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50 wm toe Areligiao ea filosofia ‘Todos os estudiosos de Hegel evidenciaram a relacao estreita que o seu pensamento ‘mantém com a religido, quer seja por interpretacdes explicitamente cristas, como as de H. Niel, quer por outras consideradas ateias, como as de Kojéve. Hans Kiing chegou ‘a sugerir que Hegel fracassa no momento de apresentar uma postura filosoficamente auténoma da religiao e que, mesmo nas suas analises histéricas e politicas, Hegel destaca o papel importantissimo que a religido desempenha, segundo o seu juizo. Por outro lado, a diferente interpretacao da relacao da doutrina do mestre relativamente a ‘eligiao crista — além da politica ~ foi o motivo de divisao dos discipulos. As diferentes Classificagoes entre hegelianos de direita, centro e esquerda— por exemplo, as de Lowith ou Serreau ~ costumnam basear-se nas posturas relativas a religiao. Nao podemos ser exaustivos neste tema inesgotavel. destacando apenas aimportancia da religido na historia, na politica ena vida quotidiana da humanidade. A religiao é 0 elemento chave, segundo Hegel, para estabelecer o desenvolvimento historico da humanidade alcancado a cada momento e mostra, «inclusive nas religides mais rudimentares, a forma de espiritualidade que contém». bora Hegel considere que a filosofiaultrapassa a religito— ou sejaintegra-a, formulando-a de um modo conceptual mais adequado -reconhece sempre que, para 0 powo simples no educado, religid0 assume a tarefa primordial de ser a manifestagao do espirito Por isso,na historia humana pensada por Hegel, dos trés momentos do espirito absolute — arte, relighioe filosofia ~,0 segundo 6, destacadamente,o mais presente e aquele que desempenha um papel mais constante e importante. Elogio da religiao. certamente pelo seu conceito de «superacio» (Aufhebung) Hegel nunca considera @ religiio como contraria nem oposta a filosofia; muito pelo contrario, recorda sempre que tém o mesmo conteiido especulativo. No inicio da Encilopédia, diz; «8 filosofia tem, certamente e em prime lugar. 0s seus objectos em comum com a religido. As duas tém a verdade como objectoe certamente no sentido mais elevado, em que Deus é a verdade e apenas ele éa verdade. As duas também abordam o campo do fnito, da natureza edo esprito humano, da sua rlacSo mitua ‘ecom Deus, assim como com a sua verdaden Por isso, Hegel ndo tem dividas em afirmar quea sua tese de que a razao ou o espirito universal governam o mundo pode enunciar se de uma forma religiosa, dizendo que a providéncia divina governa o mundo, ‘Com estas formulasdes, Hegel opunha-se tanto aos fildsofos, que negavam todo o valor 8 religiao, como aos que defendiam a sua autonomia plena endo a queriam subordinar, de nenhuma forma, a filosofia. Por isso, Hegel diz com certa itonia que «nos nossos dias chegou-se a um ponto em que a filosofia devia defender o conteiido religioso contra um determinado tipo de teologia». Hegel est a pensar, evidentemente, em Jacobi, ‘Schleiermacher e na tradigao pietista, que queriam reduzir a religi3o a uma fé ndo racional, a uma intui¢ao nao formulavel ou a um sentimento que repele a razao, Pelo contrario, Hegel tern uma concepcao muito mais préxima dos iluministas como Lessing ou Turgot, que valorizam 0 papel educativo da religigo na histéria, apesar de aceitarem que ja tinha chegado 0 momento em que a Filosofia finalmente ultrapassasse areligido. Em summa, diz Hegel, wo tema da historia é que a religido apareca como raza0 humana, que o principio religioso ~ que reside no homem ~ seja realizado também como liberdade temporal. Desta forma, fica suprimida a divisdo entre o interior do coracao e a existéncia», Assim, como bom luterano, Hegel firma que a Biblia é «um livro fundamental para a instrugao do povo», considerando a traducao feita por Lutero, olivia nacional» da Aleman Areligido dirige melhor 0 povo nao educado do que a filosofia ‘Apesar da profunda coincidéncia dos seus conteddos, fiiosofia ereligiao diferenciam-se sobretudo no facto de esta habitualmente usar expressdes sentimentais € repre sentativas, enquanto a «filosofia formula com maior rigor conceptual e coloca pen samentos, categorias ou, mais concretamente, conceitos no lugar de representagdes», No entanto, sto nao representa nenhum impedimento para que — precisamente por |ss0~a religio tenha maior capacidade de mobilizar as consciéncias e impulsionar a cso aos nao educados. A religiao utiliza uma linguagem muito mais inteligivel para 1 162 hese, os iletrados do que a filosofia; por isso,0 povo a escutou e seguiu desde ha épocas muito distantes. A religido antecipa-se a filosofia. Tal é devido, em primeiro lugar a religiao antecipar-se 4 filosofia na revelacao do absoluto, do divino e do espirito universal. Pois, como diz Hegel, «é necessario que a consciéncia da ideia absoluta seja inicialmente captada, segundo o tempo, sob essa figura [do sentimento, da intuicao e da repre sentacdo] e permaneca assim na sua realidade efectiva imediata como religiao e nao como filosofia». Hegel privlegia a religido, porque «é a primeira modalidade da auto- consciéncia,a consciéncia espiritual do proprio espirito do povo, do universal, do espirito ceme para siexistente, segundo a determinagao que se verfica no espirito de um povo, a consciéncias da verdade na sua determinacdo mais pura e mais completa. Aquilo que posteriormente se encontra determinado como verdade apenas vale na medida em que é adequado ao seu principio na religido.(..) A regio €0 lugar onde 0 povo da a Gefinicao daquilo que entende como verdadeiro» A religiosidade como expressao primeira dos povos. vemos, pois,em segundo lugar, que aceligdo «a expresso mais simples» do principio de um povo Toda a complexa existéncia de um povo resume-se, para Hegel, sua rligiosidade. ‘Areligiosidade de um powo é 0 melhor exemplo da forma da sua esprtualidade, do ser eda sua essncia mais profunda Por vada sua eligi, cada powo no sé tem conscincia do espirito universal, como também adquire consciéncia de si mesmo, do seu préprio ser Areligiio mostra tanto a forma como povo concebe as suas elagdes com Deus € com 0 absoluto~e pelas quais actua-, incluindo o poder politico, o Estado, comoo seu prdprio conceito de si mesmo, da sua autoconsciéncia, Como vernos, Hegel ja aborda a ‘dela de Feuerbach da correlacao entre a autoconscléncia que o homem ou os povos ‘tém de si proprios e da sua consciéncia do absoluto e de Deus. papel reconciliador da religiao entre individuo e Estado. em terceiro lugar a religido também representa de forma mais clara, mesmo para os que carecem de educagao, a necessidade da reconciliacio entre individu e todo ético,entre cidado « Estado. Na famosa nota do capitulo § 552 da Enciclopédia, Hegel afirma que «a ver- FeNsantento a dadeira religiioe a verdadeia religiosidade provém da eticidade e consiste na eticidade pensante». Por isso, a religido é o impulso mais forte e generalizado para a realizacio dessa reconciliago; apesar de a funcao essencial do Estado ser realizar o absolutamente universal, os homens tomam consciéncia de tal tarefa, em primeiro lugar, através da religlio e, apenas mais tarde, da ciéncia -ou seja,da filosofiaE por isso que, considerando ‘como muitos que «as leis tm a sua garantia suprema na religido», Hegel pensa que, os franceses perderam a cumnplicidade do a0 se oporem a religido, 0s revolucion: ovo. J4 no seu escrito juvenil Religido do Povo e Cristianismo, salienta que «espirito do povo, histéria,religi3o e grau de liberdade politica ndo podem ser considerados sepa radamente, dado 0 seu mdtuo influxo e sucesso reciprocos. Estao entrelacados num Vinculo, no qual nenhum deles pode fazer nada sem o outro, e cada um recebe algo do outro». Embora naquela altura atacasse a religiao positiva, dogmatica e hie- rarquico-institucional que tiraniza as consciéncias, na maturidade nao hesita em valorizar a institucionalizacao eclesiastica e quase politica da religido. Embora menos cruamente que Hobbes, Hegel também considera existir uma grande consonancia entre religiao e Estado, o deus espiritual e 0 deus mundano, o espirito absoluto e 0 espirito objectivo. Uma forma universal de reconhecimento do espirito. Porfim,a religito 6 também a forma mais universal e generalizada de reconhecimento do espirito pois, esta em todos os powos sem excepcio,e em todas as pessoas. Hegel contrapoe o breve, ‘embora muito brilhante, florescimento da filosofia grega a permanente —antes e depois ~ presenca da religiio em todos os momentos da historia, em todos 0s povos € na totalidade dos homens. Em contrapartida, a filosofia s6 levanta voo cientifico e ple- namente conceptual quando os acantecimentos softer 0 seu ocaso~a famosa metafora hegeliana da coruja de Minerva ~ € apenas para os poucos filésofos que no mundo 0 s30~€ nao para os homens de acco, como, por exemple, Napoleao. Nas suas Ligdes de Histdria da Filosofia, Hegel afirma: «Como a consciéncia pensante [que é propria da filosofia] nao éa forma exteriormente geral para todos os homens, é 153 oft tr igo pagar to tert necessiirio que a consciéncia daquilo que é verdadeiro, do espiritual, do que é racional assuma a forma da religiao». Podemos sintetizar, pols, dizendo que a filosofia costuma ser compreendida tardiamente e por poucos, enquanto a religiao intervém a todo 0 momento e influencia todos. O cristianismo, a ultima e suprema religio. No entanto, nao podemos ‘terminar este capitulo sem recordar que, para Hegel, em e através das diferentes religides, também se manifesta o desenvolvimento eo progresso do espirito universal, sendo a suprema ocristianismo ~ que Hegel considera que culmina com o protestantismo J razdo essencial, tanto em termos teolégicos como, sobretudo, politicos, ¢ que o cristianismo fornece a conscéncia de que Deus e homem sio um s6. Hegel interpreta a encatnagao de Cristo como simbolo erealizacao da unidade da natureza divina € humana. Esta encarnac3o contém a promessa ~insste Hegel~de que Deus habita em todos 0s homens.0 cristianismo afirma o valor absolute e infnito do homem, 0 qual pode ser admitido através da graca, 8 espiritualidade absoluta. Consequéncia disso, conclui Hegel. é que o homem como tal devera ser valorizado simplesmente por ser hhomem e poser livre. 0 cristianismo,além de econciliar os individuos com 0 absoluto através do culto e da devocdo, como as outras religides, na opinio de Hegel traré a reconcliagao ultima e suprema, sendo portanto a ultima e culminante religiso. 0 cistianismo nao podera ser ultrapassado em contetido;em todo. case, insinua Hegel, apenas na forma existe algo que o ultrapassa, expressando-o especulativamente:a propria filosofia hegeliana Relacdo com a arte e com a filosofia & sabido que a religiso € apenas um dos trés momentos do espirito absoluto, entre o inferior a arte ~€o superior ~afilosofia.Os trés partilham da mesma atencio « expressio «do infinito», «do absoluto» e wdas questdes absolutamente unive Isalse, dado que «sio as diferentes modalidades em que a suprema ideia existe (..) para a consciéncia» sensivel, ntuitiva e imaginativa e especulativa ~ respec tivamente. Em certo sentido, os trés momentos assumem uma importancia se- Pensaenro melhante, assim como a mesma tarefa; mas Hegel distingue-os claramente, dado que se destinam a diferentes «faculdades» humanas: a arte a sensibilidade e aos sentidos, a religiao ao entendimento representativa e a filosofia ao pensamento © 3 razdo especulativa, Daqui nasce a sua diferenca, 4 qual nos referiremos com grande brevidade. Aarte como primeiro momento do espirito absoluto. a arteé apresentada por Hegel intimamente rlacionada com a eligi, inclusive € uma das suas ferramentas privilegiadas, pois ¢ através da arte que a religiosidade se materializa ese torna vsivel A arte é,em parte, a presencializagao da religi3o,tendo por isso um lugar especifico dentro do culto e dos rits rligiosos. religiosidade exterioriza-se através da via do cat, que é, para Hegel «o acto pelo qual a consciénca singular alcanga a unidade com odivino». € dentro do cut que aarte se tornae se materializanareligido para as men- tes ndo educadas; por isso, Hegel diz que a arte - que, como espirito absoluto.é outra forma de unio de abjectvidade esubjectvidade ~ ainda «penetia mais que. religido na realidade eno sensi Eevidente que a maior dependéncia da arte em relacao a natureza e a sensibilidade, pols basela-se na identidade de forma e contedido, a tora inferior para Hegel, 3 religi3o 3 filosofia, A arte é 0 primero e inferior momento do espirito absoluto, sendo ultrapassada em e pela religiao, que a eleva ao utilzé-la no culto, Hegel afitma que. nas ‘suas expresses mais elevadas,a arte cumpre «a tarefa de expressar a religiao; no 0 espirito de Deus, mas a forma de Deus e, com ela, o divino e 6 espiritual em geral. Na arte, deve tornar-se visivel odivino», O papel mediador da arte. segundo Hegel, na historia universal a arte também ecupa um lugar subordinado 3 reigo,sendo crucial sobretudo naqueles momentos ~ como Egipto, india e Grécia - em que a religiosidade ainda necessitava da presenca sensivel.Na arte, toma-se presente esensivela mensagem religisa.na qual «odivino se torna visvel a imaginacao e na intuicao». Aarte «serve deveiculo para essa cons- diéncia [religiosa], dando-Ihe apoio e fortalecendo a aparéncia fugidia com a objectividade aque se revelae passa para a sensagao». Tanto os egipcios como os gregos tém na arte 157 158 mice, a forma de expressaro contetido do espirito, quer seja como representacio do enigma que querem resolver e visualizar- Egipto— quer seja como arquétipoe forma universal~Gréca No entanto~ destaca Hegel -,em ambos 0s casos esquecem a superioridade do espirito em relagao a toda a forma sensivel ou natural, embora esta seja a bela forma grega Por outro lado, Hegel distingue a arte indiana da egipcia e, sobretudo, da grega, por- que a primeira carece de espirito ~ diz -, enquanto a egipcia tenta ja expressar 0 espirito como enigma e, na Grécia, como forma bela universalizavel, paradigmatica © candnica. Segundo Hegel, a arte grega consegulu representar sensivelmente 0 espirito como nunca por ter desenvolvido a «faculdade de adquirir consciéncia do espiriton. O aparecimento da arte indica, pois, que se penetra no mundo do espirito, mesmo quando nao se da ao espirito a propria forma espiritual, «mas a sua re- presentacdo comeca por ser produzida de um modo externo». Hegel chega também a afirmar que a arte «esta no centro do pracesso espiritual», dado que quando 0 espirito & informe, um objecto indeterminado e puramente abstract ~ como entre os judeus e 0s muculmanos -, a arte é insuficiente e considerada pecaminosa. Para Hegel, estes povos recusam a arte porque se negam a concretizar e a dar forma ao espirito A“morte da arte”, Pelo contrario, argumenta Hegel, onde o espirito pode ser representado espiritualmentee ja nao sensiveimente asi proprio no protestantismo, especialmente -a arte religiosa deixard de ser t3o valorizada e tornar-se-a,de alguma forma, wsupérfiua», Num terceiro momento da historia, a arte deixard de ser um sina de desenvolvimento espiritual e& ndo serd a forma principal como os povos avancados Verio espiito Nessa altura, 0s homens terioacedido a uma compreensao doespirito mais especulatva e conceptual e portanto, a arte passar@ a ocupar um lugar subsidiio no culto,na via cultura e dentro do espirito absolut. £Embora ~ ou mais precisamente porque—a arte esteja subordinada a religido na tarefa historica de revelar 0 absoluto e substancial,deixard finalmente de ser necessaria {quando se desenvolver a interioridade humana, Enquanto a arte era o «mestre dos ovosm e ajudava a religido a educare dirigiro pov, cumpria a funcao de manifestar PENSANENTO mL sensualmente o espirito e os deuses enigmaticos ou belos; porém, depois de desen- volvidas a interioridade moral e a subjectividade, segundo Hegel, poder-se-a viver oes. pirito € a religiosidade sem a ajuda da sensibilidade. Ento, produzir-se-a a famosa «morte da arte», que Hegel foi dos primeiros a proclamar, considerando que a arte deixard de ser necessaria e se tornaré uma mera ajuda pedagogica para espiritos ainda nao educados. O triunfo da Reforma ea maturidade da filosofia. evidentemente, Hegel ‘evoluiu relativamente a sua concepcao juvenil exposta no Systempragramm. Ai ret vindicava uma religido sensivel e uma mitologia da razdo que tornassem as ideias es téticas. Desta forma, pensava que se poderia cobriro abismo crescente entre homens esclarecidos e povo simples; além de evitarcairna fia abstraccéo e diviso kantianas, a idetas belas elevariam os homens sem dividir as suas faculdades.A arte era con- siderada como o grande remédio contra a dvis3o, tanto do corpo social entre esclarecidos e iletrados como a interna, em cada individuo, entre razao e sentimento, ‘No entanto, no Hegel maduro, os contributos schillerianos perderam grande parte da sua forga, preocupando-se agora mais com os aspectos especulativos e intelectuais da religiao e da filosofia. 14 no as vé necessariamente envoltas em forma sensivel ou mitolbgica através da arte ou da poesia e inclusive lameenta a forma ainda representativa

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