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8. A PINTURA MODERNA * Por Clement Greenberg Clement Greenberg & ‘um dos mais importantes cri- ticos contempordneos de Pintura e de Escultura. Uma contribuicdo sua particularmente notdvel foi a exploracdo das qualidades essenciais e inerentes a cada meio artistico. Em seu livro. Art and Culture, diz: “A pintura de cavalete, a pin- tura mével dependurada numa parede, é um produto tinico do Ocidente, sem equivalente em outros lugares”... No ensaio que se segue, originalmente publicado pela Voice of America € agora revisto em definitive pelo autor, Greenberg mostra como uma crescente énfase sobre a superficie plana e bidi- mensional representou parte essencial no desenvolvimento da auto-identificagdo da piniura moderna nos séculos XIX e XX. © Reeditado de Art and Literature, n.° 4, primavera de 1965. 95 Rose processo de identificarao da Pintura como tal, para sempre divoreiada dos elemenios esculturais, narratives e figuratives, culminow na trabalho dos expressionistas abstratos e fot um prérequisito necessirio @ imageria literal e a integragio dos ere entaa separados meios artisticos empregados pelo artista de hoje. Cloment Greenberz nasceu na cidade de Nova York em 1509 ¢ estudon na Universidade de Siracusa e na Liga dos Fstudantes de Arte de Nova York. & auior de livros sobre Mird e Matisse, © de numerosas ensaios criticos para The Nation, Partisan Review, Art News, Arts e Art and Literature. © Modernismo compreende muito mais coisas do que simplesmente Arte ¢ Literatura. Atualmente, in- clui quase tudo o que é verdadeiramente vivo em nossa cultura. Constitui também parte integrante de nossa cultura histérica, A civilizag&o ocidental nao é a pri- meira a voltar-se para o oxame de seus proprios fun- damentos, mas é a civilizagdo que mais avancou nesse processo, Identifico o Modernismo com a intensifi- cagfo, quase que a exacerbacdo, dessa tendéncia auto- critica que comegou com o filésofo Kant. Por ter sido © primeiro a criticar o proprio instramento da critica, penso em Kant como sendo o primeiro modernista verdadeiro. Accsséncia do Modernismo esté, na minha opiniio, no uso dos métodos caracteristicos de uma discipline para criticar essa mesma disciplina nijo para subver- té-la, mas para-firmé-la ainda mais na area da sua competéncia. Kant usou, por exemplo, a Logica para estabelecer os limites da Légica, Enquanto aprovei- tava muito da sua antiga jurisdigio, a propria Légica era assim confirmada ainda mais na firme possessio do que Ihe restava. A antocritica do Modernismo desenvolve-se a partir da critica do Iluminismo, mas nao se identifica com ela, © Iluminismo criticava de fora para dentro, da maneira pela qual procede a critica em seu sentido mais aceito; a Modernismo critica a partir de dentro, através dos préprios processos do que esté sende cri- licado. Parece natural que esta nova espécie de criti- ca tivesse que aparecer primeira na Filosofia que, por definigdo, € critica, mas no decorrer do sécuio XIX fez-se sentir em muitos outros campos. Uma justifi- 96 cago mais racional tinha comegado a ser requerida de cada atividade formal social, ¢ a autocritica “kan- Yana” foi eventualmente chamada para fazer face a esta demanda ¢ interpreté-la em éreas muito distantes da Filosofia. Sabemos © gue aconteceu com atividades coma a religidio que nie pode langar mao da critica ima- nonte “Kantiana’ para se justificar. A primeira vista. pode parecer que as artes so colocaram numa situagdo somelbante & da religiic, #oram-thes negadas pelo liuminismo todas as tarefas que podiam levar a sétio: parecia que seriam assimiladas como divertimento puro e simples, 2 © proprio divertimento parecia estar pron- to a ser assimflaco, como a religiéo, A terapia. As artes podiam sta aivelagiio por baixo so- menie pele demorstracic de que a esnécie de experi- Sneia que foraeciam era vélida em sf mesma, nfo devendo ser obcida utrevés de qualquer oatra esvécie de atividade, a arte nha de ofetuar esta prépria. O que tinha de ser exibido € tornsdo ito era o que havia de dnieo € inredutivel nZo s a arte ci tam bém om cada arte em particular, Cada aric de determinaz, através das operagdes que lhe eram peculiares, 03 scus préprios ofsites exciusivos, Fu- zendo isso, cada arte certamente fimitaria sua drea de competéncia mas, por isso mesmo, a sua possessio dessa area seria consolidada, Disso resultou que demonsteagic por con Evidenciou-se jogo que 2 4rea exclusiva e pré- pria de compeiéncia de cada arte coincidia com tudo © que era exclusive da natureza dos seus meios. Tor- nou-se tarefa da autocritica eliminar dos efeitos de cada arte todo ¢ qualquer cfcito que pudesse possivelmente ser emprestado dos meios, ou pelos meios de qualquer outza arte, Por conseguinte, cada arte deveria tor- nat-se “pura”, ¢ em sua “pureza” encontrar a garantia de seus padrdes de qualidade, bem como de sua inde- pendéncia. “Pureza” significava autodefinigfo e o empreendimento da autocritica nas artes tornou-se o da autodefinigéo com fins vindicativos. a7 A arte realista, ilusionista, tinha dissimulado os meios, usando a arte para esconder a arte. O Moder- nismo usou a arte para chamar a atengdo para a arte, As limitagées que constituem os meios de que a Pintora se serve — a superficie plana, a forma do suporte, as propriedades das tintas — foram tratadas pelos mestres antigos como fatores negativos que sé podiam ser reconhecidos implicita ou indiretamente. A pintura moderna veio a considerar tais limitagdes como fatores positivos que devem ser reconhecidos aberta- mente. Os quadros de Manet tornaram-se os primeiros do Modernismo, devido 4 franqueza com que decla- ravam as superficies sobre as quais estavam. pintados, Os impressionistas, seguindo-o, abjuraram a primeira mio eo polimento pare gue nenhuma divida fosse deixada, a quem observasse 9 quadro, sobre 0 fato de que as cores usadas eram feitas de tinta verdadeira que vinha em potes on tubos. Cézanne sactificou a verossimihanca, ou correo, para encaixar o desenho © 9 projeto mais explicitamente dentro da forma regu- lar da tela, : Foi contudo a enfatizag&éo de que a base da Pin- ture era ineludivelmente plana que permaneceu como fato fundamental dos processos pelos quais a arte pic- térica criticou-se e definiu-se no Modernismo. So- mente a superficie plena era tinica ¢ exclusiva daguela arte. A forma definida do suporte era uma condigéo Gmitativa, ou norma, compartilhada com a arte teatral; a Cot era uma norma, ov meio partilhade com a escul- tura, bem como com o teatro. A superficie plana, a sua bidimensionalidade, era a nica condigéo da Pin- tura nfo compartithada com arte ulguma, e, portanto, a pintura moderna orientou-se para essa bidimensio- nalidade de maneira inequivoca. Os antigos mestres tinham pressentide que era necessdrio prescrvar o que & chamado de integridads do plano pictérico; isto é, afirmar a presenga resisten- te da superficie plana, sob a mais vivida ilusio de espaco tridimensional. A aparente contradigéo que isso envolvia — a tensdo dialética, se quisermos usar uma expressio em moda mas muito adequada — era essencial ao sucesso da sua arte, como o 6 realmente 98 para o sucesso de toda a arte pictérica, Os moder- nisias n&o evitaram e nem resolveram esta contradigio; ou antes, invertcram os seus termos. Tem-se cons- ciéncia da bidimensionalidade de suas Pinturas antes, € nao depois, co nos tornarmas conscientes do que essa bidimensionalidade contém. Em relagio aos antigos mestres tem-s@ a tendéncia de ver o que est4 nos seus quadros antes de vé-los como pinturas; com os mo- dernistas vemos o quadro autes de mais nada como pintura. © que é, naturalmente, a meihor maneira de se ver qualquer espécie de pintura, seja dos anti- gos, seja dos modernos; mas o Modernismo impde esta manciza como a tnica possivel e necessitia, ¢ o seu sucesso em faz@-lo é um sucesso da autocritica. Nao € por principio que a pintura moderna, em sua tiltima fase, abandonou a representacio de objetos reconheciveis, © que em principio abandonow foi a representagdo da espécie de espaco que os abjetos reconheciveis ¢ tridimensionais podem ocnpar. O Abstracionismo, ou n4o-Fignrativismo, ainda nfo se afirmou como um momento inteiramente necessério na autocritica da arte pictérica, mesmo que artistas eminentes como Kandinsky ¢ Mondrian assim tenham pensado. A representagdo, ou ilustragio, como tal, no enfraquece a univocidade da arte pictérica; o que © faz so as associagies das coisas representadas. Todas as entidades reconheclyeis (inckaindo as pré- prias pinturas) existem em espago tridimensional, ¢ a simples sugesidio de uma entidade reconhecivel & snficiente para evocar associacées daquela espécie de espago, A silhueta incompleta do uma figura humana, ou de uma xicara de cha, terf este cfcite e, portanta, ailenard 0 ospage pictérico da bidimensionalidade que é 9 garantia da independéncia da Pintura como arte. A indimensionalidade € doovnio da Escultura, e para Prescrvar a sua prépria autonomia, a Pintura tem tido de, acima de qualquer coisa, despojar-se de tudo o que poderia pariilhar com a Escultura. E é no curso do sew esforge para fazé-lo © nfo, repito, para excluir © cepresentacional ou “literdrio”, que a Pintura se tor nou abstrata, 99 AG mesmo tempo, a pintura moderna demonstra, precisamente na sua resistencia ao que é esculturai, que continua a tradic¢fo ¢ os temas da tradigao, apesar de todas as aparéncias em contrério. Pois a resis- téncia 20 que € proprio da Escultura comecou muito untes do advento do Modernismo, A pintura ociden- tal, enquanto se esforea para obter a ilusio realiste, esti em enorme débito com a Escultura gue inicial- monte ensinou como modeler e sombrear para dar uma itusio de relevo, e mesmo como compor essa ilusiio uma ilusio complementar de espago em profundi- dade. Ne ontanio, alguns dos grandes foites da pintu- ra ceidental sealizaram-se como pare do esforco que ela tem feito nos tltimos quatro séculns no sentido de nize afastar os elementos escuiturais. Iniclado em Veneza no século XVI e continuade na Espanha, Gigica e na Boianda no século XVIL, esse esforgo { primeira desenvelvide para dar reaice A cor. Quando avid, oo século KYIE, tentou reviver a pintura aral, flo om parte para salvar a arte pictérica da bidimensionalidade decorativa que = Enfase posta na cer parecia aearrctar. Entretanto, 1 forca das me- thores pinturas do préprio David (predominantemente ieiratos) enconira-se freglientemente tamo em suay coros quanto nos outros clementes, & Ingres, seu alunc, embora subordinando a cor de wma maneira nulto mais coerente, realizou pinturas que se coloca- vam entre as mais didimensionais. menos esculturais, 46 feitas no Ccidente por um artista sofisticado, desde © século XIV. Bessa forma, em imeados do século SEX, todas as tendéncias ambiciosas da pintura con- vergiam (consorvando suas diferengas) numa direcso antescultural. esc: © Modernismo, continuando nesta diregdo, tor- nou a Fintura mais consciente de si mesma, Com Manet e os impressionistas, a questo deixov de ser definida em termos de cor versus desenho, Torou-se, ao invés disso, uma questo de experiéncia meramente Optica contra uma experiéncia dptica modificada ou re- vista por associagées tacteis. Foi em nome do que ra pura ¢ literariamente dptico, e nao em nome da cor, que os impressionistas firmaram-sc na tarefa de 700 minar o sombreado. o modclamento ¢ tudo o mais que Parecesse ter uma conotacdo escultural. E, da mes- ma forma como David tinha reagido contra Fragonard em. nome do escuitural, Cézanne, e depois dele o cubistas, reagiram contra o Impressionismo. Assim como a reacdéo de David e de ingres tinha culminado uuma espécie de pintura ainda menos escultural do que a anterior, a contra-revolugdc cubista resultoa numa espécie de pintura ainda mais plana do que tude o quc a arte ocidenial j4 tinha visto desde Cimaboc — tio plana, na realidade, que dificiimenie comportava imagens reconheciveis. Enguanto isso, as outras normas essenciais da arte pictorica estavam sendo igualmente submetidas a uma indagacdo ainda mais minuciosa, embora os re- sultados possem nao ter sido dos melhores. Tomar- me-ia mais espago do que disponho contar como a norma da forma ov estrutura circundante da pintura foi atrouxada, et seguida apertada ¢ depois afrouxada novamente, isolada e apertada owira vez, por geragdes sucessivas de pintores modernistas; 03 como as nor mas do scabemento, da textura da tinta, e do valor das cores e do seu contraste foram testadas mais de uma vez. Tomaram-se riscos com todas essas coisas, nao s6 tendo em vista a nova expressdo, mas também para exibi-las mais claramenie como normas. Exibin- do-as ¢ tornando-as explicitas, sio testadas quanio a sua indispensabilidade. Essas provas de mancira algu- ma estiio concluidas © 0 fato de que se tornam mais exigentes & medida que séo reulizadas explica as sim- plificagdes radicais que ocorrem abundaniemente nas Ultimas formas de abstracionismo. Nem as simplificagdes nem as complicagées stio questées de licenga. Pelo contrério, quanto mais es- treita e essencialmente as normas de uma disciplina tornam-se definidas, menos aptas estio a admitirem liberdades. (“LiberapSo” tornou-se uma palavra muito abusada relativamente A arte moderna e de vanguar~ da.) As normas essenciais, ou convengées, da Pin- tura s&o ao mesmo tempo as condigées limitativas que uma determinada superficie tem de aceitar para que © resultado seja accito como uma pintura. O Moder- 101 nismo descobriu que essas condigdes limitativas podem ser ampliadas indefinidamemte, antes de que uma pin- tura deixe de ser uma pintura e se transforme mum objeto arbitrdtio; mas descobriv também que quanto mais amplos se tornem esses limites, mais explicita- mente devem ser obscrvados, As linhas pretas que se cortam c os retangulos colorides de um Mondrian podem dac a impressio de mal formacem um quadro, mas, refletindo a forma circundante do quadro im- pdem tal forma como norma reguladora evidente dota- da de noya forea e de nova integridade, Longe de incorrer no perigo da azbitrariedade devido A auséncia de um modelo na natureza, a arte de Mondrian mos- tra-se, com a passagern do tempo, quase discipiinada demiis, demasiado convencional em certos aspectos; uma vez habituados ao seu completo abstracionismo, percebemos que € muito mais tradicional em suas co- res, bem como em sua dependéncia da composicio, do que 0 sie os Ultimos quadros de Monet. Fica subentendido, espero, que elaborande © que ha de racional na arte moderna, tive de fazer sirapli- ficagdes © exageros. A bidimensionalidade, pera a qual a pintura moderna se orienta, nic pode jamais scr completa, A sensibilidade elevada do plano picté- tico pode n&o permitir mais a ilusic escuitural, ou trompe-’oeil, mas permite, ¢ deve permitir, a ilusio Sptica. A primeira marca que se faz numa superficie destréi a sua bidimensionalidade virtual, ¢ as configu- ragdes de um Mondrian ainda sugerem certa ilusio de uma espécie de terceira dimenséo, Mas é uma ter- ceira dimenséo estritamente pictérica, estritamente 6ptica. Enguanto que os antigos mestres criaram uma ilusio de espago em que nos era possivel imaginar que estavamos andando, a ilusdo etiada por um pintor moderno é a de que se pode ver e através da qual se pode viajar, mas somente com a vista. Comega-se a perceber que os neo-impressionistas nfo estavam completamente errados quande flertaram com a Ciéncia. A autocritica kantiana encontra a sua mais perfcita expresso na Citncia, mais do que a Filosofia, e quando foi aplicada & Arte, esta mais do que nunca aproximou-se do método cientifico — 102 mais ainda do que no comeco da Renascenga. Que a arte visual deva confinar-se sé ao que é dado pela experiéncia visual, nfo farendo referéncia a coisa algu- ma dada por outras ordens de experiéncia, é uma nogio cuja Unica justificativa est4 especulativamente na sua consisténcia cientifica. $6 0 método cientifico requer que uma situacio seja resolvida exatamente com 2s mesmas espécies de termos em que foi proposta — um problema de Fisiologia ¢ resolvido em termos de Fisiologia, e nfo nos da Psicologia; para que fosse resolvido em termos de Psicologia deveria ou ter sido apresentado através deles, ou traduzido para eles, em primeiro lugar. Analogamente, a pinturs moderna re- quer que um tema literério seja traduzido em termos estxiiamente 6pticos ¢ bidimensionais, antes de tornar- se tema da arte pictérica — 0 que quer dizer, ser traduzido de maneira tal a perder inteiramente seu cardter Titerétio. Na realidade, tal coeréncia nfo pro- mete nada cm relagdo & qualidade estética ou aos re- sultados estéticos. O fato de que a melhor arte dos Gltimos setenta ou citenta anes tenha se aproximado gradualmente de tal coeréncia nao altera o que foi afirmado; agora, como antes, a Gnica coeréncia que conta em arte é a estética que se demonstra somente em resultados ¢ nunca em métodos, ou meics. De ponto de vista da prépria Arte, a convergéncia do espirito com a Ciéncia é meramente acidental, e nem a Arte nem a Ciéncia dio uma 4 outra, ou reafirmam, nada mais do que sempre deram. O que a sua con- vergéncia mostra, no entanto, é o grau cm que a arte moderna pertence 4 mesma tendéncia histérica ¢ cul- tural da ciéncia moderna. Deveria ficar entendido também que a autoczitica da arte moderna somente foi levada adiante de forma esponténca ¢ subliminar. Tem sido inteiramente uma questéo de pratica © nunca um tépico de teoria, Ja se ouviu falar muito de programas relacionados com @ arte moderna, mas na verdace ficou-se muito aquém da programagio cm telegia A arte moderna, muito mais do que em relagdo & arte da Renascenga ou A académicu, Com poucas excegées atpicas os mestres do Modernismo no demonstraram mais do que Corot 103 uma inclinagio por idéias fixas a respeito de Ane. Cortas inclinagdes © énfases, certas rectisas e abstinén- cias, parecom lornar-se necessirias anicamente por que © zaminho para u arte mais forte, mais expres. stva, parece estar cite elas, Os objetivos imediatos dos artistas modernos permanecem antes de mats nada individuais, ¢ a verdade ou © sucesso de seus trabalhos é, principalinente, individual.. Na medida em que & em sucedida como atte. a arte moderna no parti- cipa do cardter de uma demonstracao. Foi necessaria a acumulagao, durante décadas, de uma grande quan- lidade de realizagGes individuais, para que se revelasse 2 tendéncia autocritica da pintura moderna. Nenhum. artista esteve, ou est4 ainda, consciente dessa tendén- cia, ¢ nemhum artista poderia trabalhar com sucesso estando dela consciente. Nesse sentido — que é de Jonge 0 mais importante — a arte prossegue o seu caminho sob 9 Modernismo, da mesma maneira de antes, Nao é supérfluo insistir que o Modernismo jamais representou algo semelhente a uma ruptura com o passado. Pode representar uma transigéo, uma sepa- racio da tradigio anterior, mas representa também uma continuagio. A arte moderna desenvolve-se do passado sem ruptura, ou solug&o de continuidade, ¢ sejé qual for o seu término, nunca deixara de ser inteligivel em termos de continuidade da arte. A exe- cugao de pinturas tem sido desde sempre governada por todas as normas j4 mencionadas. © pintor ow gravador paleolitico podia desconsiderar a norma da composi¢io ¢ tratar a superficie de uma meneira ao mesmo tempo literdria ¢ virtualmente escultural, por- que fazia mais propriamente imagens do que pinturas, trabalhando sobre um suporte cujos limites podiam nao ser levados em consideracio sendo supridos pela natureza, de maneira incontrolada {exceto no caso de pequenos objets, como um osso, ou um cbifre). Mas a realizacio de pinturas, em oposigio a imagens em superficies planas significa a escolha deliberada € a criagdo do limites. Essa é a deliberacio repisada incessantemente pela arte moderna: isto 6, 0 estabe- 104 iecimento do fato de que as condigdes- limitativas da Arte devem ser inteiramente feitas de limites humanos. Torno a insistir cm que a arte moderna nao ofe- rece demonsitagées tedricas. Poderia antes ser dito que ela transforma todas as possibiiidades tedticas em em- Piricas ¢, assim fazendo inadvertidamente tesia todas as teorias sobre acie quanto & sua rclevancia para a pratica ¢ a experiéncia reais da arte. Somente sob este aspecto 6 Modernismo € subversive. Ficou pro- yado que tantos fatores sempre considerados como es senciais para a realizagio e a experiéncia da arte na realidade ndo o eram pelo fato de que a arte moderna pode dispens4-los 2, no entanto, continuar a propor- cionar a experiéncia artistica em todos os seus aspee- ios essenciais. Isso 6 corroborado pelo fato de que tal “demonstragio” deixou intactos todas os nossos antigos juizos de valor, © Modernismo pode ter-se mostrado importante na reavaliacZo das reputacdes de Uccello, Piero, El Grecc, Georges de la Tour e mesmo Vermeer ¢, certamente, confirmou, se é que nao iniciou, outras redescobertas, como a de Giotto; mas o Moder- nismo nfo rebaixou, em conseqiiéncia, 2 estima de Leonardo, Rafael, Ticiano, Rubens, Rembrandt ou Watteau. O que o Modernismo torsou claro foi que, embora 0 passado houvesse apreciado de mancira jus- ta tais mestres, freqiientemente o tinha feito por moti- vos erréneos ou irrelevanies, De certa forma essa situagio ainda nao mudou qnase nada. A critica de arte é falha em relagSo ao Modernismo, como o era em relagao & arte prémo- dernista, A maioria das coisas escritas sobre a arte contemporanea pertencem mais ao dominio jornalis- tico do que propriamente ao dominio critico. Deve-se ao jornalismo —- ¢ ao complexo milener de que tantos joralistas parecem hoje em dia sofrer — o fato de que cada fase do Modernismo tenha de ser saudada como 0 inicio de uma completa era artistica que rompe definitivamente com todos os costumes e¢ convengdes do passado. De cada vez, espera-se uma espécie de atie que sera tao diferente de todas as espécies ante- tlores e to “liberta” das notmas da pratica ou gosto que todo mundo, sem se levar em consideragio o fato 105 de estar bem ou mal informado, poderd pronunciar-se sobre ela. E, de cada vez, tal expectativa 6 desapon- tada, na medida em que a fase do Modernismo em questo toma o scu lugar, finalmente, na continuidade inteligivel do gosto © da tradicio, e em que se toma claro que as mesmas coisas de antes so requeridas do artista e do puiblico, Nada pode estar mais afastado da arte aviéntica de nossos dias do que a idéia de uma muptura de con- tinuidade. A arte 6, entre muitas outras coisas, con- tinuidade, Sem o passado artistico e sem a necessi- dade e a compuisiio de se manter os padrdes superiores do passado nfo seria possfvel nada de parecico com a arte moderna. 106

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