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6 “TERCIO SAMPAIO FEREAZ de regras, mas em vista de uma fungio implementadora de comportamentos, tende a assumir um pape! modifica- dor ¢ criador. No primeiro caso, prevalece, entio, aquilo que Bob- bio chama de uma teoria “estrutural” do Direito, em opo- ‘sigio a uma teoria “funcionalista ‘Nao se trata de duas teorias opostas, mas de enfoques istintos, em que prevalece ora um, ora outro dos aspec- tos. No enfoque estrutural preponderam, assim, ainterpre- taco do sentido das normas, as questdes formais da eli- ‘minagZo de antinomias, da integragao de lacunas, numa pa- lavra, de sistematizacdo global dos ordenamentos confor- ‘me a melhor tradi¢io dogmitica. No enfoque funcionalis- ta, por sua vez, a problemética se volta muito mais para 1 anilise de situagdes, andlise e confronto de avaliagdes, ‘escolha de avaliagao ¢ formulagio de regras. Se nos fosse permitido traduzir essas duas atitudes, dirfamos que, no enfoque estrutural, 2 relagdo meioifim no estudo do Di ‘eto fica limitada a um pressuposto global abstrato, que ‘quase no interfere na andlise do tipo, por exemplo: “O Dieito € uma ordem coativa que visa 4 obtengao da segu: ranga coletiva", ¢ isso basta. J4 no enfoque funcionalista, 1 relacio meioffim ganha outros relevos, passa mesmo a constituir 0 cerne da andlise, exigindo, do jurista, novas ‘modalizagdes do fendmeno normativo. ‘O reconhecimento da importincia crescente desse en- foque funcionalista, contudo, ndo vem sem dificuldades teGricasrelevantes. Para ofilésofo da Ciencia Juridica que é Norberto Bobbio, reaparece, agora de uma forma ainda ‘mais contundente, a velha questio da identidade episte- rmolégica da Cigncia Juridica, agora necessariamente vol- tada para indagagdes sociolégicas, econdmicas ¢ politcas. -Além disso, sua propostafuncionalistaabre espaco para indagacOes de alta relevancia ¢ que constituem, a meu ver, problemas tedricos muito significaivos. Assim, por exem. CAPITULO 1 Da norma juridica ao ordenamento juridico 1. Novidade do problema do ordenamento Esta obra se liga diretamente 3 anterior, intitulada Teo- la da norma juridica, Uma e outra formam em conjunto ‘uma completa Teoria do Direito, principalmente sob 0 as- ppecto formal. No primeiro livro estudamos a norma jurf- ‘ica, isoladamente considerada; neste, estudaremos aquele Conjunto ou complexo de normas que constituem 0 orde- namento juridico. ‘A exigencia da nova pesquisa nasce do fato de que, na realidade, as normas jurdicas nunca existem isolada- ‘mente, mas sempre em um contexto de normas com rela (bes particulares entre sie estas relacOes sero em grande parte objeto de nossa anilise). Esse contexto de normas ‘costuma ser chamado de “ordenamento”. Eseré bom ob- servarmos, desde j4, que a palavra “direito”, entre seus vi- tos sentidos, tem também o de ““ordenamento jurfdico” por exemplo, nas expressdes “Direito romano", “Direito candnico”, “Direito italiano” ["Direito brasileiro”, etc. ‘Ainda que seja Gbvia a constatagio de que as regras jurfdicas constituem sempre uma totalidade, e que a pala ‘vea “direito” seja utilizada indiferentemente tanto para in- dicar uma norma juridica particular como um determina: do complexo de normas juridicas, ainda assim o estudo aprofundado do ordenamento juridico € relativamente re ‘cente, multo mais recente que 0 das normas particulares, de resto bem antigo. Enquanto, por um lado, existem mu tos estudos especiais sobre a natureza da norma juridica, » NORBERTO HOBBIO no hi, até hoje, se no nos enganamos, nenhum tratado ‘completo e organico sobre todos os problemas que a exis- téncia de um ordenamento juridico levanta. Em outros ter- ‘mos, podemos dizer que os problemas gerais do Direito foram tradicionalmente mais estudados do ponto de vista ‘da norma juridica, considerada como um todo que se bas- taa si mesmo, que do ponto de vista da norma juridica ‘considerada como parte de um todo mais vasto que a com preende. Ao dizer isto, queremos também chamat a aten- (Glo para a dificuldade da sistematizagio de uma matéria «que no tem um passado de segura tradiclo, ¢ ainda para © cardter experimental desta exposicao. ‘Uma rdpida visio da historia do pensamento juridico ‘nos iltimos séculos nos da uma confirmagao do que até ‘aqui afirmamos: do famoso tratado De Legibus ac Deo Le- pislatore, de Francisco Sudrez (1612), 20s tratados mais re- Centes de Thon ¢ de Binding, de que falamos no livro pre ccedente, fica claro desde 0s titulos que o objeto principal da anilise ¢ 0 verdadeiro elemento primeiro da realidade jufidica € a norma em si. Com isso ndo se quer dizer que faltasse aquelas obras a anilise de alguns problemas carac- teristicos de uma teoria do ordenamento juridico, mas tis problemas vinham misturados a outros ¢ no eram consi- derados merecedores de uma andlise separada e particu- lar. Repetimos que a norma juridica era a nica perspecti- va através da qual o Direito era estudado, ¢ que 0 ordena- ‘mento juridico era no maximo um conjunto de normas, ‘mas no um objeto autOnomo de estudo, com seus pro- bblemas particulares ¢ diversos. Para nos exprimirmos com ‘uma metifora, considerava-se a 4rvore, mas nao a floresta. CCreio que os primeiros a chamar a atengio sobre a rea lidade do ordenamento juridico foram os te6ricos da ins- tituiglo, de que nos ocupamos no livro precedente. N30 foi por acaso que o livro merecidamente famoso de Santi ‘Romano fol intitulado O ordenamento juridico (1917) 0 arnesenTacko ” plo, se num enfoque estrutural, que € 0 seu em escritos ‘mais antigos, pensar 0 Direito de forma racional e cienti fica exige pressupostos incontorndveis como a nogo de um ‘Poder soberano, primeiro e superior, e exige, portanto, toda 4 reflexao sobre a norma fundamental, pode-se perguntar, ‘a meu ver, se num enfoque funcionalista a nogio de sobe- ‘ania nao passa a segundo plano e a propria hipétese da ‘norma fundamental ndo perde relevo, abrindo espaco pa- um pensar ndo-sistematico do Direito ou, pelo menos, Para um pensar sistemético com estruturas diversificadas fem que o escalonamento € uma das eventuais possibilida- des. Pense-se, por exemplo, na sociedade plurifinalista de ‘nossos dias € na efetiva dispersio do poder soberano en- tre miltiplas fontes, como o poder do Estado, das multi nacionais, dos grupos de pressio, etc. Mais do que tudo isso, porém, volta a questio, hoje {Ho aguda no Brasil, do ensino do Direito, da propria for- ‘magio do jurist e, sobretudo, de seu papel social ‘Um grande jurist italiano, que lecionou no Brasil du- ‘ante algum tempo — Tulio Ascarelli —, disse uma vez que, “na atual crise de valores, o mundo pede aos jurists idéias novas, mais que sutisinterpretagOes". Nao resta duvida de {que vivemos hoje uma situacio de crise. Uma crise, no en- tanto, nos obriga a voltar as questOes mesmas ¢ exige res- ppostas, novas ou velhas, mas, de qualquer modo, julgamen- tos diretos. Uma crise $6 se torna um desastre quando res- ondemos a ela com juizos pré-formados, isto &, com pre- ‘conceitos. Uma atitude dessas ndo apenas aguca a cise, co- ‘mo nos priva da experiéncia da realidade e da oportuni ‘dade que ela proporciona a reflexio (H. Arendt) Norberto Bobbio, o jurista que aqui apresentamos, antes de tudo, um homem que soube, sabe e continua. 1d sabendo enfrentar uma crise sem preconceitos. No am. bito da Ciéncia Juridica, mais do que muitos, Norberto Bob- bio soube entender que se, nos primeiros trés quartos deste -TRCIO SAMPAIO FEREAZ século, a grande preocupacio foi eliminar juizos de valor ‘no intento de construir uma teoria cientifica do Direito no sujeita a implicagies ideol6gicas, agora, em compensa¢i0, recupera-se em sua esfera de interesses a experiéncia so cial e 0 juizo crltico sobre si mesma, oferecendo a investi- ‘gacio juridica novas dimensdes. ‘Quando a sociedade atravessa uma fase de profundas ‘mudangas, admitiu Norberto Bobbio mais recentemente, Ciencia do Direito precisa estabelecer novos e chegados ccontatos com as Cigncias Sociais, superando-se a forma- ‘io juridica departamentalizada, com sua organizacio, so- bre uma base corporativo-disciplinar, de compartimentos estangues. ois bem: essa sensibilidade para a mudanga, sem per- der de vista as exigencias da racionalidade, € uma das mais importantes caracteristicas de Norberto Bobbio ¢ a lig30 mais profunda que podemos extrair de seu pensamento. Tercio Sampaio Ferraz Junior Textos citados: Norberto Bobbio. Tora dla norma slr, Tui, 1958 SRD Dall rata alla feon, MI, 1977 canon at torial derecho, So a cago de Alfons Ra ioc, Valens, 1980 ‘DA NORMA JURIDICA AO ORDEXAMENTO JURIDICO 3 cconsiste justamente 0 ordenamento jurfdico, abrindo, as sim, para uma estrada que tinha como safda 0 reconheci- ‘mento da relevancia do ordenamento para a compreensio| do fendmeno juridico. No conjunto das tentativas realizadas para caracteri- zar 0 Direito através de algum elemento da norma juridi- ‘ca, consideratiamos sobretudo quatro crtérios: 1. critério formal; 2. critétio material; 3. critrio do sujeito que poe a norma; 4 critério do sujeito 20 qual a norma se destina 1) Por critério formal entendemos aquele pelo qual se acredita poder ser definido 0 que € 0 Direito através de ‘qualquer elemento estrutural das normas que se costuma cchamar de juridicas. Vimos que, com respeito 2 estrutura, as normas podem distinguir-se em: 4) positivas ou negativas; 1b) categoricas ou hipotéticas; c) gerais (abstratas) ou individuais (concretas). Pois bem, a primeira e a terceira distingdes no ofe- recem nenhum elemento caracterizador do Direito porque em qualquer sistema normativo encontramos tanto normas positivas quanto negativas, tanto normas gerais (abstratas) ‘quanto individuais (concretas). Quanto a segunda distin ‘40, admitimos, também, que num sistema normativo exis tem apenas normas hipotéticas, as quais podem assumir estas duas formas: 2) se queres A, deves B, segundo a teoria da norma técnica (Rava) ou das regras finais (Brunetti); b) Se€A, deve ser B, onde, segundo alguns, A€ 0 fato juridico e B a conseqiléncia juridica(teoria do Direito co- ‘mo valorizagio ou juizo de qualificagio), e segundo ou- {ros A €oilicito € B éa sangio (teoria da norma como jui- 120 hipotético de Kelsen). Em nenhuma dessas duas formulagdes a norma juri- dica assume uma forma caracterizante: 2 primeira formu- lagdo € propria de qualquer norma técnica ("se vacé quer ‘comprar selos, deve ir 20 correio"j a segunda formulacl0 € caracteristica de qualquer norma condicionada ("se cho- ve, voce deve pegar o guarda-chuva"). 2) Por eritério material entendemos aquele critério {que se poderia extrair do contedido das normas juridicas, isto €, das agbes reguladas. Esse critério é manifestamente inconcludente. Objeto de regulamentag2o por parte das rnormas juridicas s4o todas as agdes possfveis do homem, ce entendemos por “aces possiveis” aquelas que ndo s40 nem necessarias nem impossiveis. Segue-se, obviamente, {que uma norma que comandasse uma agio necesséria ou proibisse uma aco impossivel seria inutil; de outro lado, ‘uma norma que proibisse uma ago necesséria ou ordenasse ‘uma aco impossivel seria inexeqitivel. Mas, uma vez ex- ludas as agdes necessirias, isto é, aquelas que o homem ‘executa por necessidade natural e, por consequéncia, in- dependentemente de sua vontade, € as agdes impossiveis, isto €, aquelas agbes que 0 homem ndo esté apto a cum- Drir nao obstante todo o esforgo da sua vontade, o campo das aces possiveis € vastissimo, e isso € comum tanto as egrasjuridicas como a todas as outras regras de conduta. Foram feitas tentativas,é verdade, de separar, no vasto cam [po das agdes possiveis, um campo de agdes reservadas 40 Direito. As duas principais tentativas se valem ora de uma ‘ora de outra destas duas distingdes: 2) agdes internas ¢ agdes externas; bb) agdes subjetivas e ages intersubjetivas. A parte o fato de que as categoias das acdes externas das agdes intersubjtivas so extremamente genéricas, € bastante claro que ambas podem servi para dstinguit 0 DA NOWDAJUMDICA NO ORDENAMENTO JuRDICO n {que nés criticamos na teoria da instituigio foi a forma em {que foi apresentada, em oposicio & teoria normativa, isto 6, como teoria destinada a suplantar a teoria precedente, quando, segundo jé observamos, ela representa sua inte- sragio e, portanto, sua continuagio. Consideramos opor. ‘uno reproduzir aqui as palavras com que concluimos, no livro anterior, o exame da teoria da instituiglo: “A nosso ver, ateoria da instituiglo teve o grande mérito de por em relevo 0 fato de que se pode falar de Direito somente on- de haja um complexo de normas formando um ordenamen- to, € que, portanto, o Direito nio € norma, mas um con- junto coordenado de normas, sendo evidente que uma nor- 'ma juridica nfo se encontra jamais s6, mas est ligada a ou tras normas com a5 quais forma um sistema normativo" (© isolamento dos problemas do ordenamento juri co dos da norma juridica e 0 tratamento autOncmo dos pr ‘meiros como parte de uma teoria geral do Direito foram ‘obra sobretudo de Hans Kelsen. Entre os méritos de Kel: sen, € pelos quais € justo consideré-lo um dos mais autori- ‘zados juristas de nossa época, esté, certamente, o de ter tido plena consciéncia da importancia de problemas cone- os com 2 existéncia do ordenamento juridico, e de ter

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