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CAPITULO 2 ‘TIPOS DE CAPITALISMO, INSTITUICOES ‘BACAO SOCIAL (Quatro principais gramaticas definem as relagdes Estado versus sociedade ‘no Brasil: clientelismo, corporativismo, insulamento burocrdtico e univer- salismo de procedimentos. AS insttuigdes formais podem operar numa vatiedade de modos, segundo uma ow mais gramiéticas. Grupos sociais podem, igualmente, basear suas agGes em consondncia com ums ou mais gramaticas. Paracolocar adiscussio na perspectiva apropriada, este capitulo desen- volve-se em trés etapas. Primeiro, revé conceites que tém sido utilizados na discussio das diferencas e similaidades entre as instituig6es formais € 1s padres de intermediagio de interesses nas modemas formagoes capi- talisas industrializadas e numa periférica e semi-industrializada como Brasil. Também salientao papel crucial desempenhado pelo timing em que clement:s universais similares podem combinar-se para a goragio de diferentes resultados sociais e politicos na perferia nao-industralizada, «em comparagio com o centro industrial. Apesar de as categorias de centro « periferia serem altamente agregadas e conterem, obviamente, enormes ‘variagSes no seu interior, elassao teis como um pontode referéncia inicial para introduzir os conceitosutilizados neste capitulo. Em segundo lugar, introduz o tema do clientelismo como um compo- nente distintivo de certas sociedades capitalists. O clientelismo é contras- tado com o universalismo de procedimentos das sociedades capitalistas industrializadas, através de uma distingio entre “troca espeeifica” e “troca ‘generalizada” nas sociedades de mercado. Finalmente, estabelece um coniraste entre 0 corporativismo — como ‘uma das principais caracteristicas da forma de governo brasileira — € 0 clientelismo. A conclusio é a de que a nogéo do clientelismo pode a 22 AGRAMATICA POLITICA DOBRASIL. complementar com sucesso os esforgos dos estudiasos do corporativismo, preenchendo vérias lacunas ainda nio cobertas pelos analistas. VARIANTES DE CAPITALISMO E INSTITUIGOES 0 capitalismo € geralmente entendido como um modo de produgio em {que a propriedade e 0 controle dos meios de producéo estéo na mio da bburguesia. Este modo de produgio requer a existéncia de um mercado de trabalho livre. Os proprietérios dos meios de produgio compram no ‘mercado a quantidade de trabalho necessirio & produgio de bens. Esta é a base de um conjunto de relagées de classe em que capital ¢ trabalho constituem dois pélos necessérios. No capitalismo modemo aextragio de mais-valia é feitaindiretamente. Nio existe o conflito armado da colheita nem a taxagéo direta do que é produzido pelos trabalhadores. O capitalismo modemo nao faz uso de meios extra-econdmicos para a extragao da parcela destinada is fragbes ‘O longo processo histérico do desenvolvimento da modema sociedade capitalista nfo somente representou uma revolugio econémica mas tam~ ‘bém marcou a redefinigio dos padrées de relagies sociais e politicas no interior dos Estados-naglo. Significou a reformulagio das relages entre individuos, redefiniu instituigSes bésicas como a Igreja, a famflia e a propriedade, reformulou 0 conceito de liberdade.* Esta “grande transformagio”, no obstante, teve lugar apenas numa parte muito pequena do globo, aquela consttuida pelas nagées donoroeste Ga Europa € dos Estados Unidos.” Os termos “capitalismo modemo”, “sociedades democriticas” e “civilizacio ocidental” estéo estreitamente relacionados a essas nagées. As sociedades capitalistas do Atlantico Norte io 0 produto de uma combinagio de mblkiplos fatores historicos © circunstincias conjunturais que, digamos assim, ajudaram a “congelar” um conjunto de elementos cruciais para a criagio das sociedades demo- criticas ocidentais. ‘As modernas sociedades capitalistas industriais sio consttuidas por: a) um padrio distinto de autoridade racional baseada no universalismo de procedimentos; b) um padréo dominante de agio social baseada no indi- lalismo e no impersonalismo de procedimentos que repousa em uma multiplicidade de fragdes de classe, grupos de status, partidos politicos & cidadania; c) uma economia de mercado baseada na transferéncia impes- 24 _AGRAMATICA POLITICA DO BRASIL. soal de recursos econdmicos, onde as trocas que ocorrem independem das caracteristicas pessoais dos individuos envolvidas. Em poucas palavras, 0 que chamamos de capitalismo modemno é um composto, uma combinacio de condigdes econémicas, arranjos sociais e estruturas politicas, todos interconectados. Seria problemitico utilizar a histéria das sociedades capitalists indus- triais como um peradigma para prevero futuro das sociedades capitalistas Periféricas, nio-industriais ou semidesenvolvidas, porque o centro percor- feu estigios e patamates especificos a sua propria histéria. As combi- nagées, isto , os conjuntos de relagdes entre condigdes econémicas, estrutura social ¢ arranjos politicos que ali ocorreram — e que sio ‘esponséveis pela heterogeneidade no interior do préprio centro — nao serio encontradas em outto lugar. Por simples razes probabilisticas, nenhuma perspectiva evotucionscia linear que tomasse o centro como paradigma poderia ser capaz de prever 0s desdobramentos hist6ricos dos paises néo-centras: nestes, diversos. fatores internos teriam que se repetir da mesma maneira que no centro, ¢ varios outros fatores internacionais, que constituiram 0 cenério para o desenvolvimento dos paises centrais, teriam que estar novamente pre- sentes. Para complicar mais. as coisas, o timing da combinagao dos eventos deveria ser o mesmo. Além disso teria que existir uma condigo final impossivel: as patses centrais deveriam estar ausentes do mundo atual porque sua simples existéncia nao apenas altera 0 espago no qual os patses periféricos devem subsist, mas também fixa parimetros, incentivos e limites para esses pafses. Mesmo na porco do mundo aque me refiro, de modo simplificado, ‘como o “centro”, os que se industrializaram mais cedo determinaram a agenda para os que chegaram mais tarde. Comparando a Inglaterra com as ‘nagoes continentais por volta de 1848, William Langer concluiu “que todo © continente, com a possivel excegio da Bélgica, estava uma geracio inteira atrés da Inglaterra”. ° Como afitma Bendi A histria moder tem sido caracterizada por consecutivas revolugSes ou res- tauragbes, « cada uma destas tranformagéesinfluenciou a seguine (.) Cada ume esas revolugSes ou restauragSes foi uma resposta coletiva a condigdes interns ¢ estimulos extemos. Cada uma eve repercusses alm das froneiras do paisem que xorreu. Apés cada transformagso, mundo mudow no sentido de Herel, de que ndo € possivel banharse duas vezes nas mesmas §guas de um rio, A partir do ‘momento em que 0 rel ingles foi destronado eo Parlamento dectarado supremo, utras monarguas se tomaram inseguras, e a idsia do govemo parlamentar fo; lancada. partir do momento em que 2 industalizagio foi iniciad, outras ¢economias se tornaram arasadas, A partir do momento em que a idéia de iualdade ‘TIPOS DE CAPITALISMO, INSTITUIQOESE AGAO SOCIAL 25. foiproclamadaperante o mundo, desigualdae se trnou um fad pesado demais pac se carga” Quando o capitalismo é entendido como um pacote de condigdes e relagées entre varidveis no contexto da produgio capitalista, torma-se possivel falar de “variantes de capitalismo”, que podem partithar tragos similares, enquanto so, a0 mesmo tempo, profundamente diferentes uma da outra. " Tome-se, por exemplo, as sociedades capitalistas nio-indus- {vias ou semi-industrializadas. O que as separa do capitalismo moderno néo € apenas uma defasagem no tempo, Ou umas poucas etapas numa hipotética escala de modernizacio. ( capitalismo industrial moderno ¢ o capitalismo periférico podem ser substantivamente similares no que diz respeito 2 estrutura capitalista bisica e, 20 mesmo tempo, diferentes no que diz respeito: a) aos desdo- bramentos histéricos que produziram 0 capitalismo na periferia, como conseqiiéncia de sua existéncia no centro; b) aos desdobramentos his- t6ricas —e o timing — dos conflitos ¢contradigdes existentes na periferia ‘como fungio da importincia relativa de cada ator politic principal; c) aos arranjos politicos que foram estabelecidos para administrar a ordem capitalists, e 0s padres de separagio, ou de integracao, entre Estado e sociedade; d) aos padrbes de ago social e de orientacio normativa dos individuos como membros de diferentes classes, grupos ou facgbes; ¢) is distintas “passagens” que tiveram lugar em cada sociedade peiféricae que ajudaram a “congelar” ou recriar importantes aspectos daquela sociedade determinada;f) as caractersticas do processo de acumulagao de capital. entendimento do capitalismo como um pacote de condigses € te- lagdes deve inclur as caracteristcas do sistema de propriedade e controle dos meios de produgio, padrées de aco social, tipo de autoridade piblica « padrées de intermediagio de interesses. Este procedimento nio deixaré espago para a discussio do capitalismo periférico como uma transigo entre 0 tradicionalismo e o capitalismo moderno; drigirs, ao contrério, 0 foco da anslise para a combinacio distinta ¢ durivel de elementos que ccaracterizam uma sociedade especifica em comparagio com outras.!” ‘A ogo de combinagio (€ 0 timing desta combinagio) & crucial. Desdobramentas histéricos sfo tanto produto da acumulagao de fatores estruturais como o so de escolhas virtuais ou de “oportunidades de vida’. Condigdes estruturais fomecem o cenério, a “janela”, para esco- thas, coalizdese resolugdes de conflites. Isto quer dizer que as condigSes «struturais similares, se existem, podem produzir diferentes resultados em sociedades distintas, dependendo do padrio das escolhas feitas pelos principais atores politicos. Uma “oportunidade” estruturalmente criada 26 AGRAMATICA POLITICA DO BRASIL no garante nada, Oportunidades, para serem aproveitadas, devem set capladas e moldadas pela agio humans inteligente."* Sempre que ocorre uma transformagio importante, uma passagem — como a industrializacéo ou uma revolugao politica —, ela exci varia alternativaseabreinimeras outras.® Pensemos na industrializago. Ela cria novas oportunidades para co- alizbes politics assim como novos tipos de conflitos, oferece novas bases para a competigio politica, mina o poder das elites fundiérias ¢ tora impossivel para elas governar de forma oligirquica. Além disso, promove a emergéncia de novos atores coletivos. Isto signifiea que, a0 mesmo tempo, a industralizagéo cria novas oportunidades e evita a ocorréncia de vias outras altemativas. Em qualquer caso, os resultados politicos exis- tentes serio sempre o produto da combinagio de virios fatores importantes ‘em dada seqiéncia temporal. ‘No caso do Brasil, a industrializagio teve lugar num contexto em que © grupos oligirquicas ja estavam enfraquecidos por confrontas politicos, pela depresséo mundial no final da década de 20, pela presenca de uma elite estatal crescentemente forte e pela existéncia de grupos competitivos. ‘Acmergéncia de uma nova ordemna década de 30, ainda mais nitidamen- tena década de 50, aconteceu na auséncia de uma facgio dominante, he- ‘gem@nica. O Estado modemo que comecou a ser construido da década de 30 em diante foi denominado “Estado de compromisso”, em que nenhurn ator ou face%o principal detinha uma supremacia clara sobre os outros." ‘No Brasil, a modema politica do Estado precedeu a formagio de classe 1a indistria; a regulacao da cidadania perpassou a solidariedade de classe cinterveionas relagées de classe; os arranjos corporativstas lepas fixaram pardmetros e limitagies para a cidadania dos operérios; a revolugio bburguesa teve lugar quando muitos elementos do Estado moderno jé estavam instalados. A revolugio burguesa foi feita em associago com 35 ‘multinacionais ¢ com a patticipacio e a supervisfo do Estado. O capitalismo modemo veio a acontecer no Brasil em contexto distinto daquele prevalecente nos paises que se industrializaram cedo. O cliente tismo constituia um importante aspecto das relagées politicas ¢ sociais no pais. Os arranjos clientelistas no foram minados pela moderna ordem capitalista— permaneceram nela integrados de maneira conspicua. ‘TROCA ESPECIFICA E TROCA GENERALIZADA NO CAPITALISM A nogio de clientelismo foi originalmente associada aos estudos de sociedades rurais. Neste contexto, o clientelismo significa um tipo de “TIPOSDE-CAPITALISMO, INSTITUIGOESE AGAOSOCIAL = 27 relagio social marcada por contato pessoal entre patrons” e camponeses. ‘Os camponeses, isto é, 0s clientes, encontram-se em pasico de subordi- ‘agi, dado que no possuem a terra. Os grupos camponeses queserviram de base para o desenvolvimento da nogio de clientelismo estavam sempre ‘um passo da pentiia. A desigualdade desempenha um papel-chave na sobrevivéncia tanto de patrons quanto de clientes e gera uma série de lagos ppessoais entre eles, que vio desde o simples “compadrio” & protegao & lealdade politicas."” ‘Tem sido argumentado que na famflia reside a unidade bésica da economia ¢ da sociedade camponesa, uma unidade de producio e consu- mo. Sociedades rurais so deseritas como possuindo modes domésticos de producio e consumo. Nessa economia a instituigéo familiar desempe- nha papel crucial, ea familia extensa é garantiaadicional para a sobrevi- vvéncia futura. O parentesco ficticio é igualmente relevante para a manu- tencio deste modo de produgéo. O casamento de filhas e filhos €encarado ‘como parte da estratégia global de sobrevivéncia e 6 parte da economia de investimentos, um seguro contra petfodos de escassez. AS sociedades ‘camponesas sio grupos primérios em que todas as relagbes estio bascadas ‘em contatos pessoais e diretos."® [Nas sociedades camponesas, o mundo econdmico ¢ o social se confun- dem. Nao hi diferenciagio social intensiva e de tipo capitalista,eosistema de valores sustenta-se em critérios pessoais e néo-universalistas. De um lado, 0 caréter pessoal e diddico das relagdes patron-cliente inibe a formacio de identidades de interesses ¢ de agio coletiva. De outro, a aceitagio desta condigdo é perfeitamente racional do ponto de vista dos camponeses. O patron € 0 ator que tem contato com o mundo exterior «elem comando sobre recursos politicos externos. O patron tem recursos —internos e externos & comunidade — dos quais dependem os clientes. Em contextos clientelistas, a trocas sio generalizadas e pessoais. Cada ‘objeto ou ago que é trocado contém uma referéncia & condicéo geral do ‘grupo. A relagio conhecida como “‘compadrio”, por exemplo, inclui o direito do cliente & protegio futura por parte do seu patron.” ‘A tioca de bens & restrita; ela ocorre numa atmosfera em que esté ausente uma economia de mercado impessoal. A troca generalizada inclui promessas ¢ expectativa de retornos futuros. * A expresso patron foi mantida a tadugio em porugeés. O termo abrange 0 que no Basi € compreendido nas expresses “coroel’, cefe de méquinas poltieas urbana, ‘pequenos chefs locas cu mesmo lideres que contolam méquinassindcas.O importante serv quea elactopatrorclinte define um ipo especial de eaciodetrocaassimétrica 28 AGRAMATICA POLITICA DO BRASIL Osistema de “troca generalizada” do clientelismo ¢ diferente dosistema de “troca especifica”que caracteiza 0 capitalismo modemo. Neste, 0 proceso de troca e aquisicao de qualquer bem no inclui a expectativa de relagbes pessoais futuras, nem depende da existéncia de relagdes anteriores entre as partes envolvidas. O trabalho, por exemplo,é comprado e vendido no mercado de trabalho livre; 0s bens desejados séo adquiridos em lojas especificamente designadas para expor © vender tais bens. Lagos de seguranga, se € que existem, sao parte do mbito do dominio piblico. As trocas ocorrem sem preocupagio com as caracteristicas pessoais dos ividuos envolvidos; elas so caracterizadas pelo impersonalismo. O impersonalismo constitui um dos fatores bésicos do mercado livre © também a base da nogio de cidadania Entretanto, encontram-se trocas generalizadas também no capitalismo modemo, Este sistema ndo-capitalista de troca foi observado em socie-

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