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-significante da Literatura nfio passa mais pelo cédigo das figuras ¢ a literatura moderna tem sua prépria re- térica que € precisamente (pelo menos no momento) a recusa da retérica que Paulhan chamou de Terror. © que se pode conservar da velha retérica nfo € seu contetido, mas seu exemplo, sua forma, sua idéia para doxal de Literatura como uma ordem 'bascada na am- bigilidade dos signos, no éspaco exiguo, mas vertigino- $0, que se abre entre duas palavras do mesmo sentido, dois sentidos da mesma palavra: duas linguagens dé mesma linguagem. 212 SILENCIOS DE FLAUBERT 0 galope de quatro cavalos, cla estava sendo conduzida, hé oito dias, para um pafs novo, de onde no voltariam mais. Eles iam, iam, de bragos dados, sem falar. Muitas vezes, do alto de uma_montanha, avistavam de repente alguma cidade espléndida com céipulas, pontes, navios, florestas de limociros © cate- drais de marmore branco, cujas torres agudas abriga- vam ninhos de cegonhas. Caminhava-se lentamente por causa das grandes lajes e havia no chao ramalhetes de flores que vos ofereciam mulheres vestidas com co- letes vermelhos. Ouviam-se os sinos, os rinchos dos mulos, juntamente com os murmtrios dos violées © 0 barulho das fontes cujo vapor, expandindo-se, refres- 213 cava montes de frutas, arrumadas em piramides, 20 ‘pé das estituas pélidas que sorriam debaixo da Agua ‘a jorrar. E depois, um dia, chegavam a uma vila de pescadores onde redes marrons secavam ao vento, 20 Tongo dos penhascos © das cabanas. Af 6 que eles se fixavam para viver: morariam numa casa baixa de teto plano, a sombra de uma palmeira, na curva de um golfo, 8 beira-mar. Passehriam de gOndola, balanga- riam na rede...” Certamente todos reconheceram a célebre pagina de Madame Bovary! em que Flaubert relata os sonhos de Ema quando, tendo-se tornado amante de Rodolfo e acreditando em breve deixar Yonville com ele, cla imagina a noite, em seu quarto, ao lado de Charles adormecido, © futuro deles cheio de viagens e de amo- res romanticos, Thibaudet observa? que excetuando alguns condicionais (que cle nao viu, alids, que em vez do valor modal, exprimiam simplesmente, como na frase ele me disse que viria, o futuro transposto num discurso indireto no pasado), ‘todas as frases dessa pa- gina tém scus verbos no imperfeito também de estilo indireto com valor de presente do indicative marcando a intensidade de uma imaginagdo para a qual “tudo se considera como realizado”. Na seqiiéncia do texto, a yolta realidade nao esta marcada por nenhuma ruptura temporal, o que constitui, diz com razéo Thi- baudet, um modo de tornar esse sonho tio presente quanto os ruides do quarto: “...isso tudo se balan- ava no horizonte infinito, harmonioso, azulado, ¢ co- Berto: de sol. Mas a crianga comegava a tossir no ber- go ou entfio Bovary roncava mais forte, e Ema s6 ador. mecia a0 amanhecer, quando a aurora clareava as vi- dracas e j4, etc.” ‘A observago de Thibaudet sobre 0 emprego dos tempos pode ser completada e corroborada por uma outra, que sera feita sobre 0 contetido © a natureza da descrigio com que Flaubert quer restituir — ou constituir — 0 devaneio de Ema. Trata-se realmefite, queremos insistir, nao de um_sonho, enquanto dor- mia, mas de um devaneio de Ema acordada; Flaubert 08 res completes. Ed. d Seuil, 1964, tomo I, p. 640. col sbtderae Baise Iadleesae cobtcsSi as ‘noas nopuinieseeforemte a ein wala, @) Gustave Flaubert. Cattimard, p. 252. 214 diz estranhamente que, enquanto Charles, ao lado dela, mergulhava no sonho, Ema “despertava em outros so- nhos”, Nessas circunstancias s6 podemos surpreen- der-nos da nitidez e da precisio de certos pormenores, como os ninhos de cegonhas nas torres agudas, as gran- ‘des lajes_ que obrigavam a andar devagar, os coletes Yermeihos, o vapor das fontes, as piramides de fru- tas, as redes marrons, etc. A versio anterior fixada pela edigéo Pommier-Leleu guarda mais alguns efei- fos desse tipo, suprimidos por Flaubert na sua redagao definitiva: as’ mulheres tém trancas negras; ao rutdo dos sinos, dos mulos e das fontes, vem juntar-se 0 rogar do hébito dos monges, e sobretudo essa frase ca- Tacteristica: “O sol batia em cheio sobre o couro da capota e a pocira, que turbilhonava como fumaca, es- talava-Ihes nas gengivas”. Uma personagem capaz de, na imprecissdo do sono, perceber tais pormenores com tal acuidade vai além do verossimil em geral. O co- mentario de ‘Thibaudet, que lembra Perrette et le pot au lait (“Quando o tive”!) © vé nesse poder de Fusdo um traco especificamente feminino, ¢ de uma exatiddo contestavel. Pode-se entdo, com maior mo- deracéo, atribuir a Flaubert uma intengio de ordem psicologica que visava A personalidade especial de Ema. Estaria querendo mostrar, através desse luxo estranho de pormenores, o cardter alucinatério de seus sonhos, um’ dos aspectos da patologia bovarista. Ha certa- mente uma dose de verdade nessa interpretagio, mas Gla ndo € totalmente satisfatéria. Um pouco mais fadiante, quando Ema realmente doente, depois da trai- fio de Rodolfo, cai numa crise de devogao mistica, Flaubert apresentara suas visdes de uma mancira mui- to mais objetiva — e mais tradicional — escrevendo: “Bato ela deixou cair de novo a cabeca pensaudo ouvir no espaco o canto das harpas serdficas ¢ avistar hum céu azul, sobre um trono de ouro, no meio dos santos que seguravam palmas verdes, Deus Pai res- plendente de majestade que, com um sinal, fazia des- Ger na terra anjos de asas de chamas para leva-la em ‘seus bragos”. Na impreciséo dos pormenores, a natu- reza convencional deles, ¢ aquele pensando ouvir (com- parar ao ela era levada de ha pouco) que os colocam, (3) Madame Bovary. Nova versio elaborada_com 9s manuscritos de Rover oar Sean Pominiet © Gabricle Pele, Cory 149, p. 431. 215 inequivocamente, no plano do irreal, vemos que a alu- cinacao, ou a aparigao é dada aqui" com uma forca de ilusdo muito inferior A que Flaubert concedia a um sim- ples sonho. A interpretacdo psicolégica parece entfio um tanto defeituosa. Aliés, podemos encontrar na Education Sentimentale efeitos do mesmo tipo em Frédéric, que, mesmo asgemelhando-se a Ema pela tendéncia ao devaneio, esti longe de possuir a mes- ma capacidade de ilusio: Frédéric nao é bovarista, é um sonhador de vontade fraca mas, no fundo, Iticido. E dele, no entanto, que Flaubert escreve: “Quando ia ao Jardim Botanico, a vista de uma palmeira arrasta- va-o a pafses distantes, Os dois viajavam juntos, mon- tados em dromedérios, sob a tendinha dos elefantes, na cabina de um iate, éntre arquipélagos azuis, ou lado a lado sobre dois mulos com sininhos, que tropecavam na_grama, entre colunas quebradas”’> Aqui também a precisdo dos pormenores — do ultimo, especialmente ultrapassa a verossimilhanca do pretexto. A continua- co da cena mostra-nos a imaginagao de Frédéric al mentada, agora, pela presenca de uma apresentacao ex- terior: “As vezes ele se detinha no Louvre diante de velhos quadros; e sua amada, beijando-o mesmo nos séculos j4 desaparecidos, substituia as personagens das pinturas. Tendo a cabeca um chapéu medieval, cla rezava de joelhos atrés de um caixilho de chumbo. Senhora das Castelas ou das Flandres, mantinha-se sen- tada com uma gola de pregas engomadas e um vestido armado com barbatanas e franzidos estufados. Depois descia alguma escadaria de pérfiro, entre senadores, sob um dossel de plumas de avestruz, num vestido de brocado”. Os clementos visuais —’ gola_pregueada, barbatanas, pérfiro, plumas de avestruz, brocado — sao dados aqui pelo quadro, bastando a Frédéric ope- rar a substituicfo das personagens representadas por Madame Arnoux; mas o tom da descrigio nfo mudou ena iltima frase: “Outras. vezes, ele a imaginava com calga de seda amarela, sobre as almofadas de um ba- rém”, nada indica se 0 devaneio recuperou sua auto- nomia ou se continua a parafrasear umaptela de museu: a visio € a mesma. Quer Frédéric olhe um quadro, quer imagine uma cena fantéstica, a forma e o grau (4) 1 p. 646. ) i,"5 33. 216 de presenga so idénticos. B assim que na cena de Ma- dame Bovary citada no inicio, a passagem do sonho & realidade era feita sem mudanga de registro narrativo € sem descontinuidade substancial. A versio Pommier- -Leleu dizia: “Mas a crianca de repente comecava a tossir no berco, ou Bovary roncava mais alto ou a luz da lamparina ao apagar tremulava alguns minutos no copo de dleo...” A supressio do de repente re- forgou evidentemente 0 efeito de continuidade (€ pro- va que esse efeito é intencional), mas podemos lamen- tar a supressdo da lamparina que se harmonizava pre- ciosamente com o murmtrio dos violes e o rufdo das fontes imagindrias. Concordancia dissonante, quando se consideram as significacdes afetivas entre as percep- goes da viagem romanesca (irreal) e as da vida pro- saica (real); mas o importante é que a dissonancia possa acontecer, isto 6, que as duas séries de percepgies vibrem aqui da mesma forma, no mesmo espaco; ¢ se quisermos considerar apenas a intensidade de sua pre- senga sensivel, essa lamparina que crepita no seu copo de 6leo nao estragaria de forma alguma o cenério do devaneio de Ema. ‘Um tal excesso de presenga material nos quadros geralmente totalmente subjetivos em que a realidade exigiria ao contrério evocacdes vagas, difuses, impalp4- veis, € um dos aspectos mais marcados da escritura de Flaubert, e pode ser encontrado em muitas outras paginas de Bovary ou da Education. Vejamos uma lembranga de Frédéric, cuja precisio paradoxal vem antecipadamente sublinhada — ¢ portanto justificada — por Flaubert: “Toda a viagem voltou-lhe & memé- ria de uma forma tao clara que ele percebia agora no~ vos pormenores, particularidades mais fntimas; sob a iiltima dobra do vestido (trata-se de Mme Amnoux),. © pé aparecia numa fina botinha de seda -marrom; a tenda de algodao formava um dossel sobre sua ca- beca e as bolinhas vermelhas da beirada balangavam & brisa, perpetuamente”.* Percebemos, porém, que @ motivagao psicolégica em nada diminui o efeito estra- nho de tal quadro — ou melhor, a sensagao irrepri- © Mp de uma viséo que o autor acaba de declarar puramente subjetiva, No cinema, uma seqiiéncia de lembranga nunca é sentida como tal pelo espectador durante toda sua du- rago (a nflo ser que artificios de escritura, alids aban- donados hoje, como imagens vagas, aceleradas ou em camara lenta, etc., venham. a marcé-la de forma acen- tuada). A idéia de que “a personagem esté-se lem- brando” funciona como uma ligacdo com o que prece- de, pois a seqiiéncia-lembranga é sentida como uma volta atrés, sem diminuigo do sentimento de realidade, isto é, como uma simples manipulagao da cronologia, como quando Balzac ou Dumas dizem: “Alguns anos antes, nosso her6i, ete”. E que a irrecusayel presenga da imagem opée-se a qualquer interpretaco subjetiva~ dora: essa Arvore que vejo sobre a tela € uma arvore, nio pode ser uma Iembranca — © muito menos um fantasma de Arvore. © estilo de Flaubert parece mui- tas vezes tao refratario a interiorizagaio quanto a ima- gem cinematografica. Talvez mais, pois o cinema 36 pode contar com a imagem a o som, e a escritura flau- bertiana joga, por meio da tela da representagao verbal, com todos os meios sensiveis (tactil, especialmente) da presenga material . Essa bota de seda marrom, aque- las bolotas vermelhas balancando a brisa, perpetua- mente, por mais que tivéssemos sido prevenidos € soli- citados por Flaubert, nao podemos, como Frédéric, senti-los como fatos da meméria: para nés. eles cons- tituem objetos presentes e atuais € por isso que es se texto, na leitura, nao tem o valor de uma lembran- ca, mas de um verdadeiro flash-back. De forma que as viagens imaginarias de Ema nao sao para nés nem mais nem menos imagindrias que sua vida real em Yonville VAbbaye: Ema desce da gondola ou da rede e encon- tra-se em seu quarto, onde a lamparina crepita no seu copinho de dleo. E se isso é possivel, foi evidéinte- mente porque Flaubert viu ou imaginou ambas (a via- gem imagindria e a vida real) da mesysd maneira e no mesma nivel; foi_também, sem diivida, porque num certo sentido, a g6ndola, a rede, o quarto, a lamparina, © copinho, Ema Bovary sdo igualmente e ao mesmo nivel apenas palavras impressas no papel. 218 Deixemos, porém, essas evocagGes de lembrancas ‘ou de fantasmas para examinar uma ordem de represen- tagéo mais ambigua, em que a intervengo da perso- nagem parece menor © conseqiientemente, maior o do autor. Temos duas breves descricdes que nio perten- cem totalmente nem a ordem da subjetividade nem A da objetividade, mas sim a uma espécie de objetividade hipotética. A primeira encontra-se na versio Pommier- -Leleu de Madame Bovary. Ema esté com Charles no teatro de Rouen, ela acaba de sentar-se em seu cama- rote e instala-se “com a desenvoltura de uma marquesa, de mulher de castelos, e como se tivesse na rua sua equipagem e, atrés de si, um criado cheio de galdes carregando no brago uma pele de arminho”? A evoca- gao — breve, mas aqui também de uma espantosa hitidez — dos acess6rios da marquesa é introduzida por uma locugéo comparativa — condicional de tom decididamente itreal: como se tivesse, mas o criado cheio de galdes © a pele de arminho aparecem com tanta precisio como se 0 camarote de Ema fosse ocu- pado por uma marquesa real. A hipétese estaria na cabeca de Ema? Sem diivida: ela empertiga-se no pra~ zer e na vaidade da primeira ida ao teatro © visivel- mente representa o papel de marquesa; as particulari- dades vém da idéia que cla tem da vida de uma cas- tela. Entretanto percebemos claramente que a evo- cacao nao é puramente subjetiva: Como se traduz o mi- metismo de Ema nao sem acentuar ironicamente seu traco de afetag%o pueril e a verso definitiva conserva- r essa indicagdo numa redacdo concentrada: “Ela curvou-se com uma desenvoltura de duguesa”.* Flau- bert ndo esté, pois, inteiramente ausente dessa frase © a visio do criado com pele de arminho volta-lhe tanto quanto a Ema. Em outro exemplo, a metivacdo psi- colégica torna-se visivelmente mais’ fraca: durante a festa em casa de Rosanette, uma moca escarra sangue diante de Frédéric e, apesar da insisténcia dele, ela recusa-se a entrar em casa para tratar-se: “Thi ‘para qué? tanto faz isso ou outra coisa! a vida nao € tao divertida! Entao ele estremeceu, dominado por uma tristeza glacial, como se tivesse visto mundos inteiros de misé- P47. © 1p 649. 219 ria e de desespero, um aquecedor de carvao perto de uma cama de vento ¢ os cadaveres do necrotério, de avental de couro, com a torneira da 4gua fria a Ihes los”. Novamente aqui 0 como se introduz uma visio hipotética. Mas desta vez nada leva a pensar que o termo de comparac&o ou a prépria visio encontra-se no espfrito da personage! Como se tivesse visto, mas no vé provavelmente nads Flaubert que compara seu arrepio ao de alguém que tivesse visto um aquecedor de carvao perto de uma cama de vento, cadaveres de aventais de couro, essa torneira de agua fria que escorre — no presente do indicative, numa frase no condicional composto! — sobre os cabelos. Esse quadro macabro, em primeiro plano, 6 pertence evidentemente a Flaubert. A im- pressio de miséria glacial sentida por Frédéric levou ‘© autor para longe do seu heréi, para longe de seu ro- mance, numa visdo de Necrotério que, durante algum tempo, vai absorvé-lo totalmente numa espécie de fas- cinagao horrorizada, de éxtase mérbido; e a compara- (io nao tem aqui outro efeito — outra finalidade, tal- vez — sendo quebrar ¢ interromper, durante esse mo- mento, 0 andamento da narrativa. “Muitas vezes, a propésito de nao sei qué, de uma gota d'dgua, de uma conchinha, de um cabelo, vocé estacou, imével, com as pupilas fixas, 0 coraco aberto. © objeto que vocé contemplava parecia avangar sobre vocé, & medida que vocé se inclinava para ele, tacos se estabeleciam; vocés se abragavam um ao outro, se tocavam por inumerdveis ¢ sutis adesbes... voces se interpenetravam em igual profundidade e uma cor- rente sutil passava de yocé para a matéria, enquanto a vida dos elementos o dominava lentamente, como uma seiva que sobe; um grau a mais © vocé passaria a ser natureza ou a natureza passaria a ser voce”. Assim fala o Diabo, falando a Santo Antio, no episédio spinozista da primeira Tentagdo,” © 0 eremita reconhece imediatamente a verdade dessa andlise: EB verdade, muitas vezes senti que algo maior que eu mis- Mv. 53, G0) “TB ae 220 turava-se a meu ser; pouco a pouco eu me abandona- va ao verde dos prados e a correnteza dos rios que eu via passar; endo sabia mais onde se encontrava minha alma, de tal forma ela era difusa, universal, ex- tensa!” ‘Todos os comentaristas de Flaubert concordam em ver nessa passagem um eco das disposigdes pessoais de Flaubert. Ele atribui a si mesmo uma “faculdade de percepciio especial”* Experimenta “quase sensa- ges voluptuosas sé em ver, mas quando (vé) bem”. ‘A Louise Colet ele recomenda uma maneira de ver profunda, uma penetracao do objetivo “pois € preciso que a realidade exterior entre em ns de forma a fazer “hos quase gritar...” © numa frase muito parecida & que atribui ao Diabo na Tentacao, escreve: “A forca as vezes de olhar uma pedra, um animal, um quadro, tive a sensaciio de penetrar neles. As comunicacSes inter-humanas néo sdo mais intensas”." As obras de juventude dao abundantes provas desses momentos de @xtase vividos por Flaubert diante do espetaculo da na- tureza e especialmente do mar a luz do sol ou do Tuar. Testemunhos diretos na Voyage en Corse de 1840: “Tudo em nés palpita de alegria ¢ bate as asas com os elementos, ligamo-nos a eles, respiramos com cles, a esséncia da natureza animada parece penetrar-nos num himeneu delicioso. ..”; em Par les Champs et par les Greves: “Rodopidvamos nossa alma na profusio desses esplendores, alimentévamos os olhos, abriamos as na- tinas, abriamos os ouvidos... De tanto enchermo-nos dela, penetrar nela, tornévamo-nos natureza também, dilufamo-nos nela, sentiamos uma alegria enorme; gos- tarfamos de afogar-nos nela, ser tomados por ela ou carregié-la_em nés”;# testemunhos transpostos, em Smarh: “Tudo o que cantava, voava, palpitava, irra- diava, os passaros nos bosques, as folhas que tremem ao vento, os rios que correm nos prados esmaltados, rochedos’ dridos, tempestades, tormentas, ondas espu- mantes, areia perfumada, folhas de outono que caem, neves sobre os timulos, raios de sol, luar, todos os cantos, todas as vozes, todos os perfumes, todas essas coisas que formam a vasta harmonia que se chama na- (11) Conespondance,, £4. Conard, t. IE, p. 270. GR Sarieeaei comsipendance por Genevieve BoMttme, Scull, BR: 33, 134, EL. “OS: i, "bp: 45,502. 221 tureza, poesia, Deus, ressoavam em sua alma, vibra- vam em longos cantos interiores que exalavam atra- vés de palavras esparsas, arrancadas”;" em Novembre: “Gostaria de ser absorvido pela luz do sol e pertler-me nessa_imensiddo azul, com © cheiro que se evapora da superficie das ondas, ¢ fui entao tomado de uma ale- gria louca e pus-me a andar como se toda a felicidade dos céus tivesse entrado om minha alma... A natu- reza apareceu-me bela como uma harmonia completa, que 56 0 éxtase pode ouvir... Senti-me vivendo feliz © forte, como a Aguia que olha o sol e sobe em seus raios”."5 Essa contemplagio extética, que ora reveste a forma de uma extrema concentragao (“De tanto olhar uma pedra senti que penetrava nela”) ora, a de uma expansao infinita (“Nao sabia mais onde estava minha alma de tal forma ela estava difusa, universal, derrama- da”), Flaubert interpreta-a geralmente, como 0 Diabo de Santo Antao, num sentido “pantefsta”, como 0 si nal de uma harmonia e de uma ligacdo_ universais: “Nao somos feitos com as emanacées do Universo? A luz que brilha no meu olho foi talvez tirada do fogo de algum planeta ainda desconhecido...”. Mas as vezes ele encontra af, 4 moda proustiana, o sinal de uma lembranca perdida: “Para quem olha com algu- ma atengdo, as coisas sio muito mais reencontradas do que descobertas. Mil nogdes que guardavamos em nés em estado de gérmen, crescem ¢ tornam-se precisas, como uma lembranga renovada”.” Mas que dizer quando essa impressio de reminiscéncia nos domina diante de um espetéculo absolutamente novo, que nos traz conforme a Voyage en Corse, uma espécie de lem- branca de coisas que eu nao tinha visto”?" Talvez a origem dessa lembranca deva ser procurada nao no passado vivido, mas na surda reserva de experiéncias Rio situ4veis que o passado onirico constitui. “‘Sonha- -se antes de contemplar, dir Bachelard. “Antes de ser um espeticulo consciente, qualquer paisagem & uma experiéncia onirica. S6 se olham com paixao ts- tética’ as paisagens que forem antes vistas em sonho”.” ap bp. 2s ° 83h Bo. Beanr. 833 attics Baiting, p. 121. 4D} Gorm Conard 149, (18) Geinines completes Ti, p. 483, O83 Peer ee Ree 86, Flaubert conheceu enormemente a experiéncia da _vi- so onirica precedendo o espetaculo real; e a viagem ao Oriente, por exemplo, foi muitas vezes para ele apenas uma volta aos lugares com que cle tinha sonha- do durante a adolescéncia, como o heréi de Novembre ou o da primeira Education sentimentale. “Muitas ve- zes, escreve ele do Egito a sua mie, é como se eu reencontrasse de repente velhos sonhos esquecidos”.” E muitos outros lugares, que nao tinham sido traba- Ihados preliminarmente pela imaginagaio de forma téo consciente, parecem ter tomado, na visio de Flaubert, uma profundidade © uma ressonfncia que sugerem 0 pano de fundo de uma contemplacao interior. Consi- deremos, por exemplo, a intensidade fantastica que ele confere localidade de Quimperlé* Toda a cidade aparece como que banhada, recoberta, vista por trans- paréncia através da toalha uniforme de seus dois rios, Sobre os quais curvam-se juntas grandes plantas esguias. Flaubert, nfo esqueceu essas particularidades que vere- mos novamente numa passagem de Madame Bovary.” ‘A abundancia das descrigdes n&o correspondem pois somente, como para Balzac por exemplo, a ne- Cessidades de ordem dramitica, mas aquilo que ele mesmo chama de amor pela contemplacdo.» Encon- tram-se também em sua obra alguns quadros descritivos, como o de Yonville, no inicio da segunda parte de Madame Bovary, que se justificam pela necessidade de dar A ago ¢ aos sentimentos uma espécie de mol- dura explicativa: € preciso conhecer o cenério de Yon- ville para entender © que seré a vida de Ema ali. Mas na maioria das vezes faz-se a descrig&o pela descricfo, As expensas da acio que ela menos esclarece que, di- riamos, procura interromper ou deixar para depois. Salambé inteiva é 0 exemplo bem conhecido da nar- rativa esmagada pela proliferagio suntuosa de seu préprio cenario. Mas esse efeito de imobilizagéo por ser menos macico € talvez mais sensivel numa obra como Bovary, onde uma tenséo draméatica, embora muito forte, incessantemente reprimida por pausas descritivas de uma admirdvel gratuidade. (20) Corr. Conard, t. IL, p. 147. (BE Getrines ‘compitier i,” p. 597. 2) 9 G06, (BE) Exbaite Bioueme, p. 190. 223 Maxime du Camp conta* como Louis Bouilhet (ja responsavel pelo enterro do primeiro Santo Antao em 1849) obteve de Flaubert 0 sacrificio de “muitas frases parasitas” ¢ de “muitos hors-d’oeuvre que dimi- nufam 0 ritmo da acdo”; cita o exemplo do brinquedo oferecido por Charles aos filhos de Homais, cuja des- crigio teria ocupado, pelos célculos, cerca de uma de- zena de paginas. Na versio Pommier-Leleu, ela ocu- pa somente uma,® e no podemos entender em que a supressdo desse texto satirico-pitoresco, que Thibau- det (sem conhecé-lo) comparava com razdo as descri- Ges do boné de Charles ¢ do bolo arquitetural do ca- Samento em Bertaux, péde fazer a Flaubert, como diz du Camp, um “‘inestimavel favor”. E verdade que s6 temos talvez uma versio j4 reduzida daqueles “hors- -d’oeuvre”, mas como nao lamentar a supressio das dez paginas de que fala du Camp e que seriam neces- s4rias “para compreender aquela maquina complicada, que representava, creio, a corte do rei de Sido”? A docilidade com que Flaubert, embora_protestando, clinava-se diante das censuras de Bouilhet tem alguma coisa de singular e é impossivel avaliar hoje totalmen- te 0s efeitos dessa influéncia castradora. Pelo menos a comparagiio das versdes de Madame Bovary permite imaginar 0 que seria esse romance se Flaubert tivesse ousado abandonar-se as suas tendéncias. Seria fasti- dioso contar todos os momentos de éxtase (no duplo. sentido de arrebatamento contemplative ¢ de suspen- séo do movimento narrative) suprimidos na redacao definitiva que a publicacio dos rascunhos nos devol- veu, mas devemos, ao menos, apontar uma pfgina com = qual o proprio Flaubert, coisa rara, tinha manifesta- do estar satisfeito. Ela bem que o merecia. Situa-se durante a visita ao castelo de Waubyessard, na manha seguinte ao baile. Ema passeia no parque ¢ entra num pavilhdo que tem uma janela de vidros de varias, co- tes. Ela olha o campo através desses vidros: o azul, depois o amarelo, depois o verde, depois o vermelho, depois 0 branco. Essas paisagens furta-cores causam- 22 Sovenirs Mitratnes, e Flauber.. Oeuvres complies, a5). 458, 224 -Ihe sucessivamente emocées variadas e mergulham-na num devancio profundo do qual a tiraré sobressaltada @ passagem de um bando de gralhas. Charles, durante esse tempo visitava as plantagdes e informava-se sobre as Rendas.* Esta Gltima nota reintegra o episédio a0- conjunto do romance fazendo-o manifestar a oposico das duas personalidades; mas também nesse exemplo © desenvolvimento vai além da funcdo contrastiva ¢ expande-se por si mesmo, numa fascinagdo imével de que Flaubert participa talvez mais que sua heroina. “Voeé sabe como passei toda a tarde de anteontem? Olhando 0 campo através de vidios coloridos; precisei fazer isso por causa de uma pagina de minha Bovary © creio que nao seré das piores”.” Uma das caracteristicas desses momentos, em que a narrativa parece umedecer e fixar-se sob aquilo que Sartre chamaré o grande olhar petrificante das coisas, é justamente a interrupeao de toda conversa, a suspen- sio de toda palavra humana, JA observamos aquele “eles avancaram sem falar” do texto de Madame Bo- vary, citado no inicio deste estudo. Até pessoas levia- nas ‘ou grosseiras como Léon, Rodolfo, © proprio Charles, prestam-se a esses siléncios maravilhados. Ve- jamos uma cena entre Ema e Charles, antes do casa- mento: “Tinham-se dito adeus, do se falavam mais... A sombrinha, de seda furta-cor, que o sol atravessava, clareava de reflexos méveis a pele branca de seu rosto. Ela sorria debaixo dela no tépido calor; © ouviam-se as gotas d’4gua, uma a uma, caindo sobre © tecido esticado”.* Uma ‘outra cena, com Rodolfo, durante uma de suas noites de amor, ao luar: “Eles ndo se falavam mais, perdidos que estavam no sonho que se apoderava deles... ouvia-se, por alguns segundos, um péssego maduro que cafa sozinho dos galhos tran gados”.” “Um terceiro, em Rouen, com Léon: “Eles ouviram dar oito horas nos diferentes relégios do bairro de Beauvoisine, que esta cheio de pensionatos, igrejas, e grandes mans6es abandonadas. Ndo se fala: vam mais, mas sentiam, ao se olharem, um murmirio em suas cabecas, como se alguma sonoridade tivesse escapado de um ‘para o outro através de suas pupilas BB Bite adie, 1, G83 1’ Sto. 29) 1 Bet, 225 fixas. Bles acabavam de dar-se as milos, ¢ © passado, © futuro, as reminiscéncias e 0s sonhos, tudo se acha- ya misturado na dogura daquele éxtase”° E na Edu- cation Sentimentale, entre Louise © Frédéric: “Depois, houve um siléncio. Eles ouviam apenas o estalar da areia sob os pés com o murmtrio da queda d’4gua”.* Entre Frédéric e Rosanette: “A seriedade da floresta dominava-os pouco a poaco, e eles tinham horas de siléncio em que, abandonando-se ao embalo das mo- las, permancciam como que entorpecidos numa em- briaguez trangiiila”.* E ainda: “Deitados de brucos, no meio da relva, ficavam um em frente ao outro, olhando-se, merguihando-se nas pupilas um do outro, sequiosos de si mesmos, saciando-se continuamente, depois, com as palpebras semicerradas, sem falar Momentos, como vimos, duplamente silenciosos: pois as personagens deixaram de falar a fim de pér-se 2 escuta do mundo e de seu sonho; e também porque a interrup¢ao do didlogo © da agdo suspende a palavra mesma do romance e a absorve, durante algum tempo, numa espécie de interrogacdio sem voz. Proust punha acima de todo o resto, na Education, a “mudanca de ritmo sem preparago” que inicia o antepeniltime ca- pitulo: nao pela técnica mas pela maneira como Flau- bert, ao conirério de Balzac, liberta esses processos nar- rativos do seu cardter ative ou documentério, “limpa- “os do parasitismo das anedotas ¢ das escérias da his- t6ria. Ele foi o primeiro a musicé-los’.¥. Pode-se portanto preferir a tudo o mais, em Madame Bovary como na Education Sentimentale, esses instantes mu- sicais em que a narrativa se perde e se esquece no éxtase de uma contemplagao infinita. © cardter extratemporal de tais interrupgbes € freqiientemente_sublinhado por uma brusca passagem ao presente. Tivemos um exemplo na visio macabra de Frédéric em casa de Rosanette. Proust cita outro: “Era uma casa baixa, dq um tinico andar, com um.jar- dim cheio de buxos enormes e uma dupla avenida de eastanheiras subindo até o alto da celina de onde se a BS 3) Ft Ghrcmaguen, pp. £5: 226 descortina 9 mar”. © presente € justificével aqui, como diz Proust, pelo caréter mais “duradouro”, © também mais universal, do espetéculo do mar: a pas- sagem ao presente é de alguma forma trazido pela pas- sagem ao indefinido, como nessa outra pasagem da Edu- cation: “Bles atravessavam clareiras mondtonas. (As rochas) multiplicavam-se cada vez mais, ¢ acaba- vam enchendo toda a paisagem... tais como as rufnas desfiguradas e monstruosas de alguma cidade desapa- recida. Mas a firia mesma de seu caos faz pensar mais em vulcées, em diltivios, nos grandes cataclismos desconhecidos”. Veros claramente que essas justifi- cativas gramaticais nfo esgotam 0 efeito de tais mu- dangas de tempo, que séo também mudangas de regis- tro, Uma s6 palavra basta para langar-nos do espaco da acdo (afastamento de Madame Arnoux na Breta- nha, passcio de Frédéric Rosanette na floresta) ao da fascinagio ou do devaneio. Uma citacdo, para en- cerrar esse efeito microscépico, mas, se quisermos exa- miné-lo de perto, capaz de sozinho, como um grio de areia bem colocado, interromper todo um movimento romanesco. Encontra-se no capitulo primeiro da ter- ceira parte de Madame Bovary, no célebre episédio do fiacre, um dos epis6dios de bravura menos justificé- veis de toda a literatura realista. A carruagem, ocupada como sabemos, percorre a cidade em todos os sentidos e em disparada. No meio desse “furor de locomocio”, Flaubert colocou a seguinte frase: “E logo, correndo novamente, ela passou por Saint-Sever, pelo quai des Curandiers, pelo quai aux Meules, ainda uma vez pela ponte, pela praca do Champ-de-Mars ¢ atrés dos jar- ins do hospital, onde velhos de palet6 negro passeiam ao sol, ao longo de uma platajorma toda reverdecida pelas heras, Ela subiu novamente o boulevard Bou- vreuil, etc.”. Imagina-se que nem Ema, nem Léon, nessa velocidade e nessa circunstncia, tém tempo para contemplar uma plataforma reverdecida pelas heras, ¢ além de que as cortinas estio abaixadas. O infeliz cocheiro, cansado e morrendo de sede, tem outras preocupacées. Assim, do ponto de vista das regras da narragao realista, essa_descricao, por mais breve que seja, aqui ainda indefinidamente prolongada pelo 8) Mh p. 160. Citade por Proust, Chronigues, p. 199. Ge) mB ge BL p' 687" Grito ae Genet) 227 verbo no presente, esté tio pouco “em situaco”, tio mal justificada, dramatica ¢ psicologicamente, quanto possivel. Esse ‘primeiro plano imével, no meio de uma corrida ‘desenfreada, € a falta total de habilidade. Na realidade, uma tal ‘inadverténcia_s6 pode significar o seguinte:' esse passcio sexual nao interessa muito a Flaubert e de repente, passando pelos jardins do hos- pital ele pensa em outras toisas. Lembrangas da infan- Cia voltam-Ihe a meméria. Ele revé aqueles “velhos de paleté negro e todos trémulos sobre as muletas, aquecendo-se ao sol, ao longo de uma plataforma ra- chada, construfda sobre os velhos muros da cidade” © nao pode deixar de consagrar-Ihes uma linha ou duas. © resto esperaré. Para nés — seré preciso dizé-lo? — esse segundo de distracdo redime toda a cena, por- que af vemos o autor esquecer a linha de sua narrati- va ¢ deixd-la, escapando pela tangente. Valéry achava Flaubert (na Tentation de Saint Antoine) “como que embriagado pelo acessério com sacrificio do principal”.” Se 0 principal num romance consiste na acdo, personagens, psicologia, costumes, enredo, entendemos perfeitamente como essa aprecia~ 40 pode aplicar-se aos seus romances, de que forma seu interesse pela particularidade gratuita ¢ insignifi- cante pode comprometer, em sua obra, a eficdcia da narrativa. Roland Barthes observa que bastam algumas des- crigdes ndo motivadas para apagar toda a significagao de um romance como Les Gommes: “Todo romance € um organismo inteligivel de uma infinita sensibili- dade: © menor ponto de opacidade, a minima resis- téncia (muda) ao desejo que anima e sustenta toda a Jeitura, constitui um espanto que se estende sobre o conjunto da obra. Os objetos de Robbe-Grillet con- duzem realmente 0 enredo em si ¢ as personagens que ele retine a uma espécie de siléncio da significagao”.” Embora o estilo descritivo de Flaubert, tio profunda- mente substancial, feito de materialidade irradiante, ‘esteja tio distante quanto possivel dole Robbe-Grillet, essas observagdes podem aplicar-se a alguns aspectos (38) Variante daga por Pommicr-Leleu, p. 499. GS} Qetores Pielader ce iep ee? Go} Bat cetigues, "p20 228 de sua obra, E conhecida a frase final de Hérodjade (“Como ela era muito pesada, eles a carregavam alter~ nativamente”), onde toda a hist6ria da execuctio de Sao Jodo Batista vem tropecar e despedagar-se ‘sobre esse advérbio impenetravel, cléusula tao poderosamen- te. insignificante que consegue imobilizar todo o sen- tido da narrativa. Proust notou claramente o ritmo to especial da dicedo flaubertiana, que as pausas tor- mam mais pesado em vez de aliviar. Simétrica, essa divisio monétona que a cada passo deixa cair © recair fa frase, com todo © seu peso sobre a opaca consistén- cia de alguma particularidade inutil, arbitréria, impre- visfvel, “Os celtas choravam por trés pedras brutas, sob um céu chuvoso, no fundo de um golfo cheio de ithotas”;#" e soube admiravelmente reproduzir essa es- cansiio em algumas frases de seu pasticho, as mais be- Jas, talvez, que tenham escrito ambos — ou melhor, nesse encontro excepcional, um atrayés do outro: “Bles se imaginavam com ela, no campo, até o fim de seus dias, numa casa toda de madeira branca, A mar- gem triste de algum rio. Conheceriam o grito do pe- trel, a chegada do nevoeiro, a oscilagéo dos navios, o movimento das nuvens ¢ ficariam horas com seu corpo sobre os jocthos, olhando a maré subir ¢ entrechoc: rem-se as amarras, 14 do terrago, numa poltrona de vi- me, sob um toldo listrado de azul, entre bolas de metal. E acabavam nfo vendo nada mais que duas pencas de flores roxas, descendo até a agua répida que elas quase tocam, na luz crua de uma tarde sem sol, ao longo de um muro avermelhado que desmoronava. . .”# Valéry no podia admitir 0 quinhio de acessério, portanto de arbitrério, que ha nessa marquesa que saiu is cinco horas, e € por isso que a arte do romancista € para cle “quase inconcebivel”. Flaubert, de seu Indo, deixa-se observar (e com ele, seu romance) pelo acessério, Ele esquece a mar- quesa, seu passeio, seus amores, ¢ deixa-se fascinar por alguma circunstincia material: uma porta, atrés dela, que bate ao fechar-se e vibra interminavelmente. E essa vibracfio, que se interpde entre um entrelaca- ap 1, p. 76. (42) Pasticher et Mélanges, p. 22. 229 mento de signos e um universo de sentidos, desfaz uma linguagem e instaura um siléncio. Essa transcendéncia frustrada, essa evasdo do sen- tido para o balanco indefinido das coisas, é a escritu- ra de Flaubert no que ela tem de mais especifico ¢ talvez_tenha sido isso justamente o que ele teve de conquistér com tanta dificuldade contra a facilidade verbosa das primeitas obras. A Correspondance © 3s obras de juventude mostram-no profusamente: Flau- bert sufocava de tanta coisa a dizer: entusiasmos, ran- cores, amores, Gdios, desprezos, sonhos, lembran- gas... E como se nao bastasse, formou um’ dia 0 pro- jeto de nada dizer, uma recusa da expressio que inau- gura a experiéncia literdria. Jean Prévost via no estilo de Flaubert “‘a mais singular fonte petrificante de nossa literatura”; Mafraux fala de seus “belos romances pa- ralisados”: essas imagens traduzem bem o que perma nece como o efeito mais impressionante de sua escri- tura e de sua visdo. O “livro sobre nada”, 0 “livro sem assunto”, ele nao o escreveu (e ninguém o escre- vera), mas iangou sobre todos os assuntos de que fervilhava seu genio uma pesada camada de linguagem petrificada, a “calgada rolante”, como diz Proust de imperfeitos ¢ de advérbios, que ‘possufa sozinha a for- ‘6a de reduzi-los ao siléncio. Seu projeto — ele 0 re- petiu mais de uma vez — era de morrer para o mundo para entrar na literatura. Mas a propria linguagem 86 se torna literatura as custas de sua propria morte, pois precisa perder seu sentido para ter acesso ao si Iéncio da obra. Essa volta, essa virada do discurso no seu avesso silencioso, que € para nds, hoje, exata- mente a literatura, Flaubert foi, em toda evidéncia, o primeiro a tenté-la mas essa tentativa foi para ele quase Sempre inconsciente ou vergonhosa. Sua consciéncia li- teraria ndo estava e ndo podia estar no mesmo nivel que sua obra ¢ sua experiéncia, A correspondance & um do- cumento insubstitufvel pela luz que abre sobre um dos casos mais agudos da paixdo de escrever (no duplo sentido da palavra paixdo), sobre a literatura vivida ao mesmo tempo como uma necessigade e€ uma im- possibilidade, isto é, uma espécie de vocagao proibida: 56 podemos, a esse respeito, compara-la a0 Didrio de Kafka, Mas Flaubert nao desenvolve uma_verdadeira teoria de sua pritica, que continua, naquilo que ela 230 possui de ousado, inteiramente obscura. Ele mesmo achava a Education Sentimeniale esteticamente falha, por falta de ago, de perspectiva, de construcdo. Ele indo via que esse livro era o primeiro a operar aquela desdramatizacao, quase diriamos desromancizagdo do romance, em que comecaria toda a literatura moder- na, ou melhor, ele sentia como um defeito aquilo que para nés € a qualidade maior. De Bovary a Pécuchet, Flaubert nao cessou de escrever romances recusando - sem sabé-lo,* mas de toda sua alma — as exigéncias do discurso romanesco. E essa recusa que nos importa, ¢ mais o sinal involuntério, quase imperceptfvel, de en~ fado, de indiferenga, de distragio, de esquecimento, que ‘ele deixa sobre uma obra aparentemente voltada para uma inutil perfeicdo, que nos chega admiravel- mente imperfeita ¢ como que ausente de si mesma. 43) “Tle devia, na Adueatlon Senstmentale, mostrar antecipads: mont) que s6"‘Seitacl” vem “mais capde, "0, romance nse-romanceado, Gil, indeclig mlatrtoe, coyclo ato ie" No, Seem’ maatenaimente geatesnes, MER tulle, “ide, malo de 1880, retomado em Cridiques, Fasauele, 1917) ne (2, arene, c tte e Lous, lek, 8 Eng egamier soars ha SS ctea “te, me mle, sualone rats Bolle, p- 72) eg € wma coisa, ae, Me edalidade Mteraria, aparece, com "oad ave ese hm asbeeie,, “* pilubert. 6.0" peipelro” = comesiar profunda He,t yurtamenie, a juncdo narrative,” sie entfo essencial no fomance, ‘RESIS quase impereepdvel, mas decisive. 231

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