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O CORPO NA CIDADE DAS AGUAS: SAO PAU Resumo. Este artigo analisa algumas das relagdes entre os usos da digua na cidade de So Paulo e 0 corpo de seus moradores no século XIX. Dos anligos rios, fantes ¢ chafarizes ao estbelecimento da Companhia Cantareira uma cultura das aguas envolve e caracteriza a Vida puulistana, marca disputas e aliang: sociais, além de revelar gestos sensibilidades que, por ve7es. nfo sv mais visiveis no cotidiano da cidade atual, Palavras-chave Corpo: agua: gestos: cotidiano: higiene Proj. Historia, Sao Paulo. (25), dec. 2002 .O (1840-1910) Denise Bernuzzi de Sant'Anna® Abstract This article analyzes some of the relations benween ihe uses of water in the city of Sao Paulo and the body of its dwellers in the 19% century, From the ald rivers, fountainy and public fountains to the foundation Companhia Cantareira, a culture of waters involves and characterizes life in the city of Sido Paulo, marking social disputes and alliances, besides disclosing gestures and feelings. some of which cannot be seen in the daily life of the city nowadays Key-words Body; water; gestures; daily life; hygiene. 99 Impossivel retroceder 4s origens dos elos entre a agua ¢ 0 corpo humano. Na biologia assim como ela se confunde com a esséncia da € no imaginario, a 4gua constitui os corpo: vida, Elemento flexivel, que passa “humildemenie” pelos esgotos, “aceitando 0 que os homens em geral abominam”, a 4gua pode correr alto ou baixo, assumir “a forma de qual- quer recipiente” e servir a uma imensa variedade de propésitos.' Importante testemunho ‘ificados servigos e, a McsMo tempo. do corpo, a égua se presta aos mais intimos e desclas: ehigiGnicos atos, Mas esta flexibilidade da 4gua também inclui a sua aos mais abengoados escassez, ou a sua abundancia, por vezes indesejadas e mals’ Por conseguinte, as histérias dos encontros ¢ desencontros ancentrais © possuem um forte poder indicativo: indicam, por excmplo, 0 univers gestos relacionados as intimeras experigncias de higiene, o abastecimento familiar, a ativi- dades de lazer em lagoas, piscinas, fontes ¢ rios, ou entao de trabalho, tal como a culindria a e barro dos leitos fluviais. Existem, igualmente, indicagdes sobre a ¢ a extragao de are’ dimensao das disputas pela égua cntre os habitantes de uma mesma localidade. Tais dispu- ¢ das terras, das inter- tas revelam o mundo que cerca e atravessa as Aguas, aquele da po ios, OS vengdes de engenheiros no desenho da cidade, das hierarquias entre antigos of quais, em grande ntimero, desapareceram do cotidiano atual: pescadores, barqueiros, lava- Ueiras. fiscais de pontes ¢, ainda, sentinelas de caixas d'dgua, aguadeiros, zeladores de chafarizes, entre outros. 74 trabalhada neste artigo Parte dessas indicagdes, rapidamente mencionadas acima inspirado em nossa pesquisa sobre os usos da agua na cidade de Sao Paulo ao longo do século XIX? A abundancia tanto quanto a escassez. das Aguas nesse perfodo caracterizam idade de fabricar equipamentos e sensibilidades adaptadas ao cotidiano dependente de rios, bi- grande parte da vida paulistana ¢ imprimem nos corpos de seus moradores a nec cas, chafarizes, fontes, pogos. ete.. elementos naturais e produzidos pelo homem, mas que. em nossos dias, ocupam pouco espaco visual dentro da capital paulista, As dificuldades encontradas na pesquisa sao, contudo, signficativas. Embora fartos, os registros das relagGes entre as aguas e os corpos de outrora nem sempre sao muito clogiientes, Como seas aguas do passado, ao ganharem a escuridao do mundo subterranco dos sos de filtragem, ou ao desaparecerem da visio ¢ do contato permanente com 0s espagos piiblicos da cidade, tivessem levado com elas. igual- nos, ao receberem novos proce: mente, as memsrias daqueles que nelas foram banhados, as historias dos corpos por elas Lestemunhadas ¢ as sensibilidades que elas ajudaram a construir. E, por isso mesmo, esta de ser, como muitas outras, uma tentativa de reavivar o antigo ¢ sempre cio do historiador, Nada além do que um exercicio pesquisa nao deixa atual questionamento dos limites do of Ge curiosidade vital: até onde € possivel fazer historia, trabalhando com vestigios € tragos 100 Proj. Historia, Sdo Paulo. (25). dez ético esparsos? E, o que é mais importante: até onde € possivel fazer histéria, mantendo-s 0 suficiente para no inflacionar com valores atuais ¢ com um antropomortismo caracteris- tico de nossa época imimeras dimensdes da vida passada desprovidas dos poderes da es- crita e. por vezes. da fala? 1. Um enredo de poucas palavras Em meio as relagdes estabelecidas historicamente entre o corpo € a Agua, 0 delinea- mento da cultura gestual ocupa um lugar de destaque. Os gestos nao stio apenas um parcei- a. nem unicamente um de seus ro da fala, podendo contradizé-la, confirmé-la ou ritma-l instrumentos ou o scu “primo pobre”. Dificil, contudo, é perceber um gesto desacompa- nhado da linguagem oral. E. impossivel, talve em relagdo ao corpo no qual cle emerge ¢ & cultura da qual ele participa. E também prati- proceder ao isolamento de qualquer gesto camente impossivel traduzir por completo os gestos mediante a linearidade de certas fra- ses, nas quais se localizam 0 sujcito, 0 verbo ¢ 0 objeto. Um gesto ¢ sempre emissio plural e simultiinea de uma determinada ago, expressdo das intengdes daquele que age, bem como de scus limites ¢ possibilidades.’ Mas cle nao deixa de ser extraordindriamente o, mesmo quando expressa a redundancia. Para complicar ainda mais a situa nicam entre si, seja nuM mesmo corpo, seja entre corpos diferentes, ¢ isto pode ocorrer prec abordar, os gestos comu- Ao que aqui tentarem antes mesmo de serem capturados ¢ mediados pela fala: cotidianamente, sorrisos respon- dem a sorrisos ou a lagrimas, toques de maos interpelam e modulam intimeros movimentos corporais ou se integram a outros gestos; olhares se cruzam, s¢ examinam, desafiam os mais proximos. tecem aliangas, submetem... Tudo se passa como sc um vasto campo de mudas vivesse constantemente cm contato, trocando informagGes, disputan- experiénei: do atengao e afctos. entre outras, Inv s sem voz nao deixa, porém, de ser uma maneira, sligar as express de contribuir para agucar 0 entendimento de uma frase falada ou escrita. po ocorre com a escrita e a fala, outras formas de expresso do ser humano revelam tanto quanto ocultam. Nao € portanto uma suposta transparéncia das identidades corporais ou assim como do mundo que a sua observacao promete, mas sim a percepgao, ainda que fugaz e minima, da densidade hist6rica que os anima em cada circ Dificil, no entanto, para a dimensio falada ou para inwiro, juntamente com a sua voz ¢ seus gestos: tarefa sem fim e talvez, em grande medida. nstancia: aplar a historicidade dessas expressdes que nem sempre pass escrita. O mesmo ocorre quando se tenta abarcar 0 corpo 2002 101 Proj. Histéria, Sdo Paulo, (25), de relagics nas quais ele se expressa, vive € atua” arriscada. Pois 0 que 0 corpo sem Como € possivel observar um corpo sem consideré-lo, imediatamente, a partir dos corpos que 0 sucedem 0 precedem, que 0 rodviam e que dele se diferenciam’ E, ainda. como é rever e falar de corpos sem considerar os objetos (incluindo remédios, méveis, tanto quanto os seus possivel as potencialidad roupas, meios de transporte, cc.) gue Marcam as limites? Em suma, como pensar os corpos, especialmente de uma perspectiva historica. sem os enredos sociotécnicos que os constituem? O mobiliério de uma época, por exemplo, ou os instrumentos de trabalho de um deter- minado grupo social trazem indicagdes importantes sobre os modos de apoiar, sustentar ¢ acomodar 0 corpo, seja no estorgo, seja no descanso. Utensilios ¢ equipamentos de uso cotidiano, assim como maguinas ¢ Méveis feilos para receber a presenga ¢ o contato dos compos. costumam funcionar de modo triplo: como extensies, suportes e demarcadores acidade de cada dos limites ao mesmo tempo corporais ¢ culturais. Eles sig indices da s; grupo social. mas também expressam parte de seus receios ¢ sonhos. Seus usos, principal- destrezas ¢ as dificuldades humanas, mente. fornecem sugestdes importantes sobre 2 Entretanto, toda cultura gestual resulta de transmissdes e aprendizados por vezes Tongos. frutos de uma ingeréncia racional sobre 0 corpo. Os gestos de abrir ¢ fechar torneiras. por exemplo, com 0 intuito de obter agua, exigi- ram um obstinado aprendizado, A naturalidade com que milhares de pessoas de nossos Gias associam as tornciras ao giro das maos para abri-las ¢ fecha-las (embora ja existam tornciras que demandam gestos diferentes destes) nao era muito evidente entre individuos: tinas, habitados, por exemplo, a relirar a gua para o sustento didrio de dentro de pogos fontes ou rios. com a ajuda de baldes, bacias e canccas Na cidade de S. uso de muitas torncir 40 Paulo, guando 0 sistema de abastecimento nao contava ainda com o feché-las apés 0 uso pessoal. por exemplo, nao era uma prética so nio, largamente considerada natural. Por isso, “deixar” a torncira aberta aps 0 seu u significava apenas uma travessura ou alguma resistencia ao uso desse equipamento, Pode- tos de ria também ser um esquecimento comum numa época em gue o aprendizado dos g abrir ¢ fechar tornciras nao era muito freqiiente. Tal aprendizado, assim como tantos ou- {ros, no poderia ocorrer sem a coagio de antigos gestos, 0 adestramento das mans. do rao e da visio em fungaio de movimentos giratirios cada vex mais associados aos valo- res do conforto ¢ da cconomia individualizada da dgu Talvez esse aprendizado tenha sido em parte dificultado pela presenga constante da gua na cidade para além dos recipientes com torneiras. Durante uma boa parte do sceulo XIX. a cidade de Sao Paulo era entrecortada pela visio de rios, pogos cavados em quintais de terra, fontes ¢ e6rregos rodeados por matagais. Embora a maior parte dos memorialistas 102 Proj. Historia, Sdo Paulo, (25), dez, 2002 insistissem na constante escassez de agua — bastante visivel também em artigos de jornais, em Papéis Avulsos ¢ nas Atas da Camara, os viajantes estrangeiros tendiam a caracterizar $0 Paulo em meio a scus rios ¢ fontes: para além do “majestoso Tite”, cérregos, ribei- roes ¢ bicas constituiam a geografia ¢ os costumes paulistanos.* _E, mesmo quando a escas- de agua era enfaticamente denunciada pela imprensa, a cidade que emergia desta de- niincia era aquela cm que homens ¢ mulheres estavam habituados a lidar constantemente com a presenga fluvial e com intimeros trabalhos destinados a tirar dus dguas a subsistn- cia didria. Os usos deste fuido essencial a vida, no entanto, nem sempre cram compreendidos com base nos Mesmos valores ¢ nece! dades hoje em voga. Os exemplos a esse respeito sao muito diferentes uns das outros. mas, em geral. demonstram tanto a nossa proximidade: com o passado quanto a nossa distancia. especialmente quando se trata de limpeza A referéneia ao rapé. por exemplo, como medida de higiene adotada por varios moradores da cidade, ou cntio o habito de “arear panclas” com arcia ¢ pouca ou nenhuma Agua, essas eram priticas de limpeza importantes em meados do século XIX. Nessa Gpoca, um “mole- que de cara suja” poderia, dependendo da circunstincia. expressar valores positive dos 4 coragem e & masculinidade. Quando foi criada a casa de banhos puiblicos chamada Sercia Paulista, na década de 1860, ndo foram sobretudo os seus banhos de chuva ¢ de banheira os principais responsaveis pela clientela masculina, mas. muito mais, os delicio- sos bifes ¢ as picantes conversas em scu restaurante. entre comerciantes que j4 tinham 0 habito de se encontrar freqiicntemente no Largo Sao Bento Alem disso, numa mesma época, o que era limp. 1 para uns poderia parecer sujeira ¢ desleixo para outros ¢ vice-versa, A agua das chuvas causava enchentes em quintais ¢ ruas, além do lamagal, da destruigZo do calgamento com pedregulhos (estes nao cram, varias ainda. fixos no solo) ¢ do constante desabamento das pontes de madeira, Mas, yradores ¢, em particular, muitas “estrepolias” entre a vezes. as enchentes favoreciam ta criangada. De todo modo, antes do estabelecimento de diversos chafarizes ¢ do encanamento estabelecido pela Companhia Cantareira, a agua tendia a ser vista como parte constituliva do espago urbano, gue, por sua vez, estava repleto de aspectos rurais: formiguciros. rogas ¢ sitios revortados por matagais. becos repletos de sapos ¢ insetos, quintais com hortas, galinheiros. porcos, muitas chacaras © varios veios de agua, Mesmo durante a primeira metade do séenlo XIX, quando os chafarizes proliferaram, nao é possivel afirmar com rleza se os rios. por exemplo. ja cram amplamente vividos como uma paisagen. no seni Jo contemporaine deste Lermo.’ pois diversos usos da agua, tanto os Jaicos como os sagrados. tendiani a se manter bastante proximos do cotidiano paulistano, embaragando. Proj, Hixtivia, Sdo Paulo, (25), dex. 2002 108 de certo modo, o advento de uma transformagao de fontes e rios naturais cm paisagem que. como tal, serviria muito mais a uma espécie de contemplagao visual distanciada de seus usos ¢ servigos cotidianos. Naquela época, a sonoridade de rios c cérregos podia ser sempre ouvida. A pesca vamente, tinha um lugar significativo na economia dos mais pobres. assim como. progr o barro, a arciae 0 cascalho retiradas dos leitos dos rios, sobretudo do Ticté. serviam como matrias-primas aos trabalhos de barqueiros ¢ familias ribcirinhas. Fica a impresstio de que os rios eram considerados ¢ tratados como elementos vivos. de onde vem a suspeita de que nao foram desde sempre (ou para todos) percebidos como paisagem. Sobre 0s rios maiores deslizavam diariamente botes ¢ barcas, que serviam também para o transporte de pessoas. Os rios alimentavam a cidade ¢ seus habitantes, serviam como ponto de referen- cia. divisdo ou ligagao de territérios ¢ de culturas. Numa época em que as foreas da natureza marcavam presenga assidua na vida panlis- tana, a visdo da agua nao costumava estar associada a esta espécie de “vestimenta” feita de ris, as torneiras tendem a ser acom- dos pogos ¢ dos encanamentos ¢ torneiras, Diferent panhadas por um sistema tcnico que retira a agua dos espagos piiblicos, bem como da visio, separando-a do contato com 0 meio ambiente, Além disso. hoje. nao apenas vemos outras éguas como também as vemos com olhos que nao sao mais aqueles dos paulistanos que conheceram a visio dos rios Anhangabati ¢ Tamanduatef: vemos a agua, dentro das moradias, saindo das tornciras. chuvciros, descargas. garrafas ¢ Hiliros: esquecemo-nos de sua presenga sublerrfinea ou cm cima dos iméveis, em caixas d’igua. Varies rios foram . O cheiro transformados em esgotos a ecu aberto, As fontes de agua se tornaram raridade: cidas. ¢ con- do cloro, contudo. ¢ por vezes forte nas proximidades das piscinas aqui fortos esportivos inexistentes na S20 Paulo da Gpoca da Iha dos Amores Num primeiro momento, as torneiras colocadas nos chafarizes, varias delas de bron ede ze. represemtavam uma excegiio na vida do paulistano habituado ao uso de canaleta tampas de madeira ou metal, fabricadas de modo doméstico ¢ artesanal. Bicas pequena parcialmente fechadas com tocos combinavam com a gua de pogos — que desconheciam a presenga das torneiras, mais tarde presentes em varios locais da cidade ¢ dentro das moradias —, bastante comuns até 0 final do século XIX. E interes controle sobre a quantidade de dgua gasta individualmente. Pesquisando em Papéiy Avulsos ¢ Atas da Camara, pereebe- suscitados por sua presenga, certos usos da égua ganharam um aspecto individual e afirma- ante observar, comtudo, 6 quanto a torneira sugere um modo especifico de que, coma torneira ccom os gestos de abrir ¢ fechar ram-se como um bem pessoal, Diferente de uma fonte, que jorra agua incessantemente, 0 estabelecimento da torneira possibilita a criagdo de intervalos e de cortes no jorro continuo 104 Proj. Historia, Sdo Paulo, (25), des, 2002 das aguas. Fa assim, a transformagao da 4gua num fluido que ndo pode ser desperdi- ¢ado, que deve jorrar apenas ¢ conforme as necessidades de cada um. Ao contrario tam- antigas canalctas, a torneira viabiliza a escolha do volume de dgua coletado por cada um. Desse modo, impulsiona um controle novo sobre um fluido considerado natural Silit bém das Assim, por exemplo. uma petigdo de 14 de marco de 1804 solicit & Camara, por meio de um longo texto, apenas uma torneira, “porque podia acontecer de haver ano seco”? ¢ cra preciso tapar a dgua para nao desperdigd-la, Evidentemente, sem torneira, a medida de economia era resolvida com um pedago de madeira bloqueador das éguas nos canos chum- bados em pedras ou perfurando morros. Mas o advento da torneira contribuiu para facilitar medida de economia. A torneira €, nesse caso, a materia- 20 Mesmo tempo estimular es lizagao do desejo de “nao desperdigar” a agua, especialmente cn regibes ¢ ocasides em gue cla ¢ escassa, r utilizadas. também, num sentido totalmente invers Mas as torneiras poderiam s deste acima mencionado, Alguns chafarizes da cidade, propositalmente ou nao, tinham dificultando a coleta do liquido e forgando a populagao a utiliz lorneiras muito baix: aqui, a posigdo das torneiras por si s6 causava sérias difi- pequenos baldes para coleté-l cles omo eram chamados alguns carregadores de agua, pois as torneiras colocadas: culdades aos “baldeadores”. nao conseguiam coletd-las em quantidade suficientes Ou seja. ¢ quase junto ao solo concretizavam. por sua posigdo, a expectativa de algumas autoridades piblicas de regrar, de modo bastante polémico, o consumo de dgua na capital Especialmente durante as décadas de 1850.¢ 1860, havia ainda diversas queixas diri- referentes aos maus tratos das tornciras por sponsaveis por dani- gidas & Camara, de engenheiros ¢ fisca grupos de pessoas, acusadas de serem “moleques ou malfeitores”, r , produzindo 0 iradas de baixo para cim: “escorrimento d'agoa pelas ruas” ou o estrago dos chafarizes? Por um lado. a torneira funcionava como um cquipamento de conforto € como um instrumento para regrar € AUXI- liar na economia da agua: contribufa, portanto, para fomentar a nogdo de que a Agua é um ficar esses equipamentos: sao tiradas do luga ponsavel por fechar esse equipamento apés 0 uso. Mas. bem privado, de que cada um ér por outro lado, com a torneira, cada coletor de agua € incitado a esperar obter a quantidade desejada do Ifquido sempre que ela for aberta. Daf emergem algumas decepgdes: nem da torneira, quando a fonte natural secava, sempre hi égua susiciente. Antes da emergénei o descontentamento daqueles que careciam de agua se voltava contra a natureza Mas, se € a torneira que “seca”, a culpa tendera a ser depositada nos responsaveis pela instalagao deste aparelho, incluindo sua extensao de canos ¢ o sistema técnico de captagao. io Paulo, (25). dez, 2002 105 Proj. Historia. ' 2. O corpo e os revipientes para a dgua O freqiiente uso de baldes para recolher a dgua dos rios ¢ dos chafarizes implementa- vaa assiduidade de certos gestos no cotidiano de Sao Paulo, Entre eles. os gestos nec los sobre a cabega. bastante comuns durante rids para suspender esses recipientes ¢ colo s mulheres boa parte do século XIX, marcando, sobretudo, a postura ¢ as atitudes tisicas da pobres ¢ dos escravos. Além dessas figuras retilineas, que andavam com recipientes de digua por vezes bastante pesados ¢ grandes sobre a cabega, muitas Javadeiras portavam frzeas, em pesados tachos de cobre repletos de roupas. que cram lavadas nas margens das cOrregos ¢ rios."” O transporte de pescados. em tachos sobre a cabega, também favia parte dores ambulantes” dessa espécie de “populagao de carreg: Barris, pipas, filtros de barro, cuias. potes, jarros cocos. bales... A variedade de utensilios ¢ materiais utilizados para a coleta, o transporte ¢ 6 armazenamento da dgua ¢ ado. Seus usos, estemunho da riqueza da cultura enica e material existente no pas bre 0 cotidiano na umt as, incluindo os modos de transporte, fornecem indicagdes precio cidade, Em sua vinda ao Brasil, Thomas Ewbank ja havia escrito sobre a diversidade de vasilhas de barro nacionais. “Toda casa tem uma talha’’. alirmou 0 estrangeiro, ¢ este uten- silio costumava ficar num canto da sala, contendo de quarenta a sessenta litros d’ agua, Nas moradias abastadas. cra um escravo que se encarregava de enché-la com a agua dos chafarizes piblicos."" Também era utilizado 0 “macaco” ou “edntaro do Brasil”: tratava-se ada. Mai pote de barro era a vasilha mais ulilizada para a condugdo da agu de uma moringa alar segundo Bueno. nas primeiras décadas do século XIX 0 0 técnica A primeira Por vezes, um simples pote de barro exprime uma sofistic: vista inexistente. O pote de agua, feito de barro ou ceramica, esteve durante muito tempo presente na casa de ricos e pobres, confirmando suas vantagens (Grmicas ¢ higignicas: a seu lado, havia sempre um coco-da-hafa cortado ao meio, que servia de cuia e de copo. Ji as peruleiras cram utilizadas para guardar vinho ¢ 4gua tresca. A louga de barro resultava do arro vidrado era ulilizado para diversos fins, até mesmo no enca- trabalho das olarias. eo namento de 4 Por volta de 1872, uma moradora da cidade chamada Teresa Alfaque. mais conhecida por Sinha Teresa Paneleira, possufa um botequim na Rua do Jogo da Bola—depois, Rua da Princesa e, mais tarde, Rua Quintino Bocaitiva — no qual se vendiam lougas de barro fabri- cadas em Sao Miguel ¢ Sao Bernardo. assim como “pequenas moringas feitas também de barro lougado e pintadas de negro umas ¢ outras de tinta vermelho-« es gas agradavam as meninas ¢ a muitas jovens que as adquiriam para o uso diario, e também como enfeite, As moringas paulistas tinham formas variadas.“ Ja as bacias de prata para U1 scural ‘as morin- 106 Proj. Histéria, Sdo Paulo, (25), dez. 2002 lavar os pés dos ricos contrastavam com as bacias ¢ gamelas de pau, ferro, latdo ou cobre. utilizadas pelos mais humildes, Mas a existéncia de todas elas ¢ indicativa de praticas de Jimpeza do corpo hoje menos usuais que no passado: lavagem dos pés apés o dia de labuta, oferecimento de uma bacia com gua morna para o descanso ¢ a limpeza dos pés dos viajantes, estes habitos atestavam asscio e hoa educagao, hospitalidade e respeito. No tinal do século XIX. os leilées publicados na imprensa ja revelavam a presenga de bacias de agata e quartos de banho com lavatorios duplos, por vezes de origem americana Nu verdade. os materiais utilizados para 0 limpeza do corpo ¢ para a agua potdvel sio também fortes indicadores dos niveis pecuniarios de seus usuarios; c sugerem, ainda, seus costumes ¢ seus gostos. Todavia, revestimentos com a qualidade de impermeabilizar com- am a significar mais uma pre- pletamente reservatorios de agua ou pipas ¢ jarros come caugdo de higiene do que um luxo, na medida em que a madeira, a palha ¢ 0 barro desapa- reciam da paisagem da cidade ou passavam a ocupar as suas margens Segundo Dias, no século XIX, “muitos objetos de artesanato ainda eram feitos ama- neira dos indios”, tais como as cumbucas de barro, as cabagas de sembé. as purungas d’dgua feitas de cabaga oca, os tupés de cana para guardar sabao, entre outros."® Alguns deles cram possivelmente fabricados no ambiente doméstico, tais como os tabuleiros para sinala a vitali- potes de algados & base de produtos vindos dos rios, Bruno a ulo XIX: fabricavam loug avenda de peixe e des ares” no comego do dade das “indtistrias popu barro ¢ de ceramica, ¢ produziam cestos e jac, estes titimos confeccionados com bambu."* Os recipientes ¢ os instrumentos relacionados & agua sugerem. também, certos odores: Americano recorda do cheiro da 4gua de moringa de quanto esse. da espuma de sabao das lavadeiras quando 7 Q odor do sabao feito de cinzas também era arro ¢ daqucle odor, tio refrescante tas expunham as roupas molha- das ao sol, nos varais ¢ sobre a rely comumente sentido pelos moradores da cidade, especialmente nas proximidades de quin- tais ¢ Lanques coletivos. De todo modo, porém, os “lugares da 4gua” se modificam ao longo dos anos ¢ de acordo com as transformagoes culturais de cada regio ¢ grupo social. Além da riqueza fluvial ¢ maritima. dos veios subterraneos que garantem a subsisténcia de muitos, existem os lugares fabricados para a Agua, ais como tanques, canos, potes, caix. filtros. chafarizes ¢ cantareiras (méveis de madeira dentro dos quais se guardava 0 cdntaro com gua para servir), assim como os “lugares de meméria” da agua. A anélise desses lugares. incluindo seus equipamentos ¢ as maneiras pelas quais alguns moradores da cidade os utilizavam ¢ os concebiam, ¢ amplamente reveladora de embatcs € misturas existentes enue acultura sensfvel ¢ a cultura material vigentes no decorrer do século XIX ¢ no inicio do século XX. Proj. Histéria, Sao Paulo, (25), dez, 2002 107 3. Uma miriade de disputas guas de Sio Paulo testemunharam atos heréicos, come aquele do Grito da margens placidas do Ipiranga’ rade de atos hist6ricos triviais, ou de herofsmos, injustigas e vingangas pouco conhecidos Rios como 0 Ticté acolheram varios corpos. vitimas de assassinato ou de acidentes que Se as Independéncia, clas também participaram de uma mi- quase Jevavam & morte. Americano conta, por exemplo, que, numa certa noite do final do éculo XIX, “alguém, ébrio ou transyiado. meteu-se pelo barro re dando, afundando. Quando tomou pé, estava de Jama até os ombros, Ali ficou gemendo Foi visto pela manha. Vicram os bombeiros e tiraram-no por uma estiva de tabuas’ Os jornais também noticiavam os acidentes nos rios, que por veves termina m-jorrado e foi afun- am em morte. Foi 0 caso, em 1889, de José Soares, empregado da Padaria Romana, que morreu afogado no Tamanduatef durante um banho de limpeza ¢ diversio. Havia, ainda, casos de suicidio nos pogos dentro de quintais. além dos acidentes com canoas em rios, como aque- le que matou 0 portugués Jorge de Almeida, empregado na Casa Levy.” As dguas fluviais, es acontecidas funcionavam como tumba ¢ testemunho de disputas entre os vivas, por v nas “horas mortas”, como se dizia. A “ocorréncia da varzea", proceso que revela a morte de um senhor denominado “Pai Chico”, bastante conhecido na venda de propricdade do Joao Alemao, € nesie aspecto exemplar. No decorrer do processo, percebe-se que “Pai Chico”, jogado para fora da canoa onde estava, veio a falecer nas aguas da Varzea do Carmo Nessa época, as margens da varzea determinavam a identidade de “varz no” para os seus moradores ¢ serviam, também, como local de enterro de animais domésticos ou para 0 despejo do lixo de intimeras lojas e casas da cidade. Tais usos continuaram a caracteriza- la, mesmo depois da década de 1880, quando se intensificou a intolerancia aos dejetos abandonados em locais nao prescritos por lei, Na imprensa, as Aguas servidas. desde entao. comegaram mais assiduamente a ser chamadas de dguas sujas, sem serventia, intteis, ¢ alubridade publica, provocando doengas ¢ descontorto que, ademais, ameacavam a s Enterrar cavalos nas margens dos rios, fazer despachos dentro de suas diguas. deixar as bocas de lobo verterem “agua suja"” em qualquer lugar, assim como os canos arrcbentados. desperdigando agua limpa”, ou provocando a formagio de “termentos telluricos”. focos de miasmas. cic. tornaram-se crilicas constantes de engenheiros, médicos, intimeros s contribuiram, em grande medida, para Eessas critica comerciantes ¢ proprictarios locais a invengao de novas justificativas para as separagbes entre as Aguas. por meio das quais se sustentam as distingGes ¢ as distancias socialmente implementadas entre os corpos. 108 Proj. Histéria, Sdo Paulo, (25), dez. 2002 No entanto, as 4guas consideradas insalubres cram, ao mesmo tempo ¢ cm varias ocasides, utilizadas para a sobrevivéncia de boa parte da populagao ou para a diversao da molecada nas ruas: no Ipiranga, por exemplo, as aguas acumuladas em valas ofereciam trairas aos pescadores ocasionais, As correntezas das chuvas ¢ as pogas acumuladas scrviam como mict6rios & céu aberto ¢ como um modo de livrar os moradores do incdmodo da poeira das imiimeras ruas de terra. Apresenga d Nossa Senhora do O, por exemplo, nticleo sciscentista, era ligado cidade por uma ponte Jguas fluviais era, igualmente, uma constante na vida dos paulistanos, de madeira, feita pelos moradores locais. os quais contavam, em Jarga medida, com 0 de 1920. Em dias de festa, s. 0 segundo para os cavalhei- transporte fluvial. Esse transporte foi utilizado até a déea havia a travessia em tr@s barcos: o primeiro cra para as dama ros, ¢ o terceiro para a banda de misicas. O loteamento Vila do Tieté, outro exemplo, no sitio da Casa Verde, muito dependeu dos aterros ao longo do Rio Ticté ¢ da ponte langada sobre ele em 1915, Enguanto isso, no Naim-Bibi, havia um grande capinzal nas duas mar~ gens do Rio Pinhciros e algumas olarias.2” No inicio do século XX. ainda avistavam-se bateldes repletos de arcia navegavando neste rio: (.) 0 dia do trabalho do harqueire comegava as duas horas da madrugada: com um compa nheiro. percorria o rio em harcagas de até 11 m de comprimento; navegavam contra a corren- feza, sondando o fundo do rio com uma vara de ferro a procura de areia; sabjam da sua presenga porque “A ARI LA CANTA NA BARRA DE FERRO, O BARRO. NAO", ‘A sonoridade da areia era diferente daqucla do barro para esses especialistas do fundo vis por uma parte da nayegagdo noturna, Além da areia, os barqueiros do rio. responsi também carregavam lenha trazida das matas para as olarias das varzeas “{mprovisavam uma cozi- No barco, os barqueiros passavam boa parte de suas vidas nha”, com fogarciro de querosene, ¢ jantavam no restaurante do porto.” No comego do séeulo XX, os ios chegaram a ser um palco privilegiado de disputas entre os diversos barqueiros, em busca de area. ¢ as Janchas do Germania, responsdveis por produzir muitas Aguas. Os primeiros tendem a desaparecer, sobretudo a partir de 1927, quando para aprofundar o leito do rio provocando a paralisagao da explo- marolas nas a Light colocou dragas ragdo de areia A presenga da agua também constitufa enredos misticos ~ a quantidade de lendas sobre os rios € um exemplo Japidar a este respeito ~ ¢, igualmente, enredos politicos € econdmicos. resultando em muitas discussdes na Camara sobretudo depois da década de 1840. Tunto com as disputas pela posse de agua, encontram-se aquelas para separar os scus 5 por vezes bastante conflitantes. Um primeiro aspecto usos ¢ ordend-los segundo interess Proj. Historia, Sao Paulo, (25). dez. 2002 109 de: destinadas a cavalos. c&es ¢ outros animais, cuja presenga constitufa habitualmente o cend- rio urban. Assim, quando na Caixa d’dgua do Sr. Fiscal Rofino, por exemplo, foi encon- trada uma “immensa jararaca”, © mesmo quando diversos animais bebiam no tanque do Zunega, ene outros locais construfdos para armazenar dgua propria ao ser humano, Cémara tendia a ser chamada a tomar providéncia: toricamente entre a: 1a situagdo pode ser encontrado na tentativa de separar as Aguas para os humanos e as. Além da separagao produzida h necessidades humanas e a pre- enga de animais nas Aguas. um segundo tipo de separagao também dava lugar a petighes trata-se da separacao entre dirigidas A Camara ¢ a reclamagdes publicadas em jornais: seres humanos propriedade particular ¢ propriedade pablica da agua. Ou seja, entre os comega a adensar 0 volume de problemas que chegam & Camara, 4 policia ¢ a imprensa, sobre os direitos de usufruir das éguas da Capital c de possuf-las. Por vezes, essas priticas. que implicavam utilizar as Aguas localizadas dentro de terrenos particulares, davam lugar 4 iniciativa dos proprietirios desses terrenos de fecharem 0 scu acesso: viirios hecos ¢ sa espécie de privatizagao bicas deixavam, portanto, de ter acesso puiblico.2* Todavia, ¢ de terras ¢ dguas ptiblicas nem sempre ocorreu sem conflito. ¢, em certos casos. a popula a0 sem terras ¢ sem a posse da Agua conquistou o dircito de utiliza-la ou. ainda. manteve scu antigo habito de entrar cm sitios ¢ terras particulares para colctar as aguas ali existentes Em junho de 1868, por exemplo, Carlos Street se dirige & Camara para argumentar em favor do fechamento de um beco na Rua Liberdade, pois, por meio dele, se tinha acesso & bica do Moringuinho, considerada de boa qualidade. A justificativa deste senhor baseava- se no fato de que o tal beco servia menos para fornecer Agua & populago do que para “reunide s immoraes e escandalosas de todas as noites ¢ o acoutamento de escravo que ali achavao um azylo seguro para se furtarem as pesquisas de seus senhores” 2° No entanto, a imprensa, segundo 0 mesmo senhor, o critica, pois esta medida privaria 0 puiblico do usu- fruto daquela Agua. coisa que, segundo a imprensa, nao ocorria na época do “illustre fina- do Dr. Gabriel José Rodrigues dos Santos”, antigo proprietério daquelas terras ¢ favoravel a0 acesso de todos & bica. Carlos Street, interessado em privatizé-la. chega a dizer que 0 finado Gabriel havia autorizado de modo forgado 0 uso daquela Agua, sublinhando que. afinal de contas, a agradavel bica “era de propriedade particular nao puiblica”. E interes- ante observar que a ccleuma levantada contra “o fecho” do dito beco parece ter sido tamanha que Carlos Street desistiu de prosseguir, declarando 4 Camara que 0 local pode- enfim, continuar a ser de acesso ptblico.” Outras razdes que desconhecemos até en- (ao podem ter concorrido para esse desfecho, no cntanto, as pistas encontradas sugerem uma presenga incontornavel de interesses diferentes em relacao aos usos da mesma bica de gua. A partir deles, a forga dos interesses dos moradores das imediagOes daquela bica. ha ri muito habituados a dela se servirem livremente. tiveram uma importancia considerdvel. 110 Proj. Histévia, Sao Paulo, (25), dez. 2002 Situacdo semelhante ocorre no sitio denominado Bexiga, em 1873. Nesta proprieda- de, havia uma “serviddo com fecho” e. om muro”, mas que, Mesmo assim. no impedia a entrada das pessoas que ali coletavam agua em duas fontes, uma delas denomi- nada Fonte da Sinha. Os antigos proprietirios do sitio costumayam arrendar parte de suas Lerras para tropeiros de passagem naquelas redondezas, mas. em 1847, os novos donos resolveram impedir o acesso pela antiga serviddo. A Camara termina por franquear esse acesso ao publico, nfio apenas para a coleta da agua, mas também para a lavagem da roupa. Os “fechamentos” de acessos as bicas € fontes continuaram todavia a ser objeto de polémica entre as autoridades da cidade, Na medida em que esta cresce, que tem suas atividades comerciais fomentadas c a privatizagdo © a concentragao da posse de terras aceleradas. a polémica entre dguas privadas e aguas pitblicas se acirra, tendendo-se a con- ceder as primeiras aos proprietirios politica € economicamente mais poderosos na cidade. Esta divisa corpos dos mais pobres ¢ os corpos dos mais abastados. As petigd Jo. que reflete ¢ fomenta desigualdades sociais, 6 sobretudo uma divisao entre os a Sse respeito $0 numerosas, as discussdes sobre os direitos sio longas, revelando a transformagao s dgu progressiva da dgua numa mereadoria que deve fazer parte dos bens que se compram ev ndem Ha ainda um terceiro nivel de separagiio das aguas ¢ dos corpos: nao apenas a separa- go entre corpos humanos ¢ nao humanos, entre proprictirios e nao proprictirios, mas também entre usos corporais moralmente sadios (ou virtuosos) EOS “demais”. Os cdigos de postura, alias, stio ricos em informagoes desse tipo, mas juntamente com cles, outros documentos vem mostrar 0 quanto certas praticas antigas tenderam a resistir as mudangas: em geral nos rios ¢ nos preseritas. Por exemplo. 0 banho das criangas ¢ da “molecada’, tangues municipais, embora fosse alve de criticas constantes. principalmente na segunda metade do século, continuo a fazer parte da vida de muitos paulistanos. inclusive dos. estudantes da Faculdade de Dircito, até os primeiros vinte anos do século XX, A proibigao egal aos banhos nos rios, por exemplo, é paralela A perscgui¢ao policial a pritica de des- hicas e rios, também freqiiente durante todo o periodo.* Segun- pejar dejetos em varzeas, do as leis municipais, as caixas de Agua nao podiam ser locais de banho e, para evitar esta pratica, costumaya-se delegar a um “zelador” ou a um “senti nela” o trabalho de vigiar 0 seu uso. No entanto, € rclativamente freqiiente encontrar nas Atas da Camara indica sobre a “falta de atencado” desses vigias. ou, ainda, a sua tolerancia, por vezes treqiiente, em aceitar usos da agua naqueles locais interditados por Cédigos ¢ Leis do municipio. s recorrente nas Ata Ha ainda uma disputa. por v entre zeladores e engenheiros. Pelo que tudo indica, muitas caixas d’agua, assim como alguns chafarizes, possufam Proj. Historia, Sdo Paulo, (25), dez. 2002 i chaves. A posse destas significava, sem diivida, a possibilidade de exercer 0 controle ¢ a vigilancia sobre os usos daqueles equipamentos. O zelador Martinho Cantinho, por exem- plo, acusou 0 engenheiro do governo de ter fechado a porta da caixa d’dgua ¢ do chatariz da Miscricérdia, impedindo. assim, a sua presenga no recinto.? Os aguadeiros, em seu oficio de vender agua nas pipas em diversas ruas, também eram alvo de repr € conflitos, Segundo 0 livro de reccita da Camara, durante a primeira metade da década de 1870 havia em toro de quatorze vendedores de égua em . listados € destinados a pagamento de impostos.”” Eles retiravam Agua de rios ¢ chafarizes, ¢, varias vezes, eram acusados de deteriorar estes ‘nsdes, multa! pipas que percorriam a cidad Uiltimos. A “pritica de estragos” nos chafarizes impedia outras pessoas de se servirem da “Mas também havia a acusagao, por parte de alguns zeladores aguadeiros, em geral imigrantes c tilhos de imigrant Agua desses equipamentos de caixas d’Agua, de que 0 explo- ravam os moradores de Sao Paulo e, ainda, retiravam Agua das caixas d’4gua e dos chata- rizes ¢ nao de locais distantes.” Tais conflitos pela dgua sugerem, nes entre prof € etnias. Ao mesmo tempo, os aguadeiros reclamavam e contradiziam as acusagGes que Ihes eram feitas: cm fevereiro de 1874, por exemplo, eles reclamaram Camara a necessidade de manterem a pratica de coletar agua nos chafarizes da cidade tendo em vista a dificuldade de “chegar as carrogas”, repletas de pipas. nas boas fontes da cidade, distantes do centro.” A reclamagao dos aguadeiros revelava, como tantas outras, a falta de pontes, de calgamento adequado e de outros equipamentos urbanos em Sao Paulo, sugerindo contlitos étni- caso. tensdes Hes 32 envolvendo corpos diferentes Além das disputas pela agi cos, sociais e econdmicos na cidade, havia ainda a disputa pelos locais nos quais deveriam ser estabelecidos os bebedouros ¢ os chafarizes. Estes tiltimos funcionavam como verda- deiros monumentos da meméria cotidiana dos habitos sociais que constituiram So Paulo. Podiam funcionar, também, como ponto de cncontro entre tropeiros, viajantes, comercian- ssoas pobres, como testemunho da meméria de alguém, responsivel por sua cria- 5 com a presenga de tes e pes so (varias inaugurag6es de chafarizes davam lugar a comemora autoridades pliblicas no local), como emblema do poder de cerias empresas ¢ estabeleci- pecialmente depois que a Companhia Cantareira os utilizou em sua rede de abastecimento) ¢ como uma espécie de testemunho do nivel pecuniario de seus construtores. Eles tanto atrafam 0 ptiblico - em geral, os mais pobres — quanto provocavam a intolerancia dos mais ricos. Ha registros de familias que se mudaram do Largo da Mise- ricérdia, por exemplo, em virtude do “barulho” existente, até horas avangadas, naquele chafariz. Catharina da Rocha, outro exemplo, moradora da Rua Tabatinguera, pediu & Ca- mara que mudasse de lugar o bebedouro estabelecido quase na porta de sua casa, pois os animais de diversas cochciras que ali vinham beber 4gua cstragavam a “sua passagem” Mentos Comerciais (¢s 112 Proj. Histéria, Sdo Paulo, (25), dez. 2002 Cidade imersa em diferentes culturas vinculadas & Agua: cidade cujos moradores tive- Tam seus gestos ¢ suas MemOrias marcados por uma presenga aquitica hoje raramente Jembrada— um veio de pesquisa bastante rico, portanto. Por meio das dguas, encontramos as disputas pela terra © as caracteristicas de uma vida fabricada sobre solo firme. Um fluido generoso, sem diivida, sobretudo quando seus rastros transportam rapidamente © historiador para a intimidade de ambientes privados e, ao mesmo tempo, paraa realidade piiblica, a céu aberto. Esta generosidade, contudo, nao ce: de cada questo construida, de ultrapassar nossas possibilidades de entendimento. Talvez el, historicamente cons- de escapar, de escorregar para fora dos limites por isso mesmo, ao analisar a cultura gestual, material e sen: trufda em meio e por meio das éguas. somos convidados a nos lembrar de que nao se pisa com 0 pé duas vezes no mesmo rio... ¢, ainda, que cada um de nos, felizmente, jamais € 0 nico a fazé-lo. Recebido em agosto/2002; aprovado em agosto/2002 Notas * Professora do Departamento de Historia da PUC LAO T! Tao Te King, Séo Paulo, Paulus, 2001, pp. 46-47. Projeto Integrado de Pesquisa, financiado pelo CNPy. SA bibliografia sobre ox gestos é vasta, No Brasil, Cimara CASCUDO, em Histdria dos nossos gestos Belo Horizonte, Katiaia: Sie Paulo, Edusp, 1987), por exemplo, investiga mais de trezentos brasileiros & luz de uma considerivel erudicdo Linguistica, eseapando com destreza dos riscos de confinar © que € banal e comtiqueiro a0 espago da insigniticdncia ou do meramente pitoresco. “Anterior & palavra”, diz Cascu- as também exprime « cultura que 0 constitui. Akim disso, 1 emologia a do. o gesto enriquece a antropologia se serviram Varias vezes do estudo das posturas ¢ dos movimentos do corpo, incluindo sua gestua- lidade, tal como Marcel Mauss, para entender as diferengas culturais entre grupos étnicos ou profissionais diferentes. Mais recentemente, o historiador Jean-Claude Schmitt também. se dedicou ao estudo dos gestos, interpretagdo de sua moralidade, Neste mundo, a “razao dos gestos”, escreve “laude. La raison des gestes dans l'Occident escolhendo o universo religiose ele, & “o direito que a razio se da sobre o corpo” (SCHMIT jéval. Pavis. Gallimard, 1990, p. 28). mé “LIMA. G. C. B. de. *Noticia Historica Geografica da Hidrografia de Sao Paulo do Piratininga”. Revista do Instituto Geogréfico e Geolégico, jan-mar, 1946. SCORREJO PAULISTANO, Ver, por exemp;o; 13 de setembro de 1854, p. 3: 12 de julho de 1854, p. 2; 11 de agosto de 1854, p. 3. Ver também Papéis Avulsas: v. 11, 1874, £. 174, *A este respeito ver: CORBIN, Alain. L'invention du paysage. Paris, Textuel, 2001 *Papéis Avulsos, 14 de marge de 1894, f. s.n. SCaixa 1, Ordem 5674, 14 de janeiro de 1828. Proj. Histéria, Sdo Paulo, (25), dez, 2002 113 Segundo o engenheiro Gil Plorindo de MORAIS, Oficias dat Capital, RuL., cai 116, orden 911 1859. Ver SESSO IR., G. Retathos da velha Sdia Paulo. OBSP, Maltese, 1986. 4 EWBANK, 1, A vida no Brasil. Belo Horizonte, Hatiaia; Sao Paulo, Edusp, 1976, p. 267. MOURA, C. E. M. de (ory). Vide cotidiana em Sao Paulo no século XIX. Sie Paulo, Melié/Unesp, 1998, p. 160 8 MENEZES, R. Sao Paulo de noxsus avds. Sao Paulo, Saraiva, 1969, p. 23. 4 EWBANK, T. ase moringas paulistas, 1817". In: op. cit., 1976, p. 3, 1S DIAS, M. Odile L.. da S. Cotidiano ¢ poder em Sao Paulo no século XIX. Sao Paulo, Brasiliense, 1984, p. 167 ™ BRUNO, :. $. Viagem ao pais dos paulisias, Rio de Janeito, José Olympio, 1966. p. 120. ¥ AMERICANO. J. Sdo Palo naquele tempo (1895-1915), Sio Paulo, Livtaria Avadémiica, 1957, pp. 190-192. Academies, 1957. p, 147. 8 AMERICANO, J. Sdo Paulo naquele tempo (1895-1915). Sao Paulo, Liv ® Didrio Popular, 2 de julho de 1888, p. 2; 21 de janeiro de 1889. $, H. de Q. He TOLEDO, V. L. V. de. {taim-Bibi, Sao Paulo, DPH, 1988. p. 23. * LOP! 2 Idem, ibidem. = Jem, p. 24. ° Atas da Camara, 18 de julho de 1865, pp. 199-200: 23 de marco de 1864. pp. 63-64. da Camara, 28 de novembro de 1865, p. 312, At 2 Atas da CAmara, 4 de junho de 1869, pp. 86-88. tas da Camara, 9 de junho de 1868, pp. 94-95. ” Mtas da Cimara, 4 de dezembro de 1873, pp. 243-244 * Atas da Camara, 23 de janeiro de 1865, pp. 38- 39. Atas da Camara, 12 de outubro de 1871, p. 127. io Paulo, 1873 ® [mpostos ~ Livro da Camara Municipal de » Atas da Camara, 22 de setembro de 1864, p. 137 © Atas da Camara, 17 de dezembro de 1864. > Atas da Camara, 5 dez fevereiro, de 1874, p. 29. S Atas da Camara, 1 de dezembro de 1870. d14 Proj. Histéria, Sao Paulo, (25). dez. 2002

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