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0s, Grd-Bretanha e Europa Continental ¢ a base social do desenvolvimento da tas avancadas foi a ‘empresa familiar. Cont problema, a empresa | desenvolvimento da agricultura capitalista néo supde necessariamente unidades produtivas baseadas no uso em larga escata de mdo-de-obra assalariada é um dos principais objetivas deste livro, Apesar da diversidade das questoes tratadas (das sociedades camponesas ao papel do Estado na regulagao dos pregos) o livro estd escrito e organizado de forma a facititar a tomada de contaio do piiblico nao especializado com o tema. Ao final de cada capitulo 0 lettor encontrard conclusdes e resumos pelos quais poderd localizar os assuntos que mais 0 interessam. RAT PARADIGMAS DO. Ricardo Abramovay ESTAO CAPITALISMO AGRARIO EM QU PARADIGMAS DO CAPITALISMO AGRARIO EM QUESTAO Ricardo Abramovay is 12 as Ri direcao de is Oriowaldo Queda “im todos os paises em que a ieee cues ee : agricultura se desenvolveu, mas contribuiu de maneira importante para a distribuicao da renda nacional, as unidades familiares de producio tiveram papel decisivo. Longe se representar atraso econémico ou resquicio do passado, a empresa familiar rural foi o nvicleo basico da propria modernizag40 do campo nos Fstados Unidos, na Gra-Bretanha na Europa Continental. Nao hé qualquer razio histérica que contribua para a visio dominante na América Latina (¢ particularmente no Brasil) de que agricultura familiar € i sindnimo de precariedade técnica, estagnag0 econémica € miséria social. As discusses tedricas estabelecidas neste livro ¢ os estudos de caso por ele contemplados (numa linguagem acessivel 20 ptiblico nao especializado na Area) constituem um convite a que a questio agréria em nosso pais seja repensada, SSTUDOS RURAIS | i Pent PARADIGMAS DO CAPITALISMO AGRARIO| EM QUESTAO RICARDO ABRAMOVAY PARADIGMAS DO CAPITALISMO AGRARIO EM QUESTAO SEGUNDA EDIGAO EDITORA HUCITEC © Direites 1992, de Ricarclo Abramovay. Direitos de publi cago reservados pela Edlitora Hucites Ltda., Rua Gil Eanes, 713 = 0601-042 Sito Paulo, Brasil. Telefones: (011)240-9318, 542-042] e 543- 0653. Vendlas: (011) 530-4832. Fai (011)530-5988, Email: nicitecamondi ISBN $5.271.0207.2 Hucitec ISBN 85.268.0240.2 Unicamp Foi feito 0 depdsito legal. Coredigaio com a Editora da Unicamp Caixa Postal 6074 Cidade Universitaria - Baro Geralto CEP 13083-970 - Campinas - SP - Bra Fone: (019)788.1015 - Fone/Fax: (019)788.1100 Intemet: http://wwweelitoras.com/unicamp i Prémio “Melhor Tese de Doutorad VII Concurso ANPOCS de Teses Universitérias © Obras Literdrias, 1991 da 22 edigaio resentagao, Pl Agradecimentos Inlrodusio Paxred Capitulo 4 OSACO DE BATATAS Capitulo 2 DIFERENCIAGAO OU IDENTIDADE: QUANDO O SACO DE BATATAS PARA EM PE Capitulo 3 AMICKOECONOMIA DO COMPORTAMENTO CAMPONES Capitulo a OS LIMITES DA RACIONALIDADE BCONOMICA Pact Capitulo 5 ESTADOS UNIDOS: UM MITO JRFFERSONIANO: Capitulo 6 NAGRICULTURA FAMILIAR NO PAIS DOS LANDLORDS Capitulo? MERCADO, ESTADO E DESENVOLVIMENTO NA, COMUNIDADE ECONOMICA EUROPEIA, u 1s 19 51 7” 99 135 163, 175, 8 Capitulo 8 AS PARTICULARIDADES DA AGRICULTURA NO DESENVOLVIMENTO ECONOMICO 209 Conclusao 249 Bibliografia 261 PREFACIO DA 2’ EDIGAO © aunmbiente intelectual com selaglo 20 tema deste livra mudou de maneira significativa no Brasil descte que ele foi publicado, nal de 1992, O termo agricultuza familiar incorporou-se a0 voca- bulério das poiiticas puiblicas, ao discurso dos movimentos sociais ea pesquisa voltada ao conhecimento de nosso meio rural, © so, até entio, deexpressdes como “pequena produgio” agricultura “debaixa senda” ou “de subsisténcia” era um sinal claro do ceticismo com que a sociedacte brasileira encarava o destina de sua estrutura social no campo. Tudo pazecia ind luestio agrarian’ no Brasil estava resolvida, que as grandes extensées territoriais trabalhadas por assa- ariados pagos miseravelmente eram a expressio mais completa & acabada do proprio desenvolvimento capitalista no campo, que as formas sociais apoiadas no trabalho familiar seriam forcosamente marginais e seu declinio uma questo de tempo, ‘A publicagio das informagdes do Censo Agropecudiio de 1996 smitira um retcato fiel da importancia social eecondmica daagricul- ‘a familiar no Brasil. Ja esta nitico porém que ela foi capaz de aclquitir um peso politico até aqui inédlito. As ocupagdes de terra ¢ os assentamentos san certamente expressoes do desejo de parte significa- tiva da populace rural de organizar sun vida e seu trabalho em unidades produtivas de carater familiar. Além disso —¢ de maneiza menos espetacular e, portanto, menos visivel aos olhos da midia — wna intensa ¢ molecular atividade organizativa vem-se desenvolven- donointerior doPaiscom baseem agricultores familiares: centenas de Comissdes Municipais (e algumas regionais) tém sido capazes de elaborar planos de desenvolvimento, projets de investimento que vao desde as 4 is nao agricolas até a edu meio, ural, passand nipiantagso de pequenas agroindtistrias © por melhorias de int Os dois anos a ntagio do Programa Nacional de Fortale mento da Agricul jar (PRONAR) oferecem perspectivas tanto mais promissoras que cle ¢ visto pelo Movirnentos Sindical de ‘Trabalhadores Ri pmo uma conguista. © que se tem visto em muitas situacbes ¢ 9 ampfiagio na quantidade de agricultores con acesso a0 créililo ¢ As condigdes que podero liberar o potencial econémico que representam para suas regides e para o Pais, Pela primeira vez, as priprias organizagées locais, regionais ¢ nacionais dos trabalhadores tornam-se mais que parceiras, protagonistas de planos de desenvol 10. Para quem achar quese trata de excessio de otimismo, conve que em 1997 a Confederagae Nacional de Trabalhadores na Agricultura patrocinow a formacao de dez mil dirigentes voltados para o desenvolvimento municipal. E impartan- te observar « o desta formacio nao estava cm temas estrita- mente agticolas, mas voltava-se muito mais aos mecanismos de participagao na vida local vag aumento dacapacidade de implementar iniciativas qu olugaiodos problemas rurais av desenvol- vimento como um tod, Mas néo se pode esquecer também que base social deste proceso de desenvolvimento é exatamente cultura fami Em suma, a grande novidade que os anos recentes vém revelando agri- » nds, foi considerado uma espécie de o dos habitantes do processo de desenvalvimento. E claro que se tra comego, muito incipi pioresindicadores ra familiar estej demoeracia & apenas de um te e que no campo encontram-se ainda os is. Masé fundamental que aagricultw contribuineo para que se clesfaga a idéia de que a ‘ued que s6 as cidades podem abrigar. APRESENTACAO Este & um toro que se justifica plenamente, pois traz wna contribuivao importante para 0 conhecimento de ma questio ainda io resolvida na sociedade brasileira: « questio agritria, Desafiando 0 poder nodernizante das “supersafras", das exportacies record, das faganhas lecnoldgicas camo 0 Prodlcool, @ producto de soja, as exportacdes de citricos, a leenificagio acelerada dos setores integrados industrial, 0 canipo brasileiro continua sendo o terreno da lecnologica, da extrema pobreza da populagio rural, do atraso ec social e politica naguelas regiaes corvnelismo, e.a “lei do miais forte Até lioje os que — na direita e 10 esquerda — debrugaram-se sobre essa widade fundamentaram suas andl lanciais diferengas em relagio aos objetives e as premissas mais gerais, associavant invariave ulura familiar 40 utraso, Sob esse enfoque, 0 campesinato constitué wnt residuo, wm setor em ex- al. O avanigo, a advir da grande mada no tra Em consepiiéncia, as andlises acnbaram converginidy em torno da idéin sxclusivamente uma questo iodernizagiio social, dissociada do problema da producto agricole, da tecnoldgicu da agriculturn & da retomada do cr nto ec Pais. O contato intenso com experiénicias de pequenos agr ores fu 12 Apresentagion jordindrio avanco da agriculture mos paises Capitalistas mais exitosos ndo se dew, nent exclusiva nem principalmente, na base do “modelo inglés”, da grande empresa fundada no assalariado; pelo contririo, tanto tia Europa como rios Estados Unidos, a mizacio tecnolégica se fez, em grande medida, através do “modelo és", baseado na transformagio das ancestrais propriedades farni- iponesas emt unidades te producto individuais, altanente produ- 18 ¢ extremiamente abertas a incorporaciio de inonagées tecnolégicas. jo rigoroso das mais significativas teorias da conto as das vertentes liberais fom esforgo fosa contribiigno para a nossa literatura cientifica) 0 autor formuton a tese de que as unidades de pequento porte, alto wolutne de producio e elevada produtividade existentes hoje nos paises capitalistas avangndos descenitem do campesinato tradicional, mas ndo iém mais nada a ver com cle. Séo entidades de natureza distinta, 4 operam segundo outra racionalidade ¢ que no surgiram de forma espor- tanea, Foran: crindas pelo Estado capitalista, por meio de politicas delibe- radamente talhadas para reditzir 0 preco dos alimentos, a fim de recursos do orcainento doméstico dos assatariados urbarios pora a aguisicmo para produzir primas a custos vencto do Estado capitatiste, constitwiram precondigdes da expansio dustrial basenda no consumo de massas. Nessns constatagdes consiste « grande contrib Abramovay para o debate da quesiae agriria brasileira. Elas obrigam a um reexame da teorin do “residuo” ¢ da “extingiio progressiea” das atuais pequenas propriedades. Abrem ainda perspectioas, antes insuspeitadas, de utilizagno de potencial de trmsformagio das milkées de pequenas pricdades que tenios em nosso Pats, para formular wn modelo de desen- voluimento agricola que post resolver o secular problema da desarticu- lagio da nossa economia e da nosse sociedade. Apresentagto 13, de produgio npla— sob conicbes "tonne — 4 inconorar progresso tecnico e produzir a taixos custos, entio a reforina agraria deixa de ser exclusivamente um "programa social” para se converter em elemento estratégico de wn nove modelo de desenvolvimento econémico Brasil. De fato, win modelo voltado para a superngho dessa economia desarticulady, em que a expansito do mercado depende mais das flutuagdes do mercado externo e do do consumo de camadas nrimoritdrins do que cos ; 86 poderd sustentarse se os pregos dos produtos agricolas beixarem, Sob este Angulo, uma estratégia bascada en milhées de pequenas propricdades (jd existentes ¢ criadas por um processo de reforms) pode se riostrar, no 56 minis 1 imacao da miséria no 0 trickle down effect da prosperidade dos complexos ag conto tumnsént minis eficiente, eat termos de custos-beneficios, do que progra: 1s unidades de produgio agrico- indrias transforvaacbes ocorridas eiros a repensar inteiramente o esforco de in fazendo ld mais de cinco décadas, abre grandes avenidas para a irtventividade camctertsticn dos povos fortes — os que t2m a ousadia ea forca de caniter para aspirar a independéncia, & autonoria e & prosperidade, Pliinio de Arruda Sampaio AGRADECIMENTOS As preocupagses em que se originou este trabalho, escrito originalmonte como tese de doutoramento e posteriormente adapta- do e atualizado para sua publicacdo em livro, nasceram durante os cursos que freqtientei no Dontorado em Ciencias Sociais na Univer- sidade Estadual de Campinas. O contato com diferentes escolas do pensamento sociolégico contemporaneo no quadro dos dois semes- tres do Seminario de Teoria e Metodologia mostraram-me que 0 estudo da téo propalada “crise das ciéncias sociais” nijo desemboca fatalmente em paralisia nem conduz ao ceticismo diante do avanga do conhecimento. Os professores Juarez Rubens Brando Lopes Vilmar Evangelista Faria conseguiram uma espécie de demoligio construtiva (parodiando Schumpeter) da qual acredito que nenhum dos colegas com quem tive o privilégio de partilhar esta experigncia intelectual — e aos quais estendo este agradecimento — saiu in- célume. Minha orientadora, a professora Maria de Nazareth Baudel Wan- derley, acompanhou a concepsao deste trabalho desde o inicio, dis- cutiu comigo cada capitulo, indicando novas referéncias bibliografi- cas — baseadas no seu préprio trabalho, muito préximo ao tema aqui desenvolvido —e sobretudo teve a virtude de fazer com que et encarasse minhas limilagées como o estimulante ponto de partida para novas perguntas. O trabalho com a professora Maria de Na- zareth Baudel Wanderley reforgou em mim a convicstio da im- portancia do orientador num trabalho de doutorado, nao, éclaro, no sentido de uma identidade integral de pontos de vista, mas pelo debate e sugestdes de caminhos para o desenvolvimento da pes- 15 16 Agradecimentos quisa, Esta importancia fiea realgada quando a orientadora ju a amiga de longa data professor José Eli da Veiga teve pasticipacdo decisiva na propria definicdo do tema e em seu desenvolvimento. Espalhadas no texto, as citagdes que fiz. de seu trabalho podem obscurecer o fato de que boa parte das idéias aqui expostas Inspiraram-se tanto em seus relatorios de pesquisa, fruto de suas atividades de pés-doutoramen- to na Universidade de Londres, e que se consolidaram em seu mportante livro (Veiga, 1991), como de intimeras conversas que mantivemos durante todo 0 periodo de elaboracao do trabalho, Colaboracio tao estreita ¢ ajuda téo desinteressada resultam, antes de tudo, de uma amizade de vinte anos, onde o trabalho intelectual conjunto tem sido constante. Tive o privilégio de conlar, na banca de defesa da tese, além dos professores acima citados, coma participagao de José Vicente Tavares dos Santos. A atualizagao de alguns dos dados contides na tese foi possivel em grande parte a duas viagens que fiz & Franga em 1991 ¢ 1992 Estas viagens foram realizadas gracas ao empenho dos professores Alain Ruellan (CNEARC, Montpellier e CNRS, Paris), Philippe Jouve (CINEARC, Montpellier) e Ignacy Sachs (Centre de Recherches surle Brésil Contemporain, Maison des Sciences de I' Homme). Durante minhas estadas na Franca, foram-me particularmente tteis os en- contros com os professores Héléne Deforme (CERI/FNSP), Pierre Coulomb (INRA) e Claude Roger (INRA, Montepellier) e Claude Servolin, A professora Maria Bly Chonchol nao poupou esforgos para viabilizar varios destes encontros e soulhe por isso muito grato. Os professores José Juliano de Carvalho Fitho, Silvia Schor, Ana Maria Bianchi e Basilia Aguirre, meus colegas da Faculdade de Economia da Universidade de Sio Paulo (FEA/USP), leram parte dos originais e trouxeram questées que me auxiliaram muito na elaboracao final do trabalho. Além disso, os professores Janudria Francisco Megale e Ana Maria Bianchi sobrecarregaram-se em suas tarefas didaticas para que eu pudesse concentrar-me em meu tra- balho. Sou grato também aos professores Iram Jécome Rodrigues (FEA/USP) e Oriowaldo Queda (Escola Superior de Agricultexa Luiz de Queiroz/USP) e Alice Paiva Abreu por seu empenho em que o trabalho fosse editado. Foi de grande valia 0 auxilio que recebi de Tatiana Schor na tradugao das citagées em inglés. v7 Miriam Abramovay (Flacso), Jorge Wertheim (IICA), David Blacic (CA), John Garrinson (Fundacao Interamericana) ¢ Gervésio de Castro Rezende (IPEA/R)) responderam com presteza a solicilagéies de empréstimo e/ou envio de material bibliografico e Olimar Perei- ra de Oliveira auxiliou-me na digitacto das tabelas, O apoio material recebido sob a forma cle uma bolsa de incentive académice da Unicamp foi importante para tornar este trabalho vidvel. Sou grato igualmente ao Conselho do Departamento de Economia da FEA/USP, que tudo fez para propiciar condigées favordveis & realizacao da tese. Nem preciso salientar o quanto me honrou ter tecebido 0 premio da ANPOCS (Associastio Nacional de Pesquisa e Pés-Graduagio em Ciencias Sociais) que ajudiou a viabi zar a publicacao do livro. Luis Alvaro Leto Gil, Edith Trinea Pinto Alves e Luis Silva, da Unidade de Processamento de Dados da FEA/USP, sempre respon- deram coin paciéncia a solicitude a todas as necessidacies de proces- samento de informagées e edigio de texto com que me defrontei. Como sempie, uma tese acaba por tornar-se uma espécie de ptodugao familiar: neste caso, apesar do tempo roubado e da tensao exposta, no foi sob o signo do sacrificio que o trabalho foi escrito. Silvia Bittencourt ofereceu a colaboracao decisiva de impedir que meu envolvimento com a tese se tornasse sindnimo de privagtio da convivéncia familiar.Se um ambiente familiar afetivo contribui para a produsao intelectual, devo agradecer nao somente a ela, mas também ao Pedro, ao André, ao Juliano, ao Hélio, a Miriam e a esta grande figura que é a Dona Léa, a quem dedico este trabalho. INTRODUGAO A stratura social da agricultura nos paises capitalistas avangados tem sido pouguissimo estudada entre nds, deixando a sombra um fato decisivo: é funclamentalmente sobre a base de tinidades familiares de producto que se constituiu a immensa pros- peridade que marca a produgio de alimentos e bras nas nagees mals desenvolvidas, Esta afirmagato castuma despertar desconfianca e mesmo coticis- mo. Afinal, como é possivel a agricultura escapar de um quadro geral onde a concentragao econdmica impera em praticamente todos 6s setores? De fato, quando se fala em produgao familiar, a imagem que vem imediatamente ao espfrito é a de um empreendimento de dimonsoes reduzidlas, trabathando com técnicas relativamente pre- carias e atrasadas Evidentemente, nio é disso que se trata aqui, A natureza fund mentalmente empresatial dos mals importantes estabslecimentos agricolas nos paises centrais, sua capacidade de inovagéo técnica ¢ de resposta aos apelos cle mercado esto fora de diivida. O que é paradoxal —e tem merecido pouea atengio — é justamerte 0 caréter fimiliar nfo s6 da propriedade, mas da diregiio, da organiza- cao e da execugao do trabalho nestas empresas e portanto as razoes pelas quais a agricultura capitalista contemporanea dos pafses cen- trais se desenvolveu neste quadro social Teste desconhecimento nao ¢ grave apenas sob o Angulo de uma geogratia agréria mundial. Tampouco ele se deve, ¢ claro, a dificul- dades no acesso a informac6es empiricas a respeito, Na verdade sdo raztes de natureza teériea que explicam o obseurecimento em que ’ 20 Introd foram colocadas, sobretudo entre nds, as particularidades sociais da agricultura no capitalismo avangado* o pavadignta (ver 0 box 1) com base no qual se estuda o desenvolvimento do capitalismo na agricul- tura, cuja matriz. siio os trabalhos classicos de Lenin (1899/1969) Kautsky (1899/1970), como veremos no Capitulo 1, vem-se mos- trando cada vez menos capaz de dar conta de fendmenos contem- poraneos decisivos. Por um lado, a associagaio entre desenvolvimen- to capitalista e ampliagdo do trabalho assalariado, tao cara ao tra- balho de Lénin, encontra pouco respaldo empirico. Por outro lado, a idéia da necessaria inferioridade econdmica da agricultura familiar, fundamental no livzo de Kautsky, tampouco 6 confirmada pelo que se observa nos paises avancados. No paradigma dos classicos ma: tas nao hi lugar sequer para que se cologue a questao, hoje decisiva, das raz6es pelas quais a agricultura familiar tem sido, nestas nacoes, a principal forma social do progresso técnico no campo Box PARADIGMA O termo payadigma celebrizou-se nas ciéncias umanas a partir dé livro de umn fisico tebricoe historiador da ciéncia, Thomas S. Kuhn (1962/1987). Ele mostrou nao s6 qué a ciéncia evolui por uma. série de rupturas (as-revolugies cientificas do-titulo de sua obra), mas que os cientistas, ao contrario do que se ima- gina muito ‘freqiientemente, ndo sio individuos.de espi completamente aberto ¢ pronto’ a accit: desafids colocados'pér'ela, Ao conirario, os com base naquilo qué Kuhn.chama de “ci qritério com base no qual ¢ possivel saber sé umd proposicto € cientifica ou nio Varia imensamente.com 6 passar do tempo € na medida ém que novos padroes de julgamento.sio implan- tacos através dassuecssivas revolugoes cientificas. Se6 verdade ‘que 56 pode haver ciéncia'énde existe livre debate de idéias, Kuhn constata, entretanto, qjié’a Comunidade cientifica, a cada momento, seleciona aquielas teorias, aqueles métados e aqueles objétos que aparecem ads cientistas como validos dirante um determinado’ periodo. A Jiberdade dé* debate nao significa que’a comunidade cientifica autorizé’a pesqitisa’- Sobre qialquer coisa, com qualquer metodo e quialguer teoria. to novidadés @ os, fAtistas trabalham won 21 Ao contrario, ela possui instituigées (universidades, conselhos de pesquisa, parecetistas): que julgam a pertinéncia de cada pedquisa com base ém_um conjunto de crengas comuni- _” pelos, sientistas sobre p.que,, come e,.: aS ie a 5 mee “ ties on Um outro obstéculo teérico para a compreensio da realidade agraria contemporinea no capitalismo central est nas ambigiidades, com que a nocio de uniclade familiar de produgao tem sido tratada. Convem insistir neste ponto, pois a associagio entre este tipo de estabelecimento e small farm, “pequena produss0", “produgio de baixa renda”, “agricultura camponesa”, entre outros, 6 recorrente € impede que se perceba a dupla e fundamental especificidade da agricultura familiar tal como se desenvolveu, sobretudo apés a Segunda Guerra Mundial, nos pafses capitalistas avancados: por um lado, set dinamismo econdmico, sua capaciciade de inovacio técni- ca, suas formas sociais inéditas com relaggo ao passado de que algumas vezes se origina, mas com qual mantém lagos cada vez mais témues. Por outro lado — e este é um aspecto decisive — a agricultura um fendmeno tio generalizado nos paises capitalistas avancados que nao pode ser explicada pela heranca historica camponesa, de fato, em alguns casos existente: 0 Estado foi determinante na moldagem da atual estratw capitalismo agrario das naces centrais. E claro que esta intervengao 86 foi possivel pela existéncia de uma estrutura produtiva pulve- rizada, diferentemente do que ocorria em outros setores econémi- cos. Mas coube as politicas agricolas garantir esta atomizacaio na oferta, imprimir estabilidade aos pregos, de maneira a manter a renda do setor num patamar cada vez mais institucionalmeate definido © no minimo suficiente para assegurar producaio abun- 2 Q reds dante. Seria um equfvoco, entretanto, imaginar que estas politicas resultam fundamentalmente da pressiio e dos interesses dos pro- prios agricultores. Na verdade, elas foram a condigio para qu agricultura desempentasse unt papel furan mento do mundo copitalista: 0 de permitir que 0 peso da alimentagao na estrutura de consumo dos assalariados fosse cada vez menor € portanto que os orgamentos domésticos pudessem consagrar-se crescentemente @ aquisigio de bens duraveis, uma das bases da propria expansao que conheceu ocapitalismo entre o final daSegun- da Guerra Mundial e 0 inicio dos anos 1970. Nao se trata aqui — € importante desde 0 inicio deixar claro este ponto ao qual voltaremos com freqiiéncia — de qualquer tipo de “fancionalidade estratural da pequena produgio”, idéia que nor- teou grande quantidade de trabalhos sobre a agricultura familiar na América Latina sobretudo nos anos 1970. Primeiramente pelo fato de nao ser absolutamente "pequena” a agricultura 4 qual nos referi- mos. Neste sentido as noc6es, tio caras ao althusserianismo, de articulagio de modos de produgiio, de recriagao do velho pelo novo, do atraso explicado pelo progresso, so inadequadas, Tanto mais que — este é 0 segundo panto — o peso do Estado na consolidagao da agricaltura familiar como a base social do dinamismo do setor & fundamental: interferéncia nas estruturas agrérias, na politica de pregos, determinacio estrita da renda agricola e até do processo de inovagtio técnica, formam 0 cotidiano dos milhdes de agricul- tores que vivem numa estrutura atomizada onde, entretanto, © Estado tem influéneia maior que em qualquer outro campo da vida econdmica, No que a concor tenha sido abolida: ela opera, porém, num quadro de permanente organizagio priblica dos mereados. ‘Uma agricultura familiar, altamente integrada ao mercaclo, capaz de incorporar os principais avangos téenicos e de responder as politicas govesnamentais nao pode ser nem de longe caracterizada como caniponesa. Os quatro primeiros capitalos que compoem a Parte I deste trabalho procuram lancar os elementos conceituais que permitem uma diferenca substancial entre estes agricultores aos quais até aqui nos referimos e os cansponeses, Apesar da base familiar comum, € intransponivel a distincia social entre um suinocultor da Comunidacie Econdmica Furopéia, cuja renda depende em altima andllise dos acordos estabelecidos em Bruxelas e uma familia rural na India cuja reproduc social apdia-se em lagos de dependéncia 23 Introd comunitéria e cuja ligaco com o mercado mistura-se com um conjunto de relagées de pessoa a pessoa. F possivel uma distingto conceitual entre estas duas formas fundamentais de produgio fami- Kar? A resposta a esta questo na primeira parte do trabalho é afirmativa, mas condiciona-se a que se busque a raiz da diferenga fundamentalmente no ambiente social, econémico ¢ cultural que caracteriza cada uma delas. A propria racionalidade da organizacéo familiar ndo depende — € o que se veré — da familia em si mesma, mas, a0 contririo, da capacidade que esta tem de se adaptar & montar um comportamento adequado ao meio social ¢ econdmico ‘em que se desenvolve. Embora recorra a exemplos de pesquisas de campo das quais participei, as conchusdes desta primeira parte nao se baseiam num, estudo de caso. A tentativa foi sobretudo examinar como diferentes correntes de pensamento e vertentes de especializagao profissional encaram 0 camponds. E possivel responder A questo “o que 6 cam- ponés"? Os dois primeiros capitulos dao conta do debate existente no inicio do século entre os classicos marxistas da questio agraria, por um lado, e Alexander Chayanov, por outro, a respeito. Sob o Angulo marxista o camponés s6 pode ser definido pela tragédia de seu destino social: ele sera fatalmente extinto pela propria dinamica da diferenciagao entre os produtores (Lénin) bem como seré incapaz de resistir a concorréncia das grandes empresas agricolas (Kautsky). Trata-se af de uma simples aplicagdo do marxismo ao estudo da agricultura? Nada é menos evidente: os classicos marxistas da questao agraria refletem muito mais as circunstancias especificas em que viveram do que uma teoria universal a respeito do desenvolvimento do capitalismo no campo, como veremos no Capitulo 1. Jé Alexander Chayanov e posteriormente o polonés Jerzy Tepicht (Capitulo 2) procuram justamente aquilo que aos olhos marxistas Pareceria um contra-senso: tima definicao de campesinato cuja base seja a propria familia e as determinagdes que a estrutura familiar impoe sobre 0 comportamento econdmico. ‘© Capitulo 3 expée trés modelos de equilibrio microecondmico da familia camponesa. O objetivo é duplo. Primeiramente lembrar que 0 tema chayanovista do equilibrio é retomado por parte im- portante da economia do desenvolvimento nos anos 1960. Além disso, trata-se de explorar a fundo os determinantes do comporta- mento econdmico camponés, de sua “morfologia” para falar como Chayanov. 24. Introtugho No Capitulo 4 a idéia € conhecer o ambiente cultural, social ¢ econdmico no qual as logicas especificas examinadas nos Capitulos 2.¢ 3 operam. O capitulo explora a nogio de sociedades caniponesas, tals como expostas pela antropologia cléssica voltada ao tema (Red- field, Kroeber, Wolf) mostrando que a partilha de lagos comunita- rios, bem como um conjunto de regras coletivas, marcam as particu- laridades sociais ¢ culturais do campesinato, Sob o angulo econdmi- co, 0 capitulo explora a ideia de que sao camponeses aqueles prodit~ ores familiares marcados por uma insergao parcial em mercnios in- completos (Ellis, 1988; Friedmann, 1980). Diferentemente de boa par- te da literatura a respeito, a énfase da definigdo (e portanto da diferenga com relagio aos agricultores familiares modernos) esta no tipo de relagéo com 0 mercacio. Neste sentido, a nogéo muito difun- dida, sobretudo nos anos 1970, de que o camponés esti "integrado ao capital”, de que é um "modo de produgio subordinade” peca por um problema conceitual elementar. O que esta nogio escamoteia S40 8 préprios limites da racionalidade econdmica do campesinato, sua natureza fundamentalmente incompleta, Tanto Weber como Marx, fem suas poucas observagdes a respeito, corroboram esta critica, Explicar a existencia camponesa a partir da "légica do capital” é um equivoco que impade a campreensao do que ha de mais importante na estrutura social ca agricultura capitalista contemporanea: o peso precominante, em seu interior, de unidades produtivas que sdo familiares, mas no camponeses. penvelindiade o terre a respeito do que é campesinato, poclemos voltar-nos, na Parte IT do trabatho, ao estudo da estrutura da agricultura no capitalismo avangado. O material empirico reunido nos Capitulos 5 Estaclos Unidos), 6 (Gri-Bretanha) e 7 (Europa Continental) nao é evidentemente exaustivo — tanto mais que se trata de fontes secundarins — mas basta para deixar patente a natureza predominantemente familiar da agricultura. O interesse dio caso nerte-americano vemn no s6 do fato de ser a maior nagdo agricola do mundo, como também por ser freqliente a suposi¢Zo falsa de que aio assalariamento predomina econamicamente sobre o trabalho familiar. O caso britinico é tanto mais ilustrativ que foi tomado pela economia politica classica até Marx como 0 exemplo do rum que seguiria o capitalismo em seu desenvolvimento. E bem verdade que a separacao entre as figuras do proprietério fundidrioe do capitalista ndo demorou a ser considerada muito mais camo excegiio do que regra. O mesmo nao pode ser dito entretanto da 25 formagio de uma classe de assalariados agricolas que, até hoje, é tomada como um dos grandes sinais do desenvolvimento capitalista no campo, apesar de seu peso nitidamente minoritario. O Capitulo 7 retine informagdes sobre a Europa Continental ¢ ai sio forneciclos dados um pouco mais detalhados sobre as politicas estatais de fortslecimento da agricultura failing, sobretudo com base no caso Comoexplicar estas particularidades nasagriculturas maisavanga- das do mundo? Evidentemente, o terreno af € vastissimo e uma resposta verdacleiramente satisfatoria $6 poderia resultar de estudo historico minucioso ce um conjunto significativo de paises. A quan- tidade de variéveis em jogo imensa. O que me parece essencial — eneste sentido é surpreendente a convergéncia entre autores marxis- tas e neoclassicos — 6 que houve um processo importante de trans- feréncia de renda da agricultura para o resto da sociedade através do mecanismo de pregos. A estrutura pulverizada da oferta agricola foi condigio necesséria para a operacdo deste mecanismo, mas no suficiente: sem a intervengao maciga do Estado, a propria violéncia das oscilagées dos pregos acabaria por comprometer a abundancia alimentar ea possibilidade de regulaco institucional tantoda renda agricola como dos precos alimentares. Longe de exprimir direta- mente os interesses de um segmento da sociedade (a burguesia agraria, a agroindastria, por exemplo), o Estado procuroa imprimir a ageicultura uma fungao estratégica na reprodugo social como umn todo: a de permitir que o peso dos produtos alimentares — e fandamentalmente dos produtos basicos, isto é, cereais, leite, alguns tipo de carnes — nos custos de reproducao da forca de trabalho fosse cada vez menor, Com base nos te6ricos franceses ligados teoria da regulagéo, procuro mostrar, no Capitulo 8, que esta redugio foi importante para o estabelecimento de um novo patamar na acumulacéo capitalista conhecido pela termo fordisio ou regime intensivo de aciimulnedo de eapital: aquele onde se transformam nao 88 0s processos produtivos na indvistria, mas o proprio padrao de consumo da classe operaria, no sentido de incorporar, a stia cesta de bens, um conjunto de mercadorias saidas das novas correntes de producao, ‘Trata-se ento aqui de discutir a agricultura sob 0 Angulo de suas fungSes macroecondmicas, estruturais, no desenvolvimento capita- lista. A agricultura nao pode ser considerada um simples segmento da diviséo social do trabalho. Mas é importante notar — por ai se dos pregos alimentares pode ser cumprido pela a Virtude ndo sé de sua especificidade social e da intervengao do 7 is que tornam absut- da a expressao tao corrente na nossa literatura de “industrializagdo da agricultura”. A regulacdo estatal da renda e dos precos agricolas cuja base objetiva é fornecida pela estrutura atomizada da oferta agricola apéia-se sobre a dificuldade real de que empreendimentos baseados fundamentalmente em trabalho assalariaclo sejam a regra da prosperidade no campo. O cardter natural, 0 peso das determi- nagdes biolégicas, 0 fato de a agricultura lidar diretamente com elementos vivos, em suma, os limites a que esti sujeita a propria divisao do trabalho no campo sido elementos decisivos para a com- preensao das particularidades clo setor. ‘Alem desta exposicao dos principais aspectos de que se compoe © trabalho, devo ao leitor certamente uma explicacao adicional. Por que motivo, num babalho desta natureza, evitar tanto 0 ma~ terial empirico, como a propria literatura brasileira de questio agraria? Uma resposta possivel & que o material aqui rcunido forma um conjunto coerente. E verdade, mas nao se trata apenas disso. Cada uma das conclusties deste trabalho traz & tona problemas referentes niio s6 a0 caso brasileiro, mas de outros paises da Améri- ca Latina, Por que, contrariamente ao que ocorreu nos paises ca talistas centrais, tem sido tio importante, em nosso desenvolvimen- to agricola, 0 peso de empreendimentos baseados fundament mente no trabalho assalariado? Até que ponto, a agricultura bra: ra tem cumprido aquela funcao historicamente decisiva nos paises capitalistas avancados de contribuir ao rebaixamento dos pesos alimentares, no quadro de uma oferta abundante e sob estrito con- trole do Estado? Qual o sentido, entre nds, da chamada “pequena produgio” e até que ponto sobre sua base € possivel o desenvolvi- mento de politicas semelhantes as aqui expostas na Parte 1 do trabalho? Oenfrentamento destas questies supde na verdade o estabeleci mento de um referencial te6rico e histérico para o estudo da questo agraria muito diferente daguele que domina a partir dos clissicos marxistas. Este trabalho pretende contribuir 4 formagdo de um corpo de problemas que extrapole os temas recorrentes da inte- gracio entre agricultura e inckistria e da ampliacao do trabalho iado como sindnimos de desenvolvimento capitalista. Nao é possivel por enquanto adiantar em que sentido esta superacdo € necessiitia, Na conclusao do livro exponho o que me parece ser a base de uma agenda de pesquisa que os resultatlos aqui alcancacios sugerem. PARTE I CAPITULO 1 OSACO DE BATATAS “Dxdstindo o nome, existe @ bicho” Ditndo popular aordestine 8 UNIVERSAL? a) Uma cate E impossivel encontrar uma questo agriria formulada ex- plicitamente nos escritos de Marx. Por mais que se tenha revestide de um aparato Leorico imponente, esta célebre expresso (questo agrétia) sempre correspondeu, antes de tudo, a resposta de certas organizacées politicasa determinadas situagoes cireunstanciais. Par= icularmente os dois grandes classicos sobre o tema, publicados ambos em 1899, O Desenvolvimento do Capitalisnie (Lenin, 4899/1969) e A Quesifio Agniria (Kautsky, 1899/1980) que ja chega- ram até a ser vistos, cada um, comoo Livro IV d’O 6 podem ser compreendidos de maneira adequada no quadro das lutas politi- cas emi que se inseriam seus autores, muito mais do que como simples “aplicagées” de uma doutrina elaborada, ainda que de maneira incipiente, sobre as leis gerais do desenvolvimento do ‘capitalismo na ageicultura’. O fato 6que, embora Marx tenha consa~ Howard (1980) tamben alemnio do inicio do séeulo, embora niio se concentre na questdo agrésia, a 32 0 Saco de Bo graclo uma parte importante de sua energia ao estuclo da especifi- Cidade da agricultura no capitalismo, nao & nem de longe em torne das conchis6es por ele aleangadas no Livro Ifl d’O Capital, nem nas Jongas partes consagradas a0 tema nas Teorias da Mais-Valia que se organizam os trabalhos de Lénin, de Kautsky e as discussdes que tanto a social democracia alema como a russa realizaram durante mais de trés décadas sobre 0 assunto®. Mais que isso, apesar da importancia da agriculiura no trabalho teérico de Marx’, nao existe nada neste trabalho que contemple aquilo tratado, j4 no final do século XIX, come oeixe de articulacio da questo agririn: a produgao familiar na agricultura, suas tendéncias e suas fungdes no desen- mento capitalista, Particularmenie sobre o campesinato, pode- ‘ar uma abordagem politica carregada de profundo ceticis- mo no Dezoilo Brimufrio de Luis Bonaparte (0 famoso saco de batatas) recursora no Liveo III d’O Capital, ‘onde Marx mostra que & “(..) preco dos cereais em paises em que prepondera a proprie~ dado parcelsria esta em nivel mais baixo que nos paises com motto de producio capitalista. Uma parte do mais-trabalho dos cam- poneses que trabatham sob as piores condigées é dada gratuita~ mente a sociedade e nem sequer entra na regulacao dos pregos de produgao ow na formacao do valor em geral. Esse preco mais baixo 6, portanto, um resultado da pobreza dos produtores ¢, de modo nenhum, da produtividade deseu trabalho” (Marx, 1890/1986:261) Como bem assinalou Tepicht (1973-14), entretanto, transformar ‘essa passagem em teoria sobre o tema pode ser reconfortante, mas, nido faz, avancar em nada o conhecimento cientifico. As razées pelas quais 0 campesinato est’ praticamente ausente da obra de Marx néo podem ser compreendidas com base naquilo que Popper (1970/1979) chamou de sociologia ou psicologia da descoberta: nao é por etnocentrismo, nem por viver num pais onde o campesinato ja tinha declinado irreversivelmentet que Marx nao se Basta lembrar que Lénin nem. toca na questi da vena dado por Kautsky ao tensa, no capitula V de set livio, ne € usado con jportante na monlagem de seus argumentos. *S6 © voluune ocupado pelas questoes or exemplo (Marx, 1905/1970), ja & tera eo referénei 3 dedica a estudiar a produgao familiar na a; 1, mas por razdes que se prendem 4 prépria estrutura légica de sua obra e cuja expl cago exige uma pequena digressdo tedrica ‘Apesar do peso do campesinato na populacae ¢ mesmo nas hitas sociais na Europa de seu tempo, O Capital nfo é simplesmente um mosaico de conflitos. Nem muito menos uma socfolagia destes cont tos. A obra situa-se no plano de uma fenomenologia das formas sociais, onde o ponto de partida contém o destino final da trajetéria: ‘a mercadoria resulta de atividade particular, privada, mas voliada, a0 mesmo tempo, para a satisfacdo de nevessidades gerais, sociais. © produtor mercantil tem sua exisiéncia cindida por sua dupla condigao de so poder satisfazer seus interesses quando se volta para © outro: nao porém num processo de colaboragdo direta e imedia: tamente social, mas no mercado, O que caracteriza a soctalidade no mundo das mercadorias ¢ exatamente a divisio contida em cada produtor — e em seus respectivos produlos — entre sua natuseza particular e seu carater social. Naquilo que os economistas classicos viam a expressiio mesma da evolugio da humanidade, © desenvolvimento do comércic, Marx enxerga o drama da socia- lidade © conseqiientemente da personalidadte fragmentada, aliena- da, tanto mais distante de si mesma e dos outros homens quanto mais prixima deies através deste vinculo desnorteador que € 0 mercado. O desenvolvimento do capitalismo nada mais ¢ que a submissio de todas as esferas da vida social a esta condicaa atomizada. Se, na produgio mercantil simples, o produtor e seu produto trazem em si adupla condigao de trabalho privado ¢ ao mesmo tempo social, da coisa xitil que 6 também valor, na producio capitalista a divisao encamarse em figuras sociais polares: o trabalho abstrato, geral, universal, criador dos elementos materiais que permitem a re- produsao social cristaliza-se de um lado, na classe operaria; a parii- cularidade, 0 carter privado do modo de ser caracterfstica do mundo mereantil fixa-se no outro lado, na classe burguesa. A dije- ‘aciio social dos produtores, neste sentido, nao decore de um excrcicio classificatério levado adiante pelo cientista social; ela nao tem a mesma nattreza que a estratificagao por faixa etaria, ocupacao profissional, grau de instrugio etc. E do interior mesmo da mer- cadoria que emerge a forma particular de socializagao cujo res tado é a necessaria divisio da sociedade em classes socials. Consegiientemente, ¢ do desenvolvimento das lutas entre essas 38 O Sinco de B classes que vai depender a organizagio social como um todo, bem como seu destino. Mas — e & nesse sentido que Marx nao faz um trabalho sociolégico — odesfecho da batalha é dado de antemao, bem como seu sentido geral: a tendéncia a que os homens dependam cada vez mais uns dos outros na reprodugao de sua vida material, sem que entretanto possam ter um controle racional sobre essa sua dependéncia, a generalizagéo do trabalho assalariado, mediatizado porém pelo ca~ pital, a constiluicao de wm sujeito coletivo responsavel cada vez mais pela produgzo social, mas preso por sua submissiio a pro- prietarios privados, esse conjunto de contradicbes ¢ resolvido quan- do esta nova especie criada pelo capitalismo (0 trabalhador coletivo) exerce a “cooperagio ¢ a propricdade comum da terra e dos meios de produgio produzidos pelo proprio trabalho” (Marx, 1867/1985:294) ¢ instaura portanto uma outra socialidade baseada antes de tudo na cooperacio consciente e voluntaria entre os individuos, mas sobre a base das grandes conquistas técnicas que o capitalismodesenvolveu © trabalho, em Marx, para usar a expresso de Habermas (1968/ 1987-43-60), tem uma funcao de "sinteso”: nao o trabalho na sua particularidade, mas, ao contrario, como ineorporagao da sociali- dace nova que capitalismo implanta irracionalmente, anarquica- mente e que a supressio do capitalismo permite controlar pel vontade inteligente ¢ plancjadora Essas reflexes e seu carditer inevitavelmente abstrato nao preten- dem ser um resumo, mesmo que parcial, das idéias de Marx. O objetivo é mostrar que responde a uma 1azdo de natureza ontolégicw — que se refere a maneira como Marx concebe a vida social — a existéncia de duas classes como dramatis personae d’O Capital: a sociedade capitalista, na concepcao de Marx, é 0 desenvolvimento da contradigdo entre 0 caniter privado e social do trabathoe portan- to, a preparacdo para uma organizacio social racionalmente dispos- ta econtrolada. E na polarizagao dada pelo duplo carater da prop socialidade no mundo das mercadorias que se encontra a redugiio a apenas duas das classes em luta para a formagao de um mundo novo. Se este 6 0 empreendimento, de fato nao tem sentido, em tal plano de andlise, estudar qualquer outra forma de organizacao social, 0 Seco de Batauns 35 senio em sua relaciio com o desenrolar ca tragédia e, portanto, sob este prisma, nada mais logico que os camponeses, quando mencio- naclos, aparegam como especies fatalmente condonadas & dif ciagio, © conseqiicntemente a climinagie soci ¥(..) 0 desenvolvimento econémico distribui fungses entre dife- rentes pessoas; ¢ 0 artesfio ou o camponés que produz com seus prOprios meios de procucao ou sera transformado gradualmente num pequeno capitalista que também explora o trabalho alheio ou sofrerda perda de seus meios de produce e sera ansformadoem trabalhador assalariado” (Marx, Teorias da Mais-Valia, apud De Janvry, 1981). Quando, por que mecanismos e quais as eventuais tendéncias contrabalancantes deste destino fatal, so questes que 86 podem ser respondidas no quadro de andlises especificas, t6picas, nacionais e mesmo regionais, [sso ¢ 180 Sbvio que nio é possivel admitir que Marx pudesse ter em mente qualquer tipo de previsiio quant a0 desaparecimento iminente do campesinato e mesmo quanto A sua inexisténcia quando do comeco da construgo do socialismo. ‘Veremos a seguir as conseqiiéncias politicas do que acaba de ser exposto. E preciso entretanto deixar claro uma consequéncia tedrici: € impossivel encontrar na estrutura d’O Capital um conceito® de camponés. Se, do ponto de vista marxista, 6 possivel falar aonceitial- mente em classe operiria e burguesia, campesinato é uma expresso que nao encontra lugar definido no corpo de categorias que formam s bisicas dle desenvolvimento do capitalismo. Os proprietarios ios s6 emergem como a "terceira” classe na medida que a eles corresponde um rendimento cuja origem ¢ a mais-valia social Mas da apropriagio de que parte do trabalho social vive 0 campesinato? Como definir economicamente a forma de rendimen- to que the corresponde? Se ao campones for atribuido lucro, ele se torna um capitalista, Se receber um salario, vira operditio. Se viver da renda da terra, 6 entdo um proprietério fundiirio. A impossibili- dade de definir claramente a natureza e a origem de seus rendimen- ‘Sntgo se pode constraly um conceito rigoroto de ‘modo de produce campo: finan Eniew et al (1977:296), No mesmo seatido, Bernstein (1979121) sustent Astiea e, no melhor sos Segue-se que tal casos, term apenas de camponeses & 9 deseritiva” inicto ger i wiidad 36 © Seo de Bountes tos demonstra que 0 conceito de camponés nO Capit! @ fogieamen impossivel. A atividade produtioa que ad arigem a sua reproducéo née ten o estatuto de trabalho social e é neste sentido que o campesinato s6 pode se constituir naquele grupo de birbaros de que falava Marx. As duas tnicas classes que possuem a universalidade de incorporar nelas mesmas os elementos basicos de organizacao da sacialidade contemporiinen sa0 a burguesia ¢ 0 proletariado. Somente clas sio, nesse sentido, classes e possuem a universalidade tedrica de concei- tos‘, de elementos que se ligam necessariamente ao conjunto do sistema tedrico construido. E & nesse sentido que o tinico problema agrario passivel de existéncia n’O Capital é exatamente aquele sobre ‘© qual 0s classicos da questao agraria posteriares a Marx pratica- mente nada tiveram a dizer: a formagio da renda fundiaria e sua apropriagio por uma classe cuja existéncia justifica-se no plano te6rico pelo monopslio exercido sobre um elemento produtivo que, por definigéo, nao entra no circuito de reprodugao das mercadorias. Assim como nao se pode deduzir dai nenhum desprezo da parte de Marx pelos camponeses, 6 em vao que se buscarao em seus textos 05 fundamentos tedricos da atituce dos partidos operdrios do final do século XIX — e muito menos dos partidos que comandaram as experiéncias contemporaneas de agricultura coletivista — com re~ Jacéo ao campesinato. ONIS0 me parace necesssria nem apr do explorar 0: fuadamentos fi Convém assinalar entretanio que conccifo aqui ¢ empregado 8 (0) A passagem i passagem imansnte, necesita” (6. mente 9 procedimente fenomenslogico ‘em dinheiro, de dinheiro em <9 ‘edo por Manx na teanstor al ote, edo qual 36 emergem, “Assim, toda determinagio légiea ¢ uma e rela mesme e pote ser objeto de penszmento ¢ nak i confunde-se freniientemente — seguindo Locke ¢ John Stun piagio € a formasto das nosses." © Sneo de Baines 37 8) A onronoxta Das CIRCUNSTANCIAS © que entiio os classicos posteriores a Marx ¢ que trataram da questo agraria tém a nos dizer sobre o campesinato? Muito, se relacionarmos suas posigdes tedricas com o contexto historico sobretudo intelectual em que escreveram. Nada, se tomarinos suas idéias como expressées conceituais de categorias universalinente existentes no capitalismo. Talvez o exemplo mais claro do carater circunstancial que pode ter uma atitude irrepreensivelmente ortodaxa seja fornecida pelo debate em torno do destino da comuna rural — 0 famoso Mir — na Rassia, Numa carta de 1881 4 revolucionéria russa Vera Zassulitch, Marx (1881/1970:319) afirma que “na Russia, gragas a uma combinagio de circunsténcias Gnicas, a comuna rural, estabelecida ainda em escala nacional, pade gra- Gualmente despojar-se de seus caracteres primitivos ¢ desenvol- ver-se diretamente comoelemento da produgaocoletiva emescala nacional.” Box 2 ACOMUNA CAMPONESA OU MIR “Marx dedicou parte considervel de seus dez tltimos anos de vida ao estudo do idioma e da situagio social da Rassia. Muito atraidé pelo impeto do movimento revolucionério ¢ pelo interease que stiés idéias despertavam naquele pais — basta tembrar qué O Capital foi traduzido para o russo antes que para o inglés — Marx foi ui estudioso entusiasta das particularidades sociais do meio rural russo. Sua atencao foi despertada em especial pelo carter comunitario do acesso & terra entre os camponeses que, no final do século, detinham nada menos que trés guiintos, das terras araveis da Russia eurépéia: (Shanin, 1983-13). A comunidade assim constituida chamava'se mir ou obslichina. © mir ou obshchina era “(:.).ama coniiihidade “territorial com governd proprio ¢ a: principal pidprietsris legal das terras possuidas oti utilizadas por suas unidades domésticas” (Shanin, 1972/1983:61), Tratava-se de uma unidade administrativa local responsavel por uma série 38 © Saco ee Batatas de poderes e tarefas dentro de cada comunidacle camponesa. De carter eletivo, normalmente era dominada petos cam- poneses mais ricos ¢ goversiada pelos ancios da comunidade, Cada familia cletinha, em regime de propriedade privada (e passivel de transmissio por heranca), apenas um pequeno ote, a area restante sendo distribuida por este conselho co- munitario levando-se em consideracao o tamanho da familia, € portanto, sua capacidade de trabalho e suas necessidades de consumo. Esta forma de distribuicgio da terra com base no tamanho da familia sora fundamental na elaboracdo da teoria dé Chayanov, qué estudaremos no préximo capitulo. Além disso, parté “das terras. era trabalhada coletivamente. Os marxistas ortodoxos russos do inicio de séeulo, a comegar por Plekhanov, viam nesta mistura de propriedade individual uso ¢oletive do sole, um trago. atrasado, feudal, que o capitalismo deveria remover. Coma ironia que Ihe € carac- teristica, Marx cunhou os céticos com relacao as possibilidades de transformagio sorialista da comuna rural russa (do Mir) de amantes do capitalismo russo”. (Shanin, 1983:15). FE bem verdade que desta carta conhecem-se quatro rascunhos. Mas por mais polémico que fosse 0 problema e por menos seguro que Marx se sentisse a respeito — ja que estava em questo um caminho paraa consirucio da socieciade sem classes diferente daquele a.ser percostido pela Europa Ocidental — a prova de que o contet- do da carta corespondia realmente aquilo que pensava Marx est no fato de que fez figurar observacio com 0 mesmo teor no derra- deiro prefacio por ele escrito ao Manifesto Comunista, um ano antes de sua morte, em co-autoria com Engels: "Se a revolugao russa da 0 nal de uma revolugao operaria no Ociclente, @ ambas se complotam, a propricciade comm atual da Russia pode ser o ponto de partida de uma evelucde comunista” (Marx e Engels, 1882/1970-6). A esperanga de Marx na comuna rural russa é suficiente para indicar a injustica — ou no minime a parciolidade — das acusagdes to freqiientemente a ele dir 7. O que explica sua atitude com Nuroduiks poderiam ter um eleito positivo na desagregacto do tza- risto. Na verdade, Marx acreditava que 6 absolutismo russo encon- trava-se em franca deterioragao “todas as partes da sociedade russa estado em completa desinte- gfacio econdmica, moral ¢ intelectual. Desta vez.a revolucdo vai comegar no Leste, que foi até agora a fortaleza inquebrantivel ¢ 0 exército de reserva da contra-revoluciio". em 1885, chega a dizer, igualmente em casta a Vera Zassuliteh: “se alguma vez o blanquismo — a fantasia de revirar toda uma sociedace através da agdo de uma pequena conspiracio ~ teve uma cerla justificagio para sua exist@ncia, foi certamente em Sio Potorsburgo”, Ora, ja nesse periodo, Plekhanov, conhecide como o pai do mar- xismo russo, separara-se das Navodriks e procurava demonstrat que sem umn movimento de massas com ampla envergadura seria im- possivel derrubar o taarismo. A condenagao aos Narodiils nao se referia apenas a sous métodos terroristas. O que estava em quiestaio nas criticas a eles dirigidas por Plekhanov era o proprio sctor so sobre o qual os Narodniks depositavam suas expectativas transfor- madoras, © que caracteriza o surgimento da sacial-clemocracia rus- sa é a proposicio de que somente a classe openiria pode liderar & vencer a luta contra 0 absolutismo. Mais que isso, para Plekhanov — © essa idéia ndo seré defendida postesiormente por Lénin — 0 campesinato nada mais ¢ que uma massa reacionéria, apoiada em formas arcaicas ¢ patriarcais de vida, na verdade a principal fortale- za do absolutismo. lo, Georgescu-Roegen, 1969 e a resposta em quie Thomer, 1969, cio de Marx com as especificidadies do caso 11380, Sorge de 1877, ayn Hussain e Tribe, 1981/1983:176, sain e Tribe, 1981 /1983:177, 40 05m Oostagio entrotanto em que se encontram, no final do século XIX, tanto a organizaco dos trabalhadores quanto o proprio desenvolvi- mento do capitalismo na Riissia é — no entender dos social-democr: tas, entiio em constituictio como organizacdo politica — substancial- mente diferente daquele ja atingido na Furopa Ocidental. O atraso da Rassia no € apenas econdmico, mas sobretudo politico © se manifesta tanto na restric¢ao generalizada 4s liberdades puiblicas que a autocracia representa, quanto no peso esmagador — particular- mente para os camponeses — dos encargos feudais. Essa constatagao colocava aos social-democratas uma espécie de dilema em torno de cuja solugao giram nao s6 seus conflitos internes basicos, mas sua originalidade politica e intelectual: como desenvalver a luta por objetivos socialistas, numa situacao em que € necessario remover os cobstaculos reprasentados pelo absolutismo e pelas relagoes sociais sobre as quais se apoiava 0 poder da nobreza feudal? Lutar imedia- tamente pelo socialismo mostrava-se aos social-democratas russos como objetivo utépico nao s6 devido ao precério grau de amadure- cimento das condicées objetivas, mas sobretudo porque a derruba- da do tzarismo e a conquista de condigoes sociais semelhantes as que foram colocadas pela Revolucéo Francesa — em suma, a re- volucao democratica — ainda nao tinham sido alcancadas na Riis- sia. Nisso os social-democratas se distinguem dos Narodniks e de seus sucessores politicos ¢ intelectuais, os socialistas-revohucions- ris, Mas lutar apenas pelos objetivos democraticos da revolucgao poderia ser uma atitude conservadora pela qual os social-clemocra- tas nao se distinguiriam da propria burguesia republicana ou consti- tucionalista A principal conseqiiéncia prética da determinagio do curiiter de- mocnitico — e nao socialista — da revolugao russa, tal come formulada pelos social-democratas é que, nesta etapa, nao € s6 a classe operaria que esté interessada na conquista da liberdade, mas outros setores dla populagao, particularmente setores da burguesia e os campone- ses, Ora, 0 dilema que surge deste quadro — e em torno do qual se deu o essencial da divisio entre mencheviques e bolcheviques — © objetivo de unidade entre classes sociais opostas na luta por uma meta comum, coma necessidade de afirmar fans obras que antecedom a revelugho de 1905 que esta questio & Umus das mais interessantos reflexces a respeito parle serencontra dla en Lénin, 1905/19645:727-229 « 1905/ 1964b.275-290. 0 Sreo de Botatas a a personalidade auténoma e independente da classe operdria, Os social-democratas lutavam contra a autocracia @ a nobreza feudal apenas como condig’o para que a classe operiria pudesse alcancar seus objetivos proprios e reconhecidamente antagénicos aos das classes com as quais ela se aliaria no momento da revolucdo de- mocratica. A obstinacéo de Lénin, em particular, de que os soci domocratas participassem das grandes batalhas politicas de seu tempo era proporcional a seu permanente esforco de mostrar a heterogeneidade social sobre a qual se apoiava este conjunto de interesses opostos a autocracia, Fora deste contexto politico, ¢ impossivel compreender 0 trago basico do pensamento agrario de Lénin: a énfase na diferencincio social do campesinato, presente em seus escritos desde os primeiros trabalhos de 1893 e em torno do qual gira o que de mais importante ele produz no inicio de sua alividade intelectual, culminando com clissico Desenvolvimento do Capitatismo na Russia. Tao importante quanto apoiar as reivindicagées antifeudais e antiabsolutistas dos camponeses como um todo {no sentido do avango da Revolucao Democrética) ¢ mostrar a heterogeneidade do mundo rural. Ao contrario da unidade de interesses e da possibilidade de construir sobre sua base um ambicioso projeto de transformagao social, como pretendiam os populistas, e particularmente 0s socialistas-revolu- Ciondrios, a caracteristica basica da sociedade agraria esta em seu acelerado desenvolvimento capitalista que se realiza atiavés da clara separacao, no interior mesmo do campesinato, entie proleta- riado e burguesia. Para os populistas, o capitalismo, além de indese- javel, tinha poucas chances de prosperar na Russia, daca a propria miséria em que se achavam os produtores rurais. A redencao da pobreza poderia ser feita através dle um caminho que poupasse a Russia a passagem pelo capitalismo, jé que ela possuia base soci para ir diretamente ao socialismo. Para Lénin, a6 contrario, a pobre- za nfo era incompativel com o surgimento de um mercado interno para 0 avanco capitalista. Ao contrario, a aceleracao da pobreza (resultante da separagao entre os produtores e suas condigses ime- diatas de trabalho) ¢ 0 crescimento do mercado eram processos simultineos ¢ indissociaveis". Nao se tratava, para os social-demo- Ean un de sous primwiroe tribathos, Lénin (1893/1966:87-140) desenvolve esta resto, cuja exposicse complet sera feita n’O Des 42 © Saco de cratas, de apoiar qualquer reivindicagao no sentido de fazer re- troceder a agricultura a seus tragos pré-capitalistas, mas ao con= trario, de apoiar a eliminagao completa das formas feudais, inclu sive daquelas representadas pelas relagées comunitirias entre os camponeses Em suma, se do ponto de vista da luta democratica, os social- democratas apoiavam as reivindicagées dos camponeses como um todo, sob o angulo da Tuta socialista, seu apoio limitava-se aquelns parcelas da populagao rural que se encontravam em identidace social com o proletariado urbano. E interessante observar que essa parcela nao ¢ formada por um proletariado agricola completamente separado dos meios de produgio, classe que praticamente nao exis- tia no mundo rural russo. Onde © trabalho dos social-democratas everia concentrar-se era. em torno dos camponeses pobres que, mesmo possuindo terra, vendiam também sua forca de trabalho, fazendo parte, portanto, objetivamente, do proletariado. E impressio- nante 0 esforco de Lénin em retirar das estatisticas disponiveis em seu tempo — € no 56 na Rassia, mas também na Alemanha e nos E.U.A.® — 08 elementos mostrando 0 carter verdadeiramente i sori do crescimento de pequenas propriedaces: na verdade, para Lénin, longe de qualquer sinal de fortalecimento do campesin que o peso imenso das pequenas propriedades mostrava ¢) massa de individuos paupérrimos que, embora possuindo um lote de terra, eram obrigados a assalariar-se para viver. A insistencia nese ponto é importante pois em torno dele for- mou-se talvez o mais importante paradign ista no estudto di sstneia da vida agriria de i Esta proposigio tem que ser tratada como um pa sentido kuhniano e s6 pode ser compreendida se em torno dela for elaborado um trabalho de sociclogia do conhecimento e de histéria das ideias sociais. Seu valor heuristico é menos importante que o conjunto das condligdes om que se insere e que a explicam, A maior demonstracdo de que a énfase na diferenciacao social reflete muito mais as condig6es politicas em que Lénin atuava do que propr objetivas ¢ universais do desenvolvimento do eapit estd tanto em trabalhos como os de Szurek (1982) que mostram um *Com relagio 8 Alemanha, ver Lenin, 1907/1967:179-228. Comm relagio aos Esta dos Unidos, ver Linin, 1916/1960:9-208, 43 0 Saco ce certo malabarismo estatistico no estudo da diferenciacao social”, onde por vezes a posse de quatro ao invés de um cavalo pode servir para estabelecer a linha de limite entre classes sociais antagénicas; nem tampouco no fato de que as tendoncias idontificadas por Lénin de crescimento do campesinato pobre ¢ do proletariade nao foram confirmadas, posteriormente a sua morte, em nenhum dos paises por ele estudado. Talvez a maior prova do carter circunstancial da suposta lei da diferenciagao social dos produtores em classes sociais, antagonicas esteja no fato de que dia Alemanha sai outro classico da literatura agréria marxista, alidis aplaudido entusiasticamente por Lénin, no qual outros temas so colocados em realce. Vejamos a questiio mais de perto. No Preficio a edigio francesa d’A Questio Agrdria, Kautsky dlesculpa-se junto aos leitores daquele pais por ter ali publicado previamente uma obra voltada fundamentalmente a polémica — O rxisino e seu critico Bernslein — e declara-se agora redimido por apresentar um livro onde pode mostrar que vo me agrada mais do que a lula contra camara- “0 trabalho posi Jn minhas...” (Kautsky, 1899/1980:18) De fato, a obra é redigida em estilo tal que se tent por vezes a impressao de se tratar de um compéndio cientifico, Nada mais falso, entretanto. Se O Dese tento do Capitalismo na Russia nao pode ser compreendiclo fora do quadro da tentativa de afirmagio de uma organizacao marxista operiria na luta contra a autocracia, A Questo Agniria tem pouco sentido se abstrafda dos problemas colocados igualmente para um partido opersrio (entretanto jé constituido} no quadro de uma democracia parlamentar. A obra foi escrita apos alguns anos de polémica no interior da social-democracia alema, cujos interlocutores reais sio raramente citados por Kauttsky: 0s chamados "revisionistas” que tém em E. Davi um de seus expoen- tes mais importantes. Em 1890, imediatamente apés sua legalizacao, a social-democt PB importante taenbien, alo 2 WAs teres de B. Davi foram i 44 0 Saco de Batatas cia alema, com um quinto des votos, ¢ 0 mais expressivo partido do pais, embora sua representacao no Reielislag nao corresponda a quantidade de sufragios por ela obtidos nas eleigoes. Alem disso, no plano regional, seu peso parlamentar € muilas vezes nulo, até mesmo porque as restrigoes & livre manifestacao eleitoral, bastante atenuadas em termos federais, ainda eram imensas nos diferentes Landtagen (Hussain € Tribe, 1981/1983:73). A ilegalidade em que Bismarck mergulhou o partido em 1878 nao impediu que seus principais Jideres continuassem participando da vida politica ¢ eleitoral do pais nem que a influéncia geral da social-democracia, uma organizagdo que mesmo no periodo da ilegalidade nunca se mostrou inclinada a aderir a liticas de natureza insurrecional, se ampliasse. Diferentemente de sua atitude com relaio & Riissia, Marx e Engels enxergavam nas lutas de massa e na sua expressao eleitoral uum elemento decisivo — embora nado exchisivo, é claro — do cami- nho para o poder na Alemanha. Ora, dos vinte por cento de votos obtidos pelos social-democratas em 1890, pouquissimos vieram do meio rural, cuja represeatacao politica era monopélio de organiza- Bes conservadoras. Embora no campo vivessem apenas 30% da populagao, sua representagao parlamentar encontrava-se superesti- mada, pois 0 governo recusava-se a alterar os resultados do re- censeamento de 1867, clesprezando entao 0s efeitos do mnacigo éxo- do rural e subavaliando o peso politico da populac3o urbana, Com vinte por cento do total dos votos, a social-democracia s6 possuia nove per cento do paslamento federal, enquanto o Partido Conser- vador, com 12,5% dos votos, a maior parte dos quais obtidos nos distritos rusais a Jeste do Eiba, ficava com dezenove por cento das cadleitas (Hussain e Tribe, 1981/1983:75). Angariar 0 apoio da popu- lag&o rural cra portanto importante para ampliar néo s6 0 peso parlamentar nacional do partido, inas também para incrementar sua Participagao praticamente nula nos parlamentos rogionais, E em grande parte em torno desse desafio que se estruturam os temas relevantes da questo agraria para a social-democracia alem3, E ai podemos encontrar no interior do partido claramente duas tendéncias. Por um lado, aqueles que véem nos camponeses uma categoria social com os dias contados. A propria concorréncia de produtos vindes das novas fronieiras agricolas (Austrélia, E.U.A., por exemplo), provocaria uma baixa tio importante nos precos que acabaria muito rapidamente por inviabilizar a agricultura familiar. 0 Saeo ae Batata 45 A conseqiiéncia politica desta convicgio — que, de resto, nao se revelou verdadeira — € que, no plano programitico, o partido nao deveria contemplar nem fazer qualquer tipo de concessao a retv dicagdes que emanassem dos camponeses enquanto proprietarios privaclos. O trabalho do partide no campo deveria consistir em ‘organizar os assalariados agricolas ali onde eles f=... majoritarios (a0 ieste do Elba, sobretudo) ¢ em expiicar aos camponeses a inevita- bilidade de seu desaparecimento naquelas regides em que, como no sui do pais, a produgao familiar fosse ainda dominante. Enesse contexto que se pode entender 0 célebre texto de Engels A {questo camponesa na Franca e a Alemanhe, escrito pouco tempo antes de sua morte e, na verdade, o tmico dele ou de Marx consagrado especificamente a questdo canponesa, Trata-se menos de realizar uma anilise cientifica a respeito do “campesinato” — apesar clas definigces fornecidas no inicio do trabalho nesse sentido — do que de repreender 0s socialistas franceses e alemaes que queriam vender aos pequenos produtores ihusdes com relagio a suas possibilidades de sobreviven- cia no capitalismo e a fortiori no socialismo. Sem qualquer tipo de complacéncta, Engels aponta ao campesinato apenas dois caminhos: ou sua ascensio social a classe burguesa ou entao sua unio, por forca mais das circunstancias do queda vontade dos social-demnocra- tas, aos operdrios. Seu julgamento, com relagdo ao destino da produgio familiar na agricultura n&o poderia ser mais categorico: “O desenvolvimento da forma capitalista de produgiio rompeu nerve vital da pequena exploractio na agricullura; a pequena exploragdo agricola esta decaindo ¢ marcha irremediavelmente para a ruina” (Engels, 1894/1981;60). No mesmo sentido vai a recusa sistematica de Kautsky tanto no Congressode Breslau, em 1895, quanto na segunda parte d’A Questo Agriria de que a social-democracia possua um programa agrario especifico, além daquele onde as reivindicagdes do proletariade rural (equalizagao das condic6es de trabalho na cidade e no campo, por exemplo) sejam contempiadas. A social-democracia nao pode ter um programa voltado para a defesa de qualquer setor proprie- tario! da populagdo (Hussain e Tribe, 1981/1983:129), Loge no preficio da edigso francesa de eta obra Kautsky (1899/1980'15) deisa no Congresso de Brea ) eu me pronunciaes contra qualquer defesa artificial dos camponsses. Saco te B Social-Democrata da Bavaria postula-se como representante de to- dos os trabalhadores © ndo s6 dos proletirios, atitude bastante semelhante a adotada pelos socialistas franceses. Antes disso, Bebel ja tentara mostrar a Engcis 0 desastre politico ¢ eleitoral das tentati- vas de convencer os camponeses da iminéncia de seu desapareci mento, Em um dos trechos mais interessantes de seu Livro, Hussain © Tribe mostram militantes operarios social-democratas nos anos 1890 indo ao campo nos fins de semana, como “agitadores de nissio e sendo recebido com toda a hostilidade nao s6 pelos grandes proprielarios, mas também pelos proprios camponeses, Com base na pressdo da ala "camponesista” do partido (contra a qual Engels escreve seu célobre texto), 0 congresso social- democrata de Frankfurt de 1894 nomeia uma comissio para esta- belecer reivindicagdes espeeificas aos camponeses (referentes a crédi- to, por exempla), mas no ano seguinte, em Breslau todas as su gesides nesse sentido so rejeitadas Esse & o quadro politico e intelectual do qual emerge A Questifo Agniria, A tentativa mais importante do livto ests emdemons- trar a superioridade da grande exploragso capitalista sobre a pro- priedade familiar e portanto a inutilidade de se procurar frear de qualquer mancira o mavimento inelutavel que 0 capitalismo pro- move de expropriagdo camponesa. Kautsky procura provar teorica~ mente que ali onde es camponeses sobrevivem isso nao é sindnimo de eficiencia, mas de superexploragio, do Iato de venderem seus produtos a precos que nio cobrem sequer a sua propria subsi . O importante é a inutilidade de qualquer trabaiho politico que procure atenuar a irreversibilidade do declinio camponés. E 0 ca- minho para isso est na demonstracao da superioridade técnica econdmica da grande exploragéo sobre a pequena. stiio Agririn qualquer semelhanga com 0 minucioso esforco de Lénin de demons- trar a heterogeneidade social do mundo rural. O paradigma ofereci- jo por Kautsky concentra-se muito mais nas relagées entre agricul tura e indistria, na idéia de "industrializagio da agricultura”, na impossibilidade de 0 pequeno estabelecimento agricola incorporar as conquistas téenicas, organizacionais e econdmieas A disposigio 8s ‘pos 0 Sreo de Batains 47 dos capilalistas © portanto na tendéncia a que © grande e nao o pequeno produtor se integre com a ind Usiria, em stma, na reflexio sobre temas praticamente ausentes do sky ndo pecavam por subestimar porlincia do desenvolvimento capitalista na agricuitura e po! Por enxergar no campo uma realidade homogénea capaz de trazer em si os germes da construgdo do socialismo. Seu desv outra natureza: consistia em localizar no pr organizagéo social era, de resto, completamente difere 16 Fuso) um elemento evidentemente rente do proletariado, mas que a ele poderia se unir ndo apenas provisoriamente, mas, no quadzo de suas diferencas reciprocas, conslituir 0 projeto de transformacio socialista da sociedade. Ora, 0 importante aqui é que © argumento central dos revisionistas era de natureza técnica: cles defendiam, na verdade, a superioridade técni- ca da forma familiar de produgao sobre a grande exploragio capi talista, Conseqiientemente, é nesse plano gue se esiruturam a res- posta e 0 pensamento agrario de Kautsky. £ excessivamente facil mostrar que as” previsdes” tanto de Lanin, como as de Kautsky, na maior parle dos casos, nao se rea- lizaram. © proceso de diferenciagao social dos produtores nao progrediu de mancira a ampliar a quantidade de trabalhadores assalariados no campo. © primeiro recenseamento agricola poste rior aquele em que Lénin (1916/1960) apoiou sew importante tra- a agricultura norte-americana js mostrava tendéncia nante no proletariado agricola’. Mais importante ainda 6 que se realizou algo que contraria inteiramente nao $6 as previsdes tanto de Lénin ¢ de Kautsky, como as explicacdes que eles davam a sobrevivencia das pequenas exploragées agricolas no capitalism: é impossivel afirmar que a sobrevivéncia da producéo familiar no capitalismo contemporaneo seja explicavel pela miséria do produto: Mais que isso: a incompalibilidade entre progresso téenico e producto familiar — tao decisiva no argumento de Kautsky — mosira-se hoje (como veremos na Parte Il deste trabalho) completamente abolid: se & que alguma vez existiu 48 © Suco ee Batatns © que se procurou mostrar neste capitulo nao ¢ uma incampati- bilidade entre os pontos de vista defendidos por Lénine Kautsky, no que se refere & questao agréria. Ao contrario, as congruéncias sito significativas, Mas as énfases e, sobretudo, os eixos basicos em toro. dos quais se articulam os trabalhes de cada um, em suma, 08 paradigmas em toro dos quais se desenvolvem seus “programas de pesquisa” (para empregarmos a expresso de Lakatos, 1970/ 1979) stio diferentes. ) Resto & concLUsOEs O que isso significa para o tema deste trabalho, isto é, para a compreensio das particularidades da agricultura familiar no capi- talismo contemporineo? Podemos resumir em quatro pontos as conclusdes da exposigio acima: 1, Oque existe como questao agniria no corpo tebrico d’O Capital & muito distante daquilo que a social-democracia russa e a alema — que moldaram os paradigmas basicos pelos quais o tema foi encara- dono marxismo desde entiio — elaboraram. De fato o que € proprio a logica de desenvolvimento do capital ¢ 0 problema da renda fundidria — ou seja, das condigdes de reprodugio do capital ali onde um dos elementos da produgio nao é mercadoria — tema que desempenha um papel desprezivel nos escritos de Lenin e Kautsky. 2, Nao sé na obra tedrica de Marx nao 6 possivel encontiar um conceito de camponés, como categoria social do capitalismo, mas também seré va — e provavelmente desembocaré. numa atitude pouco fértil para o conhecimento — a tentativa de buscar esse aparato conceitual na obra dos grandes cléssicos marxistas que trataram do tema. Qualguer tentativa de absolutizar as formas como Lénin, Kautsky ou Engels trataram a questo camponesa, isto 6, de imprimir a seus resultados 0 estatuto de categorias objetivas da realidade social, nao leva em conta que, no marxismo, dada a funcdo que a questéo da producao familiar preenche nas lutas politicas de cada época, o camponés nao pode ser sendo uma catego- ia socialmente construfda, 3, Essa observaciio nao se aplica a todas as categorias do pensa- mento marxista: 6 legitima, sob 0 éngulo da ligien d’'O Capital, a atribuictioa classe operaria, a classe capitalista e classe dos proprie- arios fundidrios o estatuto de categorias objetivas da vida social. Noesse sentido, 4 que nio é possivel encontrar um conceito cle carn 0 Saco de By 49 ponés no pensamento marxista, embora 0 campesinato esteja pre- sente e seja permanentemente elaborado na pratica politica de par- tidos de orientagiio marxista. Isso significa que as indicagSes tedricas dos classicos marxistas voltados 4 questio camponesa sero tanto mais bem entendidas quanto mais situadas nos contextos hist6ricos € intelectuais dos quais derivam e que Ihes do significado. 4 Se o camponés nao @, por definigao, uma das classes que compdem a sociedade capitalisia contempordnea, restam, no plano teGrico & politico, duas possibilidades. Por um lado, aquela pela qual optaram tanto Lénin quanto Kautsky, ao tentarem mostrar que 0 peso atual da produgito familiar nao impedia que as grandes ten- déncias apontadas teoricamente estivessem em franca realizado que 0 mundo agririo caminharia em direcio a uma polarizagio social semelhante a existente na sociedade como um todo. Entretan- to, todos os que, por outro lado, nao acreditavam neste vaticinio estariam inclinados néo sé a compreender as 1a26es momentineas da sobrevivencia da agricultura familiar, mas, mais que isso, a Procurar explicagées aliemativas as fornecidas pelas teorias dis poniveis sobre a forga da produgio deméstica no campo, apesar do desenvolvimento capitalista. E 6 que seré visto nos préximos dois capitulos, CAPITULO 2 DIFERENCIAGAO OU IDENTIDADE: QUANDO O SACO DE BATATAS PARA EM PE A) APRESENTAGAG Apesar de sua importincia p discusses sobre 0 que isso, pode-se dizer — foi o — queo ponto de vista pelo qual Java qualquer ten m suas preocupacbes p cuir ide com as camadas pobres (na ver- dade, segundo ele, proletérias) da populagdo rural no quadro da alianga — necessariamente proviséria, dividida ¢ conflituosa — com ganhar para a adesio dos camponeses, enquanto pequenos proprietirios meios de producio. 52 nte assinalar, sob o Angulo tedrico, que nao faz s ‘eamponesa. Se, como vimos para omarxisino a ideia de ura eco no inicio do capitulo anterior, o mundo das mercadorias se define por sua socialidade contraditéria — onde a ago de cada um é determinada de maneira ndo planejada pelo outro — & nesta teridade que a vida social, e portanto as categorias econémicas centrais que Ihe dao sentido, se constituem. Cada segmento e cada classe da Sociedade sero conhecidos, em tiltima analise pela manei- ra como se inserem na divisio do trabalho. Qualquer categoria social nJo imediatamente incorporada as duas classes bisicas, s6 possuiré uma existéncia social fugaz, inécua de certa maneira. A relagio do camponés com a sociedade, sob esse Angulo o conduz fatalmente a autonegacao: seu ser 86 pode ser entendido pela trage- dia de seu devir. Sua definicao necessariamente negativa: ele é alguém que nao vende forca de trabalho, mas que nae vive basica- mente da exploracao do trabalho alheio. Neste plano, entao, no mundo capitalista, o camponés pode ser no maximo um resquicio, cuja integragao a economia de mercado significard fatalmente sua extincao. E de certa forma contra esta perspectiva que se estrutura a obra dos autores estudadas neste capitulo, Alexander Chayanov e Jerzy Topicht, para 08 quais a econontia componesa pode ser objeto de conhecimento racional e positive. Mais que isso, 0 que procuram demonstrar sdo leis de funcionamento, expressbes cientificas de uma existéncia que nada tem de contingente e ocasional: 0 campesinato existe por responder a uma necessidade social. O que estabelece © io desta necessidade no €, ao contrario do que ocorre en Marx, a relagao com 0 outro e a superagao de si proprio no quadro desta relacio. Ao contririo, é no interior mesmo do organismo camponés (mais do que na sua inserssio social) que seria aqiti procurados os elementos que fazem dessa forma social ida na 0 mais velho e mais universal modo de produgso conh histéria” (Galeski, apud Shanin, 1973:63) evna: Belgica.” Manteve-contatg, estreito céim: Box 3 ALEXANDER CHAYANOV Apesar.de seu autoritarismo politico, de seu atraso econémico ede sua imensa miséria social, «Russia da passagem do século reunia uma impressionunte quantidace de grandesintelectuais em todos os campos-da cultura huinana, da pintura A mésica, pasando pela literatura ¢ as ci@icias sociais. E neste ambiente que Alexander Chayanow (1888-1930) destaca-se ja em 1913, nao 86 ¢6mo professor de um importante institute de agronomia pérto de Moscou, mas pela'relevanciardos tlabalhos que entao, muito precoceinente, publicara. Ele é 0 principal expoente de um gruporde economists agricolas e engenheiros agténomos que fics conhecido como. a Escola da:Organizagao da Produstio”, por-sua’ pernianente tentatiya de contribuir para que. os:camponeses ‘pudessem-melhor gerir os, réetirsos. por eles disponiveis: Na Veidade, este’ grupo exprimia.g trabalho, molecular realizado no interior do pats por milhiares de jovens agronomos que. reininai seu seritimento de, pposicio. ao tzarismio.a Pesquisas extrevhamente minuciosas sobre a vida camponssa: Além de um conlieciments profundo da geografia agiria dé"seu proprio pais, Chayanov éra umrestudioso dos assliites ligatlos ao desenvolvimento agricola & Sobretuds ao coopéfativismo na Franca, ra Sica, na Italia‘e na Alemanka Aportantes intelectuais destas' paises: como, os. célebres™econdmistas Bortldewicze Alfa! Weber emcuja revista (dirigida jgualmente por, J. Schumpeter-e"E; Lederer). publicou ‘estiidds“sobre a questo’ agraria russa"€ seu’ famioso. trabalhis- publicado. em portugu@s e que citamos aqui (ver Bibliografia) por Chayanov, 1924/1981, Além desis dtividades tomo econgmista. agricola, escrevett obras de erttica dé pintara ¢ trés romances; Destes, 0 mais famoso. (Viagem ‘de meu Irmo Alexis ao Pais, da Utopia Canipons@, Chayariov, 1920/1976) conta a historia. de, Alexis Kreiniov gue, magicaniente, desperia"na Ruissia:em.1984 conteiitplando as mudancas trazidas'por 67’anos de révohucio. Hameshiorquem diga que.a data do célebre livio de Orwell (A Revplugae dés Bichos) foi inspiratia no romance dé Chayanoy..£ interessante" ressallar. (fato-pouico conhecido entte. nds) que »Chayanov-fol vice-mihistro do-gbverno Keréisky, derrubado. 53, pelos bolcheviques na, Revolucdo de Outubro, Isz0. nio 0 impediu de colaborar_ativamente com 9 novo regime, na tentativa, quase desesperada, de persuadir os comunistas di catistrofe que a coletivizacao forgada piovocaria no pais-e da contribuicao que 0 cooperalivismo poderia oferecer a construgio do socialismo. woth Evidentemente, os camponeses ndo sfio e nunca foram entidades reieas nem independentes, distinguindo-se assim de um sem- numero de formas diretamente comunitarias de vida. Er 0, em que pese ndo s6 sua iuserciio, mas sua subordinacdo a universos mais amplos — tacos que faria do campesinato uma sor parcial (part-sociely), paca importantes antropélogos que se de- brugaram sobre a questio, como veremos no Capitulo 4 — ¢ pos- sivel localizar elementos de permanéneia, de continuidade, de unidade cle um modo de ser que exige e merece das ciéncias socinis uma caracterizagio propria, que nao a que se apéie apenas em suas diferengas com relagtio a outras categorias sociais. Os formuladores marxistas clissicos da questiio agrétia sero aqui interlocutores permanentes — mesmo que nem sempre cltados — por duas razées 1. £ sobretudo em toro das opiniées de Lénin — e sobretudo com base em sua énlase na diferenciagao das classes sociais no campo — que se reorganizaram no 36 a agricultura soviética no sta posterior NEP* como também a dos paises da indveis como a da Polonia, a partir de 1948, em que "(..) 08 ativistas encontravam enormes dificuldades em distin- guir um ‘médio’ de um kowlak, dispondo um de duas vacas © 0 outro, de dois cavalos” (Szurek,1984:111). isto &, com forte peso da inicintiva privada). No meio perseyaiso que sofreram os “kulaks" (componeses rico3) ne oatustecimento nacional cla NEP e a concentragao do poder ‘ewjos resultados no sé roficos, como previra Chayanov. sng 55 Além disso, “(..) muitos camponeses cansideradtos ricos ¢ pro: pricdade entre 05 membros da famflia, tentande parecer ‘pobres’ ¢ aliviar os impostos exorbitantes que Ihes cram cobrados. Reta iafam, assim, uma estrutura agréria onde nio cabiam redistsi- buigdes. Fin seguiida, quantidades consideraveis de agricultores fizeram-se passar por pobres, com vistas a se beneficiar de facili dades diversas; depois de devastar suas exploragées, aderiram as cooperativas de produgao — onde pela boa causa o Est protegia — sem melhorar, evidentemente, sua produlividate” (Szurek, 1984:111). Alexander Chayanoy, o primeiro autor aqui estudado, tinka per- feita consciéncia das consegiiéncias nefasias do coletivismo e nio 6 sem razio que 0 proprio Lénin — cujo sentido pritice era certa- mente mais forte que a fidelidade incondicional as teses que ele proprio defendera durante tada a vida — 0 convidou para chefiar a segiio agraria da Academia de Ciencias da URSS, cargo que manteve alé 1930, quando, foi expurgado pela persegu Hi portanto um sentido politica unidade, a identidade — ao inwés da ob: = do campesinato: trata-se de um setor — 6 o que 03 autores aqui estudados pretenderio demonstrar — que possui subsLincia socta para a fundamentagdo sendo de um projeto auténomo, ao menos do desejo de que na luta pela emancipacéo social sua posicéo propria soja respeitada e valorizacta, Vai alids na mesma dlisecio a alirmacio de Tepicht — que tem um sentido sobretudo autocritico, ja que ele participou das tentativas de organizar os camponeses poloneses cm cooperativas durante os anos 1950 ¢ foi ainda um dos divulgadores. das teses leninistas (Szurek, 1982) — de que na Polonia, "(..)0 problema que secoloca ndoé oda eficiéncia — muito grande — do controle do poder econdmico sobre este setor, mas o do controle que 05 interessados — produtores e consumiciores de generos agrfcolas — sao suscetivets de exercer sobre este poder” (Tepicht, 1973:6). Dif Box 4 CHAYANOV E O STALINISMO, hayanow tinha plena consciéncia: dos limites da agao auténoma do campesinato endo era, como veremos, adepto do isolamento e da autarcia. A preocupagtio central de sua obra nao est em conservar valores e formas sociais antigas, mas em. como promover amodernizagao econémica em ambientes onde estas formas sao dominantes. Esta preocupagao constante com a modernizacio da agricultura ¢ do mefo rural, nao impediu que, juittamente com outros inipertantes cientistas'agrarios, Chayanov fosse acusado em 1930 de organizar uiri Partido Cemponés, que teria de 100,000 a 200,000 membros ¢ uma vasta rede em varios setores goveifiamentais. Na, verdade, como mostra Medvedev (1987:83), ‘0 Partido Camponés foi inventado para oferecet bodes expiatérios para a escassez alimentar ¢ particularmente de Varios cientistas foram imediatamente executados apés confessarem-se” responsaveis pelos problemas com 0 abas~ tecimento de carne. A repressio stalinista contrasta nitidamente com 0 fato curios de que Lénin autorizou pessoalmente'a edicao do romance de Chayanov em 20.000 exemplares; 0 que suscitou, da parte dos bolcheviques, muitas criticas’ pelo desperdicio de. papel em plena Guerra Civil... No infcio dos anos 1920 Chaynov confiava no sucesso da NEP, tanto ¢ que, apds viagentt de.esttidos pela Inglaterra € Alemanha em 1922/23, ele volia a URSS e ai assume posto de direcio no Instituto de Economia Agric Em 1924 ele publica uma coletanea de seus textos, mas prefaciados por um jovem socidlago bolchevique que 0 apresenta como expeenteda ideologia pequeno-burgesa (nem capitalista, nem proletéria): (Mottura, 1988). Duranté 03 anos 1960, 6nome de Chayanov aparece timidathente na Enciclopedia Soviticn, sem a.data de sua morte e com 0 pedids' dds leitores de cuid'se alguém tivesse informacso arespeito, que ihformasse os editores da enciclopédia. Apés cingitenta anos deostracismo, os trabalhos de Chayanev agora sero teeditados em russo. ‘Tanto aameaca da coletivizagio, quanto sua experiéncia concreta formam portanto 0 pano de fundo do qual emergent os trabalhos dos tedricos da economia camponesa aqui estuviados. 2. £ preciso reconhecer, entretanto, que 05 classicos marxistas da questao agraria tocaram num ponto essencial sobre cuja resposta nao ha, mesmo pasa os teéricos da economia camponesa, unanimi- dade: quais as transformacées que sofre 0 campesinato com sua crescente insergao nas relagdes mercantis? Se é relativamente facil mostrar que as previsdes apocalipticas sobre seu desaparecimento nao se confirmaram, nao se pode entretanto falar com trangiiilidade de sua manutengto nas sociedades contemporaneas. As mudan sofridas pela produgio familiar na agricultura de hoje sao tao pro- fundas que se nao se encaminharam no sentido da diferenciagéo social, por outro lado no permitiram que as caracterfsticas centrais da producdo camponesa permanecessem. Como veremos adiante, @ imensa a contribuigao de Chayanoy, Tepicht e de outros estudiosos da economia camponesa que serio expostos no préximo capitulo, para a compreensiio de um tipo social que, entretanto, nem de lon- ge, possui, na sua estrutura organizacional interna, a estabilida- de freqiientemente a elc imputada. Nesse sentido (€ 0 que ve mos na conclusio deste capitulo), pode-se perguntar até que ponto é possivel apoiar-se nas determinagées dadas pelas caracteristicas internas” do campesinato para compreender sua logica econémica Tanto Chayanov como Tepicht — @ necessirio que seja frisado, logo de inicio — tém perfeita consciéncia de que por mais impor- tante que seja a caracterizagao do camponés como uma forma so: estivel, esta tende irrefreavelmente a transformacio e, no limite, a extingo, No plano pratico, isso se traduz pelas preocupagées per- manentes de Chayanoy com a formagio de cooperativas capazes de estimular a modernizagiio da producao familiar ¢ pela constatagZo de Tepicht de que, nas sociedades de hoje (mesmo nas de economia ente planificadas) a existéncia camponesa apéia-se sobre um conjunto de condigées que o proprio desenvolvimento social ‘o tende a eliminar. 8) Avexanee C} .YANOV Uma apreciacao de conjunto sobre a obra de Alexander Chayanov € muito diffeil, j4 que uma parcela reduzida de seus textos foi traduzida e publicada no Ocidente (Chayanov:1920/1976; 58 Diforencingio ow Ide 1924/1981; 1925/1986; 1930 © 1988) Felizmente, porém, 0 acesso a seu Jivro mais importante permite que se tracem aqui o aleance ¢ os Timites daquela que, certamente, € a mais completa tentativa de teorizagao a respeito do comportamento econdmico camponés, es- crita por um autor cujo espirite cosmopolita e cuja invejvel cultura ‘em campos estranhos a drea econdmica e agron6mica nao impediam uum conhecimento minucioso do interior de sew proprio pa A base deste conhecimento so os Zemstvos, escritérios de repre~ sentagio da populacio rural, criados em 1864, em grande parte para Jevar adiante as reformas decorrentes da aboligao da servistio (1861), para recensear a populacdo e que, para tanto, se langam num (..) vasto programa de pesquisa econdmica ¢ estatistica sobre os problemas econdmicos camponeses” (Thorner, 1986:xi) Mais ce 4.000 volumes foram produzidos por estes escritérios até a Primeira Guerra Mundial, formando um conjunto de informagoes sobre a economia camponesa ao qual nada de comparavel foi feito em qualquer outro pais até hoje. Varios dos profissionais envolvidos nesles levantamentos e nos trahalhos de apoio ao campesinato pré- prios aos, nislas ao regime tzarista e simpati- cos as Iutas camponesas. A forca destes centros locais de producao de informagbes, anslises ¢ trabalho de apoio ao campesinato era tio grandee Jguns de seus relatérios tao chacantes que em 1890 0 governo aprovou uma lei proibindo qualquer pesquisa sobre as relagves senhor-camponés, 0 que nfo impediu que as investigagées pros- seguissem” (Thorner, 1986:xii). © estudo desta imensa massa de dadios, assim como 0 contato permanente com os técnicos trabalhando nos zemstvos, persuadiram Chayanov de que os métados de contabilidade empregados habi- tualmente em estudos econémicos revelavamn-seinconsistentes quan- do aplicados 4 economia camponesa, exigindo assim mudanca na propria atividade de recalhimento de informagdes e de andlise estatistica (Kerblay, 1986.xxxi). © problema que preocupava Cha- yanov é hoje de grande atwalidade nas ciéncias sociais como um todo: nao se pode compreender o campesinato imputando-lhe cate~ gorlas que nao correspondem a suas formas de vida. Embora a Difereneiacio ou ta ida 39 unidade de produgdo camponesa lide com trabalho, bens de produto € terra, disso nto decorre a presuncao de que ela gera salario, e rend da terra, Tal abordagem — tipica da e4 que através do economista suico E. Lour impunha-se nos métodos de pesquisa ccondmica sobre a agricultura na Europa e particular. mente na Franga — apresentava o grave inconveniente de demons- trar a inviabilidade? de estabelecimentos econdmicos que entretanto existiam e podiam mesmo conhecer uma cesta prosperidade, A alternativa marxista de enxergar o camponés como uma espécie de inco social (simultaneamente patrdo, empregado, proprie- tario e arrendatario de si proprio) parecia um recurso mais de guagem que um instrumento para se compreender de fato aquilo que Chayanov considerava como objeto de conhecimento necessirio € possivel: "a morfologia da maquina produtiva chamada unidade de produgio camponesa” (Chayanov, 1925/1986:44), Seu empreendimento teérico, sobretudo para as condigdes erm que se encontravam as ciéncias sociais da época, era monumental: nao se tratava simplesmente de repudiar 6 marxismo em beneficio da economia neoelassica ou vice-versa, mas de elaborar uma Tio Sistemas Econdmicos ndo Capitalistas (Chayanov, 1924/1981). E claro que entre estes sistemas ecandmicos nio capitalistas destaca- se a economia camponesa. O campesinato nao é simplesmente uma forma ocasional, transitoria, fadada ao desaparecimento, mas, a0 contrario, mais que um setor social, trata-se de um sistema econdmi- co, sobre cuja existéncia & possivel encontrar as lefs da reproducto esa poltimento® Diferentemente do trabalhador assalariado, o camponés é um “(..) sujeito criando sua pro ia existéncia” (Chayanov, 1925/ 1986-118). * Um interessante exemplo desta inviabilidade contabil de camponts € fornecido por Bazlett (1984151). Na Costa Rica, ela pelos metoilos contsbeis tradicionais, seria j recursos e sobre @ vel um pairae de 9. Na vertadle, @ que o contiario, 0 chayanovistas que sevte expostes logo adnate. io de Speroito (1988:50} « sespeito. 60 Pie As razBes que determinam suas tomadas de decisto podem encontradas através da observagio de suas “(.) idéias organizacionais, a maquinaria de seu organismo econdmico individual que a ‘unidade subjetiva teleolégica da atividade econémica racional, isto & da gestao de seu esta- belecimento’” (Chayanov, 1925/1986:118). Nao € o estudo de sua insergdo na divistio social do trabalho e o papel que af ele desempenha que explicam o comportamento cam- ponés: a contrario, & pelo estudo de seu comportamento que se pode compreender a mancira como ele, enquanto “unidade subjeti- va teleolégica”, se insere socialmente, Em outras palavras, merca- do, a disponibilidade de terras e © padrao tecnolégico disponivel So fatores dos quais o camponés se serve na montagem de seu objetivo econdmico fundamental, mas nao explicam por si s6 este objetivo e portanto a concuta do agricultor. A lei basica da existéncia camponesa pode ser resumida na ex- pressiio “balango entre trabalho e consumo”, Diferentemente de coven francés por No glossstio prepara~ do pelos editores da trodugie 10 de Chayanov (Chayanow, 1925/1986 27UD), nexprossio 6 dot eulo, nfo necessatioment "0 bisico entre 9 do" (Chayanow, 1913/1988:73), ‘Tale no sj in sobre Chayanev, pa Dijfeceacingite on te 1 ma empresa capitalista, num estabele 9 camponés o crilério de maximizacao da utilidade nao é a obtengao da maior Iuera vidade possivel em determinadas condigces. O uso do trabalho camponés 6 limitado pelo objetivo fundamental de satisfazer as necessiclaes familiares. F estas no se confundem forcosamente com as necessidades de uma empresa. © trabalho ser tanto mais, valorizado quanto mais distante se estiver deste objetivo. Inversa- mente, uma vez o consumo familiar assegurado, sera atribuido um valor cada vez menor a cada unidade adicional de trabalho. Neste sentido, “o volume da atividade familiar depende inteiramente do n= mero de consumidores e de maneira alguma do ntimero de trabalhadores” (Chayanov, 1925/1986:78) Aumentando o tamanho da familia crescera a intensidade do trabalho. O importante € que tanto a satisfagiio das necessidadtes de consumo, come o julgamento sobre a penosidade co trabatho capaz de atingi-la sto de natureza estritamente subjetiva, © valor que a familia atribui a seu esforgo — e que explica o volume da atividade econémica — depend da estimativa que é feita do trabalho, relati- vamente A satisfagio ou ndo das necessidades de consumo. Em outras palavras, trata-se de determinar a utilidade marginal da rend obtida, refativamente as necessidaces de consumo pois 6 isso. que permite “(.) estabelecer a natureza da motivagio da atividade econémica da familia camponesa” (Chayanov, 1925/1986:46). Dai decorrem duas outras idéias bisicas do pensamento de Chayanov. Primeiramente, a renda fantiliar & wu todo indivisivel cuja formacao se origina e depende de um organism econdmico tnico. Por essa razio € equivocada a tentativa de conceber 0 camponés come urn capitalista que € seu proprio operdrio, Na unidade de producao camponesa, a familia (..) como resultado de seu ano de trabatho recebe uma renda do trabalho tinica e pondera seu esforgo relativamente aos resultados materiais obtides” (Chayanov, 1925/1986:41). 62 ‘© que determina 0 comportamento do campones nao € o interes- se de cada um dos individuos que compoem a familia, mas sim as necessiddacies decorrentes da reproduyio da conjunto familiar. aseauln na unidade do orgs scon6mico familiac, na indi- tamente subjetiva de seu processo de tomada de decisées por outro, Chayanov propée 0 conceit de auto-exploragdio do campesin to. Niio que o trabalho camponés nio seja apropriade sem cqui- valente por oulras classes sociais ¢ ainda pela agroindastria, Pode- ‘Mo, porém, na medida em que a intensidade do trabalho camponés nto é determinada por sua relagio com outras classes da sociedade, mas fundamentalmente pela razio entre a penosidade dos esforgos empreendidos, relativamente a satisingio de suas necessidades, A exploragéio que outras clas- s05 exercem sobre © camponts depende antes de tide do proprio camponé: nto unidade de autodeterminagao de sua orgent- zacao econdmica. A medida desta exploragio & dada em Fangio de tum proceso de tomada de decisses que @ interno a fam que niio le produvir 6 determinada por fatore familiar’ E importante que sojam mencionados, ainda gue rapidamente, quatro pontos sobre os quais nao so incomwuns as incompreensdes a respeito do pensamento de Chayanov: rminagao de comportamento campones por uma di rma. a fam nente, produzindo para a subsisténcia sem passar pelo mercado, estranha aos mecanismos de tomada de financiamento ou avessa ao progtesso tecnico. Todos esles fatores sio consiclerados, por Chayanov — embora dle uma forma que nao deixa de calocar problemas, como veremos adiunte — e seu modelo ndo supde abso. ¢ uma autarcia que na Russia de seu tempo estava longe de interiores aa) jade de produ a ia no significa que esta se mica fa snareenos NO prONieo los cam problemas do Chayanov. Diferen 6 exisli, S6 que é da relagdo entre a penosidade do trabalho ea satisfacao das necessidades que vai depender a escollra da familia com relaco A venda de suas safras, a0 uso de financiamentos ou a0 uso de insumos de origem industrial. © raciocmio de Chayanov é ai apoiado nas técnicas da escola marginalista que ele conhecia bem alzavés sobretudio da obra do economista inglés Stanley Jevons. A aplicagao de capital nao depencle apenas do fato de que ela pode reduzir a penosidade do trabatho, mas sobretuco dos iinpaclos que 08 gastos de investimento terdo sobre o consumo familiar e dos uses alternatives do tabatho poupado. Se o investimento de capital ificar gasto de dinheiro visando a redugao de esforgos sem que isso se traduza num aumento da renda bruia familiar, ou de maneira a provocar uma ociosidade do trabatho, cuja utilizagdo teria a vir~ tude igualmente de aumentar a renda bruta, sem entretanto provo- car gastos com compras de equipamentos, o inveslimento nio serd to, Por esta raza0 os camponeses russos repudiavam a adegao de mxéqutinas para beneficiamento de cereais (larefa aliés particutar- mente penosa) jé que ¥(..) 0 trabalho deslocady pela maquina ndo podia ser usado em as tarefas no inverno (..).” (Chayanov, 1925/1986:39) Nao ha aqui qualquer tipo de aversiio ao progresso téenico nem por parte de Chayanov, nem por parte dos produtores, mas apenas. a constatacao de que 0 uso de meios de producdo de origem indus- trial submete-se aos imperatives determinados pela logica da produgio camponesa. 2. Enquanto pequeno produtor de mercadorias, o camponds est condenado ao desaparecimento, a seu desdobramento em uma das duas classes funcamentais da sociedade: © proletariado ou a bur- guesia. Esse ponto de vista, defendido teoricamente, embora ate- nuacio na pratica da implementacio da NEP, per Lénin durante toda a sua vida, foi frontalmente combatide por Chayanov ante os anes 1970, © pensamento de pelo para — ade Lin igona don n= que, com 64 Dif “0 processo dinamico de proletarizagio agricola e concentracio da produgao, que conduz as grandes unidades produtivas agrico- las baseadas no trabalho assalariado, desenvolve-se pelo mundo, ena Unio Sovieticaem particularaumataxa muito maislentaque © esperado no século XIX” (Chayanov, 1925/1986:257) neiagie ou Ideritidade Os dadlos dos zemstvos mostravam que, contrariamente ao que se poderia prever num processo de diferenciacéio social, o que aconte- cia na Russia era uma tendéncia ao aumento da area des pequenos estabelecimentos e uma queda na superficie dos grandes, que se explicava em funcao da historia deogréfica dos estabelecimentos: conforme a familia crescia havia maior demanda por novas areas e, na medida em que os filhos se casavam, ficando na unidade de produgdo somente os pais, esta demanda declinava?, Onde entao Lenin enxergava diferenciagio, Chayanov apontava para a identidade social do campesinato, Sobre a base desta identi- dade moldavam-se as novas tendéncias do desenvolvimento capi- talista na época que se caracterizava pela integracao vertical (atra- vés justamente das relagdes entre 09 estabelecimentos familiares © a agroindtistria) e nao horizontal na agricultura, Mesmo no so- i ser a tendéncia central, ‘Veremos logo abaixo que este ponto é de fundamental relevancia politica 3. Esté completamente ausente do livro de Chayanov a impor- tante discussao contemporanea a respeito da relagao entre o tama nho do estabelecimento e seu desempenho econémico*. O camponés nao existe em virtude de especificidades naturais da producéo ‘ola que tornem vidvel sua competicio com a grande empresa capitalista. Nao hé qualquer mengio a uma possivel "deseconomia *B importante we astas conclusdes este fundamentadas mim acompa- inhamento de trajetérias de astabelecimentos agricolas em série de trinta anos, parh regider da Res base em infers ims, por exemple. Uma das bases dae conciides de Chayanov € uma cern ‘acomuna agricola (0 famosa Mir) procedia a wna i ent funcio de suas neceseidader, Mano de Ko eese pont em seus intereesantes co ne Brasil 2 (1088) faz um importante Jevantamento sobre este tema na ‘economica internacional, conchiinda de mane’ pela insignifieancin das econamias de ‘mentor s5o retomados ens ‘Veiga (1991), sobre os estes sobre 6 de tamanho” da grande exploragtio que permita entao o desenvolvi- mento da pequena’. Nao sto as caracteristicas especiais da agricul- tura que explicam a existéncia do campesinato, mas, a0 contrario, 6 a existéncia do campesinato que explicaré a maneita como esta moldada a estrutura social no campo. Prova disso é a interessante observagao de que os principios basicos da unidade de producao camponesa nfio so exclusives do campesinato", mas pertencem a qualquer unidade produtiva onde “(...) © trabalho esti ligaclo a0 gasto de esforco fisico e os ganhos so proporcionais a este esforgo (..).” (Chayanov, 1925/1986:90). 4, Dentro da divisao convencionalmente adotada para classificar correntes de pensamento nas ciéncias sociais entre individualismo e coletivismo metodolégico (Nagel s.d.:481-41; Przeworski, 1988; Bob» bio e Bovero, 1979/1986), onde classificar 0 trabalho de Alexander Chayanov? A unidade basica com a qual trabalha ndo sao indivi- duos nem motivacoes psicoldgicas individuais. Seu ponto de parti- da é, 0 conteirio, a determinagao dos comportamentos individuais em fungao da unidade social em que se inserem: a familia. A condu- ta da familia porém é explicada por fatores de natureza estritamente econémica"’, Ngo existem normas a reger o comportamento das familias sendo as quantificadas nas estatfsticas dos zemsivos e que pociem ser reduzidas as leis econémicas fundamentais que foram expostas acima. © conhecimento cientifico sobre o sistema econd:mi- co camponés apsia-se na idéia de que as diferentes condutas indi- viduais possuem todas uma determinagio comum que 6 0 quadro familiar em que se inserem e que as explica, Apesar do caréter econdmico e da tentativa de imprimir objetividade as leis expostas, 0 trabalho estatistico ¢ interpretative aproxima-se entretanto do da oxganizada por Sperotto (Chayanov, 2985} 2 23), rosie 0 ete sobre as pe oc ¢ Bertaux-Wiame (1987). No hs em Chayanow qual 1 abordagern de 66 ow Hdetidinde hermenéutica contempordnea na medida em que busca na existén- cia cotidiana do campones as categorias fundamentals pelas quais sua vida pode ser explicada, Que estas categorias sejam elaboradase interpretadas por Chayanoy no impede que elas tenham a preten- sao de retratar objetivamente as aspiragées, as molivacdes @ os determinantes do proceso de tomada de decisiio, que stio de na- tureza subjetiva. O interesse do esforco de Chayanov ¢ tanto maior que sua interpretacao nao se limita 4 exposigao de casos especificos ou a simples repeticao empirica de fatos localizados observactos, mas pretende imprimir universalidade, necessidade social a existén- cia camponesa. O campesinato deixa de ser uma calegoria social transitéria, contingente, prestes a ser varrida da historia pelas por tas dos fundos do desenvolvimento. Da mesma forma que localizamos no capitulo anterior as sa26es politicas e historicas que nos resguardam de ver nas idéias dos classics marxistas da questtio agraria aquilo que no so ~ expresses cientificas universais de um objeto de estudo que, no interior do marxismo, passive! desie tipo de trata importante assinalarmos aqui as preocupagues de natureza pratica a que responde a elaboragao de Alexander Chayanov, Logo na Introducao de seu livro ele mostra quem sao seus inter- locatores, aqueles que imprimem sentido até mesmo operacional a seu pensamento: "(..) muitos milhares de funcionarios agricolas ¢ trabathadores nas cooperativas emergiram das profundezas do interior do pats. Eles nao apenas abservam eestuclam mas, no seu trabalho profis- sional, so obrigadosaorganizara unidade de produgiocany sa, entrar no detalhe, até a base, do seu plano organizacional, procurar e encontrar caminhos para mudé-la e construir um novo terior da Russia através de seu trabalho molecular” (Chayanov, 1925/1986:36) Da mesma forma que € em torno do didlogo com militantes de um partido marxista que Lenin e Kantsky elaboram seu pensamento agririo, 6 no is de seu tempo © com base nos problemas que eles enfrentam que Chayanov monta sua teoria. O importante a assinalar aqui é que os desafios colocados aos de 67 Diferenclagio ow Id extensionistas séo de natureza eminentemente pritica: trata-se, para eles, de tentar methorar 6 desempenho econémico dos camponeses e é com essa perspectiva que se colocam as questoes que determi- nam tanto um Jevantamente estatistico especifico e original quanto a orientagao geral de seu trabalho. Por mais que as posicdes das ptincipais entidades representativas dos agronomos russos fossem antitzaristas” sua atividade cotidiana nao consistia em organizar politicarente os camponeses ou fazer junto a esses a propaganda de um novo regime que viesse melhorar suas vidas e sim em aspectos econdmicos e técnicos. Nesse sentido, independentemente do siste- ima econémico no qual se inserissem os camponeses, a missiio dos agrénomos que junto a eles trabalhavam consistia em encontrar formas organizacionais que propiciassem a cada unidade individual de produgio — ainda que isso envolvesse aspectos importantes de orga~ nizagao cooperativa — methoria de renda, progresso tecnico ete. A 8nfase de Chayanov na :notivagto do campones nao pode ser explica- da simplesmente por sua sdlida formagao marginalista, mas por que era em torno do comportamento econémico, técnico ¢ arganizacio- nal dos agricultores que se estruturava o trabalho pratico ao qual sua teria procurava de cesta forma responder. Em suma, sob a ética de um extensionista seria impossivel trabalhar apoiado em idéias cuja esséncia jogasse por terra — e era 0 caso do marxismo domi- nante na social-demecracia de entio — a possibilidade minima- mente estabelecida de um sentido a longo prazo para o seu tra- balho. Desde o final do século XIX, a expansio das faculdades de agronomia aus icapazes de encontrar empregornas poucas nds fazendas, 19 pagins 58) Isto explica porque os escrtérios agricolas rassos subitamente voltaram sua atengro para a econouiia camponesa... Depots de 1905, esta nova geragio de econoristas Aercolas tornow-se suficientemente poderosa para ganhar o controle intelectual das principais soctedades agronémicno de pais. As Associagses Agronémicas de j Sto Petersburga, Kharkov e, numa larga medida, a Sociedade Economica de esquerda, tate 68 Difers Isso dito, ¢ claro que um dos desafios basicos colocados tanto para o Estado soviético como para os agrénomos trabathando em campo, a partir da Revoluicio, estava na modernizacao da agri- cultura do pais. O setumbante fracasso do caminho da coletivizacao forcacia e cla instalacdo de grandes “fabricas de grdos e cares", trilhado pelo novo regime em seus primeiros anos, fot uma das razOes para que os ditigentes soviéticos implantassem a Nova Politi- ca Econémica (ver acima, pagina 54, nota 1), em 1923, na qual o trabalho familiar na agricultura passaria, nd sem reservas, a ser valorizado, O ultimo capitulo do livro de Chayanov (1925/1986), A Familia Camponesa como Componente da Economia Nacional e suas Possiveis Foruias de Desenrvo! ta, pode ser interpretade como uma tentativa de oferecer um fundamento racional ao projeto pol co de compatibilizacio do socialisnro com a agricultura fasuiliur. O iate- ressante — sob o Angulo conceitual, o que mais nos interessa aqui — 60 reconhecimento de Chayanov da impossibilidade — no contexto de um progresso técnico aceleraclo, de uma integragio crescente na vida social — de 0 campesinato conservar as caracteristicas consti- tutivas de sua substancia social, que ele tio cuidadosamente es!u- dou. Em outras palavras, o campesinato, ao se manter no quadro da modernizacio da agricultura soviética, tenderia fatalmente a perder seus atributos essenciais e, assim, a negar-se como categoria social especifica. Vejamos a questo mais de perto. © ponto de partida ests na constatagto de que a forma mais importante de “penetragao”® do capitalisiro na agricultura reside na integragdo vertical de uma infinidace de estabelecimentos pu Hizados que passam a funcionar sob 0 comande centralizado da agroindistria, Por mais que os agricultores sejam explorados por essa modialiclade de organizagio de seu trabalho, 0 fato ¢ que Chayanov atribui ao capital a importante virtude de ampliar o ingo ou universo social no qual a vida camponesa se localiza: 1ov,diferentemente de Lenin, nde fala em desensokinret, He Forgas | | oo estes lacos comerciais que convertem a unidade familiar natural, isolada em uma pequena produtora de mercadorias, sao sempre o primeiro caminho para a penetracio das relacées capitalistas no interior do pais. Através destas conexdes, cada pequeno em- preendimento camponts toma-se parte orginica da economia experimenta 0 efeilos da vida econdmica geral do mundo, dirige-se poderosamente, em sua organizagio, pela de- manda do mando econdmico capitalista e, por stia vez, juntocom milhdes de unidades semethantes, afeta 0 conjunto do sistema da economia mundial” (Chayanov, 1925/1986:258). De fato, a agroindtistria e 6 capital financeiro estavam-se encar- regando de fazer da agricultura familiar parte absolutamente inte- grante da divisio social do trabalho em nivel internacional e por ai subvertenclo seus tracos essenciais. Com efeito, a integracdo com a agroinddstria s6 era’ possivel caso a organizagao econdmica do estabelecimento camponés deixasse de corresponder fundamental- mente as forcas internas que Chayanov analisow e passasse a abede- cer a padrées, impostos pela agroindastria, de quantidades produ- zidas, qualidade dos produtos, momentos de venda, em suma, essa forma de” penetracao” do capitalismo na agricultura tinha 0 condi de revirar os fundamentos da produgio camponesa, sem que entre- tanto isso significasse um processo horizontal de diferenciagio so- Cial, nos moldes apontados por Lénin. A integrasdo com a agro- industria significa em tillima andlise que o camponés no ¢ mais 0 “sajeito criaclor de sua propria existéncia”, expresso tio cara a Chayanov: esse sujeito agora nao se situa mais internamente no estabelecimento camponés, mas esta no mercado. Como veremos na Parte 11 deste trabalho, esse proceso ja se desenvolvia em alguns paises capitalistas — na Dinamarca, por exemplo, desde o final do século XIX. ‘Mas é justamente da Dinamarca que vem uma modalidace espe- cifica desta integragio vertical. Com efeito, nada obrigava que fos sem capitais privacos os agentes organizadores deste verdadeiro planejamento do trabalho agricola. Nesse sentido, Chayanov perce- beu claramente aquela que seria uma das mais importantes modali- dades assumidas pela socializacao crescente do trabalho camponés: © cooperaticismo. “Algumas vezes, esta concentracao vertical, segundo a situacio 70 Difer econdmica geral, assume forma caoperativa ou mista e néo capi- talista, Nestecaso, o controle dosempreendimentos necessarios a0 istema de comércio, ac transporte, a irigacaa, ao crédito e ao processamento que concentram e guiam a’ produgio agricel parcial ou totalmente, este controle pertence nao aos proprivtétios de capital, mas acs pequenos produtores mercantis organizados que contnbutram com seu proprio capital a estes emproendimen- fos ou foram capazes de criar capital social” (Chayanov, 1925/ 1986:263), Ora se no capitalismo era possivel 0 desenvolvimento coopera- vo do processamento, da armazenagem, do transporte dos produ- tos agricolas — sobre a base la producto familiar individual — com mais forte raz40 essa possibilidade deveria ser encarada para a construcio do socialismo num pais que, como a Rissia em meados dos anos 1920, dispunha de mais de 185 milhdes de exploragiies agricolas. Constatada a ineficiéncia sobre © aumento da produgio agricola da tentativa de rapido desenvolvimento das fazendas co- letivas — decisio sobre a qual o jovem governo soviético voltow atris em 1923 com a NEP — a juncio dos agricultores em cooperati- vas era um meio de se evitar 6 trauma da coletivizagio forgada, sem que isso significasse, porém, estagnagio técnica e produtiva, A organizagdo cooperativa, neste sentido, possui propriedades seme- antes as reveladas pelo capital agroindustrial: ela “obriga 0 pequeno produtor a mudar 0 plano organizacional de sua unidacle produtiva segundo a politica de vendas e processa- mente da cooperativa, para melhorar suas técnicas e adotar méto- dos aprimorados de cultivo criagio, garantindo um produto inteiramente estandarcizado, sujeilo a um cuidadoso trabatho de selecdo, embalagem e engarrafamento segundo a demanda do mercado mundial” (Chayanov, 1925 /1986:268). O desenvolvimento desta integragdo vertical — e, sobre sua base, a formagio de um setor cooperative cada vez mais poderoso envol- vendo ndo somente compra e venda de produtos agricolas, como também seu transporte © até produgéo das maquinas © insumos nccesséries & agropeeuiria — deveriam oferecer ao pais as con- digdes para que passasse do capitalismo de Estado, em que se encontrava no inicio dos anes 1920, na opinide de Chayanov (1925/ 7 Dyforene 1986265), para um futuro sistema econdmico socialista. O basico para Chayanov ¢ que nao havia qualquer razdo para se pensar naquile que na época da primeira coletivizagao fieara conhecido como “fahricas de gritos e carnes” como forma social e politicamente mais racional ¢ evoluida para se chegar 20 socialismo. Ao mesmo tempo, 08 camponeses, em sua organizagao cooperativa, obriga- vam-se a enquadrar-se de maneira tio esizita, tao controlada, tio submetida a normas reguladoras das quantidades'e da qualidade dos pradutos, que era impossivel assimilar esse conjunto de pro- priedades familiares pulverizadas a algo que se aproximasse da famosa “anarquia da procugéo”, onde forcas espontaneas de merc do se responsabilizam por regular a oferta de mereadorias, A con- centragao vertical lanca as premissas para que, sobre uma base concorrencial, a agricultura possa tornar-se um setor, em grande medida planejado, e isso até num pals capitalista. Num ambiente econémico de inicio de construgio de economia centralmente plani- ficaca, « fortiori, € muito dificil que se campra a assercao Jeninista de que “a pequena producéio mercantil é um viveiro de capitalismo” Nao 56 é possivel planejar a oferta, como também muito im- provavel que o agricultor nesta situacao possa apropriar-se inteira- mente do excedente que ele produz. A possibilidade de manipu- lagdo deste excedente pelo Estado, mesmo através do mecanismo de pregos, 6 suficientemente importante para que, apoiacio na concen- traciio vertical da produgio familiar, erga-se hoje, no capitalismo contemporaneo, uma organizacao da oferta agricola que os outros setores da producto social estio longe de conhecer, como veremos na Parte If deste trabalho. J4 estava claro para Chayanov que este caminho, que paises capitalistas estavam trilhando, oferecia poten- cial ainda maior de desenvolvimento numa organizacao planejada do sistema econdmico. As aventuras de Alexis, alias, mister Charlie — personagem do romance publicado por Chayanov em 1920 — no pais da utopia ‘camponesa, mostram hem a vocagao a que se lestinava a produgao familiar na agricultura, Nao 0 isolamento, nem mesmo a manuten- Ho imutavel dos atributos internos que definiam o campesinato como sistema econdmico: era inevitavel, mais que isso, desejivel, que a "morfologia desta miquina chamada unidade de producao familiar” — para falar como Chayanov — perdesse com 0 tempo seus atributos essenciais. E ndo a toa que, no ultimo paragrafo de seu livro, ele afirme: “com toda a probabilidade, nas primeiras fases do desenvolvimento da cooperacto, estas mudangas nao serdo particularmente gran- des, Mas, sem dtivida, com oaumento qi de economia social no nosso campo, vamos nos defi desenvolvimento de uma nova psicologia econdmica € esperamos que a evolhicdo da agricultiira sera, em muitos aspectos, uma nega- ao gradual daquelas bases da unicade de produgio femiliar que foram estabelecidas em nosso estudo sobre o estabelecimento cam ponés atual” {Chayanov, 1925/1986:269) co) Jerzy Tericur E possivel wma elaboragao tedrica sobre o campesinato que retina as forcas internas localizadias por Chayanov com as raz6es es- truturais responsaveis, segundo os marxistas, pelo paradox da re- producao da economia farniliar na agricultura contemporanea? De certa forma, e com base na avaliacao autocritica de uma experiéncia pratica, é a essa sintese que o economista Jerzy Tepicht dedicou sua mais importante obra, redigida apds as inimeras e fracassacias tenta- tivas de organizazio cooperativa forcada da agricultura na Polénia Foi ao final de sua vida que Tepicht fez a revisto dos principios leni- istas que, nia qualidade de diretor do Instituto de EconomiaA gricola de Vars6via, procurou oferecer como base tesrica ao trabalho dos ex tensionistas ¢ dos militantes comunistas de seu pais. O que nos inte- ressa aqui no € tanto esse aspecto politico, mas sim o resultado do aprofundamento da propria definico de campesinato da tentativa de unificar num 36 corpo tesrico as feses marxistas com as de Chaya- nov. Veremos quie o resultado a que chega Tepicht nao é muito dife- rente do alcangatio por Chayanov: por mais que seja possivel disces- nig as forcas internas que determinam ocamportamento camponés, a attagiio efetiva destas forgas depende, antes de tudo, do ambiente social no qual a exploracao agricola se insere. Neste sentido (é 0 que seri demonstiado) trata-se cle uma forma de producao (cle um modo de produgito, para usar os tetmos de Tepicht) que, cedo ou tarde, 0 ca pitalismo tende a destruir. ‘Tepicht parteda constatacito de que, tendo existico em praticamente todas as formagdes sociais historicamente conhecidas, ¢ legitimo ca- racterizar 6 campesinato como um ito, Embora nao seja 7 gorndor de formagées saciais especifica:, jé que possui justamente a capacidade de incrustras-se em diferentes formagdes sociais, 0 cam- pesinato pade ser identificado por uma série de earacteristicas uni- * unidade indissoliivel entre o empreendimento agricola e a fa *uso intensivo de trabalho; * natureza patriarcal da arganizacao socia Além destas trés caracteristicas basicas do 1 inspicadas nitidamente em Chayanov, Tepicht eacontra outra, de orientagao claramente marsista e que da como que um novo sentido aos tracos acima expostos: a familia camponesa cumpre, tanto nO ca~ pitalismo como no socialismo, a funcao importante de permitir aoferta de produtos agropecurios a pregos inferiores aos clas grandes em- presas. A base clesta difevenga de precos reside em tiltima andlise no fato de que o camponés nao exige, para manter-se na atividace, a obtengfio da taxa média de lucro, como mostra Marx, no pequenc tre- cho d’O Capital dedicacio 2 andlise da propriedade parcelar citado no capitulo anterior (ver acima, Capitulo 1, p-32). Qessencial, ao contra- rio, €a obtencao de wma renda que permita fundamentalmente a re- producto da prépria familia “contrariamente ao capitalista que nao realiza novos investimen tos sem contar 90 menos com wma taxa de lucro proporcional ao que aplicou, diferentemente do assalariado que demandara por cada hora suplementar de trabalho tanto ou mais do que pede por suas horas normais, os membros de uma exploragio familiar can pponesa, para aumentar sua renca global, fornecem um excedente de trabalho, pago a prego mais baixo, oque provoea uma queda na média de seu ‘pagamento’ coletivo” (Tepicht, 1973:35). Diversos au dott 1 por que razae os ind mentac sua senda recorvendo a0 ado e abandonando, no limite, Existe uma forte razio econdmica (que vaial tade solidaricdade intrafamiliar) a explicart: as familias camponesas posstiem em seu chama de da ivléia chayanovis- comportamento. E que terior forgas que Topicht “Na maior parte das uniclactes camponesas da Europa, o essencial dos trabalhos da lavoura é assegusado pelo chefe da familia e pe Jos membros da familia que se encontram em plena forca. Ja 0 ser- go eos estébulos, dos chiqueiros e 0 que se Fefere aos pequenos animais ¢ garanticln sobretudo pelo trabatho em tempo parcial das mulheres, criangas¢ velhos, além das margens de tempo dispont- veis pelo chefe da familia, em suma, pelas ‘Forgas marginais’ da unidade produtiva. Poderiamos chamar estas forgas, também, de sferfucis, jf que se a familia deixar sta exploracdo agrico- nesa nao tem, renda ‘marginal’ que completa seu mis cht, 1973:37-38), Esta ¢ a razio pela q) producto far mal, 01 outros intensives |, na maior parte dos paises europeus, & arse na oferta de produtos de origem any m miao-de-obra, cleixando para os estabe- Jecimentos apoiados em trabalhadores assalariados as grandes lavou- ras de cereais. Neste sentido a permanéncia na condigio camponesa, longe de representar tuma conguista ou mesmo uma opgio, ex prime iferioridade, isto 6,0 fato de que a organizacéo interna da familia cam- ponesa ¢ tal que nela a sociedade encontra uma fonte importante de trabalho gratuito. A eficiéncia do campesinato esta naquilo que oagro- nomo francés Louis Malassis chama de sua “capacidade de sofrer” (opud Tepicht, 1973:41) E interessante observar que, neste ponto,a anélise de Tepicht é id tica & abordagem de Kautsky e Lénin, para quem (2) a existénei revioridade té de © pequeno campes nica da pequena produ de que os pequenos camponeses reduzem suas neces » das necessidacies dos operdrios assalariados ¢ exaur - amente mais que estes tiltimos” (Lenin, 1899/1969:13/14) pela PK mais que Tepicht se preocupe com a efetiva valorizagio do tra- balho camponés na Polonia, ele nao pode deixar de reconhecer que a grande virtude da economia camponesa, da ponto de vista social, esta justamente em sun debitidade e em suia capacidade de submissio, tragos que se, de Jo, apdiam-se sobee a organizagao interna da familia camponesa, por outro, no podem ser entendidos fora do ambiente econdmico no qual estas familias vivem. Que estas “Forgas marginais e nao transferiveis” cumpram uma importante fungrio em econontias relativainente pobres, onde tanto o desenvolvimento téc- nico da produgio agricola, quanto o préprio mercado urbano de tra- batho sofram limites sévios, é compreensivel e coerente. Gener entretanto a atuagio destas “forcas marginais ¢ nao transferiveis” & agricultura familiar européia como um todo impede que se perceba aquilo que no final de set: ivro Chayanoy deixa claro: @ desenvolvi- mento da integracao da agricultura familiar ao mercacto extizpa do interior da fay elementos determinantes de stia conduta econd- mica. ‘Ao centrar 0 eixo ua existéncia da economia farniliar européia nas “forgas marginais e nio transferiveis Tepicht, em suma, nao leva em. conta as transformagées que tendem a reduzir 0 peso dessas forcas até nesmo do prdprio funcionamento «ta economia familiar na agti- cultura em paises europeus. Muilos desses trabalhos que Tepicht des- creve como proprios tradicionalmente d mulher (ordenha de leite, por ‘exemplo) so hoje anecanizados. Mais que isso, em diversos paises curopeus, a transformagao na base técnica da producéo permitiu a redugao da magnitude do proprio Lrabalho feminino, ampliando a ‘ocupagio da mulher em atividades profissionais urbanas. Na Dina- maiva (Morkeberg, 1978) um quarto das mulheres deagricultores tea- bathavam fora da proprietiade em 1975. E esse percenttuall tendia a crescer, Na Inglaterra, © trabalho feminino na agricultura, longe de concentrar-se em pesadas tarefas manuais como no pasado, volta-se cada vez maisa fungies de natuneza istrattva, Gasson (1980:166) mostra que, embora o trabalho da mulher na agricultura venha cres- 76. endo nos tiltimos anos (correlativamente A propria queda do traba- ho assalariado), boa parte desse trabalho ¢ feito em tarefas referentes ada mulher na agricultura venha crescendo nos tittimos anos (corre lativamente a propria queda do trabalho assalariado), boa parte des- se trabalho 6 feito em tarefas referentes & “(..) tomada de decisbes ¢ @ administragio, Seu papel em ativida- des de escritério é particularmente importante. Muitas esposas ajut- dam e outias até assumem responsabilidades nos registros € contabilicade da unidacie produtiva’ Varnos discutir esses aspectos referentes.as transformagées da es- tratutra social da agricultura dos paises capitalistes centrais na segun- dia parte deste trabaiho e especialmente no Capitulo 7. O importante aassinalar aqui é que se for verdadeira a suposigao de Tapicht de que a existéncia camponesa apéia-se fundamentalmente nas forcas mar ginais ¢ no transferiveis do estabelecimento camponés, entao pode mos dizer que ha uma tendéncia nitida nos paises europeus (sobre os quais ele apéia sua tese) a que o campesinato seja eliminado da viela social contemporainea. O intrigante é que essa eliminagaa, se por um lado, correspoade ao veredicto marxista, nega-o porém, por outro lado, que nao da lugar a uma estrutura social classista e polarizada, 1) Resumo we Concuusciss Poclemos resumir as idéias expostas neste capitulo acs segutin- tes pontos basicos: 1. E possivel encontrar no interior da familia camponesa os ele- mentos geradores de stia conduta especifica, que nio corresponde a racionalidade capitalista, O balango entre trabalho e consumo, a come posigio demografica da familia, sao explicativos das decisées econd- micas do campesinato. 2. Na medida em que se concentra sobre os elementos internos & familia camponesa, Chayanov alcanga aquilo que, como vimos, ajo podia seques ser procurado no marxismo: explicar as leis de funcio namento de um segmento social cujo comportamento nao se compre- ende estritamente em fuincao da légica da economia mercantil, 3. Nao existe no livro cle Chayanov um estuclo minucioso clo ambi- ente econdinico no qual se insere esta forma espectfica de existéncia 7 social. Para Chayanov, 0 “sistema econérnice camponés” existe e pode desenvolverse no interior de organizacdes sociais as mais diferentes. Daf resullam justamente sua universalidade e a possibilidacte de sua caracterizagao como sistema econémico. 4, Entretanto, no capitalismo, a integragio crescente dos campone- ses a0 mercaclo subverte os elementos constitutivos da prodiugio fa- 11 o batango entre o trabalia e o consumo come fator determi -seconémniaas, que se concentram cada vez maisnaagve- Astria, seja ela capitalista ou cooperativa. 5. O principal interesse da tentativa de Tepicht de unificar num sé corpo analitico as forcas internas formacioras do campesinatoe as fun- ‘gGes econdmicas que ele preenche na reprodugio social pode sar as- sim resuumido: longe de ser uma forma universal capaz de se incorpe- rar As mais diversas sociedades, o campesinato aparece como um tipo sacial especifico sobre o qual 0 desenvolvimento capitalista exerce um efeito altamente desagregador. 6. Nesse sentido — 6 o quese estudaré na Parte II deste trabalho — a estrutura social da agricultura contemporanea dos paises capitalis- tas centrais tem por base uma forma social que, sem cormesporder a polarizagao prevista pelos classicos marxistas da questo agraria, nao possui tampoueo os tragos bésicos daquilo que se pode chamar de campesinato. Antes porém de passarmos ao estudio desta nova caiegoria social, é importante que duas questées sejam abordadas: primeira- mente, vale a pena analisar a maneira comoas preocupagsesde Chaya- nov com relacdo A especificidade do comportamento camponés apa- recem em alguns dos debates contemporaneos sobre 0 desenvolvi- mento econdinico. E.o que serd examinaco no préximo capitulo. Em segutida procuraremos estidar ocampesinato sob wun Angulo diferen- tedo abordado por Chayanoy e os economistas. Com efeito, no Capi tulo 4, por oposicio a “morfologia” exposta por Chayanov € varios economistas, estaremos em busca de uma "fisiologia” do campesina- to. Veremos entio quais as condigées sociais em que a existéncia cam- ponesa € possivel. werd ~ mMarlver Thevehite © Fret Mart Peat CAPITULO 3 A MICROECONOMIA DO _ COMPORTAMENTO CAMPONES bbasear-ce numa coneepsio dos obj ppotce em comus com a apresentada necte © em outros trataclos modernos” (Marshall, 1890/1982:249), A) ADRESENTAGAO. Na Introdugio ao Peasa Organisation, Chayanov de- fende-se da “acusagao” — cujas conseqiiéncias no interior da jovem Republica Soviética ultrapassavam perigosamente o estrito campo da luta de idéias — de ser um partidario da escola austrfaca da utilidacle marginal. Basicamente, seu argumento 6 que no compar- tilha da teoria neoclassica para 0 estudo dos grandes agregades icos, Entretanto, para analisarocomportamento de unidades econémicas individuais, os fatores de natureza macrossocial sso insuficientes, como o proprio Marx ja havia percebido: “No primeiro volume d’O Capital, K. Marx reconhece a possibili- dade de uma avaliagao de beneficios por parte do consumidor, mas afirma que nao se pode deduzir daf o fendmeno social do prego. De maneira andloga, eu descobri a presenga de um balanco trabalho-consumo na pratica econdmica da unidade camponesa sua grande influéncia na determinacao do volume da atividade 7” 80 econémica da familia, mas eu ndo considero, absolutamente, que se possa deduzir disso todo um sistema de economia nacional” (Chayanov, 1925/1986:46) De fato, como vimos acima, Chayanov distancia-se das teorias marginalistas, tanto no sentido de que evita imputar a0 campesinato categorias estranhas a sua existéncia econémica, como também por niio preconizar qualquer modelo macrocconémico baseado nestas categorias especificas & producao familiar. Tudo indica que esta declaracéo nao é apenas um meio de escapar ao "patrulhamento” (ver 0 box 4, no Capftulo 2) a que fatalmente a Escola da Organizacito da Produgio estava sujeita. Fla reflete antes a convicgio de que é impossivel entender a unidade de producao familiar sem que a Isgica que preside seu processo de escollia econdmica tenha sido destrinchada, E para isso — bem como para qualquer teoria a respeito do comportamento do consumidor, por exemplo — a escola austriaca fornece instrumentos de andlise dos quais a econo- mia politica chassica emarxista encontram-se totalmente desprovidas. No € & toa entéio que, quarenta anos apés a publicagao da obra de Chayanoy, autores de formagdo estritamente neoclassica, e com hase nos métodos fornecidos por esta escola de pensamento, re- tomam e desenvolvem as preocupacées do economista russ: existe um comportamento especifico do campesinato? E possivel uma teoria que coloque em relevo os motivos fundamentais que presidem suas escolhas econdmicas? Mais que isso, sera que, entre campone- ses, condutas aparentemente paradoxais com relagao a poupanga, ao investimento e ao consumo nao encontrem explicagio num use estritamente sacional dos fatores dos quais dispéem? E sera que a compreensdo desta racionalidade nao é capaz de fornecer subsidios importantes a politicas de desenvolvimento econdmico? L exata- mente num contexto em que os proprios economistas colocam-se estas questdes que a obra de Chayanov é tracluzida para o inglés (1966) vindlo ao encontro de uma das preocupacées mais marcantes da época, como mostrou Thornes: “Muitos dos que hoje procuram compreender 0 comportamento econémico docampesinato parecem naa ter consciéncia do quanto estilo atravessande varios des caminhos trilhados, de 1860 em diante, por geragses de economistas russos. Os problemas que esto hoje afligindo economistas em pafses como Brasil, México, A Microee Componts 81 do Compor Turquia, Nigéria, india e Indonésia guardam similaridades mar- cantes com os que estavam na ardem do dia na Russia desde a cemancipacio dos servos em 1861 até a coletivizagto da agricul- tura no final dos anos 1920 (..)" (Thorner, 1986:xi) Quais eram esses problemas? Basicamente, eles se concentravam, na questzio dos motivos do subdesenvolvimento e das perspectivas e politicas necessarias para sua superagao. © importante aqui — e 6 © que aproxima a abordagem dos economistas neoclssicos do tema antecipacio pelo pensamento precursor de Chayanov — @ que du- rante 0 anos 1960 foi elaborada uma quantidade significativa de modelos microcconémicos sobre © comportamento camponés. A preocupagio pratica subjacente a estes modelos é também bastante proxima 4 de Chayanov: nao se podem implementar politicas de modernizacao da agricultura sem a compreensao dos fatores que presidem a tomada de decisao por parte dos agricultores. O objetivo deste capitulo é apresentar resumidamente algumas destas contribuigdes para que possamos, no Capitulo 4, nos pergun- tar a respeito daquilo que a abordagem “morfalogica” de Chayanov deliberadamente ignorow: quais so as condigties sociais de existén- cia do campesinato ou, para usar os termos de GeorgescuRoegen (1969), qual a “fisiologia” da producao camponesa? © terreno da presente exposic’o niio poderia ser mais vaste. Indmeros economisias debrucaram-se sobre o tema propondo mo- delos importantes e freqiientemente baseados em relevantes tra- balhos de campo. Uma apresentacao completa de todos eles nos distanciaria do objetivo bisico desta parte do trabalho, que € a compreensio e a tentativa de uma definigto concisa e operacional do que écamponés. Entretanto 6 possivel — cometendo uma enorme quantidade de omiss6es, sem duvida — expor uma sintese das inais significativas tentativas de estudo dos fatores determinanies das ‘opsées econémicas do campesinato que a teorla neoclassica produziu. Vou seguir, para tanto, as sugestoescontidas na recente e decisiva contribuigdo de Frank Ellis (1988), Trés modelos serao aqui resu- midos, Primeiramente, o de Theodore Schultz (1964/1965), onde a familia camponesa opera em moldes tals que nada a diferencia de uma empresa modema, no que se refere a sua racionalidade econdmi- a. Ja Lipton (1968) vé na légica econémica da familia camponesa 0 contrasio do encontrado por Schultz: nao a busca do lucro, mas a aversdo ao risco. Por fim, Mellor (1963), Sen (1966) e Nakagima 82 (1969) retomam e desenvolvem os termos em que Chayanov colo cou 0 problema da especificidade do processo de tomada de de- cisdes no interior da familia’ 8) O Maximizapor DE LuCeO Poueas teorias sobre a agricultura tiveram repercussiio priti- o livro deste professor da Universidade de Chicago e prémio Nobel de Economia — Transformando a Agricultura Tradicional — exerceu enorme influéncia na formacdo de intelectuais e técnicos respon- saveis pela implantagdo, em paises do Terceiro Mundo, de centros de extensfo e pesquisa nos quais boa parte da Revolucdo Verde se enraizou, Aqui, o que mais interessa na obra de Schultz. é a apresen- tacdo da agricultura “tradicional” nao como expressio de indolén- cia, atavismos culturais retrégrados ete, mas, ao contrario, como um sistema coerente € racional de uso dos fatores cuja compreensio econdmica perfeitamente possivel e cujo funcionamento ¢ pratica- mente perfeito. A saiz desta perfeicao esté numa dupla inseparavel: eficiéncia ¢ maximizacao de lucto. Nada mais distante da realidade da agricul- tura tradicional que a imagem do Jeca Tatu: contrariamente a uma importante vertente do pensamento econdmico do inicio dos anos 1960 (Georgescu-Roegen,1960, por exemplo), Schultz refuta a node de que a produtividade marginal do trabalho no meio rural dos Paises pobres ¢ igual a zero, ou, em outras palavras, que existe uma parte da populacao ativa cujo trabalho nao contribui em absohuta- mente nada com a elevagdo de produto. Caso as unidades produti- vas deixem de contar com qualquer des membros ativos que as compoem, o resultado serd uma inevitével queda do produto: nio hi opuilagao sobrante na agricultura tradicional E exatamente daf que Schultz, dediuz a racionalidade destes agsi- Te fste objeto de topos o tabalho/concuma ele separa o cavos em a balhe daqueles onde oassiaramenta eo pagancentode saldsgs so su posten | cultores, Mesmo em situagdes em que a moeda praticamente inexis- te, do ponto de vista da reiagio entre o3 insumios dos quais dispoem. © 0s resultados econdmicos atingidos, eles se conduzem de maneira equivalente a empresas modernas. EF perfeitamente legitimo que se faga abstragao de todo o contetido cultuzal e até psicolégico envol- vendo a ago dos individuos: seu resultado traduz a conduta maxi- mizadora de luctos. O agricultor nao $6 6 capaz de utilizar seus insumos de maneira a obter a maior quantidade posstvel de pro- duto, mas, mais que isso, essa operagio Teva em conla o nivel relative des pregos, de maneira a minimizar os custos e/ou maximi- zar os resultados da producio. Isso quer dizer que o agricultor comporta-se de maneira eficiente ndo s6 sob o Angulo téenico, mas também alocativo. Eficiéncia econémica é um conceito bem determi- nado na microeconomia: trala-se da capacidade de utilizar os fato- res produtivos de maneira a encontrar a maior quantidade possivel de produtos ¢ também (sem o que nao ha efici¢ncia) escolher entre 08 fatores — por definigio — escassos, aqueles que correspondam ao menor prego e/ou que propiciem a maior renda. Plantar mais, por exemplo, é uma decisdo que leva em conta fundamentalmente a produtividade marginal dos fatores: 0 investimento no recurso basi- co do qual dispée a agricultura tradicional (0 trabalho) é feito com base na melhor combinagio possivel dos fatores de forma gue um. trabalho adicional e que represente esforgo com retorno insuficiente no serd realizado; da mesma forma, € impensivel que 0 agricullor deixe de esforgar-se para alcangar a situagio Stima que, no quadro dos recursos por ele disponiveis, pode atingir. Por mais que a teoria de Schultz. se baseie em pressuposios Jacilmente contestaveis — a comecar pelo fato de que a nosao de eficiéncia econdmica é inconcebivel fora de um mercado competiti- vo, 0 que nao existe naquilo que ele define como agricultura tradi- cional, como veremos no préximo capftalo — ela tem um meérito inegavel. Num momento em que n&o eram poucas as teses que ibuiam a pobreza a preguica® ou a ignordncia, Schultz aponta para um comportamento absolutamente sacional Nada mais distante, entretanto, do pensamento de Schultz. que uma visio romanticamente apologetica dos povos onde a agricultu- sa tradicional ¢ praticada. Ao contrario, do outro lado da moeda do > Boserup (1970/ 1983:18), por exemplo, fala da importnela nag politica colon do mito do homem africano pregutigose. 84 comportamento eficiente, encontra-se, inseparavelmente, a pobreza. Nao se pode aleancar eficiéncia alocativa melhor que aquela ensina- da por séculos de experiéncia aos produtores tradicionais. Sua eman- cipacio da miséria depende, antes de tudo, que sejam alterados os meios com que traballiam. Caso contem com maquinas e insumos modernos, 0s agricultores saberio encontrar uma raz5o tal entre seus custos e resultados econémicos que seu comportamento maxi- mizador se Uaduza por substancial aumento do produto. Nao ha conservadorismo no comportamento do camponés tradicional: se ele nao invesie mais — explicar esta atitude era um dos principais desafios dos economistas nos anos 1960 — é exatamente porque 0 lucro ¢ seu mével® e, partinclo somente de terra, trabalho, enxada e estrume, ndo adianta trabalhar mais com retornos permanente- mente decrescentes. F igualmente iluséria — e subestima a ca- pacidade racional dos invidivuos — a perspectiva de que uma combinacao diferente destes fatores poderia resultar num aumento do produto. Somente maquinas e insumos de origem industrial, combinados com um sistema cle pesquisa ¢ extensao (voltados pre- cisamente para esle tipo de modernizagao) podem elevar a produ- tividade do trabalho e também permitir a liberacdo de mao-de-obra do campo para as cidades, sem que isso se traduza numa queda no nivel da oferta agricola Esta constatagao traz uma conseqiiéncia no minimo am. bigua: por um lado, ela sugere a mudanca nas condigées materiais em que vive o agricultor jé que ¢ impossivel, com os recursos de que dispde, que ele consiga elévar sua produtividade. Par outro lado, porém, esta mudanga é tamanha, que na maior parte dos casos serd inacessivel A grande massa des agricultores, j4 que, por definicao, ela € realizada nos pardmetros institucionais de uma economia de mercado. E bem possivel, neste sentido, que o preco da “tvansfor- macdo da agricultura tradicional” seja 0 sacrificio social de uma grande quantidade de agriculfores tradicionais. E é exatamente por esta razdo que Schultz costuma ser classificado entre os economistas *E cxatamente porque o hucro é unna aspiragso universal des agentes econdmicos gue “em principio © pensamento econéimico bésico € tho aplicavel a paises pobres comoa palse id Salomon, 1977:16). Da mesma forma. a asptracio a0 ltcro & © prinefpio que permite 2 compreensio das mudangis fundamentals no curso da Iistérin ca agricultura (Schultz, 1968:56-58). 10 Componés 85. mais conservadores, no que se refere aos problemas agratios, Michael Lipton, cujo pensamento examinaremos logo abaixo, ¢ de opiniao queas idéias de Schultz, de certa forma, jogam fora o bebs junto com a agua do banho, quando se trata de modernizacao e neste sen- tido classifica-as como a doutrina do pessimismo revoluciond:io” (Lipton, 1968). E importante assinalar, porém, que na ortodoxia schultziana um. papel importante cabe ao Estado no desenvolvimento da agricultu- rato estimulo seja a produgao interna seja a importacéo dos insumos, que compiem a agricultura moderna, a implantagdo de centros de pesquisa capazes de adaptar os progressos técnicos da agronomia a0 meio ambiente nacional ¢ local (pesquisas com variedades de alto rendimento, por exemplo) e a difustio deste conjunto de inovacées através de um amplo sistema de extensao. Podemos resumir a cinco pontos basicos 0 essencial no pensamento de Schultz: 1. Nao existe um conceito de campones como categoria econ6mi- ca provida de uma logica de conduta diferente de outros segmentos produtivos da sociedade. E exatamente com base nesta premissa que Schultz aponta para a racionalidade da agricultura tradicional. 2. Entre a agricultura tradicional e a moderna, a dicotomia & completa, no por qualquer tipo de racionalidade propria a cada uma — ja que suas motivacdes econdmicas sio idénticas —- mas porque niio hé evolugdo lenta ¢ gradual que leva uma & outra: se depender da propria agricultura, se nao houver intervencao estimu- Iadora do Estado, a agricultura tradicional é incapaz de sair do marasmo secular que a caracteriza. 3. Nao se pode aprimorar ou melhorar a agricultura tradicional com base nes fatores que ela costumeiramente emprega, O que caracteriza os paises pobres nao € a md utilizacao dos fatores exis tentes, mas sim a sua baixa produtividade. 4, Do ponto de vista social, os resultados da aplicagaio das teorias de Sclultz a paises do Terceiro Mundo podem ser extremamente perversos. 5. Cabe ao Estado tomar a/iniciativa de implantar centros de experimentacao e de difustio que permitam aos agricultores 0 acesso as modernas tecnologias. ne 86 A Microccon a do Comportemnento Camponds €) O varemnzabor DE RIscos A ortodoxia schultziana nao foi a tinica maneira de a econo- mia neoclissica voltar-se para 0 campesinato. A idéia de que a meta dos agentes econdmicos é a maximizacao de seu bem-estar e que, de forma geral, os individuos si0 racionais no sentido de definirem meios a seu aleance ¢ levarem em conta 0 conjunto da situacao em que Se inserem para atingir este objetivo, esta idéia nao resulta necessariamente no comportamento maximizador de Iucros. Ao contrario, a microeconomia dos anos 1960 mostra que é perfeita- mente possivel a montagem de modelos de maximizacao alternati- vos ao de Schultz. Um dos mais importantes fatores que Schultz nao leva em con- sideragao ao postular a identidade de comportamentos entre os agricultores tradicionais ¢ as empresas econémicas madernas € a significativa diferenca de riscos existente entre ambas. E evidente gue em qualquer sociedade mercantil existe um grau de incerteza ligado as atividades econémicas. Entretanta, nos paises subdesen- volvides, mais que incerteza, lida-se com a idéia de riscos" e estes sao significativamente maiores do que no capitalismo avancado. Eexatamente por possufrem o discernimento de levar em conta © fator risco que os agricultores tradicionais nil podem nortear-se pelo comportamento maximizador de hucros: ¢ com esta contestacio que, em 1968, Michael Lipton publica um artigo marcante, contestando diretamente o livro de Schultz. A partir de entao, Lipton torna-se 0 autor mais expressive de uma vertente no pensamento econémico que define o agricultor tradicional baseando-se na aversio a0 risco, Vale a pena examinar seus argumentos. E importante destacar, de infcio, que Lipton também vé no agri- cultor tradicional um maximizador: nfo de lucros, mas de oporti- nidedes dle sobrevivéncia. E para tanto 0 essencial é levay em conta um ambiente ecolégico e social hostil a esta sabrevivencia Em ptimeiro lugar as oscilagées climaticas s40 muito mais violen- tas no mundo tropical que no temperado. Estas mudancas nao permitem que as decisses de investimento dos agricultores se ‘Nessas condigBes, portanto, nso ¢ surpresa encontrar um grande mimero de: [pequenos agricultores para os quais prevalece wn eritério de decisio sobre o uso de Fecuises, ein que a garanta de um nivel minimo de resultado econémico, sufciente para a subsisténcia da familia, vem em primeizo lugar”, afitma Homem de Mello (1982:96-57), citando importantes estudes que corroboram a idéia da aversio a0 rise | | A Microeconomia do Comportamenta Canponés 87 apdiem numa média previsivel de situagées naturais, com base na qual em alguns anos se ganharia mais ¢ em outros menos. Isso) porque a privacdo dos agricultores é de tal magnitude que eles no poclem nunca se permitir obter uma quantidade de produtos abaixo do minimo necessdrio a sua sobrevivéncia. Neste sentido, é claro que eles nfo optam por maximizar seus hucros em situagées em que ganhos adicionais seriam eventualmente possiveis, se houver em torno destes ganhos adicionais 0 risco de perdas que impliquem a redugdo do produto aquém da subsisténcia. Assim, a competicac neoclissica perfeita, em que os custos dos investimentos so estima- dos em fungio de seu produto marginal no se aplica: mesmo numa situaggo em que uma empresa moderna opte por correr riscos — j4 que © que fosse perdido neste ano poderia ser recuperado num ano de melhor sorte — isso nao 6 possfvel para 0 agricultor tradicional “Um ou dois anos ruins numa seqiiéncia de politicas étimas, nao impedirio o agricultor ocidental de guardar sua terra e outros ativos de maneira a permanecer na atividade; cles arruinardo 0 agricultor indiano. Sua primeira obrigacéo com sua familia © prevenir tal ruina; com o aumento populacio, cada vez me- nos terra 6 deixada para experiéncias otimizantes subseqiicntes” (Lipton, 1968:335). Além deste fator natural, existem aspectos sociaise institucionais que bloqueiam a conduta de maximizagdo de lucros®. A preca~ riedade da informagio sobre os precos reflete um mercado alta~ mente imperfeito em que-os elementos materiais da produgio nao so simplesmente fatores produtivos passiveis de uma equivaléncia mercentil Panto evista ic 194 defendido por Galbraith (1970556); “Toda inovagso envalve, ox supe co que envalws, sum certo rieco (..). Mae 9 130, tno presente context, tous tim caciter especial de preméncin. Para peérpero do Ocidente um prejuizo na colheita sigt lesagradivel, mas nem sempre acarreta perda fisica e, cortamente, nunca da préptia vida (..) Para a familia, entretanto, que vive dentro do Subsisténcia, © prejutzo na colh enearado, 0 risco no ¢ coisa 88 A Microccon in do Comport Camponis “© mercado de trabalho (mesmo tornando-se menos imperfeito na medida em que 0 contato urbano e a pressio populacional enfraquecem as determinagées hereditérias das atividades) € ain- da dominado porcasta. Em algumas partes da india, um brémane ago pode arar” (Lipton, 1968:336). Da mesma forma, as regras sociais ligadas a heranga refletem mais a busca de seguranga que de rentabilidade, A divisio das terzas entre os filhos responde av critério de que as parcelas fer as inférteis sao atribuidas equanimemente fazendo com que a neces sidade de assegurar a sobrevivéncia de cada um acabe prejudican- do, evidentemente, o rendimento de todos. Incertezas climaticas, imperfeigses de mercado, regras sociais impedindo o funcionamento das mais elementares normas da com- peticao perfeita, tudo isso faz. com que “{.) um camponés otimizador busque algoritmos de sobrevi- véncia endo de maximizagéo” (Lipton, 1968:331). ‘Temosai, portanto, uma imagem da racionalidadee da capacidade maximizadora do camponés bastante distante da universalidade schultziana. E € claro que as consegiiéncias praticas do camporrés pess0 a0 isco sé poderiam ser diametralmente opostas aquelas contidas na idéia do agricultor maxinrizador de lucros, Se 0 comportamento econdmico ¢ regido pela aversio ao risco, existira, evidentemente, um espaco técnico® no interior do qual possivel uma alocacéo dos préprios fatores da agricultura tradicio- nal de forma a promover seu crescimento: “Tudo isso nao implica que o agricultor tropical nao possa orga~ nizar-se racionalmente, A alternativa ao camponés otimizador nao precisa ser o optante "pessimizador””. Algumas praticas (..) Produzem mais (.) com praticamente nenhum aumento nes insumos. Algumas decisées alocativas — maiores taxas desemen- A iin de que pode haver progresso no quaclro dos recursos existentes ra presente em dois traballios que maxcaram epoca na 10s no Websters Us ngs dai nossa opeie ‘por “pessimizador”, jgualmente inexlstente erm nosso idioma. A Microeeo 89 tes em solos empobrecidos, mistura adequada de legumes em terrenos pantanosos — sao, igualmente, sempre indicadas” (Lip- ton, 1968:334) Em suas conferéncias na BBC neira simples e lapidar ipton traduziu esta idéia de ma- "(..) se um homem eslé maximizando sua eficiéncia lavando seu rosto com uma de suas maos amarrada nas costas, é mais harato soltar sua mio que comprar-lhe um esponja” (Lipton, 1968/ 11988:260) Toda a quesiio esta nos aspectos instilucionais que impedem a melhor utilizacaio destes fatores. Mas o trago decisivo do campesinato & mento a uma perm potencialidade produtiva com 0 objetivo de evitar 0 por isso, desde que alguns destes fatores sejam eliminados, ¢ poss no quacro dos mivios materiais da agricultura tradicional promover politi~ cas de desenvolvimento, Nao ¢ muito clara a posigéo de Lipton sobre a manefra de vencer estes fatores que provocam’o comportamento de aversio ao isco, & por vezes fica-se com a impressio de que ele, na verdade, nao preconiza a sua eliminagio'. Essa impressio é reforcada quando em trabalhos posteriores ele define 0 “viés urbano” (Lipton, 1977) que preside as decisies sobre © crescimento econémica camo o motivo fundamental do proprio subdesenvalvimento Podemos resumir o essencia] do pensamento de Lipton aos seguintes pontos: 1. E perfeitamente possivel compreender o campesinato basean- do-se na idéia de comportamento otimizador: existe uma conduta racional, no sentido da adequacao de meios a fins determinados, considerando-se © contexto em que esta adequagio opera quo se herde a sept scologia sécio- f¢ oprimilas — e portanto a aceitasio de alguina responeabilidade residual pelo ‘opressor” (Lipton, 1968337), 90 nportan 2. E exatamente essa racionalidade que impede a idéia de maxi- mizagao de hicros de tornar-se explicativa do comportamento cam- ponés. Ao contririo, o essencial na racionalidade camponesa é a conduta de aversio ao risco 3. Nesse sentido, existe especificidacle no tipo de cateulo weondmico realizado pelo camponés, quando comparado com empresas capi- talistas, por exempio. 4. O desenvolvimento econdmico nso passa, no essencial, pela incorporagao A agricuitura tradicional dos meios técnicos caracteris- ticos dos progressos cientificas recentes. Ao conirario, exatamente por terem um comportamento de aversiio ao risco, 6 possivel que uma realocagio dos fatores ao alcance dos camponeses seja propi- ciadora de crescimento, desde que se climinem as condigees institu- cionais que bloqueiam sua melhor utilizagao. 5. Existe em Liptonelementos que fazem suspeitar de uma posigao marcadamente conservadora no que se refere as condigées sociais & institucionais que determinam © comportamento campones de versio ao risco. b) A AVERSAO A PENOSIDABE Nos dois i de maximizagao do lucro, este é um fator irrelevante: as decisoes 580, tomadas em fungdo da produtividade marginal dos fatores, Ja em Lipton, a familia visa atingir um minimo de subsisténcia, mas esse patamar é um daco invaridvel da andlise cconémica. Ora, 6 que caracteriza.o campesinato éexatamente a fusiio entre a unidade de produgdo e a de consumo, E perfeitamente possivel portanto que a andlise microeconémica se volte para cada um destes aspectos constitutivos do campesinato: o trabalho fornecido pela familia e a renda (monetéria ou no) dai derivada. Mais que isso, s¢ na microeconomia estes dois elementos sio objeto de topicos dlistin- tos (a teoria da produgaoe a teoria do consumidtor), um dos desafios basicos que a existéncia do campesinato langa para a teoria & exata- mente a claboracio de um modelo unificado desta dupla dimensao. Ou nas palavras de um importante economista } a firma doméstica simplesmente Lvansfere ent espécie uma e do insumo familiar potential para a firma e parte de seu on A Micmeconamsin do Comportamento Campon produto para o lar. A conseqiiéncia desta hibridizacao institucio- nal & que os modelos da firma doméstica tém também que ser hibridos da teoria da firma produtiva e da teoria do consumidor doméstico” (Krishna, 1969:185), A relacdo entre as necessidades de consumo da familia eo tra- batho necessdrio a que sejam atingidas é a base para o estabele- cimento de um equilibrio microecondmico em torno do qual 0 campesi- nato se define. Esta icéia rigorosamente chayanovista 0 ponto de partida de trés entre os mais importantes modelos sobre o compor- tumento camponés dos anos 1960: 0 de Mellor (1963), 0 de Sen (1966) € 0 de Nakagima (1969). Nao se trata aqui de expé-los detalhada- mente, mas apenas de indicar que é nos moldes mesmo em que Chayanov constr6i seu objeto de estudo que a questdo ¢ retomada Por estes autores nos anos 1960, ¢ apontar alguns desdobramentos, Nestas abordagens, é em ternios subjetivos que se cletine o equilibria ecorréniico da famitia camponesa. Isso significa que, da mesma forma que em Chayanov, sao fatores irtternos que determinarao seu desem- penho produtivo, fundamentalmente a contraposicao entre o produto snarginal do trabalho e seu custo, Este dilema neocidssico basic entre trabalho e écio — entre © prazer derivado do produto do esforgo, diante da satisfagao propiciada pelo descanso — assume, no caso da praductio camponesa, entretanto, uma fisionomia parti- cular. Enquanto as necessidadies basicas da familia no forem atingi das, havera disposicao a um grande sacrificio em trabalho — embo- Fa com retorno econdmico muito baixo. Uma vez alcangadas estas necessidades elementares, a estimativa feita em torno da ulilidade de bens adicionais cai e aumenia a aversdo a penosidade do tra- batho. Nao é, como em Schultz, a produtividade marginal dos fatores que orienta as decisdes de investimento dos agricultores. Na verdade, esta produtividade marginal 6 objeto de uma avaliacio subjetiva cuja base néo sito os precos de mercado, mas sim o imenso esforgo despendido para se atingir a produgao de subsisténcia e, portanto, a tendéncia a rendincia a este esforco, téo logo as neces- sidades bisicas tenham sido encontradas, Em seu importante artigo, Mellor (1963:519-520) explica o problema: Universaimente, a utilidade marginai dos bens adicianais e das rendas de servico ¢ muito alta, até que as necessidades de sub- sisténcia tenham sido aleancadas, Para atingir a subsisténcia, os 92 A Microccon npones agricullores escolhem converter seu trabalho em bens e servigas, mesmo a uma baixa taxa marginal de retorno. Segue-se que a utilidade ligada ao aumento de bens e servigos sera menor, uma ‘vez alcangada a subsisténcia’’ A pobreza, por um lado, ¢ a fusdo entre a unidade de consumo € a de producao, por outro, determinam entao um nivel de equilibrio particular & economia camponesa’, Alias & nestes termos, muito mais que em fungo de raz6cs culturais ou psicologicas, que pode ser explicado 0 fato de que “(..) 08 agricultores, em paises de baixa renda tém aspiracées limitadas de bens materiais e de servigos” (Mellor, 1963:519). Esse equilibriog inalteravel enquantoo comportamentoda familia for determinado por causas fundamentalmente endogenas. F claro que © ponto em que o aumento da desutilidade marginal do tra- balho encontra a queda na utilidade marginal da renda varia em fungio do tamanho da familia, da relago entre consumidores ¢ trabalhadores no seu interior, dos meios téenicos com que trabalha, da quantidade de terra disponivel, dos precos agricolas e da renda trazida por atividades nao agricolas (artesanais, por exemplo). Esses fatores, como bern mostra Nakagima (1969:166-176) e com jé apon- tara anteriormente Chayanov, podem alterar o ponto de equi mas nio sua natureza, isto é, sua determinagio subjetiva. Ha um elemento entretanto capaz de alterar significatioamente a racionalidade camponesa: é a existéncia de um mercado de trabalho. Neste caso, 0 esforgo familiar passa a ser comparado no apenas com a renda obtida no estabelecimento agricola, mas adquire outro pardmetro que 6 0 custo de oportunidade oferecido pelo mercado de trabalho. As necessidades bisicas podem entao ser alcancadas no "Sen (1966:425-427) e Nakagima (1969) oferec sgréficas destas proposigies. Nakagime declara, logo na i terse inspirado em Chayenov. Quanto 3 especifidave teéricn do estudo do: rho quaciro ca economia neaclsssic, ¢ interessante a proposigio de Sen, comentando tum estudo segundo o qual as unidades de produsso fa isa. perigo de a 1m econornia capitalitn” (Sen, 1956:443), O trabalho mais ree Baslelt (1984139) mostra w importincia de “metodologias alternativas de beneficio..” no estudo das reliteces agritics no Tereeiro Mundo, A Microe la lo Comporteniento Cessponés 93 mais com base no trabalho no interior da unidade produtiva, mas venda da forca de trabalho. Da mesma forma, a compra de trabalho por parte da familia camponesa torna-se possivel, 0 que indica também umelemento externo a familia na obtengao deseu equilibrio econdmico: “Fora de um mercado de trabalho, como € assumido aqui, a produtividade marginal do tabalho, noequilibriosubjetivo, tende a variar de uma unidade familiar para outra. Em geval, as princi- pais causas sero as diferencas: (a) nas quantidade de recursos nao derivadios do trabalho que as unidades produtivas 8m; (b) no niimero de trabalhadores nas unidades produtivas;e (c)no nme rode dependentesnasunidades produtivas” (Nakagima, 1969-169) A suposigao da existéncia de um mercado de trabalho porém tora insuficientes estas causas internas, O equilfbrio deixa de ser estritamente subjetivo. Nao que o objetivo da familia se altere: trata- se sempre de “maximizar a utilidade”. A introducao do mercado de trabalho introduz, entretanto, uma varidvel exégena a determinagio do nivel de equilibrio. E perfeitamente concebivel que a familia opte que alguns de seus membros trabalhem como assalariados e, por- tanto, que sua produgio caia, encontrando no mercado de trabalho um meio de obter suas necessidades dle subsisténcia. Isso significa, em outras palavras, que a introdugio do mercado de trabalho no modelo de equilibrio entre a desutilidade marginal do trabalho e a utilidade marginal da renda (o famoso balanco chayanovista entre trabalho @ consumo) faz com que as decisdes a respeito do uso do trabalho sejam separadas daquelas tomadas com relagiio ao consu- mo, Neste sentido, uma vez admitida a existéncia do mercado de trabalho, a unidade de produgio camponesa deixa de ser exclusiva- mente a fusio entre o empreendimento produtivo e a familia con- sumidora © aprofundamento destas idéias exigiria necessariamente sua elaboracdo algébrica ¢ grafica, o que escapa aos objetivos deste trabalho. © importante aqui é a formulagao, no quadro mesmo da economia neoclassica, de uma logica (isto é, de objetivos e de meios racionais para atingi-los) da unidade de produgao familiar diferente da maximizagao do Jucro e da minimizagio dos riscos. E da mesma forma que fizemos nos dais itens anteriores, vejamos rapidamente as conseqiiéncias politicas dos modelos de aversao & penosidade. preciso ter em mente que estes modelos pretendem fundamental mente responder a uma questa pratica: como promover a maior integragio das unidades de producdo familiares ao mercado de produtos e insumos, de maneira a elevar sua renda e, presumivel- menie, seu bem-estar, assim como a disponibilidade de produtos agricolas na sociedade como um toda? Note-se que esta questao é bastante semellrante a que norteava a preocupagio de Chayanov ea qual ele respondia preconizando a organizagao cooperativa da producdio familiar, A resposta de Mellor (1963:523) ao problema 6 inequiveca: deve- se introduzir um conjunto de estimulos em termos de tecnologia, geréncia e conhecimentos que elevem a “transformagao de tempo de trabalho em produto agricola”. Além disso, noves bens devem ser oferecidos para que desaparecam as limitacées as aspiragées de consumo, Também as inovagoes tecnologicas sao indispensiiveis ¢ neste sentido a localizagio de “individuos inovadores” desempenha funcdo importante. O que Mellor preconiza, em suma, é que sejam introduzidos no interior da economia camponesa um conjunto de condigdes que forcem a ruptura de seu equilibrio que, endoge- namente, Lende a ser estatico. Suas conchustes praticas portanto aproximam-no assim das teses schullzianas, Sen © Nakagima parecem bem mais prudentes a respeito, O trabalho de Sen nao chega a oferecer propostas de politicas. Ble mostra entretanto que nem sempre a madernizagéo correspance a uma verdadeira vantagem social. Ao conivario, é provavel que, socialmenie, a existéncia de unidades produtivas marcadas pelo Uipico equilibrio camponés permita a oferta de bens agricolas em condigdes em que a terra eo trabalho sejam utilizados com resulta- dos methores que em empresas capitalistas. B que 0 “custo de trabalho” camponés (dado pela sua apreciaco subjetiva Getermina- da polas nocessidades de se atingir o nivel de subsisténcia) 6 inferior a0 nivei salarial pago pelos empresarios capitalistas. Uma de suas hipoteses (que lembra consideraveimente a idéia chayanovista de auto-exploragaio) é que “a familia camponesa 6 guiada de fato por seu cAleulo do custo real do trabalho, refletindo as taxas As qnais os membros esto prontos a substitair trabalho por produto, mas o fazendeiro cae A Micraccononuin de Ce uportameito Campane 95 ta equivoca-se por um ineficiente mecanismo de mercado” 1, 1966:443) Sen nac deduz desta hipotese a supertoridade da producao cam- ponesa sobre a capitalista. Mesmo porque, como vimos na estudo, do pensamento de Tepicht, nao é evidente que, dado o nivel de pobreza no interior do qual as familias estardo “prontas a substituir trabalho por produto”, isso represente verdadeiramente uma vanta- gem social Ja Nakagima (1969:178-179) contesta diretamente a solugao pro- posta por Mellor perguntando se a introdugao brusca deste conjunto de mudangas nos padrées de produgio e de consumo nao provocara uma elevagio na “pobreza sentida” por parte dos agricultores. O que Nakagiina preconiza, em suma, € um certo gradualismo nas politicas de medemizacao. Podemes resumir os principais aspectos expostos neste item, aos seguintes pontos: 1. A principal virtude da ideia de “camponés avesso a peno- sidade” 6a integragdo mum modelo tinico da producio familiar edo consumo doméstico. As decisées sobre o consumo tém especial influéncia sobre a produgio. Em outras palavras, hi um tipo espe- cial de motivagdo caracteristico do campesinato que efetivamente faz dele uma forma social particular. Colocando a énfase nestes aspectos, Mellor, Son e Nakagima podem ser vistos como continua- dores do trabalho de Chayanov. 2. Nesle modelo as decisdes econémicas da familia dependem estritamente de seu equiltbvio subjetivo: o valor do trabalho e dos bens de consumo variam em virtude de se ter ou nao atingido a satisfagiio das necessidades bisicas de subsisténcia. O importante é ocardter endSgeno da determinasao do comportamento econdmico, 3. Esse equilibrio subjetive pode ser alcangado em situagées extremamente diversificadas quanto ao tamanho da familia, a idade Ue seus membros, ao nivel dos precos, A extensio cultivada, & tecnologia disponivel, ¢ a participagéo de elementos nao agricolas na formagdo da renda. Essas variagdes nao alteram a natureza do equilibrio sujetivo. 14. A suposicto da existéncia do mercado de trabalho, porém, p&e abaixo a determinacao subjetiva das opgbes econdmicas da familia 98 Ocusto de oportunidade do trabalho torna-se um parametro decisi- vo nas decisdes produtivas da unidade de produgao familiar. Neste caso, para usar a expressio de Chayanov, 0 camponés nao 6 mais uma “unidade subjetiva teleolégica’ £) RESUMo F CONCLUSDES E evidente que 08 casos expostos aqui ndo esgotam, nem de Jonge, os modelos explicativos a respeito do comportamento micro- econdmico do camponés. Nao é este 0 objetivo do presente capitulo. Espero ter apontado trés problemas que me parecem importantes: 1. Na economia contempordnea a questao da racionalidade cam- ponesa possui um peso significative. O fato de terem por base Jorica conceitos derivados fundamentalmente da sociedade capi- talista nao impediu aos economistas neoclassicos a construgao de importantes modelos explicatives a respeito do comportamento econdmico camponés. Sob esse ponto de vista ainda, € preciso assinalar que a contribuigo da economia neoclissica € significati- ‘vamente mais importante que a dos autores de orientagdo marxista: 6 que os neoclassicas procuram razses endogenas de um deter- minado comportamento, enquanto no marxismo as determinages de natureza social aparecem freqiientemente como necessirias e sufi- ientes". Assim, a extragio de sobretrabalho ¢ a dominagao politica tornam-se fatores explicativos: compreender © campesinato & exa- minar fundamentalmente as fungoes que ele desempenha na re- produgtio de um determinado sistema global. J4 os neochissicos, centrados no problema da tomada de decisbes, procuram na propria familia camponesa os elementos determinantes de sua conduta 2. Tentou-se aqui apontar a diversidade das légicas camponesas estudadas. O importante é que as trés vertentes expostas apsiam-se na premissa de uma racionalidade definica om moldes estritamente econémicos: a busca de lucros, a minimizagao dos riscos ¢ a averséo a penosidade sio objetivos cuja realizagao supde a mobilizagao de certos meios que, nos trés casos, podem ser objetivades num cileulo 8 Coube ao chamado marxismo analitico enfrenta 9 problema das epcSes em torn aa asi Mas esta parece a tnica corrente que, inspirada no marxism Inclinow-se nesta diresie, come mestram Elster, 1986 ¢ Preeworski 1988. Procurei apontar alguanas linitagdes desta abordagem, quanto 8 anélise de campesinato, em Abramovay (1990). A Mierocconoiia do Compor 7 econdémico. A exposicgdo destes trés casos permite também que se mostre, por um Jado, a importincia historica do trabalho precursor de Alexander Chayanov, mas, por outro, a possibilidade de que a “morfologia” da unidade de produgao camponesa seja construfda com base em pardmetros que nao sao exatamente aqueles com que economista russo trabalhou. 3. Ao se voltar para 0 campesinato, os economistas neocléssicos procuram fundamentar respostas ao problema pratico do desen- volvimento econémico. Nao sé nao existe homogeneidade nas pro- posigdes de politicas, como nem sempre a mesma compreensio teGrica da familia camponesa conduz a resultados politicos idénti- cos. A nogdo de equilibrio econémico subjetivo produz tanto pro- postas de modernizagao acelerada quanto a recomendagao de ex- trema prudéncia nas transformagées da vida agratia CAPITULO 4 OS LIMITES DA RACIONALIDADE, ECONOMICA A) APRESENTAGAO Estudamos, nos Capstulos 2 e 3, alguns dos principais mo- delos microecondmicos do equilibrio camponés. A abordagem pri- vilegiou fundamentalmente a unidade individual de producao e as determinagdes basicas de suas escolhas econdmicas, Esta é uma caracteristica da propria microeconomia (o primado do individuo e a localizagio de elemenios racionalmente discernfveis a nortearem ‘seu comportamento) e que, como vimos, respondia A preocupagdo pratica com a montagom de politicas adequadas para o desenvolvi- mento, Com efeito, nada seria mais desastroso que fundamentar orientagoes programaticas em pressupostos que nao correspondem a0 estreito leque de opgdes que, de fato, o produtor tem pela frente Galbraith, 1977) ‘Assim, mesmo quando avesso & conduta que dele esperavam agéncias de desenvolvimento e cientistas, o camponés procedia de maneira racional: essa foi certamente uma importante contribuigdo da economia do anos 1960 4 compreensdo do problema agrario em varios paises do Terceiro Mundo. Existe entretanto uma ambigilidade basica nesta contribuicdo. Na % 100 Oe sda Racor idee maioria dos casos, os economistas ndo analisam de maneira mini- mamente satisfatoria 0 ambiente social onde a vida camponesa transcorre e suas leis operam. O proprio Chayanov, em sua obra mais importante, nos diz pouquissimo a respeito das condigoes exteriores que permitiam o funcionamento do “equilibrio entre tra~ balho e consumo”. Com excecdo do tillimo capitulo de seu livro, sua obra transtnite a impressdo de que a unidacle de producdo familiar possui por si $6 virtude de produzir as leis econdmicas por ele tio bem analisadas, independentemente do costjuirto de circunstinncias exte- riores en: que estd envolvida. A familia camponesa torna-se assim uma entidade abstrata e sem historia, Tudo se passa como se a economia camponesa fosse um produto necessério de qualquer forma de organizacao familiar na agricultura, Tepicht, de certa forma, tentou levar esta abstragao ao seu limite formulando 0 conceito de iodo de produgio cemponds, que se taria nas mais diferente formagoes sociais e epocas historicas, sem com isso perder sua identidade propria. Mesmo 0 uso do conceito marxista de modo de producgdo para earacterizar o campesinato reforga a iciéia de que seus tragos funciamentais sdo independentes das condig&es sociais € hist6ricas em que se insere. O modo cle procugio @ justamente, ele mesmo, uma certa unidade entre re- lagdes Sociais (familia) ¢ forcas produtivas (forte peso do trabalho manual) que gera um tipo de comportamento cujo eixo de determi- nagio é fandamentalmente interno. E nesse sentido preciso que 0 conceito de modo de produgao camponés padece do paradoxo de que, embora inspirado no materialismo histérico, 6 necessariamente uma categoria sem histéria: ele permanece igual a si mesmo no curso de sua secular existéncia. Ja 08 autores neoclissicos procuram ressaltar 2 racionalidade econdmice do camponés. © proprio Lipton indica que a estratégia de aversao ao risco & uma forma de maximizacaio da utilidade, especifi- ca.a determinadas condigées seciais, A pobreza do agricultor tradi- cional em Schultz. nao elimina sua racionalidade econdmica, que pode ser estudada com os mesmos instramentos e critérios dos que se aplicam a qualquer economia de mercado. Sen ¢ Nakagima, embora mais prudentes!, também poem em evideéncia a racionalidade econdrtica do campesinato. 0 texto de Sen em que nos apolames no C: adverténein Jl 3 termina com a seguinte | | Or Linites da Racionatitade Erondnvien 101 ‘O que entretanto os economistas absolutamente nao colocam em questiio sao 0s lintites desta racionalidade econdmica e nao o fazer Por nao estudarem a func o conjunto do ambiente social em que a vida camponesa se desenvolve. A ideia central do presente capitulo pode ser assim resumida: a racionalicade cconiéntica do campesinato & necessariamente incoir- pleta porque seu ambiente social permite que outros critérios de relagoes humanas (que nao 9s econdmicos) sejam organizadores da vida. E por essa razio que ndo pode ser dispensada a contribuigao decisiva da antropologia classica que via nos camponeses membros de uma sociedade parcial, com uma cultura parcial. Parcialidade, no caso, ndo é isolamento, mas a capacidade de estruturar a vida em torno de um conjunto de normas préoprias e especificas’, Vida em comunidade, vinculas personalizados no s6 entre os individuos em geral, mas entre agentes sociais com lugares antagénicos na hierar- quia social, regras coletivas determinantes do uso dos fatores pro- dutivos e do consumo, mais que um tipo econdmico, 0 camponés representa, antes de tudo, um modo de wida, conforme sera visto no item 8) deste capitulo. Nas sociedades camponesas, «economia existe como esfera institucional auténonsa da vida social, para usar uma expresso de Karl Polanyi (1944/1980). Além da personalizacio dos vinculos sociais, isso se traduz na ausdncia de uma contabilidade cional, no envolvimento das operages produtivas e do proprio consumo familiar num conjunto de motivagbes que s6 se explicam “Finalmente wma observagio geral. Este texto @ basicamente uma tentativa de apliearos postulados do comportamento racienal aos detalhes das decisées aloca tivas em economia camponesas e duais, As diferencas entre 05 resultados alecat ‘vos das economias componesns e das outras aio tragadas aqu enguanto diferengas fem circunstincias abjetivas. Vimos que as caracteristices especiais das economias camponesas @ duais tornadas familiares por duas décatas de desenvolvimento podem sor bem eneaixadas numa astrutura de camportamento racional, Entretar~ to, vale @ pena en Jos deste texto, que a racionalidade @ uma A mesina precausie tomada por Nakagims (1969166) “Nés economistas nada podemos dizer propriamente sobre a ‘racianalidade’ da ‘digamos, numa inks do ponte de vista de sadiclonat ligar-se organtea- (Galeski, 1968.26) 102 pelo tipo de constrangimento que a unidade de producao individual sofre por sua completa submissio as regras comunitirias em que esté mergulhada. A familia ea comunidade, de cert forma, empres- tam sentido a atividade camponesa. Trabalho e vida nao sao duas dimens6es cindidas: as eriangas, as mulheres, enfim wm organismo Unico produz com base no objetivo de gerar ndo s6 os meios de vida, bretudo uni nwdo de vida, A unidade indissolivel da existéncia ests também no conjunto de significados vitais que os elementos bsicos do trabalho incorporam: a terra no é um simples fator de producao, as outras unidades produtivas nao so apenas concorren- tes € os comerciantes nfo sio 86 sanguessugas, Redfield, Kroeber, Mendras, Wolf, expresses mais relevantes da literatura sociologica e antropologica dedicada ao assunto entre os anos 1930 e 1960, viam nos c entre sociedades tvilais primitivas ¢ 0 universo trbano, Por mais que se possa eriticar como evolucionista a idéia de continua rural-urbano, pre- sente sobretudo nos trabalhos de Redfield?, ela aponta para um trago importante do campesinato que € a existéncia de cédigos sociais especificos determinantes da conduta, mas ao mesmo tempo a constatagio de que ~~ diferentemente de socicdades tribais, por exemplo — esies © campones se insere na sociedad global ems que vive, A antropologia clissica percebew e debrugou-se sobre a diferenca cessencial entie sociedacles camponesas e tribais. A parcialidade da sociedade camponesa vem exatamente de que, embora organizada em torno de cédigos sociais préprios — cuja organizagio escapa a razio estritamente econémica — ela se relaciona com o mundo exterior, também através dos vincules econdmicos dados pela venda de mercadorias Qual a base econémica desta insergio? B com muita freqiiéncia que se caracteriza 0 camponés como produtor de mercadorias ¢ mesmo com a ajuda do conceito marxista de produgao simples de mercadorias. Existe af um mal-entendido fundamental. A idéia de Produgao simples de mercadorias exige a constituicao de um merca- do competitive que se encarrega de imprimir aos produtos um selo social (seus pregos) pelos quais sto reconhecidos como partes ali quotas da divisio do trabalho. © funcionamento deste mercado supde lacos impessoais entre os agentes econdmicos (condigiio fun- SCL, por exemplo, Pahl, 1966, 103 ites da Rac damental para que o trabalho social se distribua de maneira nto lanejada entre os diferentes ramos da producic) ¢ um ntvel de gilidade e intezragdo entre os diferentes mercados que justamente nio se encontram no ambiente caracteristico das sociedades cam- ponesas, fortemente marcado por vinculos pessoais, hierdrquicos ¢ pela fusio das operacées mercantis com esferas nao estritamente econdmicas da vida. Os mecanismos pelos quais as vendas de produtos se confundem com um conjunto de prestagies pessoais (obrigacdode vender a um comerciante, atendimento a membros da familia em caso de doencas, obrigagées comunitirias de natureza ritual etc.) indicam justamente a nianeira incomplete, parcial c 10s de mercado atuam ¢, portanto, os limites da prépria reaziio 8 Sociedades camiponesas' ‘A caracteristica constitutiva do campesinato, conforme ensinow Chayanov, € a fusdo entre a unidade de produgao e a de consumo" éentio em tomo da familia que os modelos de equilibrie campones operam, como vimos nos Capitulos 2 ¢ 3. Porém ¢ nos mercaifos em que se insere que se constitui, sob o Angulo econémico, a soci camponesa. E portanto na maneira como vende os produtos de seu trabalho e compra os elementos necessirios a sua reproducao, nas estruturas determinantes de suas relagdes mereanttis, que reside segredo de sua organizacio econdmica “interna”. Af se encontram 0s fatores socialmente explicativos das racionalidades camponesas. Em trabalho recente, apoiado por muitos anos de experiéneia de campo ede atividade docente sobre o tema, 0 economista Frank Ellis (1988) traz uma contribuigio simples, mas decisiva a respeito. Alem de seu carater familiar, do ponto de vista econdmico, o campesinato se define por dois outros tragos basicos: 1.a integragao parcial aos mercados 2. o carter incompleto destes mercados. 4G.) una economia dle mercado so pode funcionar numa sociedadte dle meveato” (Polanyi, 1944/1980: 72) "Das eseritos que conheco de Chayanov e Weber, ro. Apesar disso, 640 intimeros os Weter, por exemplo, qualquer referent ‘que convergem toda remuneragto do trabalho trabalhador (Weber, 1905:37 e 38) ¢ © bbalango trabalho/consume, massob 1 come principal resultado a reducio no esforso do snente aaj da idcia chayanovista de asplaagio saciolégiea e nfo microeconmicn. 104 (0s Limtites da Ros Essa dupla caracterizacdo indica, por um lado a exposigao per- manente do campesinato a forgas de mercado, sua existéncia como parte de um conjunto social a0 qual se subordina, mas ao mesmo tempo cla aponta para a particularidade da integracdo social cam- ponesa: ela é parcial, nio s6 no sentido de que parte da subsistencia vem da autoprodugio, mas também indica uma certa flexibilidade nestas relagdes com o mercado, do qual o camponés pode freqiiente- mente se retirar, sem, com isso, comprometer sua reprodugao social Além disso, esta caracterizagao aponta para 0 carater imperfeito ou incompleto destes mercados. E bem verdade, como lembra Ellis (1988:10), que ‘em economia, a imperfeico de mercado é um conceito relative definido por comparacio com um ideal hipotético, a competigiio perfeita” Por mais polémica que seja a nogdio de competicao perfeita em plena época de economia mista, com 0 grau de intervengao do Estado em todos os setores da vida social, o particular as sociedades camponesas € que a transformaciio dos produtos em mercadorias depende de vinculos, em geral personalizados, onde os pregos so ditados por condicées locais ¢ as alternativas em torno da compra e venda praticamente inexistem, como serd demonstrado adiante, no item o) deste capitulo. A natureza dos mercados 6 um dos atributos microecondmicos mais reveladores da vida social, Nos limites universalizagdo dos mecanismos de formagao dos presos reside uma particularidade essencial do campesinato, Se © campesinato pode ser definido por sua integragio parcial a mercados imperfeitos, sua capacidade de sobreviver no interior de sociedades capitalistas sera extremamente precéria: 0 ambiente the seré hostil. Sob angulos distintos, tanto Marx como Weber perce- beram, neste sentido, a incompatibilidade entre campesinato e capi- talismo, o fato de que as condigGes sociais geradas pelo desenvolvi- laquele tempo. a pred! ‘obcervacio rccorrente dos agri rho sudoeste co Parans entce 1977 e 1980 (Abramavay. 1981). quando se ref pasado. Isso indien a inexisténcia, até a inicio das a mercado nacionais igeis e operantes, Produtos abundantes, ens ser verdidos, 50 4 releréneia também de age falam dos anos 1940 e 1950 (Abramovay, 1984), fer no norte do Pacand nea 105 mento capitaliste na agricultura minavam as bases do ambiente no qual o campesinato pode subsistir. O mercado acaba por substituir o cédigo que orienta a vida camponesa e por ai solapa suas possibili- dades de reproducao social. Ea um breve comentario a respeito da posico de Marx e Weber com relagdo a0 nosso tema que sera dedicado o item 0) deste capitulo. Convém salientar que, sempre que possivel, procurarei exem ficar as conclusées tebricas aqui alcangadas com base em estudos de caso, boa parte dos quais realizados por equipes das quais parti- cipe’’ 2) SOCIEDADES CAMPONESAS terme cai: em desuso e a primeira vista € até improprio. Que as sociedades sejam capitalistas, socialistas, feudais, isso parece indicar um conjunto de normas scciais, um certo nivel de desen- volvimento material, padrées de relagdo entre as pessoas e uma estrutura juridica e politica reveladora da dinimica social. Mas como € possivel existirem sociedades camponesas se ninguém nun- ca ouviu falar, por exemplo, de um Estado camponés? Sera que por tris da expresso nao se esconde uma imagem corporativa da vida social, como se pudessem existir sociedades metaldrgicas, bancarias, ou até, de maneira mais geral, operrias, como se cada uma pos- suisse tegras proprias de funcionamento as quais se pudesse dar © rome de sociedade? Vejamos a questo mais de perto. ¥ sobretudo a partir do trabalho do antropélogo norte-americano Robert Redfield que a expresso ganha estatuto cientifico no interior das ciéncias sociais, no final dos anos 1940, Num estudo publicado em 1956 (Redfield, 1956/1961a) ele mostra de maneira sugestiva ‘como o camponés é convertido em legitimo objeto de estude pela antropologia, Vale a pena acompanhar seu raciocinto. dlestes casos nto sein ‘chegamos dez anos atrés. Pessoalmente fui responsivel pela pesquisa no: do Parans.

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