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Revita da Faculdade de Letras “LINGUAS E LITERATURAS» Porto, XV. 1998. pp. 197-219 __A ARVORE: UM ARQUETIPO DA VERTICALIDADE (CONTRIBUTO PARA UM ESTUDO SIMBOLICO DA VEGETAGAO) Tu trouveras plus dans les foréts que dans les livres. Les arbres et les rochers t’enseigneront les choses qu’au- ccun maitre ne te dira. Saint Bernard de Clairvaux Desde tempos imemoriais que 0 destino dos homens esteve sempre associado ao das drvores ¢ isto de uma forma tio indelével ¢ evidente que nos podemos interrogar cada vez mais sobre o futuro de uma humanidade que rompeu com tal vinculo. No ambito de uma trégica perversio das rela- g6es do homem com a Natureza, desde ha muito que o dominio da natu- reza se transformou em exterminio dessa mesma natureza: ninguém pode hoje ignorar as consequéncias crescentes da desflorestagéo mundial ¢ muito menos a sua causa irriséria, 0 consumo do papel que, logo impresso, é des- truido. Nao se realiza, de modo algum, a humanizagao da natureza ou seja, a sua nobilitagao através de um disciplinamento ¢ aproveitamento, conser- vador ¢ fomentador, das forgas naturais; antes a consumimos, no como zelosos administradores mas como perdulérios. No entanto, ¢ se 0 mundo actual quiser ainda sobreviver, é preciso, ¢ antes que soja tarde demais, res- tabelecer um equilibrio e uma harmonia varias vezes milenérios. Num momento em que se tora crescente a inquietagdo relativa as consequéncias que a destruigdo das florestas no mundo (veja-se, por ex:, a Amazonia e a Australia) pode e esta a provocar, esta reflexdo tem por objectivo relembrar um arquétipo, um dos simbolos universais mais pre- 197 MARIA DO ROSARIO PONTES sentes em todas as mitologias, em todas as tradigGes e religides, em todas as civilizagdes proto-historicas (desde 0 Antigo Egipto & China arcaica) ¢ que necessariamente sobrevive no imagindrio colectivo da Humanidade, manifestando-se ainda hoje, com toda a sua forga de estrutura dinamica das profundidades anfmicas, nas lendas, nos contos, nos mitos e, obvia- mente, no universo onitico. Ao papel que outrora as drvores protectoras desempenharam na vida dos primeiros homens, dando resposta a quase todas as suas necessidades basicas, — por isso eram consideradas manifes- tages tangiveis da presenca dos deuses na terra — acresce 0 facto de que a cada uma das espécies e, por vezes, a cada drvore era attibufda uma esséncia particular, de tal forma que 0 homem intufa que Universo, onde a natureza visivel ¢ 0 divino (natureza invisivel) se interpenetravam e se explicavam um pelo outro, desvendava, de um modo concreto e percepti- vel, a sua multiplicidade ¢ unidade através das diferentes variedades vege- tais! Tentaremos pois, de forma simples © condensada, repensar até que Ponto, de século para século, as tradigdes mais diversas e heterogéneas transmitiram, através do mesmo arquétipo, de um mesmo dinamismo estru- turante do inconsciente colectivo? — a Arvore — toda a esséncia de um si "No seu livro Images et Symboles. Essais sur le symbolisme magico-religiewx Paris, Ed. Gallimard, 1984, Mircea Eliade afirma: L’homme des sociétés archaigues a pris cons- cience de soi-méme dans un «monde ouvert» et riche en signification: il reste & savoir si ces «ouvertures» sont autant de moyens d’évasion ou si, au contraire, elles constituent Funique possibilité d'accéder @ la véritable réalité du monde. (p. 234-235) * Cf. as obras de Carl Gustav Jung, muito particularmente L’Homme et ses symbo- les (Paris, Ed, Robert Laffont, 1964) e Métamorphoses de lame et ses symboles (Geneve, Lib. Université Georg et Cie $.A., 1953). Ao longo desta reflexio, situar-nos-emos sem- Pre numa perspectiva junguiana que atribuiu aos arquétipos a fungao de dinamismos estru- twantes do psiquismo humano, espécie de virtualidades criadoras que se actualizam em imagens primordiais que melhor sintetizam 0 Espftito (0 inconsciente colectivo) € que gerem as produgdes religiosas, éticas, criadoras e estéticas da Humanidade, No amt sua psicologia das profundidades, Jung considera cada imagem arquetipica como um si bolo de valéncias universais metafisicas (¢ isto apesar das suas valotizag6es concretas) que se encontra na base das religiées, dos mitos ¢ dos contos de fadas. Surgem nos sonhos e fantasias ¢ fundam a totalidade das atitudes humanas face & existéncia, Tais premissas junguianas revelam-se fundamentais para que Gaston Bache- lard, Mircea Eliade, Gilbert Durand, entre outros, trabalhem ¢ reflictam sobre 0 universo simbético. 198 A ARVORE: UM ARQUETIPO DA VERTICALIDADE tema cosmolégico unificador, sistema esse que encontra no mundo vege- tal os sfmbolos ¢ os rituais de uma renovagao nao s6 da natureza mas tam- bém da prépria humanidade. Evocaremos alguns mitos, alguns contos tradicionais, algumas lendas que ainda hoje preenchem o psiquismo profundo do homem, que conju- gam em si os conhecimentos ancestrais (porque modelos de comportamento paradigméticos em geral atribuidos a deuses, herdis e divindades funda- doras) das civilizages aos quais mais se ligam ¢ que tém como denomi- nador comum contribuirem para que sejam restitu{das as chaves da com- preensio profunda de uma ordem universal que, ao estabelecer a unido entre o homem e a natureza, 0 profano ¢ 0 sagrado, 0 quotidiano e 0 divino, pode ¢ deve levar-nos a equacionar a importancia fundamental de uma interpretagiio simbélica do Cosmos. Talvez por isso, em 1988, Cl. Lévi-Strauss ¢ Didier Eribon afirma- vam em tom desencantado: (...) en isolant l'homme de la création, I'hu- manisme occidental I’a privé d'un glacis protecteur. A partir du moment ott Phomme ne connait plus de limite a son pouvoir, il en vient a se détruire lui-méme’. E pois nas raizes mais arcaicas da mitologia que podemos descorti- nar até que ponto as Arvores eram sentidas enqt anto agentes privilegiados da comunicacio entre trés mundos, os subterraneos, a superficie e os céus. Constitufam assim, por exceléncia, manifestagées tangiveis da presenga divina; por isso, a0 debrugarmo-nos sobre as religides tradicionais, vamos encontrar em quase todas a alusio aos cultos consagrados as drvores tidas como sagradas e, singularmente, & mais venerada de todas, a Arvore Cés- micat. 3 in De prés et de loin, Paris, Ed. Odile Jacob, 1988, p. 225-263, 4 Um mito heréico dos Jakuti da Sibéria fala de um her6i, um Jovem Branco, que procura descobrir « Honordvel e Excelsa Senhora, Mae da minha Morada: A teste (...) estendia-se um amplo e deserto campo, no meio do qual se elevava uma impressionante colina, havendo no seu cume uma Grvore gigantesca. A resina dessa drvore era transpa- rente e de doce odon a sua casca nunca secava ou se quebrava, a seiva era reluzente como prata, as exuberantes folhas jamais perdiam o vico (..) A copa da drvore elevava- se até aos sete pisos do céu e servia de posto de parada ao Deus Altissimo, Iryn-ai-tojon, enquanto as suas ratzes alcangavam os abismos subterrineos onde formavam os pilares das moradas das criaturas miticas; a drvore, por intermédio da sua folhagem, mantinha conversagdes com os seres celestes. In CAMPBELL, Joseph - O herdi de mil faces, Si0 Paulo, Ed. Cultrix Fac/ Pensamentos, 1997, p. 322-323. 199 MARIA DO ROSARIO PONTES Em tempos que j4 14 vao, muito antes de o Homem surgir na Terra, havia uma drvore gigante cujos ramos se elevavam até aos céus. Eixo coluna vertebral do Universo, tal érvore atravessava trés mundos: enquanto as raizes mergulhavam nos abismos subterraneos e 0 tronco contemplava a imensidao terrestre, os ramos erguiam-se até atingirem as estrelas no fir- mamento. A sciva, ia buscé-la &s dguas que brotavam do solo; os raios do sol alimentavam as suas folhas e, mais tarde, as flores e os frutos. Era através dela que o fogo descia do céu; ¢ tocando nas ntivens, a sua copa abundante gerava as chuvas que fertilizavam a Terra ¢ a tornavam fonte de Vida. Na sua verticalidade, a drvore gigante assegurava a © a cumplicidade entre 0 universo ouraniano e as profundezas ctonianas: nela se realizava pois a permanente regeneragio do Cosmos. Fonte de Vida, tal arvore alimentava e dava abrigo a milhares de seres: as aves vinham pousar e fazer ninhos nos seus ramos, nas suas rafzes deam- bulavam as serpentes e os préprios deuses nela constituiram a sua morada. E o Homem surgiu. Aos reinos vegetal, mineral ¢ animal acrescentou-se 0 ser humano. Nao admira pois, perante tal descrigao, que a Arvare Césmica concentre, desde os primérdios da humanidade, um dos mitos mais fecun- dos, mais deslumbrantes, mais poderosos ¢ mais universais, antevisto e sim a unido Pressentido por esse mesmo homem com o objectivo de explicar nao s6 a formagio ¢ a constituigdo do Cosmos mas também o lugar que nele pas- sou a ocupar. A Arvore Césmica torna-se assim nao apenas um arquétipo, um modelo paradigmético para o ser, mas a prefigurago venerada da sua pré- pria origem — 0 seu antepassado mais longinquo, a perder-se nos tempos miticos € primevos. Desde os primérdios que, em todas as mitologias, em todas as tradi- ges, nas religides, a Arvore Césmica era vista como constituindo o pilar central, o eixo em torno do qual o universo se organizava: nela cocxistiam © fisico € 0 metafisico, 0 natural € 0 sobrenatural, 0 humano ¢ o divino. Na andlise que faz das drvores sagradas, dos simbolos, dos mitos e dos ritos ligados ao reino vogetal, Mircea Eliade no seu Tratado de Historia das Religides comega por evocar um excerto grandioso e sugestivo de um texto tradicional da mitologia germénica, tal qual foi transcrito pelos poe- las escandinavos na Idade Média (um excerto dos Eddas), em que uma profetiza, acordada por Odhin, revela aos deuses os comegos ¢ o fim do mundo: 200 ‘A ARVORE: UM ARQUETIPO DA VERTICALIDADE Lembro-me dos gigantes nascidos na aurora dos Tempos, Daqueles que outrora me geraram. Conhego nove mundos, nove dominios cobertos pela drvore do mundo, Essa drvore sabiamente plantada cujas raizes afundam no émago da Terra... Sei que existe um freixo que se chama Yggdrasil A copa da drvore est envolta em brancos vapores de dgua, Donde se desprendem gotas de orvalho que caem no vale Ele ergue-se eternamente verde por cima da fonte de Urd®. Os tragos essenciais da Arvore Césmica, expressos aqui de forma poé- tica por este ideograma vegetativo da mitologia escandinava, vao repetir- se ao longo dos séculos num sistema complexo universal de crengas que, por motivos temporais e espaciais, nao 0 poderiam ter herdado umas das outras. Estamos pois perante um arquétipo, a universalidade de um sim- bolo que, na perspectiva ontolégica, se erige em manifestago paradigmé- tica da divindade ¢ do Cosmos. E se, nos Eddas, tal drvore se identifica com um carvalho, no Egipto dos Faraés, por exemplo, ela € 0 sicémoro sagrado em cujos ramos vinham pousar, em figuras de passaros, as almas dos defuntos. Os espiritos dos mortos retornavam assim, através da sacra- lidade da drvore, ao seio do mundo das esséncias eternas; na Mesopoté- mia, por exemplo, Kiskanu é 0 simbolo da vida em perpétua regeneragdo. Situada em Eridu, a cidade santa do deus Ea, tal drvore surgia rodeada € encimada por aves, caprideos ¢ serpentes, cereada por astros e seres ala- dos que, de forma simbélica, exemplificavam 0 seu papel césmico e cos- mol6gico. ‘Também desde as narrativas mais antigas que a tradigao indiana repre- senta 0 Universo sob a forma de uma Arvore gigante. Nos Upanishades, estudos espirituais registados em sAnscrito entre 800 e 400 a. C., 0 cos- mos € apresentado como uma drvore invertida (cujo simbolismo desen- volveremos mais adiante) que mergulha as rafzes no céu e estende os ramos sobre a terra. Mas é no Bhagavad-Gird (A Mensagem do Mestre), um dos classicos da literatura filos6fica e espiritual do mundo, onde se encerra a esséncia do conhecimento védico da india, que vamos encontrar, de forma bem explicita, a identificagao simbélica da Arvore Césmica no apenas com © universo mas também com a propria condigéo do homem na terra, 5 Euiape, Mircea — Tratado de Historia das religides, Porto, Ed. Asa-Literatura, 1992, p. 335. Trata-se do excerto inaugural do Cap. VIII todo ele dedicado A Vegetagaéo aos Simbolos e Ritos da Renovagdo (p. 335-411). 201 MARIA DO ROSARIO PONTES Krishna, 0 mestre, diré: E imperectvel, e suas folhas correspondem aos hinos védicos. Quem a conhece é conhecedor dos Vedas. Seus galhos algam-se para o céu e vergam-se até a Terra; sua seiva nutriz representa as gunas (qualidades) € seus rebentos equivalem aos objectos sensérios. Suas radiculas pendentes até ao solo significam as acgdes engendradas no mundo dos homens, que as reatam com lacos cada vez mais aperta- dos®. Por isso importa cortar a drvore pela raiz ou seja, levar 0 homem a wanscender-se, renunciando aos objectos dos sentidos e aos frutos das suas acgdes. A libertacdo auténtica do homem parece encontrar aqui a sua metéfora mais elevada nessa imagem © nesse motivo universal do des- prendimento da vida césmica e no recolhimento e isolamento humanos € naturais. Prot6tipo da evolugao vital - da matéria ao espirito, da razio a alma purificadora -, a Arvore Césmica & antevista ainda hoje, no seio da sim- bélica contemporanea, como o paradigma nao s6 do crescimento fisico, ciclico e continuo da Mae Natureza, mas ainda como a prefiguragio do Proprio amadurecimento psicolégico do individu, 0 que implica, sem excepgiio, os motivos ancestrais do sacrificio e da morte mas também os do renascimento ¢ da imortalidade. Simbolo da ascensao, a drvore traduz inevitavelmente esse anseio que a Humanidade carrega desde sempre de alcangar — renunciando a fraque- zas, a incapacidades e a defeitos — a realizagao espiritual. Em intimeras tradigdes, ne6fitos ¢ sacerdotes praticam, de forma ritual, a subida a uma Arvore sagrada’. Ela tornou-se pois, desde tempos longinquos, ao teste- munhar um didlogo intimo entre 0 céu e a terra, 0 simbolo vivo de uma lei universal que exige que o homem mantenha ¢ cultive 0 equilibrio entre as forgas ctonianas ¢ os poderes ouranianos, entre o lado instintivo ¢ 0 lado espiritual. Em Le Sacré et le Profane, Mircea Eliade afirma: (...) il n'est que de déchiffrer ce que le Cosmos «dit» par ses multiples modes d’étre, pour 6 In Bhagavad-Gitd. A Mensagem do Mestre, Sio Paulo, Ed. Pensamento, 1993, p. 145, 7 A identificagio da Arvore Césmica com a échelle mystique remete-nos, obvia- mente para intimeras tradigdes em que ritos de passagem eram protagonizados por feiti- Ceiros, xamis ou candidatos a futuros herdis que queriam significar, com a subida érdua do vegetal, 0 caminho iniciético que desvenda os mistérios do Universo, Do ponto de vista junguiano, tal subida simboliza 0 processo de individuacdo que conduz 0 set a0 né ‘mais intimo da sua Consciéncia, 202 ‘A ARVORE: UM ARQUETIPO DA VERTICALIDADE comprendre le mystére de la Vie. Or, une chose est évidente: que le Cos- mos est un organisme vivant qui se renouvelle périodiquement. Le mystére de V'inépuisable apparition de la Vie est solidaire du renouvellement nthmique du Cosmos. Pour cette raison le Cosmos a été imaginé sous la forme d'un arbre géant: le mode d’étre du Cosmos et, en premier lieu, sa capacité de se régénérer sans fin, est exprimé symboliquement par la vie de U'arbre’. Daf que ao simbolismo universal da Arvore Césmica se junte o da Arvore da Vida que se torna, por sua vez, paralelamente & Arvore que € 0 cixo do mundo, Axis Mundi, um arquétipo do Universo que recebe 0 seu alimento do Transcendente. Também cla fundamental (tradigdes ancestrais as sobrepdem e confundem), a sua seiva é 0 orvalho celeste, os seus fru- tos concedem a imortalidade ¢ toda ela reconduz ao Centro, ao estado edé- nico e primordial. Nao espanta pois que a cla se atribuam os poderes femi- ninos da maternidade, da gestacio, da fecundidade e da riqueza energética vital, que mitos e rituais vegetativos exprimem (0 culto dos simplices, as festas de Maio, por ex.). Com efeito, sintese césmica ¢ cosmos verticalizado, o paradignna da 4rvore no tempo (sugerindo os atributos do ciclo vegetativo ¢ dos ritmos lunares), vé-se ultrapassado por todo o simbolismo da renovagao, da rege- nerescéncia, que as imagens teleolégicas da flor, do fruto, do fogo vém cimentar. Na sua amplitude genealégica, a Arvore da Vida corresponde Aaquilo que Gilbert Durand apelida de imagens miticas da evolugdo revo- luciondria®, ou seja, pela sua florescéncia, pela sua frutificagdo, pelo seu tronco, ramos ¢ ramagens que rompem com o esquema ciclico da vegeta- go, a rvore traduz a crenga indelével numa exigéncia ascensional, verti- calizante, de cardcter nfo apenas ciclico mas antes profundamente mes- sidnico. que a Arvore da Vida & a arvore do devir, j4 que 0 simbolismo da vida abarca nao apenas as drvores de folhas persistentes (realizando a imortalidade) mas ainda as de folhas caducas (sugerindo a regeneragao). Daf que tal simbolo de valéncias universais se assimile ao da Mie, ao da fonte ¢ da dgua inaugural: congregando todas a suas ambivaléncias, a Arvore cria e da vida, alimenta e protege, recria 0 espago sagrado dos moti- vos da intimidade. Na sua obra Métamorphoses et tendances de la libido, 8 Euiabe, Mircea — Le Sacré et le Profane, Paris, Ed. Gallimard/Idées, 1965, p. 128. 9 Durann, Gilbert — As estruturas antropolégicas do Imagindrio, Lisboa, Ed. Pre- senga, 1989, p. 236. 203 MARIA DO ROSARIO PONTES Jung sublinha: Selon de nombreux mythes, Uhomme descend des arbres; le héros est enclos dans V'arbre maternel; par exemple, Osiris git mort dans la colonne, Adonis dans le myrthe, Odhin crucifié sur Yeedrasil, la chéne sacré, etc. Maintes déesses furent vénérées sous la forme d'un arbre ou d'un bois, d'oit le culte des arbres, des bosquets sacrées, et des bois, De esséncia feminina (mas néo € raro que no simbolismo da drvore dupla, 2 imagem da matriz se adicione a do falo, como parece suceder nos mitos de Cibele ¢ de Attis), a drvore tem pois em comum com a Mulher © acto sagrado que, desde sempre, assegura a vida: ambas trazem dentro de si, em si, 0 fruto que continua a existéncia. Imbufda pois de uma fun- glo de gestagdo, a Arvore da Vida e todas as drvores em geral, simboli- zam 0 instinto feminino da maternidade. Alias, 0 entrelagar dos ramos, a folhagem, a absorgio / rejei¢do pelas raizes devem ser vistos como moti- vos maternos que tém vindo a acompanhar a humanidade desde 0 illud tempus primordial. Na fecundidade da Terra-Mae (basta pensar nas hiero- gamias c6smicas) ~ genitrix universal, cujo corpo de Mae Gigante produz tudo quanto € a0 mesmo tempo orginico e animico (no s6 homens ¢ plan- tas mas também pedras ¢ minerais) — a imagem primordial da Arvore da Vida insinua-se perante 0 homo religiosus como uma figura que permite antever, no além do visivel, um imenso e amplo simbolismo da eterna Juventude, ‘a regeneracdo, da sabedoria e da imortalidade. Basta evocar- mOS os fruwos miraculosos da Arvore da Vida do Paraiso, os da Jerusalém Celeste, as mags ¢e ouro do Jardim das Hespérides, E a Arvore de Buda sob a qual este atiage a Iluminagio, dita Arvore B6 ou Boddhi, Ficus reli- giosa que sintetiza em si o conhecimento total no momento em que este ocorre: Pelos dez mil mundos, as drvores floridas brotaram; as drvores Srutiferas inclinaram-se sob 0 peso dos seus frutos; ldtus de tronco cres- ceram nos troncos das drvores, I6tus de ramo nos ramos das drvores, lotus de parreira nas parreiras, lotus pendentes brotaram do céu e Iétus de haste emergiram por entre as rochas e brotaram em grupo de sete..." Frutos milagrosos exprimem em muiltiplas crengas a ideia religiosa de uma realidade transcendente © absoluta, j4 que tais frutos sio, ainda hoje, '© Juno, C. Gustav ~ Métamorphoses et tendances de la libido, Patis, 1927, p. 212 -213, citado por CHEVALIER, Jean; GHEERBRANT, Alain ~ Dictionnaire des Symboles. Paris, Seghers, 1973, 1 vol, p. 111 '" in CamBELl, Joseph ~ O heréi de mil faces, Sao Paulo, Ed. Culrix / Pensamento, 1997, p. 179. 204 A ARVORE: UM ARQUETIPO DA VERTICALIDADE nos mitos, nas lendas e narrativas tradicionais, os sindnimos dos dons da omnisciéncia, da sabedoria, do poder soberano e da imortalidade, confe- rindo aos homens os atributos dos deuses. Nao € pois fortuito 0 facto de Buda, sob a Arvore da Iluminagdo ¢ Cristo, na Arvore da Cruz (Arvore, também, da Redengio) serem figuras similares a incorporarem, concomi- tantemente, os motivos arquetfpicos do Salvador do Mundo e da Arvore do Mundo, cuja origem provem da antiguidade imemorial. Aliés, tanto 0 Ponto Imével de Buda como o Monte do Calvario sao imagens do Centro. do Mundo ou Bixo do Mundo. Assim, também Odhin, divindade pagd ger- manica, a fim de obter a Sapiéncia e a Ciéncia, deve deixar-se crucificar no Ygedrasil, 0 freixo sagrado: Lembro-me que fiquei pregado a uma drvore assaltada pelo vento, Ali fiquei por nove noites inteiras; Com a langa foi ferido, ¢ fui oferecido A Odhin, eu mesmo a mim mesmo. Na drvore de que ninguém jamais pode conhecer As raizes que por baixo a sustém'? Na Histéria das religies, sobrepdem-se pois as Arvores Césmicas, as Arvores da Vida, as Arvores da Imortalidade, as da Juventude Eterna ¢ da Sabedoria. No Egipto Antigo, na Asia, na India, na Mesopotamia, no ‘Antigo Testamento, em suma, para o homem que vivia miticamente todos os seus actos e todas as suas emogdes, a sacralidade de tais drvores mira- culosas constitui sempre um modo muito fiel de encarar as valéncias reli- giosas da vegetagdo mas sobretudo dimensiona-se em termos de uma demanda, de uma quéte de frutos de ouro e de folhagens milagrosas a que 6 apés um longo percurso € um combate contra monstros e adversidades de toda a espécie, 0 homem pode aceder. Provas inicidticas ~ por vezes bem crugis — esperam 0 neéfito, o futuro heréi, que, ao vencé-las, alcan- card a divindade. Num conto de infancia intitulado A Deusa da Riqueza do Bem, surgia uma pomba como recompensa pela generosidade de um pastor ¢ da sua familia. Certo dia, ao pousar numa drvore da floresta, arranca uma chave grande que estava pendurada num ramo e entrega-a a0 filho do pastor que logo viu a Arvore transformada numa gruta de ouro, com infinitos jorros de luz e, no meio, uma enorme fita branca que dizia 12 bid, ibidem, p. 178. 205 MARIA DO ROSARIO PONTES assim: Caminha, caminha, e entra na Floresta do Bem e da Virtude, ¢ ali encontrards a tua felicidade', Também num conto popular francés da regio dos Pirinéus intitulado La Chévre, surge uma macieira que premeia a bondade, o altrufsmo ¢ a humildade de uma Cendrilion desprezada pelas irmis ¢ até pela propria mae: Un grand pommier avait poussé dans la nuit, couvert de pommes bien rouges. Les branches touchaient terre. Ces deux fillettes descendirent dans la cour et voulurent cueillir des fruits merveilleux. Les branches se releverent. La fillette aux deux jeux vint & son tour et cueillit tout ce qu'elle voulut. Elle offrit des fruits a ses soeurs. (...) Chose extraordinaire, lors- qu'elle détachait une pomme, dix nouvelles apparaissaient sur l'arbre!4, E ainda na epopeia babilénica de Gilgamesh que 0 heréi chega, no fim do percurso, a um jardim maravilhoso onde pendem das érvores pedras Preciosas que siio, com toda a evidéncia, simbolos das virtudes adquiridas por ele ao longo do caminho inicidtico. E no Apocalipse biblico vem refe- tido que as folhas da arvore servem para curar os povos. Poderfamos mul- tiplicar os exemplos: basta relembrar a Biblia para reflectir sobre a fntima conexdo existente entre a drvore e © homem no imenso emaranhado da realidade terrestre e césmica, desde a Arvore do pecado original até ao madeiro da Cruz de Cristo, passando, como vimos, pela drvore apocalip- tica da vida, No Parafso, a narrativa biblica distingue duas drvores: a da Vida e a do Conhecimento. Diferentes uma da outra, a do conhecimento do bem ¢ © mal tem ainda a particularidade de poder provocar a morte. Seré ela que, apés a tentagdo ¢ queda de Adio ¢ Eva, ¢ segundo uma antiga tradigao, Deus condenard. Tendo ficado seca, a arvore da ciéncia s6 verdejara quando Deus implantar no seu tronco um ramo verde da Arvore da Vida. Se 0 par ancestral tivesse sabido valorizar adequadamente o dom divino, s6 teria havido uma tinica érvore no paraiso: a érvore da unidade essencial da Vida © do Conhecimento. Mas numerosas so ainda as comparagées a que se presta a drvore na Biblia: o justo € como uma Arvore plantada junto as éguas que dé frutos a seu tempo (Sal 1); no Céntico dos Cénticos (2, 3), 0 Esposo divino com- 1) Fiouerristas, Maria Pinto - A Aguia encantada e outros contos, Potto, Liv. Figucirinhas, 1960, p. 30. 4 SIMONSEN, Mickle - Le Conte populaire. Paris, Puf, Littératures Modernes, 1984, p. 169, 206 A ARVORE: UM ARQUETIPO DA VERTICALIDADE para-se a si proprio com uma macieira; no Novo Testamento, as atvores com frutos simbolizam os homens bons, as estéreis representam os maus. Como temos vindo a salientar, a universalidade arquetipica da Arvore manifesta-se em intimeros mitos ¢ tradigées religiosas, nos contos tradi- cionais e nas lendas, mas também na vertente onfrica ¢ na criagdo artis~ tica. Esta Ultima, por exemplo, foi posta em relevo no livro de Gabrielle Dufour intitulado precisamente L’Arbre de Vie et la Croix em que a autora ilustra, em belas imagens, a sobreposigo dos dois simbolos através da dia- léctica de um antes e um depois, do antigo e do novo, do tempo ¢ da eter- nidade. Com efeito, a Arvore da Cruz, metéfora ascensional, césmica ¢ para- disfaca, anuncia e inaugura, pela morte de Cristo ¢ pela consequente res- surreig&o, uma segunda Criagao: La croix, axe du monde, planté au para- dis comme au centre du monde, revét ces lieux communs symboliques d'un sens nouveau par un processus d’ intériorisation qui est propre a Varbre de vie chrétien (...) la croix (...) est le nouvel arbre de vie du paradis (...) et les fleuves au pied de la croix [signifient qu'elle] est Varbre du para- dis céleste, gardé par les anges et planté dans le cercle du firmament", Ou seja, na tradi¢ao judaico-crista, a cruz nio reproduz apenas a rvore paradisfaca: antes a substituiu, anunciando-a como a nova Arvore da Vida, a verdadeira, plantada no novo Eden, entre as duas drvores do antigo paraiso. E se a drvore de Jessé simboliza o crescimento da arvore da vida num tempo histérico daf as suas rafzes carnais (reis) ¢ a sua seiva espi- ritual (profetas) -, a Arvore da Cruz simboliza, en plus, toda a expansio ontolégica, todo 0 desabrochar do homem na eternidade, implicando ambas, nas palavras de Gilbert Durand, as tendéncias progressistas e mes- sianicas da humanidade. Eixo do Mundo, Arvore Césmica, Arvore da Vida, eis algumas das interpretagées principais que Mircea Bliade vé unirem-se em torno da ideia de um Cosmos vivo em perpétua regeneragao. Quer de uma maneira ritual e concreta, quer de um modo mitico e cosmolégico ou ainda puramente simbélico, a Arvore representa, para a ontologia arcaica, a vida inesgoté- vel que traduz também a realidade absoluta. Nao admira pois que no arqué- 'S Durour-Kowatska, Gabrielle - L’Arbre de Vie et la Croix, Genéve, Ed. du Tri- corne, 1985, p. 58. 207 MARIA DO ROSARIO PONTES tipo da Arvore Invertida inimeras tradigdes tenham venerado essa energia divina que alimenta, protege ¢ perpetua 0 mundo. Ao elevar-se da Terra para se expandir no elemento aéreo e celeste, a Arvore ~ antes de ser drvore hierofanica, metamorfose dos deuses ou metéfora da humanidade -, tornou-se a incarnagdo mais completa da Natu- reza que vence o seu préprio peso natural, que se liberta para a conquista dos céus € que assim traca, em degraus, 0 seu préprio caminho até ao fir- mamento. O mito universal da Arvore-escada dos céus prefigura-se pois nesse élan que contém em si o pressentimento de uma outra realidade: é que na imagem da 4rvore em pé — érvore e montanha, coluna e torre — no mais puro anseio dos cumes, 0 espirito do imagindrio encontra a sua aspi- Taco para um outro mundo, os primeiros desejos de ascensio e verticali- dade, de transcendéncia, afinal. Alids, uma das imago mundi mais ances- trais, um dos simbolos mais evidentes da totalizagéo césmica, é consti- tufdo por uma Arvore (ou marco de madeira) & qual se associam bétilos ou pedras. Os lugares sagrados mais arcaicos so assim caracterizados (os templos primitivos semiticos ¢ gregos, por ex.). E que da alianga fntima entre 0 devir em movimento protagonizado pela drvore e a ideia de esta- bilidade difundida pela pedra, vai surgir um vector ascensional a estrutu- Tar sempre os elementos naturais que implicam toda a verticalidade da cos- mogonia. Afinal, drvores ¢ pedras humanizam-se pelo seu movimento ascendente, tornam-se simbolos do préprio homem reconhecido enquanto microcosmos vertical (no corpo no espirito). Num capitulo do seu livro L’air et les songes, consagrado precisamente & L’arbre aérien, Gaston Bachelard insiste sobretudo sobre a alianga entre a imaginagdo natural ¢ a imaginacao dindmica, salientando, fundamental- mente, as imagens vegetais de esséncia aérea, imagens pois verticais e ver- ticalizantes. E € ao evocar um excerto do Journal de Maurice de Guérin onde se encontra — de forma imensa e poética ~ esse convite a0 movimento ascendente, esse desafio 4 horizontalidade que a propria arvore representa: Si j'emportais ces hauteurs! Quand serai-je dans le calme? que o filésofo acrescenta: Ce végétalisme des sommets montre bien que (...) l'imagination est une vie dans la hauteur. L'arbre aide le poete «a emporter la hauteur», @ dépasser les cimes, @ vivre d’une vie aisée, aérienne 16. E mais adiante, '6 BacutLaro, Gaston ~ L’air et les songes. Essai sur l'imagination duu mouvement, Paris, Ed. José Corti, 1990, p. 238. 208 A ARVORE: UM ARQUETIPO DA VERTICALIDADE a propésito de Swanevit de Strindberg, Bachelard intuiu ainda: Vivre dans le grand arbre, sous l’énorme feuillée, c'est, pour l’imagination, toujours étre un oiseau. L’arbre est une réserve d'envolée (...) L'arbre est un nid immense balancé par les vents. On nen a pas la nostalgie comme d'une vie chaude et quiéte, on a le souvenir de sa hauteur et de sa solitude. Le nid des cimes est un réve de puissance: il nous rend @ l'orgueil du jeune ge, quand nous nous croyons faits pour vivre au-dessus «des sept royau- mes»!7, E afinal, 0 que faz a irma de seis jovens vitimas de uma maldicdo no conto dos Irmaos Grimm, Os seis cisnes, em que, para quebrar © sortilé- gio, sobe para 0 cimo de uma drvore onde deve permanecer muda até fazer seis camisas que, ao serem vestidas pelos irmaos, Ihes permitirio retomar a forma humana!, Também numa lenda intitulada A Moura de Silves, Almendo, Cavaleiro da Ordem do Templo, se enamora de uma donzela que the surge no cimo de uma Arvore: ao simbolismo feminino do arquétipo junta-se aqui o anseio de verticalidade espiritual e talvez 0 desafio con- tido na inacessibilidade do Eterno Feminino: De repente, deu com um lou- reiro espesso, muito fechado de ramagem, as folhas a britharem como lan- cas de ago @ iiltima luz do dia. Jé 0 tamanho da drvore ¢ a sua mancha escura, que avultava na penumbra, the chamavam a aten¢ao, quando divi- sou entre a ramaria um rosto de donzela a sorrir-se para ele'?. A figura da Arvore que se ergue para 0 etéreo é assim, desde a eter- nidade, 0 instrumento privilegiado das portas das alturas, j que na sua verticalidade, no seu dinamismo ascendente ~ firme, inabalivel, sécurisant ~ ela significa 0 poder da transcendéncia, a dinamica verticalizante que € propria de toda a simbélica e que se consubstancia no desejo de ultrapas- sar os limites, de possuir 0 infinito, de expandir o espirito. Toda a ansia de ascensao implica uma vitéria sobre a morte, sobre 0 efémero ¢ 0 tran- sitério. A Arvore da Cruz, como jé se viu, protagoniza, na mistica crista, a significagio ultima desse movimento ascensional. Sera ele também sim- bolizado, de forma paradoxal, pela Arvore Invertida? Esta literal inverso do esquema ascendente também pertence & mito- logia universal da drvore que o exprime através de uma das suas criagdes "7 bid., ibidem, p. 243. 18 fn Outros Contos de Grimm, Lisboa, Casa do Livro-editora, 1964, p. 180. 19 In Lendas de Portugal. Contos de Mouras Encantadas por Luis Chaves, Lisboa, Liv. Universal, 1924, p. 8. 209 MARIA DO ROSARIO PONTES mais estranhas: a arbor inversa. Presente nos cabalistas medievais, no hin- duismo © nos mitos islandeses, no préprio Islao, no folclore finlandés, em certas tribos africanas © australianas, tal Arvore € simbolo da descida do Absoluto € das suas energias criadoras no Cosmos. Intimeras pois as tra- digdes que veneram uma Arvore cujas ratzes mergulham no céu € cujos ramos se espraiam, cobrindo todo 0 universo, Tal € o ideograma que parece traduzir, da forma mais poderosa, a dinamica vertical do imaginério. Ao querer significar a razio primeira ¢ iltima do Mundo, o facto de receber a energia divina que o criou, que o alimenta e regenera perpetua- mente, a Arvore Invertida (4rvore contra-natura, dir-se-ia), testemunha 0 ultrapassar da ordem natural que € propria de toda a érvore sagrada e a transcendéncia da propria ordem césmica. E que nesta aparente inversao da lei natural do crescimento se ante- véem leis supra-césmicas donde imanam as forgas que povoam o mundo: a Natureza € manifestagdo de um Absoluto, de um Principio Criador, sen- ido Ultimo do mito: Pour Mhomme religieux, la Nature n'est jamais exclu- sivement «naturelle». L'expérience d'une Nature radicalement désacrali- sée est une découverte récente; encore n’est-elle accessible qu'a une mino- rité des sociétés modernes, et en premier lieu aux hommes de science. Pour fe reste, la Nature présente encore un «charme», un «mystdre», une «majesté» od l'on peut déchiffrer les traces des anciennes valeurs reli- gieuses (...) dans lequel on distingue encore le souvenir d'une expérience religieuse dégradée™. E logo no inicio do mesmo livro, Mircea Eliade sublinhava: La pierre sacrée, l'arbre sacré ne sont pas adorés en tant que tels; ils ne le sont justement que parce qu’ils sont . HA ainda, nas tradigdes, Arvores que cantam, Arvores ¢ florestas que se deslocam, bretdes que se transformam em érvores a fim de combate- rem os invasores... Mas na escola aprende-se que tudo nfo passa de um amontoado de superstigdes de outra era. As florestas foram desencantadas, violadas, ultra- 33 In Ireland, Myths & Legends by Beryl Beare, Parragon Books Limited, 1996, p. 67. 34 In Os Mais belos contos de Fadas (1° vol.), Lisboa, Selecgées do Reader’s Digest, 1994, p. 26. 55 Ihidem, p. 293. 217 MARIA DO ROSARIO PONTES jadas, destrufdas. E, com elas, os elfos, os andes, as ondinas, os duendes, as Jadas, os dragies, as serpentes, os ogros... ¢ todos os espiitos da vegetagio! Com 0 sentido do sagrado, perdeu-se 0 respeito ¢ o encantamento face a uma Natureza considerada como um presente divino. A um sistema césmico com- plexo, fundado na diversidade e na complementaridade miitua entre todos os reinos existentes no Universo, sucedeu-se um monoteismo dogmatico e into- Terante: tal como o corpo do homem, também a Natureza se viu condenada © desvalorizada. Relegada ¢ renegada: dai a ruptura de um equilibrio vital fundado na comunicago e comunhio entre todos os seres vivos. Quase desapareceu a dendrolatria, recusada por um antropocentrismo absoluto que rejeita qualquer alma para além da do homem. Face a tal ati- tude dogmética ¢ farisaica, a Humanidade parece condenada. E 0 édio actual ao organico mais nfo ¢ do que a manifestagdo mais evidente dessa quase irreversivel condenagao. A nossa civilizagdo esqueceu que em cada érvore, em cada bosque, em cada floresta, em cada reino ~ seja ele animal, vegetal ou mineral — hd o dom do sobrenatural, a necessidade imemorial da luz do mistério. Ainda fresca dos orvalhos do além, cada drvore é entrada para a luz, ver- dade para os olhos sedentos de Conhecimento, abandono para os que erram & procura de fontes milagrosas. A Natureza € uma dadiva continua, sem tréguas. Por todo o lado se antevé, em cada dobra dos caminhos, o sopro criador que transforma em ensinamento de ouro cada semente pequenina. Onde a graca da intuigado sabe tanto como a suprema sabedoria. Como diz Afonso Lopes Vieira na sua linda Ligdo na Floresta: Meu livrinho na mao, e a alma ansiosa, 4 verde escola, eu venho p'ra aprender nesta vasta cartilha rumorosa 0 espléndido a b c do teu saber! Sé 0 meu grande mestre, a carinhosa me que me ensine, como deve sei esta ligéo de coisa amorosa que na minha alma fique a florescer. (.) 36 36 In Vieira, Afonso Lopes ~ Cangdes do Vento e do Sol, Lisboa, Ed. Ulmeira, 1983, p. 33. 218 A ARVORE: UM ARQUETIPO DA VERTICALIDADE © que para o homem das sociedades modernas é apenas fisiolégico, organico, € susceptivel de se tornar, para o homo religiosus, espiritual © mitico. Um abismo parece separar estas duas modalidades de experiéncias, a primeira, profana, a segunda, sagrada. Dessacralizando 0 mundo, 0 homem actual tem cada vez mais dificuldades em compreender ¢ sentir a dimensdo existencial da sociedade arcaica. Esqueceram-se mitos e simbolos; tem-se vindo a perder a percepgo hierofanica do Universo. E quando relemos um conto de fadas, uma lenda, uma natrativa tradicional ou mesmo quando sonhamos, falta-nos essa intui- fio do poder epifanico da Natureza, da sua sacralidade cOsmica. Mas 0s povos arcaicos tinham a sua Arvore Césmica, acreditavam na Arvore da Vida, pressentiam como era possfvel justificar o aparente paradoxo de uma Arvore Invertida, sabiam sempre algo sobre as Arvores da Imortalidade, do Conhecimento, da Felicidade. Refugiavam-se nas florestas — discretas, silenciosas, tranquilas, verdes — ¢ dialogavam com 0s espiritos que incar- navam em cada vegetal. Respeitavam ¢ amavam a vegetagio: honravam- -na com rituais, aprendiam com ela a vencer a morte, a acreditar na reno- vagiio. Na Vida. De tudo isto ainda hoje nos falam os historiadores das religides, os etndlogos, os folcloristas, raros fildsofos. E os contos tradicionais, as len- das, 0 mitos. Que nunca morram, como as érvores. Nem mesmo de pé. Maria do Rosério Pontes 219

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