto deixa Jerome e Liveilléressontidos, Decidem no ser os tnicos infelizs. Querem_ver seu patrio e patroa como companheiros (@sociés)"* Ou seja, os rapazes queriam restaurar um pssado mitico, © tempo em que mestres e dependentes trabalhavem em amigével astociagao. Também podem ter pensado na mais recente extingio das gréfices: menores. Entio, mataram 05 gatos. ‘Mas, por que gatos? E por que a matanga foi tio cergragada? Essas perguntas nos levam para além das consi- deragdes referentes Bs relagGes de trabalho no inicio dos ‘Tempos Modemos, conduzindo-nos 0 obseuro tema dos rituals e do simbolismo popular. cielos rtuais que marcavam 0 calendério do homem do inicio dos Tempos Modernos."” O mais importante desses cislos era 0 do carmaval ¢ da quaresma, um periodo de Folia seguido por outro de abstinéncia, Durante o carnaval, wm 85 Fegeas normais de com> portamento e, de ume manera ritual, em tumultuados des- files, invertiam a ondem social, ou a viravam de cabega para bio, O camaval era um periodo de critics, para os ‘grupos jovens, particularmente os aprendizes, que se organi- zavam em “abadias”, dirigidas por um prctenso sbade, ou tun tei, © faziam charivaris ou passeatas busleseas, com rmisica grosseira, eujo objetivo era humilhar maridos enga- dos, maridos espancados elas mulheres, mulheres casa- des com homens mais jovens ou quslquer um que petsonficasse uma infracdo das normas tradicionais, Car- peval era a temporada da hilaridade, da sexualidade, e 08 jovens se esbaldavam — um periodo em que 2 juventude fevtava as fronteiras socials, através de ireupeSes limitadas ddedesordem, antes de ser outra vez assimilada pelo universo de ordem, submissfo e seriedade da quaresma, Tudo ter- us rinava na Terga-feira de Carnaval, ou Mardi Gras, quando ‘um boneco de palha, o Rei do Carnaval, ou Caramantran, era julgado e executsdo, num ritual. Os gatos desempenha: vam um papel importante em alguns charivaris. Na Borgonha, 2 multidéo incorporava a tortura dos gatos 2 sua mésica grosseirs, Enquanto zombavam de um marido enganado, ou de algima outra vitima, os jovens passavam jum gato de mio em mio, arrancando Seu pélo para faxé-lo tuivar. Faire le chat, era como chamavam s isso. Os aleries ‘chamavam os charivars de Katzenmusik, trma que pode terse originado nos wives dos gatos torturados.™ (Os gatos também figuram no ciclo de Sio Jodo Batista, ‘que ocoria em 24 de juno, na acasibo do solsticio de veréo. Multiddes faziam foguciras, pulavam sobre clas, dancavam ‘em toro @ atiravam dentro objetos com poder mégico, na cesperanga de evitar desastres conseguir boa sorte durante ‘resto do ano. Um objeto favorito eram os gatos — gatos amarrados dentro do sacos, gatos suspensos em cordas, ou fos queimados em postes. Os parisienses gostavam de incinerar sacot chelos de gatos, enquanto os Courimauds {cour & miaud, ou cagadores de gatos) de Saint Chamond preferiam correr atrés de um gato em chamas, pelas russ, Em partes da Borgonha © da Lorena, eles dancavam em toro de uma espécie de mastro em chamas ao qual esteva tamarrado um gato. Na regido de Metz, queimavam uma dzia de gatos de uma s6 vez, numa cesta em cima de uma fogueira, A ceriménia realizava-se com grande pompa na propria Metz, até ser abolida, em 1765. Os digntarios da cidade chegavam em procissio & Place du Grand-Sauley, acendiam 3 pir ‘ire de carabineiros da guarnigd0 disparava uma seraivada de balas, enquanto os gatos desa- pareciam uivando nas chamas. Embora a prtica variasse de tum lugar para outro, os ingredientes, em toda parte, eram ‘9s mesmos: um feu de joie (fogucira), gatos e uma aura de Iilariante caga &s bruxas.°* 14 © mand vite de ears pr Bt mam dese cara. 1 fad cove de Bae Note, Pr ‘Aléim dessa cerimbnias gerais, que envolviam eomuni- hides inteiras, 0s artesdos colebravam ceriménias pecuiares {sua profissio, Os tipggrafos faziam procissSese festejos fem honra de sev patrono, Sio Joio Evangelista, no dia do sunt, 27 de dezembro, € no aniversério de seu. martiro, 6 de maio, quando se realizava o festival de Saint Jean Porte Latine, Por yolta do séeulo XVIII, os mestres haviam tclutdo os oficsis assalariados da confraria devotada ao tanto, mas os trabalhadores continuavam a realizar eerimd nas em suas capelas."” No dia de Sio Martinho, 11 de novembro, eles faziam um ritual de julgamento, seguido de tuna festividade, Contat explicou que a capela ere uma paquena “repiblica” que governave a si mesma de acordo fam seu e6digo de conduta proprio. Quando um operério wolava 0 o6digo, 0 capataz, que era o chefe da capela © nio parte da administra, anotava uma mutta, num fiché= tio: deixar uma vela acesa, cinco sous; meterse em brigns, us nds livres; ultrajar © bom nome da capela, tes libras; € assim por diante. No dia de Sio Martinho, 0 capataz lia ‘alto as multas ¢ as cobrava, Os teabsthadores, algumss vezes, apelavam a um tribunal burlesco, integrado_ pelos “amtigos” da capela mes, no fim, tinham de dar o dinheiro, ‘em meio a mais balidos,batidas de instrumentos e risadas selvagens. As multas serviam para pagar comida e bebida ha taverna favorita da capela, na qual a baderna continuava, até tarde da noite.° ‘A cobranga de impostos ¢ a comensalidade earacteri- ))zavam todas as outras ceriménias da capela. Tributos ) especiaise festividades assinalavam a entrada de um homem ‘ne oficina (bienvenue), sus saida (conduite) e até mesmo seu easamento (droit de chevel). Acima de tudo, essas come- ‘moragées acompanhavam 0 progresso de um jovem da ceondigio de aprendiz para a de oficial asalariado, Contat desereveu quatro deste rituas, sendo os mais importantes © primeiro, chamado “o uso do avental". © 0 ultimo, @ {niiagdo de Jerome como compagnon habilitado, ‘© uso do avental (la prise de tabier} ocorreu logo de- pois que Jerome ingressou na oficina, le teve de pagar ses bras (cerca de ts dias de sls, para um asselariado comum), num Bolo, que os outros ssalariados suplementa- ‘yam com pequenes pagamentos seus (fare la reconnaissance). Depois, « capola encaminhou-se para sue taverna favorita, Le Ponier Fleury, na Rua de la Huchette. Emissiries foram despachados para adquiri provisdes voltaram carregados de plo © de carne, apss pregasées aos donos dos agougues das vizinhangas quantu aos cores dignos de tipdgrafos © os gue deviem ser deixados para os sapateires. Silenciosos, om 0 copo na mio, os assalarados se reuniram em torno de Jerome, numa sala especial do sogundo andar da taverna. © subcapatez aproximousse, segurando o avental, seguido por dois “antigos", cada um de um dos diferentes “estar 6 casse © a presse. O avental dé linho bem. tecido, novo, foi entregue a Jerome pelo eapataz, que o pegou pela mio e o levou para o centro da sala, © ali se falileiraram atrés dele o subcapataz © os ° capataz fez um curto discurso, colocou 0 avental sobre a taboga de Jerome ¢ amarrou ‘os corddes 3 suas costa fnquanto todos bebiam & sade do iniciado. Jerome, em teguida, sentowse junto aos dignitérios da capela, & cabe- teira da mesa, O restante dos homens aptessou-se em pegs ¢ melhores lugares que puderam encontrar e se atiraram # comida, Comeram sofrogamente, beberam eos borbotdes ¢ pediram mais, Depois de vérias rodadas gargantuescas, tomegaram a falar da oficina — e Contat nos deixa escutar seguinte: _*Nto ¢ verde”, dit um dels, “que os pégrafos sabem Gaorea?) Teabo a certexa de qu, se algo nos apresenase Un ‘Sei tsado, do tamaoho que quterem, nada diarames, «00 foros ono." Ele nto flame teolog nem de testa fito menos de police, Cadn ual fain de sew servo: algun far da care, outro da presse este do timpano, © outro das bolas (& couro part a fata, "Todoe fun ao mesmo Tempo, sem se porta a so euvids ou m8, Finalmente, de manhé cedo, depois de horas de bebe- deira e-gritaria, o= operdrios separaram-se — borrachos, tas cerimoniosos até o fim: “Bonsoir, Monsieur notre prote (capatez)"; “Bonsoir, Messieurs les compositeurs";"Bonsoir, Messieurs’ les imprimeurs”; “Bonsoir, Jerome”. O texto ‘explice que Jerome sera chamado pelo sew primeira nome 1ué ser reeabido como oficial assaarindo.™ Esse momento ocorreu quatro anos mais tarde, depois ide duas ceriménias intermedisrias (a admission & Pouvrage fea aidmission a la banque) e wma grande quantidede de notes. Nao apenas os homens atormentavam Jerome, zom- Inando de sua ignorancia, mandando-o realizar tarefas im | posslveis, tomando‘ alvo de piadas pesadas e esmagando-o 1.7 ‘Parts A Joo @ cee da Bsongut Naan Par com tarefas desagradéveis; também se recusavam a the ensinar 0 que quer que fosse, Néo queriam outro asselariado fem seu grupo de trabalho jé superlotado e, assim, Jerome tinha de ir procurando entender por si mesmo ot truques da profssio. O trabalho, a comida, os slojementes, a falta de Sono, tudo isso ers o bastante para deixar um rapaz louco ou, pelo-menos, fa28-lo ir embora da oficina. Na verdade, cniretan(o, era um tratemento padrio, © nfo deveria ser Tevado demasiado a sério. Contat contow a série de proble- ‘mas que enfrentava Jerome de mancira amena, sugerindo tum género eGmico padronizado, a misire des apprentis.™” As miséres eram tema de relatos em tom de farsa, de versos de pé quebrado ou de enfada, tudo sobre uma etapa da vida que era femiliar & todos que trabalhavam no artesansto achavam engragada, Era uma etapa de transicfo, que assina- Tava a passagem da infincia para a vida adulta. O rapaz tinha de passer por ela com esforgo, para jf ter pago seus ne tributes — os tipégrafos exigiam pagamentos reals, chama- dos bienvenues ow quatre heures, além de trogar dos apren- fizes — 20 aleancar a participagéo integral no grupo profissional, Até chegar a esse ponto, vivia num estado fhuido ow liminar, testando as convengdes adults. através 4 algumas desordens propriss. Os mais velhos toleravam ‘sss Iravessuras, chamadas de copies ou joberies no setor tes grificas, porque as encaravam como desvarios da moci- dude, que precisavam ser vividos antes de o rapaz poder cetablizarse, Uma vez estabilizado, ele jé teria intemal. zado as convengbes de sua arte € adguirido uma nova identidade, muitas vezes simbolizada por uma mudanga em Jerome tornow-se um asslariado passando através do ro final, conpagnonnage. Tomou a mesma forma que 25 tutes ceriménias, uma cslebragio com comida ¢ bebide Gepois que o cendidato pagou uma taxa de iniiagso e os ‘salariados também entraram com a reconnaissance. Mas, esta vez, Contat deu um resuma do discurso do eapataz: (0 novito€ dosinado, Dizem-the para jamais wale seus cle- ps e mamter o indie sali, Se-0 operiio nso cea um prego {Gor wm servo) e stl d_ofiina, mingoem da casa deve fazer forks serigo. pr ‘us prego menor. Ess sS0 a5 Tels ene ot (veriiog A fdeldade e 2 probidnde De so recomendaias. Qual ‘her trbsthador que ical os outos, quando alguna coisa provid, ‘amas maron(eastanha), est endo impret, deve sx poms: Sinenteexpuuo da ofeing, Or epesrios © poem na Tsta nei través de cares icles eviada para todst os ficinas de das provincia.

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