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Péria: Uma Metéfora da Excluséo das Mulheres* RESUMO Este artigo estuda como as mulheres do século XIX empregaram o termo paria Para designar sua posigdo social marcada pela exclusdo do exercicio da cidadania. Seres destinados d vida anénima do lar, as ‘mulheres procuraram compreender sua ‘alteridade num processo onde as percep- (Ges subjetivas se tornaram consciéncia da condigéo feminina. Eleni Varikas ** ABSTRACT This article studies how women in the nineteenth century used the term pariah to designate their sacial position, marked by ‘exclusion from the exercise of citizenship. Beings destined for the anonymous life of the home, women sought to understand their otherness through a process in wich subjective perceptions became the counciousness of the feminine condition. O século XIX assistiu 4 emergéncia da ado coletiva das mulheres ¢ & formagao das primeiras correntes feministas em grande nimero de pafses do mundo ocidental. Apés longos séculos, pela primeira vez, as mulheres conheceram a possibilidade histérica de pensar sua condicao, nao mais como um destino biolégico, mas também como uma situagdo social imposta pelo direito do mais forte, como uma injusti¢a. A mudanga das percepgdes tradicionais que as mulheres tinham de si mesmas est ligada & modificago de sua situagdo objetiva na sociedade burguesa. Situagio essa que compreende niio somente dados materiais, tais como sua posi¢ao na familia, na divisio sexual do trabalho ou o acesso & instrugdo, mas também o horizonte politico-filoséfico de seu tempo, incluindo o dispositivo conceitual que Ihe ¢ proprio e o determina, vale dizer, as possibilidades ¢ as limitagdes de pensarem em si mesmas enquanto individuos e enquanto membros de um grupo oprimido. Isto vale para toda categoria de exclufdo(a)s obrigada a emprestar do pensamento dominante parte * Tradugio de M. Stella Bresciani, ** GEDISST - CNRS - FRANGA. A autora € pesquisadora no Groupe d’Etdes sur la Division Sociale et Sexuelle du Travail (GEDISST) do Centre National de la Recherche Scientifique (CNRS). Rev. Bras. de Hist. TS. Paulo v.onti8 pp. 19-28 significativa das nog6es ¢ das referéncias das quais se serve para formular sua revolta contra a exclusdo. Isto é sobretudo verdadeiro para as mulheres, por constituirem a categoria a mais radicalmente desprovida — tanto pela estrutura social como pela estrutura mesma da linguagem — dos meios para expressar suas experiéncias em termos universais que transcendam a especificidade biolégica do género feminino.! Estudar a escolha, a fungao ea reelaboracao dos empréstimos no discurso feminino e feminista significa ainda angariar mais meios para compreender as percepg6es subjetivas que as mulheres tinham de sua posicao — condigao preliminar para estudar a formagao da consciéncia feminista. Implica também abordar de uma outra maneira 0 contexto social que engendrou essa consciéncia, e mais, dar-se meios mais eficazes para compreender o complexo processo de construgao da alteridade e da exclusao, das quais sdo parte integrante. Quero abordar aqui 0 uso feito pelas mulheres do século XIX do termo Paria para designar sua posigao social. Desde a Revoluc¢ao Francesa, a designagao da opressdo feminina passa pela metafora da escravidao. A invisibilidade do cardter social da exclusdo das mulheres faz com que nao exista um nome especifico para expressé-la, e, conseqiientemente, sua afirmagdo toma de empréstimo as designagdes de ovtras categorias de excluido(a)s, excluido(a)s mais visiveis e universalmente reconhecido(a)s como tais. Ao nome de escravo, utilizado de inicio para designar sua posi¢ao social, vém juntar-se no século XIX as designagées de ilota e de pdria. Ilota designava em sua origem os antigos habitantes da Lac6nia reduzidos a escraviddo pelos Espartanos, porém no. contexto do século XIX francés, o termo ilota remete aos debates da Republica e tende a significar a sujeigao e a exclusao dos direitos politicos. Por outro lado, se o termo pdria igualmente lembra a exclusdo e 0 aviltamento da servidao, ele vai além, pois comporta a idéia de uma situagdo objetiva, de um sistema social e politico de exploragdo e de exclusdo somada Apercepcdo subjetiva, cultural da sociedade em face aos exclufdos. A titulo de exemplo, citemos uma passagem de Flora Tristan, onde aparecem os trés termos da opressio: “Porém, se a escravidio existe na sociedade, se existem ilotas em seu seio, se as leis nio sio iguais para todos, se os preconceitos religiosos ¢ outros reconhecem uma classe de PARIAS... ICE. Gisela Breitling. “Speech, silence and the discourse of art.”. In Gisela Ecker ed, Feminist Aesthetics, p. 164. Tristan, Flora, Vie, oeuvre mélées, apresentada por D. Desanti, Paris, 10/18, 1973, p. 195- 196. 20 S40 portanto os “preconceitos religiosos ¢ outros” que especificam aqui o uso do termo pdria. E de toda maneira significativo que uma das primeiras comparagées explicitas entre os parias hindus e uma categoria social do Ocidente refira-se 4s mulheres escritoras ¢ seja empregado exatamente por uma delas, Madame de Staél. De onde as mulheres tiram essas imagens? Quais sao suas fontes quando utilizam o termo p4ria? Quais sao as origens do emprego deste termo no vocabulario ocidental e qual é o repertério semAntico que ele recobre? Vejamos rapidamente como 0 termo péria foi introduzido na Franga, qual seu itiner4rio ¢ sua evolugao semantica até o fim do século XIX. E dificil situar com exatidao no tempo a introdugdo desta palavra na lingua francesa. O dicionério Robert assinala seu aparecimento em 1693, mas € muito raro seu uso nos textos anteriores ao século XVIII. E bastante provavel que seu uso tenha se divulgado através da obra do abade Raynal, Histoire Philosophique et Politique des Etablissements et du Commerce des Européens dans les Deux Indes, publicado clandestinamente na Franca em 1770 devido ao seu espirito nitidamente anticolonialista. Essa obra, que foi reeditada nada menos do que vinte vezes até a Revolugao Francesa, constitui a mais antiga referéncia dada tanto pelos diciondrios de lingua francesa e pelos autores do século XIX, como pelo socidlogo alemao Max Weber, que dele fez 0 tipo ideal para o povo judeu.4 Nesse livro Raynal descreve os p4rias hindus como uma tribo que representa o rebotalho de todas as outras. Sao suas caracteristicas principais 0 desempenho dos empregos mais vis da sociedade ¢ 0 fato de serem considerados poluentes, donde a proibi¢ao que thes é feita de entrarem nos templos e nos mercados ptiblicos, ¢ a mais draconiana que thes interdita qualquer contato fisico com os membros das outras tribos.> Raynal parece confundir a tribo dos pdrias com 0 conjunto dos intoc4veis hindus. Confusao que vai ser corrigida um século mais tarde pelo livro de um outro abade, Dumont, sem que isso tenha impedido que o termo paria fosse utilizado até os dias de hoje com o sentido a ele dado por Raynal. O livro do abade Dumont, Moeurs, Institutions et Cérémonies des Peuples de I’ Inde®, publicado em 1825, representa a segunda grande obra de referéncia para o sistema de castas € traz informagdes complementares sobre os parias, Segundo ele, parayer significa, na lingua tamoul, fora de classe. 3Mime de Staél. De la Littérature, Paris, M. J. Minard, 1959, p. 342, 4Cf. Max Weber, Gesammelte Aufs* atse zur Religiossociologic, 1, Hinduismus und Buddismus, Tibingen, 1921, p. 12, SC£. Guillaume-Thomas Raynal, Histoire Philosophique et Politique des Etablissements et du Commerce des Européens dans les Deux Indes, Paris, 3° ano da 1* Republica, p. 96. SCE. Jean-Antoine Dumont, Moeurs, Institutions et Cérémonies des Peuples de I'Inde, Paris, 1825, p. 50-52. 21 Os atributos dos p4rias, enfatizados por Dumont, sdo a exclusdo da sociedade, o aviltamento, o desprezo ¢ o fato de crescerem com a idéia de terem nascido para serem sujeitados as outras castas ¢ ser este scu destino irrevogavel. Enfim, a maioria dos autores que se dedicam ao tema paria insiste sobre as crengas religiosas e os mitos de origem que explicam a abjecao e a imundicie a que os parias so destinados: o fato de que teriam saido dos pés de Deus e de expiarem através de sua existéncia infamante 0 pecado de um de seus ancestrais que ousou oferecer carne humana ao Brama.” Assim definido, 0 paria torna-se rapidamente um personagem que povoa o imagindrio literério, um personagem cujo destino revolta e fascina ao mesmo tempo, dada a sua exterioridade em relago & sociedade. Bemadin de Saint-Pierre escrevia, j4 em 1791, a Chaumiére Indienne, um conto filos6fico, no qual o herdéi € um pdria hindu, simbolo da sabedoria e do amor. De toda a mancira, foi necessdrio esperar os anos de 1820 para que 0 uso metaférico de pdria comegasse a se generalizar. Foi gragas a duas pegas teatrais encenadas em Paris nesse perfodo ¢ intituladas ambas Le Paria, que se levou ao conhecimento do grande publico a existéncia dos parias e se passou a difundir 0 uso metaférico do termo. A primeira das pecas, escrita por Casimir Délavigne, foi apresentada com grande sucesso no teatro Odeon em 1821. Constitui uma deniincia violenta da degradago absoluta dos direitos do homem a qual certos grupos sociais haviam sido condenados ~ foi dessa mancira que ela foi compreendida fe piiblico contemporaneo.® Pois, se 0 drama de Delavigne se passa na India, nao Ihe faltam contudo alusGes ao que acontecia no Ocidente. Nesse sentido, o confidente mais proximo do herdi paria é um portugués excomungado que se refugia nas Indias para escapar ao furor da Inquisigao. Por outro lado, essas alusSes no Passaram despercebidas para os criticos contemporaneos, ¢ um deles, de nome Duvet?, afirmava que “se era louvavel inflamar-se por causa de uma classe proscrita e envilecida, era injusto também sacrificar em nome dela as classes superiores”, como fez Delavigne. A pore de Delavigne, citada por Sthendal entre as mais populares do perfodo"®, constitui junto a Chaumiére Indienne, de Bernadin de Saint-Pierre, uma das experiéncias literarias mais divulgadas no decorrer de todo o século XIX. A segunda peca dos anos de 1820 que contribuiu para a larga difusio do emprego da palavra pdria é a obra do poeta judeu alemo Michael Beer, Tet. © conde de Nog, “Les Pariahs”, in Revue des deux Mondes, abril 1830, p. 183, € Bemadin de Saint-Pierre, La Chawmiére Indienne, Paris, 1891, p. 110. 8Cr. Casimir Delavigne, Le Paria, s. d. Duviquet, M., “Examen critique du Paris", Ibid., p. 122. 10cy. Stendhal, Racine et Shakespeare, Paris, 1823, p. 9. 22 encenada em Paris em 1826 apés ter obtido muito sucesso nos teatros alemaes em 1823.!! Nessa tragédia, o herdi, um hindu intocdvel, se lamenta amargamente de ter nascido numa tribo desprezada, & qual s4o negados numerosos direitos, sobretudo o de lutar pela patria, De nada adianta ele querer se sacrificar por ela, j4 que ninguém quer esse sacrificio. A pega de Beer é uma alegoria da situacao dos judeus alemaes, que tendo aderido & ideologia da Emancipagao continuavam a se chocar com barreiras intransponiveis. Constitui provavelmente uma das primeiras fontes para 0 conceito de povo pdria de Max Weber.!2 Vejamos, para concluir, como trés diciondrios do século XIX definem a palavra péria: Diciondrio da Academia Francesa (1835): homem da tiltima casta dos hindus que seguem a lei de Brama. A casta dos parias € reputada infame por todas as outras. Littré (1869): Homem da ultima casta dos hindus; € objeto do desprezo eda execragao. (Fig.)...Homem que é excluido da sociedade. Larousse (1867):...0s parias so repelidos por todos, seu contato € uma macula € seu nome tornou-se, mesmo no Ocidente, um simbolo de miséria, de servidao e de abjecdo. A edico de 1874 acrescenta a definig4o do paria como sem classe. Por extensdo: emprega-se As vezes no feminino. Nesse contexto semantico de protesto contra a injustica, a desigualdade ea.exclusao aparece 0 uso literdrio de paria. Chateaubriand, Balzac, Vigny, Leroux, Michelet, Lammenais, Louis Blanc e Hugo acolhem-no na literatura francesa. Eles 0 aplicam ao soldado, ao forgado, ao poeta, ao pobre, ao povo, ao operdrio (sobretudo até a Comuna) e mais raramente as mulheres. Chega a designar no contexto de 1848 os excluidos dos direitos politicos. Paralela ou as vezes simultaneamente & indignacao inspirada pela condig&o do paria vé-se esbogar uma certa idealizacao da sua posi¢do, notadamente de sua marginalidade, de sua exterioridade, de sua proximidade & Natureza. Uma tendéncia provavelmente ligada ao desenvolvimento do individualismo romntico e a uma visio de mundo que envolve com sua aura poética 0 individuo solitario (poeta, profeta, fora-da-lei ou em um outro Tegistro, o “bom selvagem”), face aos constrangimentos da sociedade que nivela seus impetos auténticos. Bernadin de Saint-Pierre apresenta em Chaumiére Indienne um sdbio inglés que percorre o globo em busca da verdade e da felicidade: sé as encontra na cabana de um paria que opGe aos valores quantitativos da sociedade, a beleza e a generosidade do universo \ Beer, Michael, “Der Paria” in Saemuntliche Werke, Leipzig, 1835. 12¢y, Freddy Raphael, Judaisme et capitalisme, Paris, 1982, p. 291. natural; ao tempo superficial do relégio, 0 tempo “cantado pelos passaros”!3 e ainda, opée aos conhecimentos instrumentais da civilizagao, a busca da verdade “para sua propria felicidade”, uma verdade que, segundo ele, é preciso buscar nao entre os homens, mas sim na natureza.!* Por ultimo, o paria de Bernadin de Saint-Pierre opde 4 arrogancia e ao édio das castas superiores sua pr6pria humildade, seu amor ¢ sua abnegacio!5, Portanto, a dentincia da injustica 4 qual o paria € submetido pela sociedade vem acompanhada da idealizagao dele. Uma idcalizagio ambigua, sem duivida, j4 que afirma ao mesmo tempo a superioridade do pdria e faz de sua posig4o de excluido uma Posi¢do privilegiada de auto-suficiéncia e de harmonia que o paria nao desejaria mudar.'6 Essa ambigiiidade reaparece com freqiiéncia no emprego literario do termo (sobretudo entre os escritores romanticos), Em seu livro Indianna, George Sand faz da condig&o do paria uma escolha e de sua marginalidade “uma felicidade ignorada que no custa nada a ninguém”.!7 Da mesma maneira, Pétrus Borel fala dos “comediantes que esto em decadéncia desde que deixaram de ser parias e se tormaram cidadaos”,!8 Nao deixa de ser interessante relacionar esta idealizagdo do paria e de sua “cabana” com a idealizagdo da “mulher”, enquanto ser préximo da natureza, que permaneceu intocada pelos maleficios da civilizagdo na “sua esfera” doméstica — refdgio mitico dos valores qualitativos frente & corrupgo aos valores mercendrios da sociedade burguesa. De qualquer maneira, essa tendéncia a embelezar o destino do paria no deixa de chamar a ateng4o ¢ a provocar os protestos de certos espiritos criticos do século XIX. E 0 caso do autor do verbete enciclopédico “paria” no Larousse de 1874, que lastima 0 “verniz poético” que certos escritores “tentaram jogar sobre esta casta infeliz”. Opondo a cabana idflica de Bernadin de Saint-Pierre aos detalhes apavorantes das condigdes de vida dos intoc4veis hindus, o autor desmitisfica “este mau habito de conferir virtudes excepcionais a todos os deserdados”. Ele insiste, por outro lado, sobre os efeitos nocivos “do desprezo e da sujei¢ao dos parias sobre sua capacidade de se revoliarem contra a injustica e a tirania universal”. Influéncia que s6 ser neutralizada quando Ihes for conferida “uma verdadeira igualdade que Ihes permitiré fundirem-se nessa nago que por muito tempo manteve-os afastados de seu seio”.!9 Esta critica ‘Saint-Pierre, Bemadin de, op. cit., p. 140. Mcf. ibid, p. 105. ‘Sr. ibid., p. 136. 16c¥, thid., p. 123. "Sand, George, Indianna, Paris. ‘Borel, Pétrus, Champavert, Comptes Immoraux, Paris, 1833, p. 199. 191 arousse, 1874, verbete péria. 24 que opde a abjecao e a infamia da verdadeira posigao de pria & idealizagao imagindria de sua exterioridade desloca ao mesmo tempo a ateng4o dada aos parias, do dominio da natureza para o da cultura e da politica. Assim fazendo, ela substitui a simpatia sustentada pelo fascinio do “outro” por uma solidariedade fundada nos principios universais da justiga e da igualdade. E espantoso ver 0 quanto esta polémica racionalista se aproxima no tom e nos argumentos do debate que, alguns anos antes, havia oposto o feminista inglés John Stuart Mill a seu compatriota “filégino”, 0 poeta rom4ntico John Ruskin, que glorificava a “esfera da verdadeira mulher”, sintomaticamente denominada de Jardins da Rainha (Queen’s Gardens).9 Existe, entretanto, um outro aspecto das reag6es suscitadas pela “condigao de paria” que remete aos debates do século XIX sobre a “condi¢ao das mulheres”: trata-se de uma certa atitude de compaix4o resignada frente a um destino, que nao se procura embelezar, mas que é também julgado imutével. Esta atitude caracteriza igualmente desde o inicio um discurso “filégino” que se desenvolve durante todo o século. Assim, em um artigo de 1830, intitulado “Os Parias”, publicado na Revue des deux Mondes, o autor, apés haver descrito com as cores mais sombrias a situacdo dos pdrias, conclui ndo somente que “nada pode modificar esse estado de coisa”, mas que “tenté-lo significaria colocar em risco a tranqiiilidade do pais”. 2! Vejamos agora como as mulheres utilizam esse termo no século XIX e por quais critérios, entre as diversas conotagdes que o termo adquire no decorrer do século, elas conseguem reelabord-lo para pensar sua opressao em termos universais e para formular sua revolta em voz alta. Se, como ja vimos, existe desde o inicio uma confusdo, alids bastante significativa, que faz com que os pdrias sejam designados simultaneamente como ocupando 0 iiltimo escalio da sociedade e estando fora dela, no emprego do termo pelas mulheres e a propésito das mulheres, é ofora que € sublinhado. Para Madame de Staél, a mulher escritora assemelha-se aos “Parias das Indias”, “passeia sua singular existéncia entre todas as classes das quais ndo pode fazer parte”2? A exterioridade est4 também no centro da metdfora pdria nos escritos de Flora Tristan, sem duvida a paria mais célebre do século XIX, ¢ a que usou 0 termo de forma mais freqiiente e mais elaborada. Exterioridade que designa de saida a exclusiio social ¢ politica. No Union Ouvriére, ela explica a posigao de paria da metade da humanidade: 20Cf. John Ruskin, Sesame and Lilies, London, 1951, p. 84-123; John Stuart Mill, Liasservissement des femmes, Paris, Payot, 1975. 21 Conde de Noé, op. cit., p. 184. 22Mime. de Staél, op. cit., p. 342. 25 “A mulher foi colocads fora da lei, fora da Igreja, fora da sociedade. Para cla, nenhuma fungfo na igre, nenhuma representagio perante & lei nenhuma fungio do Estado”. 23 De maneira semelhante, esta significagio do termo encontra-se reiteradamente no uso que dele fazem as feministas de 1848 e da 3* Repiiblica: de Jeanne Deroin 4 Maria Desraimes ¢ de Hubertine Auclert 4 Paule Minck, para nao falar das feministas inglesas e americanas do século XIX, 0 atributo paria designa a exclusao dos direitos politicos cujo simbolo ser4 o direito do voto.24 Entre as mulheres, entretanto, a exterioridade presente na metdfora Paria, o fato de estarem “fora de”, designa mais do que uma situagao objetiva de exclusao legal; ela diz respeito igualmente a impossibilidade de pertencer de forma integral 4 comunidade (religiosa, étnica, social ou intelectual) & qual pertence. Esta impossibilidade est ligada as percepgOes subjetivas que a sociedade tem da diferenga do paria, aos “preconceitos religiosos e outros” que fazem dessa diferenga (bioldgica, étnica ou racial) uma alteridade desprezada e inferiorizante. Quando, em um capitulo de Union Ouvriére, Flora Tristan expée a situaco péria das mulheres, ela remete ao famoso concilio de Macon, durante o qual, e segundo uma versio bastante difundida nos séculos XVIII ¢ XIX, foi debatida a questo de as mulheres terem ou no uma alma. A esta questo responderam afirmativamente uma maioria de trés votos. Assim, diz cla, “trés vozes a menos ¢ a mulher seria reconhecida como pertencendo ao reino dos animais selvagens”.25 Comentando esta decis&o, Flora Tristan acrescenta 0 quanto isso deve ser motivo de tristeza para os sAbios dos sabios, pensar que eles descendem da raga da mulher; e mais, que se esses s4bios houvessem posto a mulher fora da natureza, teriam se poupado a vergonha de serem descendentes de uma tal criatura. O emprego desses termos, ¢ particularmente raga, que, alids, é empregado por mais de uma feminista, mesmo fora da Franga, remete a crenga ou a percepgdo da mulher como um ser t4o diferente que pareceria pertencer a uma outra espécie. Dessa maneira, no é por acaso que o primeiro homem a usar 0 termo paria para designar as mulheres o faca nao no feminino — uma paria-, mas empregue a expresso pdria fémea.6 Tudo isso fica mais interessante se s¢ acrescenta, entre parénteses, que a palavra hindu para casta (jati) designa também a espécie no sentido botanico ou zoolégico. 237 ristan, Flora, L'Union Ouvriare, Paris, Des femmes, 1986, p. 185. 24C¥. Michéle Riot-Sarcey, Eleni Varikas, “Feminist Consciousness in the 19th century: a Beda consciousness?”, Praxis International, 54, 1986. ‘Tristan, Flora, op. cit., p. 185. 26Balzac, Honoré de, La Physiologie du mariage, Paris, Gamier/Flammarion, 1968, p. 55. 26 Se os parias hindus vém dos pés de Deus, as mulheres no Ocidente vém da costela de Addo e é, entre outras, esta diferenga de origem em relagao aos que os excluem que explica no sistema religioso a tara de inferioridade que as acompanha desde q nascimento. Esta analogia, assim como a do pecado original, ndo poderia passar despercebida pelas mulheres que assumem por conta prépria o atributo de pdria. Em primeiro lugar, por ele remeter ao cardter hereditdrio da exclus&o uma caracteristica que as mulheres sublinham nas comparag®es que fazem entre seu estatuto e aqueles do pobre ou do proletério, por exemplo. Em segundo lugar, porque o termo remete para o cardter impuro, poluente que acompanha a exclusdo delas. Os temas da impureza, da corrup¢o, da sujeira, da polui¢do, da raga vil e do pecado original que deve ser expiado reaparecem com uma insisténcia impressionante, em Flora Tristan, Hubertine Auclert e Madeleine Pelletier. Pode-se certamente dizer que tudo ndo passa de metdforas. Penso, contudo, que as metdforas jamais sio simples ou neutras, € que se consideramos 0 discurso como um dos lugares onde emerge ¢ se exprime a consciéncia de género e a consciéncia feminista, deve-se levar a sério as formas escolhidas pelas mulheres para falarem de sua exclusdo; quer dizer, tom4-las como formas significativas da percepg4o subjetiva que elas tinham de sua opressaio. O uso feminista da metifora do pria tira sua forga do dispositivo se- mAntico de protesto contra a injusticga, a desigualdade e a exclusao; tira-a também do dispositivo racionalista de protesto contra os preconceitos reli- giosos ¢ culturais que privam uma parte da humanidade de seus direitos naturais. Entretanto, existe um aspecto crucial da viséo romantica do p4ria, que € freqiientemente retomada ¢ reelaborada no uso que dele fazem as feministas. Trata-se da idéia da superioridade do paria em relagdo Aqueles que o excluem; uma superioridade ligada, de um lado, como j4 vimos, 4 sua marginalidade e a impermeabilidade em relagao aos vicios da sociedade ¢, de outro, & sua proximidade com a natureza. Porém, no discurso feminista, esta superiori- dade, longe de levar a uma atitude de resignagao e de auto-suficiéncia, torna- se um poderoso fundamento de reivindicacao de igualdade de direitos. S40 justamente as mulheres, que por sua exclusdo foram mantidas afastadas da barbdrie que acompanha “o direito do mais forte”, da selvageria das guerras, que constituem os agentes por exceléncia da reorganizagao da sociedade segundo os principios da igualdade e da justi¢a. E porque a natureza lhes atribui desde sempre a tarefa de dar a vida ao invés de tomd-la que elas sio chamadas para substituir 0 Estado Minotauro dos homens pelo estado-mde- 27 de-familia’, para retomar a expresso famosa de Aubertine Auclert. Dessa maneira, a superioridade ética atribuida ao p4ria torna-se uma fonte de dignidade de grupo, condigdo primeira para a constituigao de toda identidade coletiva. Ela torna-se fonte de valores altcrnativos que as feministas opdem aos valores do despotismo e da exclusao. Contudo, esta reelaborag4o nao resulta isenta de problemas e de ambigilidades. Na medida em que a dita superioridade se funda também na fungao natural da maternidade, cla ameaga deslocar a qualquer momento o debate sobre a emancipagdo feminina do dominio do social ¢ dos direitos para o dominio da natureza, E, sem divida, um terreno particularmente Perigoso para a igualdade dos sexos, como dois séculos de experiéncia ja provaram?8, Mas esta é uma outra histéria. 2Tauclert, Hubertine, La Citoyenne 1848-1914, apresentada por E. Taieb, Paris, Syros, 1982. 28sobre essa questo ver M. Rict-Sarcey ¢ E. Varikas, ant. cit. 28

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