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‘0 DESENVOLVIMENTO DO PENSAMENTO BIOLOGICO NY / ERNST MAYR FUNDAGAO UNIVERSIDADE DE BRASILIA Reitor Lauro Morhy Vice-Reitor ‘Timothy Martin Mulholland EDITORA UNIVERSIDADE DE BRASILIA Diretor Alexandre Lima Conse Boron. Pee VOLVIMENTO DO , MENT* Presidente ‘0 BIOLOGICO Emanuel Araiijo DIVERSI IDADE, EVOLUCAO E Alexandre Lima | HERANCA : es Alvaro Tamayo tog OR ‘Aryon Dall'Igna Rodrigues 3 “oe. Dourimar Nunes de Moura waciaducao Biblotecs cteT— Puce Emanuel Aratjo Ivo Martinazzo } Buridice Carvalho de Sardinha Ferro dove fers Técnica Lath José Maria G, de Almeida Jr, er Liicio Benedito Reno Salomon Marcel Auguste Dardenne sylvia Ficher Vilma de Mendonca Figueiredo | Volnei Garrafa AY Direitos exclusivos para esta edigio EDITORA UNIVERSIDADE DE BRASILIA M ur4ol SCS Q.02 - Bloco C - N°78 - Ed. OK - 2° andar ‘ “ 70300-500 - Brasflia - DF Ex.2& a Fax: (061) 225-5611 Copyright © 1998 by Ernst Mayer ‘Todos os direitos reservados. Nenhuma parte desta publicagdo poders ser armazenada ou reproduzida por qualquer meio sem a autorizagio por escrito da editora. Impresso no Brasil SUPERVISAO EDITORIAL AIRTON LUGARINHO PREPARAGKO DE ORIGINAIS ‘Winata GONCALVES ROSAS SALTARELLI REVISKO WILMA G, ROSAS SALTARELLIFGILVAM Cosmo ixoice [FATIMA REIANE DE MENESES F WILMA G. ROSAS SALTARELLT [EDITORAGAO ELETRONICA, RAIMUNDA Dias cara RESA “SUPERVISAOGRAFICA ELMANO RODRIGUES PINHEIRO ISBN: 85-230-0375-4 Ficha catalogréfica élaborada pela Biblioteca Central da Universidade de Brasflia M474 Mayr, Emst Desenvolvimento do pensamento biologico : diversida- de, evolugdo e heranga / Ernst Mayr; tradugao de Ivo Mar- tinazzo — Brasflia, DF : Editora Universidade de Brasflia, 1998 1107p. ‘Tradugio de: The Growth of Biological Thought Inclui Bibliografia, 1. Biologia. 1. Titulo, cpu: 57 onvs rowno 42/5 INDIGAGAD fieen felbeL__| Para Gretel SUMARIO Prefiicio, 11 1. Introdugio: Como escrever a historia da biologia, 15 Subjetividade e viés, 23 Por que estudar a hist6ria da biologia?, 34 2. O lugar da biologia nas ciéncias e sua estrutura conceitual, 37 ‘& natureza da ciéncia, 37 Métodos na ciéncia, 41 A posigio da biologia ‘dentro das cigncias, 49 Como e por que a biologia é diferente”, 53 Caracteristicas especiais dos organismos vivos, 70 Redugio ¢ biologi, 78 Emergéncia, 83 A estrutura conceitual da biologia, 87 Uma nova filoso- fia da biologia, 94 3.0 meio intelectual da biologia em transformagio, 105 ‘Antiguidade, 106 A imagem crit do mundo, 113 A Renascenga, 116 ‘A descoberta da diversidade, 122 A biologia no Huminismo, 130 © surgimento da ciéncia, do século XVII a0 século XIX, 132 Desdo- bramentos divisores no século XIX, 135 A biologia no século XX, 143 Os principais perfodos da hist6ria da biologia, 148 A biologie « filoso- fia, 152 A biologia hoje, 155 Parte I: A diversidade da vida 4. Macrotaxionomia, a ciéncia da classificagao, 175 ‘AristOteles, 177 A classificago das plantas pelos antigos ¢ pelos herba- Listas, 182 Classificagao descendente por divisto I6gica, 187 Os zoolo- sistas pr6-lineanos, 198 Cart Lineu, 201 Buffon, 210 Um novo impulso fa classificagio animal, 212 Os caracteres taxiondmicos, 215 Classib- ‘cagHo ascendente por agrupamento empirico, 221 Perfodo de transigto (1758-1859), 226 Classificagdes hierérquicas, 237 5, Agrupamento segundo ascendéncia comum, 241 © declinio da pesquisa macrotaxiondmica, 250 Fenstica numérica, 254 Cladistica, 259 A metodologia tradicional ou evolutiva, 267 Novos cemnorem caracteres taxiondmicos, 269 A epistemologia da classificagio, 272 Facilidade de recuperagio de informagGes, 273 Estado atual e o futuro da sistemdtica, 277 O estudo da diversidade, 279 6. Microtaxionomia, a ciéncia das espécies, 285 Os primitivos conceitos de espécie, 288 O conceito essencialista de espécie, 290 O conceito nominalista de espécie, 299 G conceito darwini- ano de espécie, 301 O surgimento do conceito biolégico de espécie, 306 ‘Anova sistemidtica, 312 A validade do conceito biolégico de espécie, 315 Aplicago do conceito biolgico de espécie aos taxa multidimensionais, de espécies, 323 O significado de espécie na biologia, 333 Parte Il: Evolugao 7. Origens sem evolugao, 341 O impacto do cristianismo, 347 O advento do evolucionismo, 349 O Iluminismo francés, 362 Desenvolvimento em outras partes da Euro- pa, 380 A heranga do periodo pré-lamarckiano, 383 8. A evolugao antes de Darwin, 385 Lamarck, 385 Franga, 405 Inglaterra, 415 Alemanha, 432 A estagnacdo pré-darwiniana, 437 9. Charles Darwin, 441 Darwin e a evolugio, 447 Alfred Russel Wallace, 466 A procrastinagao de Darwin, 469 10. A evidéncia de Darwin para a evolucao para a descendéncia comum, 477 A evidéncia da evolugio da vida, 478 A evidéncia da descendéncia comum, 487 11. A causa da evolugio: selecdo natural, $33 AA l6gica da teoria da selego natural, 535 Os componentes mais impor- tantes da teoria da selegdo natural, $38 A origem do conceito de selego natural, 545 O impacto da revolugio darwiniana, 559 A résisténcia & selego natural, 569 Teorias evolucionistas alternativas, 585 Progresso evolutiva, regularidade e leis, 592 12. A diversidade ¢ a sintese do pensamento evolucionista, 597 O neodarwinismo, 598 A crescente divisio entre os evolucionistas, 601 Os avangos na genética evoluciondria, 613 Os avangos da sistemética evolucionéria, 623 A s{ntese evolucionista, 631 13, Desenvolvimentos pés-sintese, 637 A genética de populagées, 639 A biologia molecular, 640 Selegdo natu- ral, 652 Os modos de especiagio, 669 Macroevolucdo, 676A evolucéo do homeni, 691 Problemas néo resolvidos da biologia evolucionista, 696 Evolugio no pensamento modemo, 697 Parte III: A variagdo e sua hereditariedade 14. Teorias primitivas e experimentos de cruzamento, 70S As teorias da hereditariedade entre os antigos, 707 Novos comegos, 710 Os precursores de Mendel, 713 15, Células germinais, veiculos da hereditariedade, 727 A teoria celular de Schwann e Schleiden, 730 O significado do sexo da fertilizagio, 733 A base material da variagdo e da hereditariedade, 743 Os cromossomos e o seu papel, 749 16. A natureza da hereditariedade, 759 Darwin e a variagao, 759 Hereditariedade ténue ou hereditariedade séli- da, 766 August Weismann, 778 Hugo de Vries, 788 Gregor Mendel, 792 17. O florescimento da genética mendeliana, 811 Os redescobridores de Mendel, 811 O perfodo cléssico da genética mendeliana, 816 A emergéncia da genética moderna, 830 18, As teorias do gene, 867 ‘As teorias concorrentes da hereditariedade, 874 A explicagio mendelia~ nna da variagao continua, 881 19. A base quimica da hereditariedade, 901 ‘A fortuna errante da teoria écido-nucléica da hereditariedade, 909 ‘A descoberta da dupla-hélice, 916 A genética no pensamento.mo- deo, 920 20. Epilogo: por uma ciéncia da ciéncia, 925 Os cientistas e 0 meio cientifico, 926 A maturagio das teorias e dos Gonceitos, 936 As cigncias eo meio externo, 946 O papel dos avangos técnicos na pesquisa cientifica, 952 Progresso em ciéncia, 954 Notas, 957 Bibliografia, 1003 Glossério, 1083 {ndice, 1087 PREFACIO ‘Muitos aspectos da modema biologia, particularmente as vérias con- trovérsias entre diferentes escolas de pensamento, nfo podem ser plena- mente entendidos sem um.conhecimento dos antecedeptes histéricos dos problemas. Sempre que eu expunha esse particular aos meus alunos, eles ‘me perguntavam em que livro poderiam ler sobre tais matérias. Para meu embarago, eu tinha de ‘admitir que nenhum dos volumes publicados cobria essa necessidade, Por certo, existe muita literatura sobre a vida dos biolo- gistas e suas descobertas, mas esses escritos so invariavelmente inade~ ‘quados, tanto no que concerne a uma anélise dos problemas maiores da biologia, como a uma hist6ria dos conceitos e idéias em biologia. Con- quanto algumas das hist6rias de disciplinas biol6gicas particulares, como a genética e a fisiologia, sejam indubitavelmente hist6rias de idéias, nada existe de aproveitavel no sentido de cobrir a biologia como um todo. Pre- encher essa lacuna na literatura constitui 0 objeto do presente trabalho. Este volume nio 6, ¢ isso precisa ser sublinhado, uma histéria da biolo- gia, e no pretende substituir hist6rias da biologia existentes, como.a de Nordenskidld. A énfase € posta nos fundamentos e na evolugio das idéias dominantes da moderna biologia;-em outras palavras, trata-se de uma hist6ria evolutiva, nfo puramente descritiva. Uma tal abordagem justifica, e mesmo impée, a negligéncia de certos desdobramentos temporétios na biologia, que nao deixaram nenhum impacto na subseqilente hist6ria das ideias. ‘Quando pela primeira vez. concebi o plano de escrever a historia das idéias da biologia, a meta parecia-me proibitivamente remota. Os primei- ros anos (1970-1975) foram dedicados a leitura, a apontamentos, a prepa- Tago de um primeiro esbogo. Cedo, tornou-se evidente que o tema era muito vasto para um tinico volume, € entio decidi preparar primeiro um volume sobre a biologia das causas “sltimas” (evolutivas). Mas mesmo esse objetivo limitado é uma empresa desesperadoramente vasta, Se en- fim tive sucesso, foi porque pessoalmente ja havia realizado quantidade considerével de pesquisa sobre a maioria das éteas cobertas por este vo- lume. Isto significa que eu j4 estava razoavelmente familiarizado com os problemas € com boa parte da literatura das éreas envolvidas. Espero poder tratar da biologia das catisas “prdximas” (funcionais) num volume posterior, que cobriré a fisiologia em todos os seus aspectos, biologia do crescimento € neurobiologia. Quando uma disciplina biolégica — por exemplo a genética ~ trata ao mesmo tempo das causas iiltimas e proxi- mas, apenas as causas tltimas vem consideradas no preseite volume. Ha duas dreas di. biologia que poderiam ter sido inclufdas (pelo’ menos ém parte) neste volume, mas no o foram: a hist6ria conceitual da ecologia e a da biologia comportamental (particularmente a etologia). Felizmente, essa omissd0 no serd tio lamentével, como de outro modo o seta, tendo em conta que diversos volumes de outros autores, abordando a historia da ecologia’e w da etologia, esto neste momento em plena preparagao. O historiador profissional provavelmente nfo ter4 muito a aprender conros Capitulos'l e 3; de fato, ele pode consider’-los algo amadoristico. Tuntei esses dois capftulos em beneficio dos ndo-historiadores, na certeza de que isso os ajudaré a encarar os desdobramentos puramente cientificos ‘os outros capitulos com uma percepgao mais profunda. + Sou devedor de uma imensa gratidao pata com numerosos individuos e-ihstituigées: Peter Ashlock, F. J. Ayala; Johir Beatty, Walter‘Bock, Robert Brandon, “Arthur Cain, Fred:Churchill, ‘Bill ‘Coleman, Lindley Darden, Max -Delbrtick,: Michael :Ghiselin;:Jotin Greene, Carl ‘Gustav Hempel, Sandra Herbert, Jon Hodge; David Hull; David Layzer, E, B. Lewis; Robert Mertoh, 3:-s%'Maore, Ron Munson? Edward Reed, Phillip’ Sloan, Frank Sulloway, Mary Williams'é outros Téram’6s esbogos e varios capitulos, ‘apontatam rerros’ €”omiss®es,'e"fizeram muits ‘sugestbes construtivas, ‘Nem'sempre eu-segui'os seus vontséllios; e sou por isso 0 tinico responsé- vel pelos erros remanescentes € pelas deficiéncias. A P. Ax, Muriel Blaisdell e B. Werner sou devedor pelas'preciosas informagées factuais. ‘Gillian Brown, Chery Burgdorf, Sally ‘Lotti Agnes I: Martin, Mau- ren Sepkoski‘e:Charlowe: Ward datifografaram inumerdveis tascinhos, e ajudaram na’ bibliografia:: Walter’ Borawskino- apenas ‘datitografou ‘as versSes preliminares, inas:também'a. c6pia final do manuscrito € da bi- bliografia,-e preparow 0 manusctito do fndice.” Randy Bird'célabotou no preenchimento das lacunas,‘nas eferéncias. Susan Wallace revisou o ma- nuscrito e, no’ proceso, eliminoumurnerosas inconsisténcias, redundancias ¢: infelicidades estilisticas, Todas’ essas pessoas ‘contribiifram’ matetial- | mente para a qualidade do produto final: Obviamente, ‘grande é o meu dever de gratidao'para'com elas,’ © Museu de Zoologia Comparada, mediante a cortesia do seu diretor, professor A.W. Crompton, proporcionou espago para o trabalho, apoio de secretatia e facilidades bibliotecdrias, mesmo apés eu me aposentar. Perfodos de pesquisa no Instituto de Estudos Avangados (Princeton, pri- mavera de 1970), na biblioteca do Instituto Max Planck de Biologia (Tubingen, 1970), uma bolsa como membro sénior da Fundago Alexan- der von Humboldt (Wirzburg, 1977), uma bolsa concedida pela Funda- go Rockefeller (Villa Serbelloni, Bellagio, 1977), e uma doagio (No, GS 32176), pela Fundagao Nacional da Ciéncia, facilitaram grandemente o meu trabalho, ‘Sempre que nao se podia dispor do apoio de secretaria, minha mulher assumia esse trabalho, transcrevia ditados, selecionava literatura, e ajuda- va de mil formas no trabalho do manuscrito, Impossfvel reconhecer ade- quadamente a sua inestimavel contribuigdo para este volume. Ernst Mayr Museu de Zoologia Comparada Universidade de Harvard 1, INTRODUCAO: COMO ESCREVER A HISTORIA DA BIOLOGIA ‘Tudo o que muda no tempo tem, por definigdo, uma histéria ~ 0 Uni- verso, os paises, as dinastias, a arte e a filosofia, ¢ as idéias. Também a cigncia, jé desde a sua origem nos mitos e nas filosofias primitivas, expe- rimentou uma coristante mudanga hist6rica, e por isso constitui um tema legitimo para o historiador. Tendo em vista que a esséncia da ciéncia é 0 Processo continuado de solugdo de problemas na busca de um ehtendi- ‘mento do mundo em que vivemos, uma hist6ria da ciéncia é antes de tudo uma hist6ria dos problemas da ciéncia e de sua solugio, ou de solugSes tentadas. Mas ela é também uma historia do desenvolvimento dos princf- ios que formam a estrutura conceitual da cigncia, Como as grandes con- trovérsias do passado muitas vezes se estendem até a ciéncia moderna, muitos problemas atuais nao poderio ser plenamente entendidos sem uma compreensdo da sua hist6ria. Historias escritas, como a prdpria ciéncia, necessitam constantemente de revistio. Interpretagdes errdneas de um autor antigo eventualmente se tomam mitos, aceitos sem discussio e transmitidos de geraco em gera- Go. Um particular empenho meu tem sido expor e eliminar o maior né- ‘mero possivel desses mitos ~ sem todavia, assim espero, criar em demasia outros novos. De qualquer maneira, a razao principal por que as hist6rias sofrem constantemente a necessidade de revistio consiste em que, em qualquer tempo determinado, elas meramente refletem o estado atual do conhecimento; elas dependem da maneira como o autor interpretou 0 corrente zeitgeist” (espfrito do tempo) da biologia, da sua propria estrutu- ra conceitual € de conhecimentos. Dessa forma, a atividade de escrever hist6ria € necessuriamente subjetiva e efémera." Quando comparamos entre si publicagbes sobre hist6ria das ciéncias, toma-se de relance evidente que historiadores diferentes tm conceitos perfeitamente diversos sobre a ciéncia, bem como sobre o escrever hist6- tia. Ultimamente, todos eles procuram retratar 0 aumento do conheci- * 0 tradutor achow por bem manter ao longo do'livro, como acontece no original em inglés, 0 termo zeitgeist com a cortespondente expressio em portugues ~ “espfrto do {empo”. E © mesmo acontece com outros termos estrangeiros usados pelo autor na obra cviginal. (N, do R.T.) 16 O DESENVOLVIMENTO DO FENSAMENTO BIOLOGICO mento cientéfico e as flutuagdes dos conceitos interpretativos, Mas nem todos os historiadores da ciéncia tentaram responder as seis questdes Drincipais que devem ser encaradas por qualquer um que se proponha descrever 0 progresso da ciéncia, de modo critico e compreensivo: Quem? Quando? Onde? O qué? Como? e Por qué? Tomando como base @ escolha feita pelos autores dentre essas questdes, a maioria das hist6rias que conhego pode ser classificada da maneira seguinte (Cf, Passmore, 1965: 857-861), embora se deva reconhecer que quase todas as histérias siio uma combinagio das vérias abordagens ou estratégias. Historias lexicograficas Estas so mais ou menos hist6rias descritivas, com uma forte énfase nas questdes sobre O qué? Quando? e Onde? Quais foram as principais atividades em determinado perfodo do pasado? Quais foram os centros de cigncia em que os cientistas prineipais trabalharam, e como eles influen- ciaram o curso do tempo? Ninguém poderd contestar o valor de tais hist6- rias, Uma correta apresentagao dos fatos verdadeiros é indispensével, Porque. grande parte da hist6ria tradicional da ciéncia (e dos seus textos Padrdo) € permeada de mitos e de anedotas espiirias. Todavia, uma histé- ria puramente descritiva fornece apenas parte da historia Histérias cronolégicas ‘Uma considerago da seqliéncia do tempo é crucial para toda espécie de historiografia. Por certo, pode-se fazer da cronologia o eritério princi- Pal de organizagio, e alguns autores assim o fizeram. Eles indagaram, Por exemplo, o que aconteceu em biologia entre 1749 e 1789, ou entre 1789 e 1830? Hist6rias cronolégicas apresentam uma seqiiéncia de se- Ges cruzadas ao longo do conjunto dos desdobramentos em todos os ramos da biologia, Isso ndo € apenas uma aproximagio legitima, mas também muito reveladora. Ela cria uma sensibilidade para 0 zeitgeist e ara o conjunto das influéncias contemporaneas. Ela permite investigar como os desenvolvimentos em outros ramos da ciéncia puderam influen- ciar a biologia, e mesmo como, no seio da propria biologia, os avangos efetuados por experimentalistas afetaram 0 pensamento dos naturalistas, © vice-versa. A compreensiio de muitos problemas no desenvolvimento COMO ESCREVER A HISTORIA DA BIOLOGIA ” ibordagem cronolégica. da biologia é grandemente facilitada por essa at Mas, todavia, ela padece do inconveniente de atomizar todo problema cientifico maior. Historias biogrdficas ‘O empenho dessas obras é no sentido de retratar os progressos da cién- cia através das vidas dos principais cientistas. Essa aproximagdo também 6 legitima, uma vez que a ciéncia é feita por pessoas, e impacto de cien- tistas individuais como Newton, Darwin e Mendel foi muitas vezes de natureza quase revolucionéria. Mas, de qualquer maneira, essa aborda- gem compartilha uma séria fragilidade com a abordagem puramente cro- nol6gica: ela atomiza cada problema cientifico maior. O problema das espécies, por exemplo, deveria ser discutido sob Plato, Aristételes, Ce- salpino e os herbalistas, Buffon, Lineu, Cuvier, Darwin, Weismann, Nigeli, de Vries, Jordan, Morgan, Huxley, Mayr, Simpson, e assim por diante. Todavia, essas discusses sobre o mesmo problema ficam separa- ddas umas das outras por muitas pdginas, senio por capftulos. Historias culturais e sociolégicas Essa aproximagiio sublinha 0 aspecto que a ciéncia é uma forma de atividade humana, e por isso insepardvel do meio intelectual e institucio- nal da época, Trata-se de um ponto de vista particularmente fascinante para agueles que chegam a histria da ciéncia pelo caminho da histéra ‘geral, Eles podem levantar questdes tais como: por que a ciéncia briténi- a, de 1700 a 1850, era tio fortemente experimental ¢ mecanicista, en- quanto a ciéncia francesa contemporinea tendia a ser matemética e racionalista? Por que a teologia natural dominou a ciéncia na Inglaterra por 75 anos a mais do que no Continente? Em que medida a teoria da selegdo natural de Darwin foi um ponto da revolugio industrial’ "Mesmo que © historiador de biologia opte por néo adotar essa apro- ximagilo, ele deve estudar cuidadosamente o ambiente cultural e intelec- tual de um cientista, se quiser determinar as causas do aparecimento de novos conceites. Isso é de evidente importincia no presente trabalho, uma vez que um dos objetivos maiores do meu esforgo 6 investigar as raz6es das mudangas nas teorias biolégicas. O que possibilitou a um pes- 18 (ODESENVOLVIMENTO DOPENSAMENTO BIOLOGICO quisador fazer uma descoberta que escapou aos seus contemporineos? Por que ele rejeitou as interpretagdes tradicionais para desenvolver uma nova? De onde Ihe veio a inspiragao para essa nova abordagem? Sio questoes que devem ser levantadas, As mais antigas hist6rias da ciéncia, particularmente as de disciplinas cientificas especiais, foram escritas por cientistas atuantes, que tinham por certo que o eld da mudanga cientifica provinha do interior do proprio campo (influéncias “intemnas”). Mais tarde, quando a hist6ria da ciéncia se tornou mais profissional, e os historiadores e socidlogos comegaram a analisar 0 progresso do pensamento cientifico, elas tenderam a acentuar a influéncia geral do meio intelectual, cultural e social da época (influén- cias “externas”). Ninguém ousaria por em diivida que ambas as espécies de influéncias existem, mas hd uma grande medida de desacordo sobre a sua importancia relativa, particularmente em relagio a desenvolvimentos especificos, como a teoria da selegio natural de Darwin, Muitas vezes até & bem dificil distinguir fatores externos de fatores, intemnos. A Grande Cadeia do Ser (scala naturae) era um conceito filos6- fico que exerceu claramente um impacto na formagio dos conceitos, no caso de Lamarck e de outros evolucionistas primitivos. Nao obstante, Atistételes havia desenvolvido esse mesmo conceito, com base em ob- servagbes empiricas dos organismos. Mas, por outro lado, ideologias universalmente aceitas situam-se entre os fatores externos mais inquesti ondveis. O dogma cristo do criacionismo e a questio de um plano, pro- cedente da teologia natural, dominaram 0 pensamento biolégico durante séculos. O essencialismo (desde Platio) é outra ideologia todo-poderosa. Interessante notar que a sua temogo, por obra de Darwin, foi largamente devida a observagées de criadores de animais e de taxionomistas — isto é, a fatores internos. Os fatores externos nao se originam necessariamente da religifo, da filosofia, da vida cultural ou politica, mas ~ no que concemne a biologia — eles podem ter origem numa ciéncia diferente. O fisicalismo externo (in- cluindo 0 determinismo ¢ 0 extremo reducionismo), que prevalecia no pensamento ocidental apés a revolugio cientifica, influenciou fortemente a formagio teérica em biologia, por muitos séculos, muitas vezes, inclu- sive, exatamente contra aquilo que hoje € evidente. A l6gica escoléstica, para citar outro exemplo, dominou 0 método taxiondmico, desde Cesalpi no até Lineu. Tais exemplos, que poderiam ser acrescidos de muitos ou- tos, documentam sem diivida a importincia de influéncias externas na formagio de teorias biolégicas. Serio analisadas detalhadamente nos capitulos competentes. (COMO ESCREVER A HISTORIA DA BIOLOGIA 19 Importa ter presente que os fatores extemnos influenciam a ciéncia de duas maneiras completamente diferentes: eles podem ou afetar por com- pleto o nivel da atividade cientffica, num dado lugar e num dado tempo, ou afetar e até dar origem a uma particular teoria cientfica. Com muita frequiéncia, no passado, esses dois aspectos andaram juntos, resultando em muita controvérsia sobre a importancia relativa de fatores externos versus internos. O efeito' das condig6es circunstantes sobre 0 “nfvel” das atividades cientfficas sempre foi considerado, desde quando existiu uma histéria da ciéncia. Especulou-se infinitamente sobre as razSes que levaram os gre- g0s a terem tanto interesse pelas questdes cientificas, e por que durante o Renascimento houve um ressurgimento da ciéncia. Qual foi o efeito do Protestantismo sobre a ciéncia (Merton, 1938)? Por que durante 0 século ‘XIX a ciéncia conheceu um tdo vasto florescimento na Alemanha? Em. alguns casos, podem ser especificados importantes fatores. externos, como, por exemplo (segundo destacou Merz, 1896-1914), a substituigzo, em 1694, do latim pelo alemo na Universidade de Halle, e a fundacao, em 1737, de uma Universidade em Gdttingen, onde a Wissenschaft (Ciéncia)” desempenhava um importante papel. Mudangas institucionais de toda sorte ~a fundagao da Royal Society inclusive -, eventos politicos, como as guerras, ¢ o langamento do Sputnick, bem como necessidades tecnolé- gicas, tiveram um efeito ora estimulante ora depressivo sobre o nivel da atividade cientifica, Todavia, isso ainda deixa em aberto a questo alta- mente controvertida sobre em que medida tais fatores externos favorece- ram ou inibiram teorias cientfficas “especfficas”. Em anos recentes, historiégrafos marxistas, em particular, formularam tese segundo a qual ideologias sociais influenciam as idéias de um cien- tista, © que « histGria da ciéncia, como até agora praticada, negligenciou completamente 0 contexto social. © resultado foi, segundo acreditam, uma hist6ria burguesa da ciéncia, que é totalmente diferente daquilo que seria uma hist6ria proletéria da ciéncia. O que faz falta em vez disso, dizem eles, é uma hist6ria “radical”. Essa exigéncia remonta em dltima instiincia A tese de Marx, segundo a qual idéias dominantes nao podem ser separadas de classes dominantes. Por isso é que uma hist6ria burguesa da cigncia sera completamente diferente de uma histéria proletéria da ciéncia, + Ver nota do revisor téenico & pég. 15, 20 ‘O DESENVOLVIMENTO DO PENSAMENTO BIOLOGICO Seja como for, a tese de que existe uma maneira proletéria de escre- ver a histéria da ciéneia estd/em conflito com trés grupos de fatos: pri meiro, as massas no estabelecem teorias cientfficas que sejam diferentes daquelas da classe cientifica. Se alguma diferenca existe, ela reside em que o “homem comum” muitas vezes retém idéias que jé foram hd muito tempo descartadas pelos cientistas, Segundo, hé uma grande mobilidade social entre os cientistas, onde de um quarto a um terco de cada nova safra de cientistas provém das classes socioecondmicas mais baixas, Ter- ceiro, a ordem de nascimento dentro de uma classe social tende a ser muito mais importante na determinagdo daqueles que dio origem a idéias novas e revoluciondtias, do que 0 fato de uma classe particular (Sulloway, MS). Tudo isso estd em conflito com a tese de que 0 ambiente socioeco- nGmico exerce um impacto dominante no nascimento de idéias e concei- tos cientificos particularmente novos. Cabe evidentemente aos autores dessas proposigdes a tarefa de fornecer provas, ¢ isso tanto mais quanto falharam em apresentar alguma evidéneia concreta, qualquer que seja (veja Capftuto 11) Evidentemente, ninguém vive num vacuo, e todo aquele que Ié vo- razmente, como por exemplo o fez Darwin apés o seu retorno da viagem do Beagle, sujeita-se a ser influenciado por suas leituras (Schweber), 1977). Os cademnos de notas de Darwin so exemplo evidente da justeza dessa inferéncia. Todavia, como sublinha Hodge (1974), isso por si s6 nfo prova a tese dos marxistas que “Darwin e Wallace estenderam 0 ethos do laissez-faire capitalista da sociedade a toda a natureza”. Até agora, parece que a influéncia de fatores sociais no desenvolvimento de rogressos especificos em biologia tem sido negligencidvel. O inverso, obviamente, no é verdadeiro. Mas o estudo do impacto da ciéncia sobre a teoria social, sobre instituigdes sociais e sobre a politica pertence aos dominios da hist6ria, da sociologia e da ciéncia politica, e nao ao da his- t6ria da ciéncia, Concordo com Alexander Koyré (1965:856), no sentido que € fatil “deduzir a existéncia” de certos cientistas € ciéncias da ‘sua circunstincia. “Atenas no explica Plato, assim como Siracusa nfo ex- plica Arquimedes, ou Florenga Galileu. Procurar explicagSes nessa linha € uma empreitada inteiramente fitil, e Zo fitil como tentar predizer a evolugao futura da ciéncia, ou das ciéncias, como uma fungdo da estrutu- ra do contexto social”. Thomas Kuhn (1971: 280) observou igualmente que 0 historiador parece invariavelmente emprestar “excessiva énfase a0 papel do clima circunstante de idéias extracientificas” (veja também Passmore, 1965). (COMO ESCREVER A HISTORIA DA BIOLOGYA 21 Histérias de problemas Ha‘mais de cem anos, Lord Acton aconselhou 20s historiadores: “Estudai problemas, no perfodos”. Esse conselho € particularmente apropriado para a hist6ria da biologia, que se caracterjza pela longevidade dos seus problemas cientfficos. Muitas das grandes controvérsias do s6- culo XIX e comego do século XX dizem respeito a problemas jé conheci- dos por Arist6teles. Tais controvérsias perduram de geragao a geragio, de século a século, Elas so processos, nao eventos, ¢ s6 poderio ser ple- namente compreendidas por meio de um tratamento hist6rico. Como R. G. Collingwood disse da histéria (1939:98), ela “se refere no a eventos ‘mas a processos. Processos sao coisas que nao comegam e terminam, mas que se imbricam umas com as outras”. Isso deve ser particular-mente sublinhado em face das posigdes estéticas dos positivistas légicos, que pensavam que a estrutura Iégica era o real problema da ciéncia: “A filosofia da ciéncia € concebida (por eles) primariamente como uma andlise cuidadosa e detalhada da estrutura I6gica e dos problemas con- ceituais da ciéncia contemporinea” (Laudan, 1968). Atualmente, a maio- ia dos problemas cientificos so melhor entendidos pelo estudo da sua hist6ria do que da sua l6gica. De qualquer maneira, é preciso lembrar que 4 histéria dos problemas nao substitui a hist6ria cronol6gica. As duas abordagens so complementares. Na aproximagio problemitica, a énfase principal situa-se na hist6ria das tentativas de solugao dos problemas - por exemplo, a natureza da fertilizagio, ou o fator diretivo na evolugao. E apresentada a hist6ria nfio apenas das tentativas bem-sucedidas, mas também das tentativas fracas- sadas, na solugdo desses problemas. No tratamento das maiores contro- vérsias nese campo, faz-se esforgo no sentido de analisar as ideologi (ou dogmas), tanto quanto a particular evidéncia com que os adversérios sustentaram as suas teorias contrérias. Na hist6ria dos problemas, a énfa- se concentra-se no cientista atuante e no seu mundo conceitual. Quais foram os problemas cientificos do seu tempo? Quais foram os instru- ‘mentos conceituais ¢ técnicos de que dispunha na sua busca de uma solu- Go? Quais foram os métodos que ele pode utilizar? Que idéias predominantes na sua época orientaram a sua pesquisa e influenciaram as suas decis6es? Questdes dessa natureza prevalecem na aproximago da hist6ria de problemas, Foi essa a abordagem que eu escolhi para o presente livro. O leitor pode estar certo do fato que esta ngo & uma histéria tradicional da ciéncia, Devido & sua concentragdo na hist6ria dos problemas ¢ dos conceitos n ( DESENVOLVIMENTO DO PENSAMENTO BIOLOGICO cientificos, ela necessariamente desconsidera os aspectos biogréficos e sociolégicos da histéria da biologia. Ela poderé, assim, ser utilizada con- juntamente com a hist6ria geral da biologia (como a de Nordenskidld, 1926), com 0 Diciondrio de biografia cientifica, e com hist6rias dispont- yeis sobre Areas especiais da biologia. Tendo em vista que eu sou um bidlogo, sou mais bem qualificado para escrever uma histéria dos pro- bblemas e conceitos da biologia do que uma hist6ria biogrdfica ou socio- légica. E proprio da esséncia da hist6ria dos problemas indagar o “porqué”. Por que foi na Inglaterra que a teoria da selegdo natural se desenvolveu, de fato independentemente, por quatro vezes? Por que a genufna genética da populac&o apareceu na Riissia? Por que os esforgos explicativos em genética, de Bateson, eram quase uniformemente errados? Por que Cor- rens se perdeu em toda sorte de problemas periféricos, e por isso to pou- co contribuiu para maiores avangos em genética, apés 1900? Por que @ escola de Morgan dedicou pof tantos anos os seus esforgos na consolida- io da ja bem-estabelecida teoria dos cromossomos da hereditariedade, em vez de abrir novas fronteiras? Por que de Vries e Johannsen foram tio ‘menos exitosos na aplicago evolucionista das suas descobertas, do que no seu trabalho direto em genética? As tentativas de respostas para essas perguntas requerem a coleta ¢ o exame atento de muitas evidéncias, ¢ isso ‘quase sempre conduz a novas aberturas, mesmo que a respectiva questo resulte invdlida, Respostas 2s perguntas “por que” sfo inevitavelmente algo de especulativo e subjetivo, mas elas obrigam a um ordenamento das observagdes € ao teste constante de conclusdes consistentes com 0 méto- do hipotético-dedutivo. ‘Agora que a legitimidade das questOes do porqué foi estabelecida mesmo para a pesquisa cientifica, particularmente na biologia evolutiva, no serd dificil admitir a legitimidade dessas perguntas na historiografia. Na piog das hipsteses, a andlise detalhada exigida por tal pergunta poderé evidenciar que as pressuposigdes latentes na questo estiio erradas. Mas ‘mesmo isso pode significar um avango do nosso conhecimento, Ao longo deste volume, esforcei-me por analisar cada problema to profundamente quanto possfvel, e por dissecar teorias e conceitos hetero- géneos nos seus componentes individuais. Nem todos os historiadores tiveram consciéneia da complexidade de muitos conceitos biolégicos ~ em realidade, de como é complexa a estrutura da biologia como um todo. Em conseqiiéncia disso, alguns relatos excessivamente confusos da hist6- ria da biologia tém sido publicados por autores que ndo entenderam que ‘COMO ESCREVER A HISTORIA DA BIOLOGIA 23 existem duas biologias, uma das causas funcionais, outra das causas evolutivas. Da mesma forma, alguém que venha a escrever sobre “a teo- ria da evolugéo de Darwin" no singular, sem distinguir as teorias da evolugdo gradual, descendéncia comum, especiagio, eo mecanismo da selegdo natural, serd simplesmente incapaz de discutir o assunto com competéncia. Grande parte das maiores teorias biol6gicas ~ quando fo- ram apresentadas pela primeira vez — no passava de tais compostos. A sua hist6ria e 0 seu impacto nfo poderdo ser compreendidos, a menos que 0s seus varios componentes sejam separados e estudados indepen- dentemente. Eles muitas vezes pertencem a linhagens conceituais muito diferentes. Estou plenamente convencido de que nao é possfvel entender 0 cres- cimento do pensamento biolégico sem uma compreensio da estrutura conceitual da biologia. Por essa razo, procurarei apresentar as idéias e os coneeitos da biologia de uma forma bastante detalhada, Isso foi particu- larmente necessério no tratamento da diversidade (Parte 1), porque nao existe nenhum outro tratamento adequado, ou estrutura conceitual, relati- vo a ciéncia da diversidade. Estou consciente do perigo que algum critico possa exclamar: “Mas isso € um livro-texto de biologia, historicamente arranjado!” Talvez seja isso mesmo que uma hist6ria dos problemas da biologia deva ser. Talvez, a maior dificuldade a ser superada por uma concepgio histérica da biologia seja a longevidade das controvérsias, Muitas das discusses ainda em voga tiveram a sua origem hé geragdes & mesmo ha séculos, algumas delas remontando até os gregos. Uma apre- sentagéo mais ou menos “intemporal” dessas questOes 6 mais construtiva, nesses casos, do que uma apresentagdo cronolégica. Tentei fazer de cada uma das maiores segdes do presente volume (Diversidade, Evolugio, Heranga) uma unidade acabada e independente. Igual separagio foi tentada em cada problema em particular, no interior dessas tr@s dreas maiores. Isso conduz a certo mimero de superposigées & redundéncias, porque existem muitas conexdes cruzadas entre os diver sos tépicos, ¢ cada jungio tépica passa pela mesma seqiiéncia de meios intelectuais interdependentes no tempo. Esforcei-me especialmente por um equilforio entre certo niimero de duplicagdes inevitéveis e convenientes referéncias da transigdo para outros capitulos. Subjetividade e viés Uin bem-conhecido teérico soviético do Marxismo referiu-se uma ‘Vex aos meus escritos como sendo “puro materialismo dialético”. Nao on ODESENVOLVIMENTO DO PENSAMENTO BIOLOGICO sou um marxista, e no conheco a tiltima definigto do materialismo dia~ Iético, mas devo admitir que compartilho algumas das idéias anti- reducionistas de Engels, tais como expressas no Anti-Diihring, € que sou grandemente atraido pelo esquema hegeliano da tese-antitese-sintese. ‘Além disso, acredito que uma antitese & mais facilmente provocada pela formulagio categérica de uma tese, e que a questio € mais prontamente resolvida por tal confronto de tese e ant{tese irredutiveis, e que a sintese final 6 por isso alcangada de forma mais répida. Muitos exemplos disso podem ser encontrados na histéria da biologia. Esse ponto de vista dominou a minha exposicio. Sempre que possf- vel, tentei a sintese de posigdes contrérias (a menos que uma delas seja claramente errada). Quando a situacao € simplesmente insolivel, descre- ‘yo os pontos de vista opostos em termos categéricos, por vezes até unila~ terais, de modo a provocar uma réplica, desde que justificavel. Por detestar fazer rodeios, fui taxado As vezes de dogmético. Penso que este € um epfteto errado para a minha atitude. Uma pessoa dogmatica insiste em estar certa, sem consideragio pela evidéncia contréria. Essa nunca foi a minha atitude e, na verdade, orgulho-me pelo fato de ter mudado de opi- nifio em freqiientes ocasides. Em todo caso, verdade € que a minha tética consiste em fazer afirmagdes categ6ricas ¢ radicais. Se isso € ou no uma falha, no mundo livre do intercambio de idéias cientificas, € ponto discu- tivel. Segundo a minha particular maneira de sentir, isso conduz mais rapidamente & solugdo definitiva dos problemas cientfficos do que a uma posigao hesitante e cautelosa. Por certo, concordo com Passmore (1965) no sentido que hist6rias sempre sto polémicas, Tais hist6rias despertam contradigGes, € desafiam o leitor para uma contestago. Pelo processo dialético, isso apressa uma sintese da perspectiva. A adogo, sem ambi- gilidade, de um ponto de vista definitivo no deverd ser confundida com subjetividade. ‘A adverténcia tradicional aos historiadores sempre foi no sentido de serem estritamente objetivos. Esse ideal foi bem expresso pelo grande historiador Leopold von Ranke, quando disse que 0 historiador deve “mostrar como realmente foi”. A hist6ria era encarada por ele como a cuidadosa reconstrugao de uma série de eventos passados. Tal objetivida- de é inteiramente apropriada quando se tenta responder s perguntas so- bre “quem”, “o qué”, “quando” e “onde”, embora se deva acentuar que, mesmo ao apresentar fatos, o historiador é subjetivo, porque ao destacar 08 fatos ele utiliza julgamentos de valor, ¢ 20 decidir sobre quais so aceitaveis e como relacioné-los uns com os outros é seletivo, ‘COMO ESCREVER A HISTORIA DA BIOLOGIA 2s A subjetividade entra em cada fase de um relato de histéria, especi almente quando se procuram explicagdes © quando se pergunta 0 “porqué”, como é necessério numa hist6ria de problemas. Nao se pode chegar a explicagées sem usar 0 prdprio julgamento pessoal, ¢ isso € inevitavelmente subjetividade. Um tratamento subjetivo & usualmente ‘muito mais estimulante do que um julgamento frio ¢ objetivo, porque tem maior valor heurfstico. Em que medida a subjetividade permitida, e quando ela se toma um és? Rad! (1907-08), por exemplo, tinha um tio forte preconceito antidarwiniano que nfo era nem mesmo capaz de apresentar a teoria de Darwin adequadamente. Isso claramente foi longe demais. A subjetivida- de & apta a tornar-se viés sempre que € envolvida a avaliagio dos cien- tistas sobre os perfodos anteriores. Aqui os historiadores tendem a ir @ um ot a outro extremo, Ou adotam puramente uma aproximagdo retros- pectiva, em que se avalia 0 passado inteiramente & luz dos conhecimentos f compreensio atuais, ou entio suprimem por completo uma interpreta- {gio e descrevem os eventos passados estriamente em termos do pensa- Trento daquela época. Parece-me que nenhuma dessas aproximagoes ¢ inteiramente satisfat6ria. Um procedimento mais adequado seria combinar os melhores as- peotos das duas abordagens. Ele procuraria antes de tudo reconstruir 0 Jneio intelectual do perfodo, tio fidedignamente quanto possivel. Mas ndo seria satisfat6rio tratar as controvérsias passadas estritamente em termos da informago e opacas como o eram quando surgiram, Em vez disso, o conhecimento moderno deverd ser usado sempre que ele ajudar & entender as dificuldades do passado, Somente uma aproximagio desse tipo nos habilita a determinar as razSes das controvérsias e 0 fracasso em resolvé-las. O que é uma dificuldade seméntica (por exemplo, 0 uso da mesma palavra em sentidos diferentes), ou uma discordncia conceitual (como pensamento essencialista versus pensamento de populagio), ou tum erro primario (como a confusdo entre causas tiltimas ¢ causas proxi- ‘mas)? Um estudo das controvérsias passadas é particularmente esclarece- dor, se 08 argumentos € as objegdes forem analisados em termos do nosso conhecimento atual, Os problemas seménticos so particularmente tediosos pelo fato de serem tio amitide desconhecidos. Os gregos, por exemplo, tinham um vocabulério técnico muito limitado, ¢ muitas vezes usavam 0 mesmo termo para coisas e conceitos bem diferentes. Tanto Plato como Arist6- teles usaram o termo eidos (e Aristételes, pelo menos, usou-o em diver- 26 ‘ODESENVOLVIMENTO DO PENSAMENTO BIOLOGICO. sos sentidos), mas o sentido principal do termo é totalmente diferente nos dois autores. Plato era um essencialista, enquanto Aristételes 6 era ape- nas num sentido bem limitado (Balme, 1980). Aristételes usou o termo genos ocasionalmente, como um substantivo coletivo (correspondendo a0 genero dos taxionomistas), mas muito mais freqlientemente no sentido de espécie. Quando Aristételes foi redescoberto, na alta Idade Média, ¢ traduzido para o latim e outras Ifnguas européias ocidentais, os seus ter- mos foram traduzidos em termos “equivalentes”, dispontveis nos dicio- nérios medievais. Essas tradugdes equivocadas tiveram uma infeliz influéncia no nosso entendimento do pensamento aristotélico. Alguns autores modems tiveram a coragem de usar termos modernos para re- velar 0 seu pensamento, termos que Aristételes teria usado de boa mente se fosse vivo hoje. Lembro o uso da expresso “programa genético”, de Delbriick, para esclarecer'a intengao de Aristételes quando usa a palavra eidos na descrigio do desenvolvimento individual. Da mesma forma, poder-se-ia utilizar “teleonomia”-(em vez. de “teleologia”), quando Aris- (Gteles discute a diregdo orientada, controlada por uma eidos (programa). ‘Nao vai nisso anacronismo, mas € simplesmente uma forma de tomar mais claro 0 que um autor antigo pensava, mediante o uso de uma termi- nologia sem ambigtiidade para um leitor moderno. Todavia, seria totalmente impréprio usar interpretagées modemas para jufzos de valor, Lamarck, por exemplo, nio estava assim tio errado como parece aos familiarizados com o selecionismo ¢ com a genética mendeliana, quando relacionava em termos dos fatos por ele conhecidos € das idéias dominantes na sua época. A expressio “interpretago liberal da hist6ria” foi introduzida pelo historiador Herbert Butterfield (1931), para caracterizar 0 habito de alguns historiadores constitucionais ingleses de encararem 0 seu objeto como uma ampliaciia progressiva dos direitos humanos, onde bons liberais “progressistas” esto sempre em luta contra conservadores “retrégrados”. Butterfield, mais tarde (1957), aplicou o termo whiggish” (liberal) a essa espécie de hist6ria da ciéncia, em que todo cientista ¢ julgado peto alcance da sua contribuigao para 0 estabele- cimento da nossa interpretagdo corrente da ciéncia. Em vez de avaliar um cientista em termos do ambiente intelectual em que ele atuou, passa-se a avalié-lo estritamente em termos dos conceitos atuais. Nessa abordagem ignora-se completamente 0 contexto dos problemas ¢ conceitos em que * Ver nota do tevisortécnico & pig. 15, (COMO ESCREVER 4 HISTORIA DA BIOLOGIA 2 se movia o cientista antigo, A hist6ria da biologia est cheia dessas inter- pretagGes livres, distorcidas, whig* Sempre que hé uma controvérsia cientifica, os pontos de vista da parte perdedora so mais tarde, quase sempre, deturpados pelos vitorio- sos. $40 exemplos disso o tratamento de Buffon pelgs lineanos, de La- marck pelos cuvierianos, de Lineu pelos darwinianos, de biometristas pelos mendelianos, assim por diante. © historiador de biologia deve esforgar-se por apresentar um relato melhor balanceado. Muitas teorias, hoje rejeitadas, como a da hereditariedade dos caracteres adquiridos, esposada por Lamarck, pareciam formalmente to consistentes com os fatos que os autores nao softiam erfticas por haverem adotado essas teo- rias dominantes, embora hé tempo se tenham revelado erradas. Quase sempre, aqueles que sustentaram uma teoria errénea tinham aparente- mente razbes validas para assim proceder, Eles tentavam enfatizar alguma coisa que foi negligenciada pelos seus oponentes. Os pré-formacionistas, por exemplo, empenharam-se em acentuar algo que mais tarde foi ressus- citado, como 0 programa genético. Os biometristas defenderam os con- ceitos darwinianos da evolugio gradual, contra 0 saltacionismo dos mendelianos. Em ambos os casos, idéias corretas foram misturadas com idéias errOneas, e juntas pereceram com os erros. No meu caso, pretendo dar especial atengdo aos menosprezados (sejam eles pessoas ou teorias), porque, pelo passado, eles foram muitas vezes tratados deslealmente, ou 20 menos de modo inadequado, © caminho da ciéncia nunca é linear. Sempre hé teorias que rivali- zam entre si, e grande parte da atengio dedicada a um periodo poderd ser dirigida a questdes periféricas, que eventualmente acabam por se revela- rem estéreis. Tais desdobramentos, porém, muitas vezes iluminam mé Ihor o zeitgeist de uma época do que os avangos diretos da ciéncia. Infelizmente, a falta de espago impede um tratamento adequado de mui- tos desses desenvolvimentos. Nenhuma hist6ria pode permitir-se tratar de cada causa perdida e de cada desvio. Contudo, existem excegdes. Algu- ‘mas falhas e erros do passado revelam, de modo muito adequado, aspec- tos do pensamento contempordneo, que, caso contrério, perderfamos de vista. O quinarianismo de Macleay e de Swainson, por exemplo, que foi totalmente eclipsado pelo Origem das espécies, representou um esforgo sincero de reconciliar a diversidade aparentemente castica da natureza com a entdo convicgdo dominante de que deveria existir alguma ordem “mais elevada” na natureza. Ele também revela a permanéncia ainda po- 28 O DESENVOLVIMENTO DO PENSAMENTO BIOLGICO derosa do velho mito que toda ordem no mundo é em viltima insténcia numérica, Por mais equivocada e efémera que tenha sido a teotia do qui narianismo, ela contribui, sem embargo, para 0 nosso entendimento do pensamento da sua época. O mesmo pode ser dito de quase toda teoria ou escola do passado, que ndo so mais consideradas validas. Os interesses de um historiador, necessariamente, influenciam a sua deciséo quanto a quais questdes merecem ser tratadas com maior detalhe, e quais outras apenas sumariamente. Inclino-me a concotdar com Schuster, que disse no The progress of Physics (1911) Prefiro set francamente subjetivo, ¢ advirto-lhes de antemdo que 0 meu relato seri fragmentério, e em grande medida evocative daqueles as- ectos que se coadunaram com as minhas préprias e pessoais convie- ges. Historiadores versus cientistas Dois grupos de eruditos, com pontos de vista e formagio inteira- mente diferentes — historiadores e cientistas -, tém reclamado para si 0 direito de uma historia da ciéncia. As suas respectivas contribuigdes sto a seu modo diferentes, ditadas pela diversidade dos seus interesses e com- peténcia. Um cientista tende a selecionar, para anilise e discussio, pro- bblemas bastante diferentes do que seria os de um historiador ou socidlogo. Por exemplo, em relatos recentes sobre a evolugio, produzi- dos por virios evolucionistas, H. Spencer quase no recebeu nenhuma atengio, HA boas razbes para essa negligencia. Spencer niio apenas era vago e confuso, mas as idéias que ele defendia cram as de outros, ¢ jé obsoletas quando ele as assumiu. Que as idéias copiadas de Spencer eram bem populares e influentes, em relagiio ao piiblico em geral, isso é sem divida uma verdade, mas nao compete ao historiador cientista invadir 0 dominio do sociélogo. Falta usualmente aos biologistas a competéncia para tratar de hist6ria social. Por outro lado, seria perfeitamente ridiculo pretender que um historiador social apresentasse uma andlise competente de conquistas cientificas. A histéria da ciéncia requet inspiragdo, infor- mago e apoio metodolégico, tanto da cincia como da histéria, e, em contrapartida, contribui com as suas descobertas para aibos os campos. Existem razées vélidas para 0 interesse, tanto de historiadores como de cientistas, na hist6ria da ciéncia. Os gregos nio possufam uma ciéncia, ‘COMO ESCREVER A HISTORIA DA BIOLOGIA 29 como a definimos hoje, e aquela que eles manipulavam era praticada por filésofos e por fisicos. Depois da Idade Média, houve uma continua ten- déncia & emancipagdo da ciéncia em relagGo a filosofia e ao zeitgeist” geral. No perfodo da Renascenga, e durante 0 século XVIII, as idéias cientfficas eram fortemente influenciadas pela atitude dos cientistas em face da religido e da filosofia. Um cartesiano, um cristao ortodoxo, ou um defsta teriam inevitavelmente conceitos diversos sobre cosmologia, gera- Fo, e demais aspectos relativos a interpretagao da vida, da matéria, e das origens. Nada assinalou de modo mais definitivo a emancipagdo da cién- cia em face da religifo e da filosofia do que a revolugio darwiniana, Desde aquele tempo, tomou-se praticamente impossivel dizer, com base em publicagGes cientfficas de um autor, se ele era um cristio devoto ou um ateu, Exceto em relagdo a alguns fundamentalistas, isso é verdadeiro ‘mesmo para os escritos dos biologistas sobre o assunto da evolugio. Essa tendéncia & emancipagdo da ciéncia teve um considerdvel efeito sobre a historiografia da ciéncia. Quanto mais longe retrogredirmos no (empo, tanto menos importante se toma o acervo dos conhecimentos cientfficos do perfodo, e tanto mais importante a atmosfera intelectual dominante. No que tange 2 biologia, s6 apés mais ou menos o ano de 1740 os problemas cientfficos comegam a afastar-se das controvérsias intelectuais gerais da época, E indiscutfvel que os historiadores so parti- cularmente bem qualificados para tratar do perfodo mais antigo da hist6- ria da biologia. De qualquer maneira, a hist6ria de disciplinas biolégicas especiais dos séculos XIX ¢ XX foi inteiramente dominada por cientistas, até a sua profissionalizagio em época bem recente. Isso fica bem ilustra- do pelas histrias recentes de dreas de biologia especiais, como as de Dunn, Stubbe e Sturtevant, em genética; de Fruton, Edsall e de Leicester, em bioguimica; de Needham e de Oppenheimer, em embriologia; de Baker e Hughes, em citologia; de Stresemann, em ornitologia; isto s6 para mencionar uns poucos nomes na vasta literatura. Elas demonstram a qualificagao dos cientistas para a pesquisa histérica O vies dos ciemtistas fisicos Muitas histérias gerais da “ciéncia” foram escritas por historiadores da fisica, os quais nunca superaram inteiramente a atitude paroquial de nota do revisor téenico & pig. 15. 30 ODESENVOLVIMENTO DO PENSAMENTO BIOLOGICO considerar que qualquer coisa que nio for aplicével em fisica ndo & cién- cia, Cientistasfisicos tendem a avaliar os bi6logos numa escala de valo. res que depende da medida em que biélogo uilizou “leis”, mensuragdes, experimentos, ¢ outros aspectos da pesquisa ciemtifica, allamente consi, derados nas cigncias fisicas. Como resultado, os julgamentos sobre 2s reas de biologia emitidos por certos historiadores das ciéncias fisicas encontréveis nessa literatura, so tio burlescos que no se pode sento sorrir. Por exemplo, sabendo que Darwin desenvolveu a sua historia da evolugdo baseando-se largamente nas suas observagdes como naturalista 86 podemos ficar estupefatos diante desta afirmaglo feita por um bem conhecido historiador de Newton: © naturalista € certamente um observador treinado, mas as suas observa 0es diferem das de um guarda florestal apenas em grat, ndo em espé- cie; a sua tinica qualificagio esotérica consiste na familiaridade com nomenclatura sistemética, Esse tipo de pensamento fisicalista distorcido 6 inteiramente deslocado no estudo da biclogia evolutiva, como veremos no Capitulo 2. A forma- so de teorias e a sua histéria na biologia evolutiva e sistemética requerem uma aproximagdo radicalmente diferente, aproximagio essa que de alguma forma mais se assemelha & adotada por um historiador da arqueologia, ou por um intérprete da moderna histéria do mundo. Outros viéses ‘Nio apenas 0 fisico, mas qualquer especialista, com toda naturalida- de, considera que 0 seu dominio particular de pesquisa 6 0 mais interes sante de todos, e 0 seu método 0 mais produtivo. Em conseqiiéncia disso, ‘muitas vezes instaura-se entre os campos uma espécie de chauvinismo invejoso, e mesmo no interior de um campo como a biologia. £ chauvi nismo, por exemplo, quando Hartmann (1947) dedicou 98% da sua grande Biologia geral & biologia fisiolégica, e apenas 2% a biologia evolutiva, E chauvinismo quando certos historiadores atribuem a ocorréncia da sintese evolutiva inteiramente as descobertas da genética, ignorando completamente a contribuigao feita pela sistemética, pela paleontologia e ‘outros ramos da biologia evolutiva (Mayr e Provine, 1980). Existe as vezes também um chauvinismo nacional dentro de um campo que tende a exagerar, ou entéo adulterar, a importancia de cien- (COMO ESCREVER A HISTORIA DA BIOLOGIA at tistas do pafs do proprio escritor, ¢ minimizar ou ignorar cientistas de ooutras nagdes. Ndo se trata necessariamente de um patriotismo deslocado, mas € muitas vezes o resultado de inabilidade na leitura das linguas em que contribuigdes importantes de cientistas de outros pafses foram publi- cadas. No meu préprio trabalho, estou plenamente consciente da proba~ bilidade da introdugao de distorgdes, devidas 4 minha inabilidade em ler Anguas eslavas ou japonés, Armadithas e dificuldades ‘A maior dificuldade no esforgo de identificar 0 vasto mémero de problemas da biologia e de reconstituir o desenvolvimento da sua estru- tura conceitual reside na quantidade imensa de material a ser estudado. Este consiste, em principio, no inteiro acervo dos conhecimentos em bio- logia, incluindo todos os livros e artigos de periddicos publicados por bidlogos, as suas cartas e biografias, informagdo sobre as instituigbes a que pertenceram, a hist6ria social contemporinea, e muito mais, Nem o mais consciencioso historiador seria capaz de cobrir mesmo s6 um déci- mo de um por cem de todo esse material. A situagdo ¢ agravada pela aceleragdo exponencial da proporgio de produgdes cientificas atuais. Num perfodo de anos espantosamente curto, publicam-se hoje em dia mais trabathos (e paginas!) do que em toda a precedente histéria da cién- cia. Os préprios especialistas se queixam que ja no conseguem dar conta da avalanche de publicagdes de pesquisas no seu campo espectfico. Curio- samente, 0 mesmo se aplica 3 tarefa de escrever historia. H4 hoje, nos Estados Unidos, talvez cinco vezes mais historiadores de biologia do que hf apenas vinte e cinco anos. Mesmo tendo buscado corajosamente ler as publicagoes mais im- portantes, sei que os especialistas encontrario numerosas omissées na minha abordagem, e presumivelmente ndo raros erros. O plano primeiro da maior parte do manuscrito foi assentado entre 1970 e 1976, ¢ a litera- tura mais recente nem sempre foi incorporada tio adequadamente como seria desejvel. A minha tarefa teria sido totalmente imposstvel, nil fos sem a riqueza e a exceléncia da moderna literatura secundéria, A literatu- ra mais antiga era muitas vezes bastante superficial, onde os autores, uns «aps 0s outros, copiavam os mesmos mitos e erros, como se descobre a0 consultar as publicagdes originais. Obviamente num volume como o Presente, que poder conter mais de vinte mil t6picos de informagao in- 32 (ODESENVOLVIMENTO DO PENSAMENTO BIOLOGICO dividual, 6 impossivel verificar cada passo na fonte original. Consideran- do que 0 meu trabalho ndo é uma histéria lexicogrética, um erro factual ocasional nio seria uma fatalidade. O meu objetivo maior tem sido sinte~ tizar uma enorme literatura, com énfase consistente na interpretagio ¢ na anflise das causalidades. A oportunidade ‘Uma critica muitas vezes levantada contra os historiadores da cién- cia, e no sem razio, é que eles se preocupam quase exclusivamente com 1 “pré-hist6ria” da ciéncia, isto 6 com periodos cujos eventos so gran- demente irrelevantes para a ciéncia modema, Para evitar essa censura, procurei trazer a hist6ria para to perto do presente quanto poss{vel a um ndo-especialista. Em alguns casos, por exemplo a,descoberta, nos iltimos cinco a dez anos, de numerosas familias de DNA na biologia molecular, as conseqliéncias conceituais so ainda muito incertas para merecerem consideracao. Nao concordo'coma afirmagio de um historiador recente, no sentido que “o objeto da hist6ria da ciéncia sfo a investigacdo e as disputas que foram encerradas, muito mais do que os resultados presentemente em vigor”. Isto é simplesmente um erro. A maioria das controvérsias cientifi- ‘eas estende-se por perfodos de tempo muito mais longos do que geral- mente se pensa. E mesmo as discuss6es de hoje tm usualmente ra(zes que se langam distantes no tempo. E precisamente o estudo histérico de tais controvérsias que muitas vezes contribui materialmente para 0 escla- recimento conceitual, tomando assim possfvel a solucd0 conclusiva. Analogamente ao campo da hist6ria do mundo, onde a “hist6ria corrente” € reconhecida como um espago legitimo, h4 uma “hist6ria corrente” na histéria da ciéncia. Nada mais equivocado do que admiti que a hist6ria da ciéncia trata apenas de tentativas abortadas. Ao contrério, pode-se chegar ao ponto de considerar pré-hist6ria os relatos de resultados hé muito tempo fracassados, dos séculos remotos e de milénios, Mantém-se o smbolo em inglés ~ DNA ~ para o dcido desoxiribonucléico (ADN, em pportugués). (N. do RT.) ‘COMO ESCREVER A HISTORIA DA BIOLOGIA 33 Simplificagao Um historiador que venha a cobrir uma érea to vasta cbmo se pro- peo presente volume € obrigado a apresentar um relato muito enxuto, O leitor deve estar prevenido de que a aparente simplicidade de muitos dos desdobramentos é bem decepcionante. Assim, devem ser consultados relatos detalhados, que se concentram em desenvolvimentos especiais ou em perfodos curtos, se se quiser apreciar 0 pleno sabor das muitas cor- rentes cruzadas, falsos pontos de partida, e hipSteses malsucedidas, que prevaleceram num dado perfodo. Os desenvolvimentos, virtualmente, nunca foram tio lineares € Iégicos como parecem ser mum relato retros- pectivo simplificado. £ particularmente dificil enfatizar adequadamente 0 poder muitas vezes paralisante de conceitos arraigados, quando confron- tados com novas descobertas, ou novas concepe6es. Comete-se também facilmente 0 erro de rotular certos autores como vitalistas, pré-formacionistas, teleologistas, saltacionistas ou neodarwinis- nos, como se essas eliquetas se referissem a tipos homogneos. Nos dias de hoje, tais categorias consistem em individuos em que nem dois dentre eles t8m exatamente os mesmos pontos de vista. Isso é particularmente verdadeiro para os epitetos de “lamarckianos” e “neolamarckianos”, al- guns dos quais no tiveram nada em comum entre si, a nio ser a crenga ‘numa heranga dos caracteres adquiridos, Assungdes tdcitas Uma ulterior dificuldade para o historiador 6 apresentada pelo des- conhecimento de muitos cientistas sobre 0 seu préprio arcabougo de idéi- as, Raramente eles sabem articular ~ quando chegam a cogitar disso ~ quais verdades ou conceitos aceitam sem discussiio, e quais outros sto por eles totalmente rejeitados. Em muitos casos, 0 historiador $6 pode estabelecer uma ordem mediante a reconstrugo completa do meio inte- lectual da época. E, ainda, um entendimento dessas assungdes técitas pode ser necessério para responder a questdes anteriormente enigméticas. Em ciéncia, tratamos sempre com prioridades e sistemas de valor; eles determinam a diregao de novas pesquisas, quando completada uma parte prévia da investigacdo; eles determinam quais teorias 0 pesquisador esta mais ansioso por confirmar ou refutar; determinam também, sim ou nao, se ele considera exaurida uma érea de pesquisa. E mesmo um estudo dos 34 ‘ODESENVOLVIMENTO DO FENSAMENTO BIOLOGICO fatores que determinam tais prioridades, ou sistemas de valor, tem sido em grande parte negligenciado até agora. O historiador deve esforgar-se Por descobrir 0 que se passava na cabeca do agente quando deu uma nova interpretago a um conjunto de fatos longamente aceitos. E talvez legitimo afirmar que 0s eventos verdadeiramente cruciais na histéria da cigncia sempre tiveram lugar na mente de um cientista. Deve-se, por assim dizer, tentar pensar como o cientista pensou, quando completava 0 trabalho que estamos querendo analisar. Muitos cientistas, em suas publicagdes, tendem a concentrar-se em fatos novos, ou melhor, em novas descobertas, e particularmente em algo que seja espetacular, Ao mesmo tempo, deixam geralmente de referir importantes e progressivas mudangas de conceitos, ou de énfases. Podem mesmo chegar a omitir 0 reconhecimento de tais mudangas, ou conside- ré-las negligencidveis, embora bem conscientes das mesmas. O historia dor moderno, ao tentar reconstruir tais mudangas nos séculos passados, no pode evitar a projegio na hist6ria dos interesses e da escala de valo- res do presente, Tal perigo de interpretago s6 pode ser minimizado, se 0 historiador estiver plenamente consciente do que esté fazendo. Por que estudar a histéria da biologia? O meu particular interesse pela hist6ria da ciéncia foi suscitado pela Jeitura de A grande cadeia do ser, de A. O. Lovejoy, onde é feita a tenta- tiva — eminentemente bem-sucedida — de tragar a histéria da vida, por assim dizer, a partir de uma dnica idéia (ou um complexo coerente de idéias), desde os antigos até o fim do século XVIII. Aprendi mais desse inico volume do que de quase tudo o mais que tenho lido, Outros que tentaram uma aproximago semelhante foram Ernst Cassirer © Alexander Koyré, Eles proporcionaram padrdes inteiramente novos para a historio- grafia cientifica, No caso da histéria da ciéncia, os pontos focais so os problemas, em vez de idéias, mas a aproximagiio do historiador da ciéncia nio difere muito da do historiador de idéias, como Levejoy. E & maneira desse au- tor, ele procura identificar 0 problema no seu comego, e seguir a sua his- t6ria e ramificagdes desde aquele comego, para chegar ou A sua solugio u ao tempo atual, E 0 objetivo principal deste volume descobrir, em relagio a cada ramo da biologia e a cada perfodo, quais foram os problemas manifesta- ‘COMO ESCREVER A HISTORIA DA BIOLOGIA as dos ¢ quais foram as propostas para a sua solugio; a natureza dos con- ceitos dominantes, as suas mudangas, e as causas da sua modificagio e do desenvolvimento de novos conceitos; e, finalmente, que efeito tiveram conceitos prevalentes, ou recentemente surgidos, sobre o retardamento ou aceleragdo da solugio dos problemas principais do perfodo. O melhor dessa aproximagio & que ela permite retratar a hist6via completa de cada problema da biologia. A preocupacdo com esta espécie de histéria conceitual da cigncia é por vezes subestimada, como um hobby de cientistas aposentados. Tal atitude ignora as miltiplas contribuigdes devidas a esse ramo do saber. A hist6ria da cincia, como muitas vezes foi afirmado, é particularmente adequada como uma primeira introdugto a cigncia. Ela ajuda a cobrir a distancia entre “crengas gerais” e as atuais descobertas cientificas, uma vez que mostra de que maneira e por quais razes a ciéncia avangou além das crengas do folclore. $6 para ilustrar isso, para um nico ramo da bio- logia, na hist6ria da genética, pode ser mostrado por quais descobertas argumentos crengas errOneas, e largamente admitidas, foram refutadas, como por exemplo a existéncia de uma heranga dos caracteres adquiri- dos; que as matérias genéticas dos pais ‘se misturam”; que o “sangue” de uma fémea fica contaminado, a ponto de no mais poder produzir uma cria “pura”, uma vez que foi inseminada, mesmo por uma s6 vez; que um. ‘inico Svulo € simultaneamente fertilizado pelo esperma de diversos ma- chos; ou que acidentes de uma mfe grévida podem conduzir & produgao de caracteres hereditérios. Tais crengas errOneas, derivadas do folclore, mitos, documentos religiosos, ou de antigas filosofias, foram originalmente sustentadas em muitos campos da biologia. A demonstragio histrica da substituigdio gradual dessas crengas pré-cientificas, ou primitivamente cientificas, por teorias cientfficas e conceitos mais bem fundamentados ajuda grandemente a explicar a estrutura atual dus teorias biolégicas. O leigo muitas vezes excusa a sua ignorfincia da ciéncia, alegando que acha a ciéncia muito técnica, ou muito matemética, Seja-me permiti- do assegurar ao leitor prospectivo deste volume que ele dificilmente en- contraré alguma matemética nestas pAginas, e que este livro nd é técnico a ponto de um leigo ter dificuldade com a exposigao. A vantagem maior da histéria das idéias na biologia consiste em que se pode estudé-la sem um conhecimento fundamental do nome de cada espécie de animal ou de planta, ou dos maiores grupos taxiondmicos e sua classificagao. Todavia, tum estudante da hist6ria das idéias deve adquitir algum conhecimento sobre conceitos dominantes em biologia, como heranga, programa, po- 36 (ODESENVOLVIMENTO DO PENSAMENTO BIOLOGICO pulagdo, variago, emergéncia, ou organfsmico. O objeto do Capitulo 2 6 proporcionar uma introdugao 40 mundo dos conceitos maiores da biolo- gia. Muitos desses conceitos (e os termos que os acompanham) também J4 foram incorporados 20s varios ramos das humanidades, e tornou-se simplesmente uma questo de formagio estar familiarizado com eles. Todos esses conceitos sio indispensaveis para uma compreensio do ho- mem e do mundo em que vive. Qualquer esforgo para elucidar a origem e a natureza do homem precisa basear-se no conhecimento seguro dos con- ceitos ¢ teorias da biologia. Finalmente, sera de grande valia familiarizar-se com um pequeno repertério de termos técnicos, como gameta, zigoto, espécie, gene, cromossomo, e assim por diante, termos esses que si0 definidos no Glossério. Entretanto, 0 inteiro yocabuldrio desses termos técnicos € muito menor do que o que um estudante de qualquer érea de humanidades deve aprender, seja em miisica, literatura, ou hist6ria con- tempordnea. Nao € apenas o leigo que teré o seu horizonte ampliado grandemente pelo estudo da histéria das idéias em biologia. Avangos em muitos cam- os da biologia so tio acelerados, no tempo presente, que os proprios ‘especialistas jé nfio conseguem se atualizar com os desenvolvimentos em reas da biologia que néo a sua propria. A visio abrangente da biologia e dos seus conceitos dominantes, contida no presente volume, ajudaré a preencher algumas dessas lacunas. O meu apanhado também se dirige Aqueles que ingressaram na biologia em anos recentes, provindos de fora, isto 6, da quimica, fisica, matemética, ou outras dreas afins. A sofistica- fio técnica desses “neobiologistas”, infelizmente, s6 de raro vem acom- panhada de uma equivalente sofisticagdo conceitual. Com certeza, aqueles que conhecem organismos na natureza e entendem os caminhos da evolugio ficam muitas vezes espantados com a ingenuidade de algu- mas generalizagées em certos escritos de biologia molecular, Admite-se que ndo hé maneira répida e facil de compensar essa deficiéncia. Como Conant, estou persuadido de que o estudo da histéria de um campo € a melhor forma de adquirir um conhecimento dos seus conceitos. Somente percorrendo 0 drduo caminho da elaboragao desses conceitos — capaci- tando-se dos antigos postulados falsos, que tiveram que ser refutados um. um, em outras palavras, conhecendo todos os erros do pasado — pode-se ter a esperanca de alcangar realmente um conhecimento completo e sadio. Em ciéncia ndo se aprende apenas com os erros préprios, mas também com a histéria dos erros dos outros. 2. O LUGAR DA BIOLOGIA NAS CIENCIAS E SUA ESTRUTURA CONCEITUAL E totalmente impossfvel tentar entender o desenvolvimento de qual- quer conceito particular, ou problema, na hist6ria da biologia, sem pre- viamente ter a resposta para as seguintes questées: O que é ciéncia? Qual € o lugar da biologia entre as ciéncias? E qual é a estrutura conceitual da biologia? Respostas inteiramente equivocadas foram dadas a essas trés perguntas, particularmente por fil6sofos e outros nfo-biologistas, e isso impediu em larga medida o entendimento do avango do pensamento bio- l6gico. Tentar, entio, dar uma resposta correta a essas trés questées bési- cas 6 a primeira tarefa da minha andlise. Ela proporcionaré uma base segura para 0 estudo da hist6ria de conceitos especiticos. Anatureza da ciéncia Desde os tempos mais antigos, o homem indagou sobre a origem ¢ 0 sentido do mundo, ¢ freqilentemente sobre o seu objetivo. As respostas, tentativas para essas questdes, podem ser encontradas nos mitos, caracte- risticos de todas as culturas, mesmo as mais primitivas. Ele avangou além esses comecos simples, em duas ditegdes bem diferentes. Em uma delas, as suas idéias formalizaram-se em religides, preconizando um conjunto de dogmas, usualmente baseados na revelagéo. O mundo ocidental, por exemplo, no final da Idade Média, era completamente dominado por uma confianga implicita nos ensinamentos da Biblia, e, além disso, por ‘uma crenga universal no sobrenatural. A filosofia e, mais tarde, a ciéncia constituem outro caminho para abordar os mistérios do mundo, embora a ciéncia nao estivesse estrita- mente separada da religido, na sua hist6ria primitiva. A ciéncia encara esses mistérios com perguntas, com diividas, com curiosidade, e com tentativas de explicagio, portanto, com uma atitude totalmente diferente da religio. Os fil6sofos pré-socréticos (jOnios) iniciaram essa aproxima- ‘go de modo diferente, buscando explicagGes “naturais”, nos termos das forgas observaveis da natureza, como 0 fogo, a 4gua e o ar (veja 0 Capi tulo 3). Esse esforgo para entender a causalidade dos fendmenos naturais, foi o inicio da ciéncia. Durante muitos séculos, depois da queda de 38 ‘O DESENVOLVIMENTO DO PENSAMENTO BIOLOGICO Roma, essa tradigfo foi virtualmente esquecida; mas foi ressuscitada na Alta Idade Média, e durante a revolugao cientifica. Aumentou a crenga de que a verdade divina no nos era revelada apenas por meio da Escritura, ‘mas também pela criagdo de Deus. E bem conhecida a declaragio de Galileu sobre essa idéia: “Eu penso que, na discusséo de problemas naturais, no devemos comesar com a autoridade dos passos da Escritura, mas sim com experimentos sensi © demonstragdes necessérias. Pois, do Verbo Divino procedem igual- mente a sagrada Escritura e a Natureza”, E continuava dizendo que “Deus se nos revela igualmente de modo admiravel, tanto nas ages da Natureza, como nas sagradas sentencas da Escritura”. Ele pensava que ‘um deus que governa 0 mundo com o auxilio de leis etemas inspira, fi- nalmente, tanta confianga e £6 como um que intervém constantemente no curso dos eventos. Foi essa forma de pensar que ocasionou 0 nascimento da ciéncia, como agora podemos entender. A ciéncia de Galileu nao era uma alternativa para a religido, mas parte inseparivel dela. Da mesma forma, muitos grandes filésofos, do século XVII ao século XIX — por exemplo, Kant ~ inclufam Deus nos seus esquemas explicativos. A assim chamada teologia natural era, a despeito do seu nome, tanto ciéneia quanto teologia. © conflito entre ciéncia e teologia desenvolveu-se sé mais tarde, quando a ciéncia explicava mais e mais processos e fendme- nos da natureza por “leis naturais”, fendmenos e processos esses que anteriormente eram considerados inexplicéveis, a no ser pela interven- gio do Criador, ou por leis especiais ordenadas por Ele." ‘Uma diferenga fundamental entre religido e ciéncia reside, entio, no fato de que a religido usualmente consiste em um conjunto de dogmas, dogmas muitas vezes “relevados”, diante dos quais néo hé altemativa, nem muita flexibilidade de interpretagio. Na cigncia, a0 contrério, as explicagées alternativas sto virtualmente um prémio, ¢ com facilidade uma teoria € substitu(da por outra. A descoberta de um esquema alterna- tivo de explicagio € muitas vezes fonte de grande exultagiio. O valor de ‘uma idéia cientifica s6 em pequena escala é julgado por critérios extefn- secos & ciéncia, porque, no seu conjunto, é arbitrado inteiramente por sua eficécia na explicagao e, as vezes, na previsto. Curiosamente, os cientistas tém sido bastante desarticulados quanto a.uma definigo abrangente da ciéncia, No auge do empirismo e do indu- cionismo, o objetivo da ciéncia era o mais das vezes descrito como sendo 4 acumulago de novos conhecimentos. Em contraste, quando se Iéem os escritos de fil6sofos da ciéncia, tem-se a impressdo que para eles a cién- ‘LUGAR DA BIOLOGIA NAS CIENCIAS ESUA ESTRUTURA CONCEITUAL 39 cia é uma metodologia. Conquanto ninguém queira por em dtivida a in- dispensabilidade do método, a preocupagdo quase exclusiva de alguns fildsofos da ciéncia com o mesmo desviou a atengio do objetivo mais fundamental da cigncia, que é de aumentar 0 nosso auto-entendimento e © do mundo em que vivemos. ’ A cigncia tem diversos objetivos. Ayala (1968) descreveu-os da se- guinte forma: (1) A ciéncia procura organizar 0 conhecimento de forma sistemética, esforgando-se por descobrir padrées de afinidade entre fe- nOmenos e processos. (2) A ciéncia empenha-se no fornecimento de ex- plicagdes para a ocorréncia dos eventos. (3) A ciéncia propde hipSteses explicativas, que devem ser testadas, isto 6, acess{veis & possibilidade de rejeigHo, Mais amplamente, a cincia procura juntar a vasta diversidade dos fendmenos ¢ processos da natureza, sob 0 menor ntimero de princfpios explicativos, Descoberta de fatos novos ou desenvolvimento de novos conceitos? As descobertas sio o simbolo da ciéncia, na idéia do pilblico. A des- coberta de um fato novo é em geral facilmente divulgavel, e por isso os de comunicagéo também enxergam a ciéncia em termos de novas descobertas. Quando Alfred Nobel elaborou as condigdes para os pré- mios nobéis, ele pensava inteiramente em termos de novas descobertas, particularmente as que seriam Gteis para a humanidade. Todavia, pensar na cincia como mera acumulagio de fatos € muito equivocado. Na cién- cia biolégica, e isso talvez seja mais verdadeiro para a biologia evolutiva do que para a biologia funcional, muitos dos maiores progressos foram devidos & introdugdo de novos conceitas, on A melharia dos conceitos existentes, A nossa compreensio do mundo & alcangada mais efetiva- ‘mente por aperfeigoamento de conceitos do que pela descoberta de fatos novos, muito embora os dois aspectos nao sejam mutuamente exclusivos. Seja-me permitido ilustrar isso com um ou dois exemplos. As pro- porgées de 3:1 foram descobertas por criadores de plantas muito antes de Mendel. O préprio Darwin obteve um mémero de tais relagGes, na sua atividade de viveirista, Todavia, tudo isso era sem sentido, até que Men- del introduziu os conceitos apropriados, € até que Weismann aportou conceitos adicionais, fazendo com que a segregagio mendeliana adqui- risse mais sentido, Da mesma forma, os fendmenos que hoje so explica- dos pela selegdo natural foram largamente conhecidos muito antes de 40 (0 DESENVOLVIMENTO DO PENSAMENTO BIOLOGICO Darwin, mas nao faziam sentido algum, até que fosse introduzido 0 con- ceito de populagses, consistentes de individuos tinicos. A partir desse momento, a selegéo natural adquiriu grande poder explicativo. Os con- ceitos de pensamento de populagio © variagdo geogréfica, juntamente ‘com 0 de isolamento, foram, em contrapartida, os pré-requisitos para o desenvolvimento da teoria da especiagdo geogréfica. O fato que a conse- cuglo de isolamento reprodutivo é um componente crucial no processo de especiagdo no foi plenamente entendido, até que fosse esclarecido 0 conceito dos mecanismos da isolago. O verdadeiro papel desses meca- rnismos nio foi percebido enquanto se introduziam barreiras geogréficas nos mecanismos de isolamento, como ainda era feito por Dobzhansky (1937). . Pode-se tomar quase todo tipo de avango, seja na biologia evolutiva ou na sistemitica, ¢ mostrar que ele nao dependeu tanto das descobertas quanto mais da introdugSo de conceitos melhorados. Os historiadores da ciéncia sabiam disso ha muito tempo, mas tal fato, infelizmente, € muito pouco conhecido entre os nio-cientistas. Por certo, as descobertas so um componente essencial do avango cientifico, e alguns impasses atuais na biologia, tais como o problema da origem da vida, ¢ da organizagio do sistema nervoso central, devem-se antes de tudo ao desconhecimento de certos fatos bisicos. Mas nem por isso a contribuigao dada por conceitos novos, ou pela transformagdo mais ov menos radical de conceitos nati- 208, deixa de Ser igualmente e muitas vezes mais importante que os fat e suas descobertas. Na biologia evolutiva, conceitos como evolugai descendéncia comum, especiago geogréfica, mecanismos de isolamento, ou selegio natural conduziram a uma reorientagio drastica numa érea da biologia, anteriormente confusa, bem como a uma nova formagio te6rica e a incontéveis novas investigag6es. Nao estio longe da verdade aqueles que insistem em que 0 progresso da ciéncia consiste principalmente no progresso dos conceitos cientificos. ‘0 uso de conceitos, evidentemente, nao se limita & ciéncia, pois hé conceitos em arte, em hist6ria (e outras dreas de humanidades), em filoso- fia, e certamente em qualquer atividade da mente humana. Que critérios entio, além do uso de conceitos, podem ser usados para a demarcagio entre a cigncia e essas outras atividades humanas? A resposta para esta questio no 6 to simples como se poderia esperar, como se comprova pela pergunta sobre em que medida as ciéncias sociais sto ciéncias Tentativamente, poder-se-ia sugerir que 0 que caracteriza a ciéncia € 0 rigor da sua metodologia, a possibilidade de testar ou falsear as suas con- ‘OLUGAR DA BIOLOGIA NAS CIENCIAS ESUA ESTRUTURA/CONCETTUAL, 41 clusdes, e de estabelecer “paradigmas” (sistemas de teorias) nao- contraditérios. O método, mesmo que ndo seja tudo em ciéncia, € um dos: seus aspectos importantes, particularmente porque ele difere de alguma maneira, conforme as varias disciplinas cientificas. ‘Métodos na ciéncia Os gregos sempre procuraram por explicagdes racionais no mundo dos fenémenos. A escola de Hipécrates, por exemplo, quando buscava determinar a causa de uma doenga, nfo a procurava numa influéncia di- ‘vina, mas a atribufa a causas naturais, como clima ou nutri¢o. Os fil6so- fos jénios, da mesma forma, tentavam encontrar explicagdes racionais para os fendmenos do mundo inanimado € vivo, Arisiteles, incontesta- velmente o pai da metodologia cientifica, fornece, na sua Analitica poste- rior, um registro tio marcante de como se deve tratar uma explicagio cientifica (McKeon, 1947; Foley, 1953; Vogel, 1952) que quase até 0 século XIX, diz Laudan (1977: 13), numa afirmago um tanto extrema, os filésofos da ciéncia ainda trabalhavam amplamente dentro dos limites dos problemas metodol6gicos discutidos por Aristételes e seus comenta- dores”, Os filésofos gregos, Aristételes inclusive, eram antes de tudo racionalistas. Eles pensavam ~ Empédocles € exemplo tipico disso ~ que podiam resolver problemas cientificos simplesmente mediante um agudo raciocinio, envolvendo ordinariamente 0 que hoje chamariamos dedugio. O indubitavel sucesso que aqueles antigos fisicos e filésofos obtiveram fem suas explanagdes conduziu ao exagero de uma aproximagio pura~ mente racional, que alcangou o seu climax com Descartes. Embora ele tenha feito algumas pesquisas empfticas (dissecagdes, por exemplo), iuitas das afirmagdes desse fildsofo soam como se ele acreditasse que tudo podia ser resolvido simplesmente por um pensamento concentrado. (Os subseqiientes ataques ao cartesianismo, por parte dos indutivistas ¢ experimentalistas, deixou bem claro que a questio do método era con- siderada de grande importincia na ciéncia, Isso € to valido hoje em dia quanto o era no século XVII. Mas, infelizmente, muitissimos filésofos continuavam a acreditar, até bem tarde no século XIX, que podiam resol- ver os enigmas do universo simplesmente raciocinando ou filosofando. Quando as suas conclusdes conflitavam com as descobertas da ciéncia, alguns deles ainda insistiam que eles estavam certos € a ciéncia errada. Foi essa atitude que induziu Helmholtz a se queixar amargamente da 2 (O DESENVOLVIMENTO DO PENSAMENTO BIOLOGICO ‘arrogincia dos fil6sofos. A reacdo dos fil6sofos em face da selegio natu- ral, da relatividade e da mecdinica quintica mostra como aquela atitude nfo foi de forma alguma inteiramente superada, Descartes esforgou-se por apresentar apenas aquelas conclusdes © teorias que ofereciam a certeza de uma prova matemitica. Embora sem- pre tenha hayido alguns dissidentes, a convicgéo de que um cientista de- via apresentar provas absolutas das suas descobertas e teorias prevaleceu até os tempos modemnos. Ela dominou no apenas as ciéncias fisicas, onde uma prova da natureza de uma prova matemética € muitas vezes possivel, mas também as ciéncias biolgicas. Mas aqui inferéncias sao Por vezes to conclusivas que podem ser aceitas como prova, como por exemplo a afirmagdo de que o sangue circula, ou de que um particular tipo de lagarta é 0 estégio larval de uma espécie particular de borboleta, O fato de que a exploragao mais minuciosa da face da terra no foi capaz de revelar a presenga de dinossauros pode ser aceito como uma prova de que eles se extinguiram, Na medida em que se lida com fatos, provar que lumha assertiva corresponde ou no a um fato & tarefa possfvel. Em muitos casos, ¢ talvez na maioria das conclusdes dos biologistas, é impossivel fornecer uma prova de tal grau de certeza (Hume, 1738). Como haverfa- mos de “provar” que a selegio natural é o agente diretor que guia a evo- lugio dos organismos? Eventualmente, os fisicos também se deram conta de que nem sem- pre podiam apresentar provas absolutas (Lakatos, 1976), e a nova teoria da cigncia ja nao o exige. Em vez disso, os cientistas diio-se por satisfei- tos ao considerar como verdadeito tanto 0 que aparece como muito pro- vavel, com base em evidéncia dispontvel, como 0 que & consistente com um maior nimero de fatos, ou de fatos mais sugestivos, de preferéncia a hipoteses competitivas. Percebendo a impossibilidade de fomecer provas absolutas para muitas conclusdes cientificas, o filésofo Karl Popper pro- pés que a possibilidade de falsificago seja colocada como teste da sua validade. O 6nus da argumentacao & assim transferido para 0 adversétio de uma teoria cientifica. Segundo essa posigao, é aceita aquela teoria que resistiu com sucesso a0 maior niimero e variedade de tentativas de refuta- $40. A proposigao de Popper permite também delimitar elegantemente a ciéneia da nio-ciéncia: qualquer afirmag3o que, em principio, nao seja suscetivel de ser falsificada esta fora do ambito da ciéncia, Desta forma, a assertiva de que existem homens na nebulosa de Andromeda nio é uma hipétese cientifica, ‘OLUGARDA BIOLOGIA NAS CIENCIAS ESUA ESTRUTURA CONCEITUAL, 43 Contudo, apresentar uma falsificagdo &s vezes to dificil como uma Prova positiva. Por isso, ela ndo é considerada a nica medida para se obter a aceitagdo cientifica. Como o demonstra a histéria da ciéncia, a rejeigdo de teorias cientificas freqiientemente no ocorreu porque elas foram claramente refutadas, mas muito mais porque uma nova teoria alternativa pareceu mais provavel, mais simples, ou mais elegante. Além isso, teorias rejeitadas sto, amitide, tenazmente mantidas por uma mino- tia de seguidores, a despeito de uma série de refutagdes aparentemente definitivas, A nova teoria da cigncia, baseada numa interpretago probabilistica das conclusdes cientificas, admite que é impréprio falar de verdade, ou de prova, como algo absoluto. Isso traz conseqiiéncias maiores em alguns ramos da biologia do que em outros. Todo evolucionista que entrou em discussio com individuos leigos defrontou-se com esta pergunta: “A evo- lugio foi comprovada”, ou “Como pode vocé provar que o homem des- cende dos macacos?” E 0 momento em que ele se obriga a discutir primeiramente a natureza da prova cientifica. cientista profissional, em contraste, sempre foi pragmético. Sem- pre sentiu-se razoavelmente feliz. com uma teoria, até que aparecia uma melhor. Os fatores que se revelavam irredutfveis a uma explicago eam tratados como uma caixa-preta, como o fez Darwin em relagio & fonte da variabilidade genética, um dos componentes principais da sua teoria da selegfio natural. Nao é sem motivo que um cientista se perturbava, e ainda se perturba, pelo fato de que muitas das suas generalizagdes so apenas probabilisticas, e que em muitos, sendio na maioria, dos processos naturais ha um componente conjetural consideravelmente elevado. Aceitando a ‘grande flexibilidade como um dos atributos das teorias cientificas, 0 ci- centista procura testar numerosas teorias, combinar elementos de teorias diferemtes, ¢ as vezes inclusive considerar, simultaneamente, diversas teorias alternativas (miltiplas hipGteses de trabalho), na sua busca de evidéncia, que Ihe permita adotar uma de preferéncia a outras (Chamber- Jin, 1890). Nao se poderia ignorar, contudo, que a abertura de espirito dos Giemtistas nao é sem limitagdes. Quando as teorias so “estranhas” ou alheias ao meio intelectual corrente, elas tendem a ser ignoradas ou silen- ciadas. Como veremos, isso é verdadeiro, por exemplo, quanto aos con- ceitos do emergentismo e das propriedades de niveis especificos das hierarquias. E interessante observar que a aproximagio de Darwin estava em per- feito acordo com a teoria moderna. Ble se dava conta de que nunca “4 (O DESENVOLVIMENTO DO PENSAMENTO BIOLOGICO poderia demonstrar as conclusGes evolucionistas com a certeza de uma prova matemitica, Ao contrério, em quase vinte passagens diferentes do Origin ele se pergunta: “Serd esta particular descoberta ~ ou um modelo de distribuigo, ou uma estrutura anat6mica ~ mais facilmente explicével por criagdo especial ou por oportunismo evolutivo?” Invariavelmente ele insiste em que a segunda altemativa é a mais provavel. Darwin antecipou muitos dos mais importantes prinefpios da atual filosofia da ciéncia. Em- bora os cientistas agora adotem universalmente a interpretagio probabi- listica da verdade cientifica —e mais ainda a completa impossibilidade de fornecet demonstragdes com uma certeza de prova matemética para a maioria das suas conclusbes ~ esse novo ponto de vista ainda nfo é apre- ciado por muitos nio-cientistas, Seria desejével que esse conceito novo de verdade cientéfica integrasse amplamente a introdugio as ciéncias. HA indicagdes, todavia, de que a importancia atribuida a escotha do método foi exagerada. Nesse ponto concordo com Koyré (1965), cuja opiniao era de que “a metodologia abstrata é de uma importancia relati- vamente pequena para 0 desenvolvimento concreto do pensamento cient{- fico”. E Goodfield nfo conseguiu descobrir diferengas de sucessos cientificos e formago de teorias, de reducionistas e anti-reducionistas, entre os fisiologistas. Kuhn outros, da mesma forma, minimizaram a importincia da escolha do método. Os cientistas, na sua pesquisa atual, muitas vezes oscilam entre uma fase em que coletam material, ou condu- zem em termos puramente descritivos ou classificatérios, e outra fase, de formagao de conceitos, ou de teste das teorias. Indugo Durante séculos, houve argumentos sobre os méritos respectivos do método indutivo versus o método dedutivo (Medawar, 1967). Hoje em dia estd claro que esse & um assunto relativamente irrelevante. O induti- vismo proclama que um cientista pode chegar a conclusGes objetivas € sem deformagées, apenas mediante simples registro, mensuragdo e des- crigo dos seus achados, sem ter previamente qualquer hipétese, ov ex- pectativas preconcebidas. Francis Bacon (1564-1626) foi o principal promotor do indutivismo, embora nunca tivesse aplicado consistente- mente esse método na sua propria obra, Darwin, que se vangloriava de seguir “o verdadeiro método baconiano”, era tudo, menos um indutivista. Chegou mesmo a ridicularizar esse método, dizendo que, se alguém ‘OLUGAR DA BIOLOGIA NAS CIENCIAS E SUA ESTRUTURA CONCEITUAL 45 acredita nele, “seria o mesmo que entrar num pogo de pedrag, contar os ccascalhos e descrever as suas cores”. Sem embargo, Darwin foi muitas vezes classificado, na literatura filoséfica, como um indutivista, O induti- vismo teve uma grande reputago no século XVIII € comego do século XIX, mas hoje esté claro que uma aproximagio puramente indutiva 6 simplesmente estéril. Isso 6 ilusirado pelo criador de plantas Gaertner, ‘que pacientemente fez e registrou dezenas de milhares de cruzamentos, sem chegat a qualquer generalizagio. Liebig (1863) foi o primeiro cien- tista proeminente a repudiar o indutivismo baconiano, argliindo de modo convincente que nenhum cientista jamais seguiu, ou pode seguir, o méto- do descrito no Novum organum. A critica incisiva de Liebig decretou 0 fim do reino do indutivismo (Laudan, 1968). Método hipotético-dedutivo indutivismo foi substitufdo mais € mais conscientemente pelo as- sim chamado método hipotético-dedutivo.’ Segundo esse método, 0 pri- meiro paso, como o chamou Darwin, é “especular”, isto é, generalizar a hipétese. O segundo passo conduzir experimentos ou reunir observa- Ges que permitam testar essa hipétese. O emprego desse método por Darwin foi excelentemente descrito por Ghiselin (1969), Hull (1973a), e Ruse (1975b). Hi um forte elemento de senso comum nesse método, & pode-se argumentar que ele jé est implicito no método aristotélico, e cer- tamente em larga medida no assim chamado dedutivismo de Descartes & dos seus seguidores. Embora temporariamente eclipsado pelo prestfgio do indutivismo durante o século XVIII, ele se tornou o método prevalente no século XIX. ‘A azo por que o método hipotéticy-ledutivo foi to amplamente adotado reside em que ele tem duas grandes vantagens. Em primeiro lugar, ele se encaixa perfeitamente na crescente convicgio que nio hé verdade absoluta, € que as nossas conclusées e teorias devem continua- ‘mente ser testadas. E em segundo lugar, em conexiio com esse novo rela- tivismo, ele encoraja 0, continuo estabelecimento de novas teorias € @ busca de novas observagdes e novas experiéncias, que confirmam ou refutam as novas hipéteses. Isso torna a ciéncia mais flextvel e mais ati- va, e fez com que algumas controvérsias cientfficas deixassem de ser tio acrimoniosas, uma vez que nfo esté mais em questio uma vit6ria na ba- talha pela verdade sitima, 46 (DESENVOLVIMENTO DO PENSAMENTO BIOLOGICO Em que medida os cientistas atualmente empregam uma aproxima- gio hipotético-dedutiva € assunto discutfvel. Collingwood (1939) afir- ‘mou corretamente que uma hipétese € sempre uma resposta tentativa a ‘uma pergunta, e que a formulagdo de uma pergunta é realmente o primei- ro passo no caminho de uma teoria, A histéria da ciéncia conhece dezenas de instncias em que um pesquisador estava de posse de todos os fatos importantes para uma nova teoria, mas simplesmente deixou de colocar a pergunta correta. Em qualquer caso, a aceitagZo da importancia das per- guntas conduz imediatamente a novas indagagSes: em primeiro lugar, por ‘que a questo foi levantada? A resposta deve ser porque um cientista observou alguma coisa que ele no compreendeu, ou algo cuja origem 0 intrigou, ou porque ele descobriu alguns fendmenos aparentemente con- traditérios, cuja contradigao ele procurou remover. Em outras palavras, a observagio dos fatos deu origem as perguntas. (Os antiindutivistas, evidentemente, tém inteira raziio ao proclamarem. que tais fatos, por si mesmos, jamais conduziram a uma teoria. Eles ad~ quirem significado apenas quando uma mente inquiridora indaga uma questo importante, Uma mente criativa € capaz de, como afirmou Scho- penhauer, “ao olhar alguma coisa que todo mundo vé, pensar algo que ninguém ainda pensou”. Assim sendo, a imaginagio é, em tltima instén- cia, o pré-requisito mais importante do progresso cientifico. O método hipotético-dedutivo é, na sua esséncia, o moderno método cientifico da descoberta, embora o estabelecimento de uma hip6tese ten- tativa seja invariavelmente precedido de observagdes ¢ da formulagao de perguntas, Experimento versus comparagdo A diferenca entre pesquisa fisica € pesquisa biolégica nao é, como muitas vezes se disse, uma diferenga de metodologia. A experimentagio no se restringe as ciéncias fisicas, mas € um método maior da biologia, particularmente da biologia funcional (veja a seguir), A observagdo € a classificagdo sio claramente mais importantes nas ciéncias biolégicas do que nas ciéncias fisicas, ainda que seja evidente que esses siio métodos dominantes em cigncias fisicas, tais como geologia, meteorologia e astro- nomia. A andlise ¢ igualmente importante nas cincias fisicas e nas cién- cias biolégicas, como veremos. (OLUGAR.DA BIOLOGIA NAS CIENCIAS E SUA ESTRUTURA CONCEITUAL ro Nas filosofias das ciéncias escritas por cientistas fisicos, o experi- mento é muitas vezes mencionado como 0 método da ciéncia.* Isso niio é verdade, porque outros métodos estritamente cient{ficos so de maior importancia em ciéncias, como biologia evolutiva e oceanografia. Cada ciéncia requer o seu proprio método apropriado. Para Galileu, 0 estudioso da mecinica, medida e quantificagio eram de importancia superior. Para Aristételes, 0 estudioso de sistemas vivos e da diversidade orginica, a andlise do que hoje chamamos processos teleondmicos e o estabeleci- mento de categorias constitufam abordagens favordveis. Em fisiologia, e ‘em outras ciéncias funcionais, o método experimental ndo é apenas apro- priado, mas, a bem dizer, a Gnica aproximagdo que conduz a resultados. ‘Muitos historiadores das ciéncias fisicas exibem uma extraordindria ignorancia quando discutem métodos outros que no o experimental. ‘Morgan (1926) & um exemplo tipico da arrogincia do experimentalista. Ele negava ao paleontologista qualquer competéncia para a formago de (© meu bom amigo paleont6logo (sem davida, ele se referia a H. F. Os- born) corre um perigo maior do que imagina, ao deixar as descrigSes para tentar explicagdes. Ele ndo tem como confirmar as suas especula- es (..) (¢ referindo-se as lacunas na histéria dos fésseis) 0 geneticista diz ao paleontélogo, uma vez que este ignora, e pela propria natureza do seu caso nunca poderd saber, se as suas diferengas foram devidas a uma alteragdo/uma nica mutagdo/ ou a mil alteragdes; este, com certeza, nada nos tem a dizer sobre as unidades hereditirias que constitufram 0 processo da evolugéo. Como se 0 paleontologista nao pudesse tragar, a partir do seu materi- al, inferéncias perfeitamente vélidas, inferéncias essas que podem ser testadas de indmeras formas, Se se quiser insinuar que o trabalho experi- mental nunca 6 descritivo, entao isso também é uma inverdade. Ao relata- rem os resultados dos seus experimentos, os praticantes do método experimental sfo tio descritivos quanto os naturalistas ao relatarem as suas observagbes. Evidentemente, a alternativa da experimentagio é a observagio. O progresso em muitos ramos da ciéncia depende de obser- vag6es feitas no intuito de responder cuidadosamente a questdes levanta- das. A diologia modema, evolutiva, comportamental e ecolégica demonstrou de modo conclusivo que essas ciéncias, largamente observa- cionais, sfo algo mais do que puramente descritivas. Atualmente, muitos escritos baseados em experimentos feitos sem uma adequada Frageste- 48 ‘© DESENVOLVIMENTO DO FENSAMENTO BIOLOGIC Hung” (que, aliés, sto muitissimos!) s40 mais descritivos do que muitas publicagGes nio-experimentais sobre biologia evolutiva. ‘A mera observacio, todavia, nfo é suficiente. Ainda no decurso do século XVIII, foi empregado pela primeira vez, e com seriedade, um méto- do peculiarmente adequado ao estudo da diversidade; trata-se do método comparativo, Embora tivesse tido alguns predecessores, Cuvier foi, sem vida, o primeiro grande campedo do método comparativo (veja Capi- tulo 4), Muitas vezes nfo se deu a devida atengio ao fato de que o méto- do comparativo deve ser precedido de uma classificago dos itens a serem comparados. Sem diivida, o sucesso da andlise comparativa depende, em larga medida, da qualidade do procedimento de elassificago, Ao mesmo tempo, discrepfncias reveladas pela comparacio conduziram muitas ve- zes a uma melhoria da classificagio dos fendmenos. Tais idas e vindas entre dois métodos caracterizam muitos ramos da ciéncia, e nfo é de forma alguma algo circular (Hull, 1967) A diferenga entre os métodos experimental e comparativo niio é tio grande como pode parecer & primeira vista, Em ambos coletam-se dados, e em ambos a observacdio desempenha um papel crucial (embora 0 expe- rimentalista usualmente nado mencione o fato que os seus resultados sfio devidos & observagio das experiéncias realizadas), Nas assim chamadas cincias observacionais, o observador estuda experimentos da natureza. A principal diferenca entre os dois conjuntos de observagGes consiste em que no experimento artificial & possivel escolher as condigdes, capacitan- do assim o teste dos fatores que determinam o éxito do experimento. Num experimento da natureza, seja que se trate de um terremoto, ou da produgio de uma fauna insular, a tarefa principal consiste em infer, ou reconstruir, as condigdes sob as quais esse experimento natural ocorreu. Mediante a procura da canstelacia correta das fatores, & por vezes quase possivel, numa observac%o “controlada”, obter a confiabilidade de um experimento controlado. Como disse Pantin (1968: 17), “em astronomia, em geologia em biologia, a observacdo de eventos naturais, em tempo e lugar selecionados, pode as vezes fornecer informagao tio completa e suficiente para uma conclusio a ser registrada, como a que pode ser obtida através de um experimento”. E importante enfatizar a legitimidade do método observacional— comparativo, tendo em conta que o método experimental € inaplicdvel em muitos problemas cientificos. E diga-se ainda, contratiamente as + Vernota do revisor tEenico & pag. 15, OLUOAR DA BIOLOGIA NAS CIENCIAS ESUA ESTRUTURA CONCEFTUAL, 9 afirmagdes de alguns fisicistas, que os ramos da ciéncia que dependem do método comparativo nao séo inferiores. Como disse ha muito tempo um cientista sébio, E. B. Wilson: “Os experimentos realizados em nossos laborat6rios apenas suplementam os que aconteceram, e ainda aconte- cem, na natureza, ¢ os seus resultados devem ser forjados na mesma ofi- ina”, Wilson opunha-se firmemente Aqueles que afirmavam que o progresso na biologia podia ser alcangado “apenas pelo do experimento”. A observagiio conduziu & descoberta de faunas e floras estranhas, e tor- nou-se a base da biogeografia; a observago revelou a diversidade da natureza orgdnica e conduziu ao estabelecimento da hierarquia lineana 3 teoria da ascendéncia comum; a observagao conduziu aos fundamentos da etologia e da ecologia. A observacdo, na biologia, forneceu, prova- velmente, mais conhecimentos do que todos os experimentos juntos. A posigao da biologia dentro das ciéncias Em confronto com a mitologia e com a religifo, a ciéncia tem a prer- rogativa de oferecer uma face unificada, Todas as ciéncias, a despeito das suas miltiplas diferengas, tém em comum 0 fato de se dedicarem a0 es forgo de compreender o mundo. A ciéncia deseja explicar, generalizar € determinar a causalidade das coisas, dos eventos, dos processos. E nessa medida, enfim, que existe uma unidade da ciéncia (Causey, 1977). A partir desse ponto de vista, muitas yezes tirou-se a conclusio de que 0 que € verdadeiro para uma ciéncia, digamos a fisica, deve ser igualmente verdadeiro para todas as ciéncias. Tlustrando isso, devo ter nas minhas estantes uns seis ou sete volumes que se propdem a tratar da “filosofia da ciéncia”, mas todos eles atualmente tratam somente da filo- sofia das ciéncias fisicas. Os filésofos da ciéncia, a maioria deles com uma formagdo em fisica, infelizmente basearam a sua abordagem da filo sofia e da metodologia cientificas quase exclusivamente nas cigncias fisicas, Tais tratamentos sfio muito incompletos porque deixam a desco- berto o rico dominio dos fendmenos e dos processos que se encontram no mundo dos organismos vivos. Fildsofos e humanistas, quando descrevem ou criticam a “ciéncia”, quase sempre tém apenas em mente as cigncias fisicas (ou mesmo a tecnologia). Quando os historiadores falam da revo- lugZo cientffica, que foi primariamente uma revoluedo das ciéncias mecd- nicas, na grande maioria dos casos eles subentendem, tacitamente, tratar- se de uma revolugdo que abrangeu igualmente as ciéncias biol6gicas. 50 ( DESENVOLVIMENTO DO FENSAMENTO BIOLOGICO 0 fato de que existem diferengas importantes entre a biologia e as ci- Ancias fisicas € muitas vezes inteiramente ignorado. Muitos fisicistas parecem admitir como certo que a fisica € o paradigma da ciéncia, e que quando se entende de fisica, pode-se entender qualquer outra ciéncia, biologia inclusive. A “arrogdncia dos fisicos” (Hull, 1973) tomou-se pro- verbial entre os cientistas. O fisico Ernest Rutherford, por exemplo, refe- tiu-se & biologia como “uma colegio de selos postais”. O préprio V. ‘Weisskopf, normalmente bastante isento da usual insoléncia dos fisicis- (as, cometeu recentemente um notével esquecimento ao proclamar que “o mundo cientifico, na sua visfo, se baseia nas grandes descobertas do sé- culo XIX, concernentes & natureza da eletricidade ¢ do calor & existén- cia de dtomos ¢ de moléculas” (1977: 405), como se Darwin, Bernard, ‘Mendel e Freud (para niio mencionar centenas de outros biélogos) nvio tivessem dado uma tremenda contribuigao para a nossa concepgdo cientf- fica do mundo e, por que ndo, talvez. uma contribuigio maior do que a dos fisicos. Para contrabalanear tal atitude, & por vezes benéfico, ou mesmo ne- cessério, salientar a pluralidade da ciéncia, Com demasiada fret Newton e as leis naturais so considerados extensivos a toda a ciéncia. Todavia, se olharmos para o cenério intelectual 20 longo dos séculos XVI, XVII e XVIII, descobriremos que existiram, simultaneamente, di- versas outras tradig6es, que virtualmente nada tinham a ver umas com as outras, ou com a meciinica. A botinica dos herbalistas, as magnfficas placas anatémicas de Versalius, os ubfquos museus de histéria natural, as vviagens cientificas, os jardins des plantes, as colegdes de animais - 0 que tudo isso tem a ver com Newton? Contudo, é essa outra ciéncia que inspi rou o romanticismo de Rousseau e o dogma do selvagem nobre. Somente em anos recentes tornou-te evidente 0 quanto é ingénua e equivocada a admissio da igualdade entre as ciéncias fisicas e biol6gicas. 0 fisico C. F. von Weizsaecker (1971) admite que a explicagio fisica convencional a forma matemética abstrata em que ela é expressa nio (..) satisfazem a nossa necessidade de uma compreensio real da natureza. E, além dis- 50, uma comum visio do mundo jé ndo abrange os grandes grupos das ccigncias (..)afisica defronta-se com uma biologia autOnoma, * Partidétio do fisicismo ~ sistema explanatério do Universo pela retagio das forgas fisi- cas. (N.doR.T) ‘OLUGARDA BIOLOGIA Nas CIENCIAS E SUA ESTRUTURA CONCEITUAL 31 Um estudo dos fendmenos biolégicos conduz, por isso, a uma inda- gagdo legitima: em que medida a metodologia e a estrutura conceitual das Ciencias fisicas so modelos apropriados para as ciéncias biolgicas? Tal ‘questo no se cinge meramente a problemas um tanto quanto excepcio- nais como “consciéncia” ou “intengdo”, mas alcanga alguns fendmenos 0u conceitos biolégicos, tais como populagio, espécie, adaptagao, diges- to, selecdo, competiczo, ¢ outros semelhantes. Teriam esses fendmenos biolégicos e conceitos um equivalente nas ciéncias fisicas? Em nenhum outro aspecto a diferenga entre ciéncias diversas 6 mais evidente do que nas suas aplicagdes filos6ficas. Muitos fildsofos senten- ciaram que ndo hé nenhuma conexio concebivel entre as ciéncias fisicas € a ética, Todavia, € evidente que existe a possibilidade de semelhante conexio entre ciéncias biolégicas e ética. O spencerianismo social cons- titui um exemplo; a eugenia é outro. Tem certa validade a afirmago do fisico no sentido de que nfo hé conexio entre ciéncias fisicas e a ética (mas pense-se na fisica nuclear!) De qualquer maneira, ao proclamar, ‘como muitos fisicos o fizeram, que ndo ha relagao entre “ciéncia” e ética, ele exibe uma parvofce paroquial. As ideologias politicas sempre mostra- ram muito maior interesse nas ciéncias bioldgicas que nas ciéncias fisi- cas, O lysenkofsmo ¢ 0 ensinamento tabula rasa do behaviorismo (e os seus seguidores marxistas) constituem apenas alguns exemplos. Por tais motivos, € errado falar de filosofia da ciéncia, tendo-se em mente a filo- sofia das ciéncias fisicas. A convicgio de muitos cientistas fisicos de que todos os conheci- mentos da biologia podem ser reduzidos as leis da fisica levou muitos biologistas, em atitude de autodefesa, a proclamarem a autonomia da biologia. Embora esse movimento de emancipago dos biologistas tenha encontrado, naturalmente, considerével resisténcia, no apenas entre ox cientistas fisicos, mas também entre os filsofos adeptos do essencialis- mo, ele continuou a ganhar forga nas décadas recentes, Uma discusstio desapaixonada da questio se os principios, teorias e leis das ciéncias fisicas tudo explicam nas ciéncias biol6gicas, ou se a biologia é, pelo ‘menos em parte, uma ciéncia autOnoma, tomiou-se muito dificil por causa de uma grande rivalidade - para no dizer miitua hostilidade — entre as cigncias, tanto no seio das ciéncias fisicas e biol6gicas como entre esses dois campos. Numerosas tém sido as tentativas (por exemplo, a de Comte) de classificar as ciéncias, colocando a matemética (ou a geome- tia em particular) como a rainha de todas. A rivalidade se tora mani- festa na competigio de honrarias, como os prémios nobéis, orgamentos 2 (ODESENVOLVIMENTO DO PENSAMENTO BIOLOGICO dentro de universidades e governos, posigSes, ¢ prestigio geral vis-a-vis ‘A discussio precedente pode dar a impresso de que eu também esta- ria pleiteando uma completa autonomia das ciéncias biolégicas ~ em outras palavras, que desejo abandonar radicalmente o conceito da unidade da cigncia, substituindo-o pelo conceito de duas ciéncias separadas, a cigncia fisica e a ciéncia biolégica, Mas a minha posigio nfo é essa. Tudo (0 que eu quero dizer € que as ciéncias fisicas néo constituem um parame- ‘ro apropriado para a ciéncia. A fisica, simplesmente, no & adequada para cumprir esse papel, porque, como o fisico Eugene Wigner muito bem acentuou, “hoje em dia a fisica trata de um caso-limite”. Para usar uma analogia, a fisica corresponde & geometria euclidiana, que é 0 caso- limite de todas as geometrias (inclusive a ndo-euclidiana). Ninguém des- creveu melhor essa situagdo que G. G. Simpson (1964b: 106-107): A insisténcia em que o estudo dos organismos requer prinefpios adicio- 0s das ciéncias fisicas ndo implica uma visio dualista ou vitaista da natureza. A vida (...) por isso nfo é necessariamente considerada nio- fisica, ou ndo-material. Ft simplesmente porque os seres vivos foram afetados durante (..)bilhOes de anos por processos hist6ricos (... Os te- sultados desses processos so sistemas especificamente diferentes de 4quaisquer sistemas no-vivos, ¢ quase incomparavelmente mais compli- ‘cados. Nio so necessariamente, por isso, algo menos material, ou me- nos ffsico, na natureza. O nticleo da questio & que todos os processos rmateriais conhecidos, bem como seus princfpios explicativos, aplicam- se aos organismos, enquanto apenas um nimero limitado dos mesmos se aplica aos sistemas nio-vivos (..) A biologia é, entio, a ciéncia que se coloca no centro de toda cigncia (..) E € aqui, no campo em que se incorporam todos os prinefpios de todas as cincias, que a ciéncia pode verdadeiramente tornar-se unificada. reconhecimento de que nas ciéncias biolégicas tratamos de fend- ‘menos que sZo estranhos aos objetos inanimados ndo é de forma alguma uma novidade. A hist6ria da ciéncia, desde Arist6teles, foi uma hist6ria de esforgos para assegurar a autonomia da biologia, e de tentativas de barrar a onda de explicagdes mecanistico-quantitativas. simplistas. De qualquer maneira, quando naturalistas e outros bidlogos, bem como al- ‘guns fildsofos, acentuaram a importincia da qualidade, unicidade e hist6- ria na biologia, os seus esforgos foram muitas vezes ridicularizados © otwear pas LOGIA NAS CIENCIAS E SUA ESTRUTURA CONCETUAL, 3 simplesmente varridos como “mé ciéneia”. Tal destino coube ao préprio Kant, quando defendeu de maneira muito convincente, na sua Kritik der Urteilskraft (1790), que a biologia é diferente das ciéncias fisicas, e que 68 organismos vivos sto diferentes dos objetos inanimados. Lamentavel- mente, muitas vezes tais esforgos foram taxados de vitalismo, e ppor isso fora das fronteiras da ciéncia. As reivindicagbes da autonomia da biologia s6 comegaram a ser levadas a sério mais ou menos ao longo da ‘iltima geragdo, isto é, apés a extingdo definitiva de qualquer vitalismo genuino, Est se tomando perfeitamente evidente que nunca ser4 posstvel fa- er afirmagbes universalmente validas sobre a ciéncia em geral sem antes comparar as varias ciéncias entre si e determinar o que elas tém em co- ‘mum ¢ 0 que as distingue. Como e por que a biologia é diferente? A palavra “biologia” é recente, do século XIX. Antes dessa data, néo havia uma tal ciéncia, Quando Bacon, Descartes, Leibniz e Kant escreve- ram sobre ciéncia e sua metodologia, a biologia como tal nao existia, mas apenas medicina (incluindo anatomia ¢ fisiologia), hist6ria natural, e bo- tGnica (mais ou menos uma miscelénea). A anatomia, a dissecago do corpo humano, foi até longamente, no século XVIII, um ramo da medici- na, € a boténica, da mesma forma, era praticada primariamente por médi- os interessados em ervas medicinais. A hist6ria natural dos animais era estudada principalmente como uma parte da teologia natural, no intuito de apoiar o argumento de um plano. A revolugdo cientffica nas ciéncias fisicas deixou as ciéncias biolégicas virtualmente intocadas. As maiores inovagdes no pensamento bioldgico s6 ocorreram ao longo dos séculos XIX e XX, Nao pode haver surpresa, portanto, que a filosofia da ciéncia, a0 desenvolver-se nos séculos XVII e XVIII, baseava-se exclusivamente nas ciéncias fisicas e que, subseqiientemente, tem sido muito dificil revi- sé-la de maneira tal a englobar também as cigncias biol6gicas. Foi so- mente em décadas recentes que diversos filésofos (como Scriven, Beckner, Hull e Campbell) tentaram caracterizar as diferengas entre bio- logia e as cigncias fisicas (Ayala, 1968). O pensamento sobre esse pro- blema é ainda Zo novo que apenas se podem fazer afirmagGes provisérias. objetivo da discussio a seguir € mais no sentido de delinear a natureza dos problemas do que fomecer solugdes definitivas. 54 (ODESENVOLVIMENTODO PENSAMENTO BIOLOGICO As leis na fisica e nas ciéncias biolégicas ‘As leis desempenham um importante papel demonstrativo nas cién- cias fisicas. Considera-se explicado um evento particular quando se pode demonstrar que ele & devido a fatores causais particulares, consistentes com as leis gerais. Alguns fil6sofos designaram o estabelecimento de leis como 0 critério diagnosticador da ciéncia. Admite-se que tais leis sejam estritamente deterministicas, permitindo, assim, previs®es exatas, Em anos recentes foi levantada a questo de se as leis, sim ou nfo, sfo to importantes na biologia como parecem sé-Io nas ciéncias fisicas. Alguns fildsofos, como Smart (1963; 1968), chegaram ao ponto de negar que haja qualquer lei universal em biologia, como € caracterfstico na fisica, Outros fildsofos — como Ruse (1973), e, em menor medida, Hull (1974) = defenderam enfaticamente a existéncia de leis biolégicas. Os bidlogos, virtualmente, nfo deram atengo a0 assunto, implicando isso {que a questi é de menor relevancia para o biologista profissional. Se olharmos para a hist6ria da biologia, veremos que autores do século XIX, como Lamarck, Agassiz, Darwin, Haeckel, Cope, ¢ muitos dos seus contemporfineos, referiam-se freqilentemente a leis. Contudo, se consultarmos um compéndio modemo de quase todos os ramos da biolo- gia, nfo encontraremos uma vez. sequer o termo “lei”. Isso nao significa que em biologia nfo ocorrem regularidades; significa simplesmente que estas sto ou demasiadamente dbvias para serem mencionadas, ou exces- sivamente triviais. Isto € perfeitamente ilustrado pela centena de “leis” evolutivas elencadas por Rensch (1968: 109-114). Todas elas se referem as tendéncias de adaptagio, decorrentes da selecdo natural. Muitas delas tém excecdes, ocasionais ou freqlentes, e so apenas “regras”, nio leis universais. Elas sio explicativas 4 medida que dizem respeito a eventos passados, mas nao sio previsfveis, a nfo ser num sentido estatistico (pro- babilfstico). Quando digo: “Um macho de ave canora, chefe de territ6rio, tem 98,7% (ou qualquer que seja o indice correto) de probabilidades de vencer um intruso”, dificilmente poderia afirmar que estabeleci uma lei Quando os biologistas moleculares afirmam que as protefnas no trans- mitem informag6es aos cidos nucléicos, eles consideram isso muito mais um fato do que uma lei, Generalizagées em biologia sio quase sempre de natureza probabi- istica. Como alguém formulou com muita propriedade, ha somente uma Iei universal em biologia: “Todas as leis biol6gicas t¢m excegdes”. Esta concepsfo probabilfstica apresenta um notével contraste com a visto dos ‘OLUGAR DA BIOLOGIA NAS CIENCIAS E SUA ESTRUTURA CONCETTUAL. 3s primeiros periodos da revolugdo cientifica, segundo a qual a causalidade nna natureza é regulada por leis que podem ser expressas em termos ma- teméticos. Com efeito, essa idéia, aparentemente, ocorreu pela primeira vez a Pitégoras, E permaneceu uma idéia dominante, particularmente nas cigncias fisicas, até os nossos dias. Sempre de novo ela foi colocada como base de uma certa filosofia abrangente, mas assumindo formas muito diferentes, segundo a variedade dos seus autores. Em Plato, ela deu origem ao essencialismo, em Galileu, imagem mecanicista do mun- do, em Descartes, a0 método dedutivo. Essas trés filosofias tiveram um impacto fundamental na biologia. pensamento de Plato era 0 de um estudioso da geometria: um trifin- gulo, qualquer que seja a combinagdo dos seus angulos, tem sempre a forma de um tridngulo, e por isso ele &, de modo descontinuo, diferente de um quadrado ou de qualquer outro polfgono. Para Plato, o mundo variado dos fendmenos, analogamente, nada mais era do que o reflexo de um niimero limitado de formas fixas e imutéveis, eidos (como ele as chamava), ou esséncias, como foram chamadas pelos tomistas na Idade Média. Essas esséncias sfo 0 que existe de real e importante neste mun- do, Como idéias, elas podem existir independentemente de qualquer ob- jeto. A constancia e a descontinuidade sto pontos de especial énfase para 08 essencialistas. A variagao é atribufda & manifestagao imperfeita das esséncias subjacentes. Tal conceitualizagao foi a base nao apenas do rea- lismo dos tomistas, mas também do assim chamado idealismo, ou do positivismo, dos fil6sofos posteriores, até 0 século XX. Whitehead, que era uma peculiar mistura de matemético e de mistico (talvez. poder-se-ia chamé-lo de pitagérico), afirmou certa vez: “A caracterizago geral mais segura da tradigdo filos6fica européia € que ela consiste numa série de notas de rodapé de Plato”. Nao hé divida que isso foi mencionado como um mérito, mas na realidade era uma condenagio, na exata medida em que exprimia uma verdade. Significa realmente que a filosofia européia, a0 longo de todos os séculos, foi incapaz de libertar-se da camisa-de- forca do essencialismo platénico. O essencialismo, com a sua énfase na descontinuidade, na constincia, e nos valores tipicos (“tipologia”), domi- nou o pensamento do mundo ocidental em grau tal que ainda nao foi ple- namente percebido pelos historiadores das idéias. Darwin, um dos primeiros pensadores a rejeitar 0 essencialismo (pelo menos em parte), nao foi absolutamente entendido pelos fil6sofos contemporaneos (todos eles essencialistas), € 0 seu conceito de evolucdo por meio da selegao natural foi por isso julgado inaceitavel. A mudanga verdadeira, de acordo 56 (0 DESENVOLVIMENTO DO PENSAMENTO BIOLOGICO com 0 essencialismo, s6 € possivel mediante a origem descontfnua de novas esséncias. Considerando que a evolugdo, segundo Darwin, é neces- sariamente gradual, ela 6 totalmente incompattvel com 0 essencialismo. De qualquer modo, a filosofia do essencialismo adequava-se muito bem 20 pensamento dos cientistas fisicos, cujas “classes” consistem em enti- dades idénticas, sejam elas Stomos de s6dio, prétons, ou mésons-pi. Para Galileu, da mesma forma, a geometria era a chave das leis da natureza. S6 que ele a aplicava de um modo muito mais matemético do que Plato: A filosofia esté escrita nesse grande livro, que € 0 universo, 0 qual per- ‘manece continuamente aberto & nossa contemplagao. Mas'o livro nio pode ser entendido, a menos que se aprenda primeiro a compreender a Tinguagem ¢ ler 0s sfmbolos em que esté composto. Ele esté escrito na linguagem da matemética, e os seus caracteres slo trifngulos, efrculos, ¢ outras figuras geométricas, sem os quais € humanamente impossivel entender uma nica palavra do mesmo; sem eles, vagueamos num labi- Finto escuro (The Assayer, 1623, como ‘itado por Kearney, 1964). Por certo, nfo era apenas a geometria que ele considerava bisica, mas também todos os aspectos da matemética, e, particularmente, toda sorte de quantificagdo de medida. ‘A “mecanizagdo da imagem do mundo” — crenga em um mundo su- premamente ordenado, segundo a imagem de um mundo designado pelo criador para obedecer a um conjunto limitado de leis etemas (Maier, 1938; Dijksterhuis, 1961) — fez répido progresso nos séculos seguintes, ¢ alcangou o seu maior triunfo na unificag%o newtoniana da mecinica ter- restre ¢ celeste, Esses sucessos espléndidos conduziram a um prestigio por assim dizer ilimitado da matemitica. Isso culminou no famoso ~ ou afamado — dito de Kant “que, em qualquer ramo das ciéncias naturais, somente haverd ciéncia genuina na medida em que contiver matemética”. Se isso fosse verdadeiro, onde a Origin of Species poderia aparecer como um trabalho cientifico? Sem surpresa alguma, Darwin tinha a matemética em baixo conceito (Hull, 1973: 12). A f6 cega na magia dos niimeros e das quantidades talvez. alcangou 0 seu climax em meados do século XIX. Mesmo um pensador do discerni- ‘mento de Merz (1896: 30) chegou a afirmar que a cigncia modema define o método, ndo 0 objetivo do trabalho, Ela se baseia no niimero e no célculo ~ em suma, em processos mateméticos; € LUGAR DA BIOLOGIA NAS CIENCIAS & SUA ESTRUTURA CONCETTUAL, 1 ‘0 progresso da ciéncia depende tanto da introdugio de nogées mateméti- ‘cas em dreas que aparentemente no so matemiéticas, quanto da exten- ‘io de métodos e conceitos mateméticos em si mesmos, A despeito de refutagées posteriores simplesmente devastadoras Ghiselin, 1969: 21), fil6sofos de formago matemética ou fisica conti- ‘nuam a apegar-se ao mito da matemética, como sendo a rainha das cién- cias. Por exemplo, 0 matemético Jacob Bronowski (1960, p. 218) chegou a afirmar que hoje em dia, a nossa confianga em alguma ciéncia é, grosso modo, pro porcional 20 volume de matemética que ela emprega... Julgamos que @ fisica é verdadeiramente uma cineia, contanto que ela ndo se apegue, de algum modo, ao mais informal odor (e 6dio) do livro de receitas culinérias da qutmica, Se avangarmos mais em frente para a biologia, depois para a economia, e por fim para os estudos sociais, perceberemos ‘que estamos como que escorregando ladeira abaixo, longe da ciéncia. Esses conceitos equivocados, em relagdo As cigncias qualitativas e hist6ricas, ou as cigncias que tratam de sistemas demasiadamente com- plexos para serem expressos em férmulas mateméticas, culminaram na assertiva arrogante de que a biologia é uma ciéncia inferior. Isso condu- ziu a explicagdes mateméticas levianas e completamente distorcidas, em diversas reas da biologia. Ninguém ficou mais impressionado com a importincia da mateméti- ca que Descartes, mas as conseqiiéncias dessa admiragdo no seu pensa- mento foram completamente diferentes das ocorridas no pensamento de Galileu ou de Newton, Descartes impressionou-se com o rigor das provas, mateméticas e com a exatid’io com que eram tiradas conclusdes de pre- missas definidas, chegando ao ponto de afirmar que as leis da matemética foram ditadas por Deus, da mesma forma como um rei baixa leis para 0 seu reino. Descartes desenvolveu uma légica em que os métodos da ma- tematica eram usados estritamente de maneira dedutiva, de sorte a obter um conhecimento racional, Era uma estrutura de pensamento principal- mente matemético, mais do que uma linguagem de equagdes ou de for- mulas_matemiticas Todavia, ele favoreceu explicagées estritamente deterministicas ¢ um pensamento essencialista, Leibniz, que seguiu a metodologia cartesiana, foi o fundador da légica matematica, 38 ‘ODESENVOLVIMENTO DO PENSAMENTO BIOLOGICO, Por mais absorvente que tenha sido o predomfnio da matemética nas, ciéncias, durante diversos séculos, houve vozes em contrério quase:desde © principio. Pierre Bayle (1647-1706) foi aparentemente o primeiro a negara afirmagio de que 0 conhecimento matemético era a tinica espécie de conhecimento alcangavel pelo método cientifico. Ele dizia, por exem- plo, que-a certeza hist6rica nao era inferior, mas simplesmente diferente da certeza matemitica. Os fatos da hist6ria, como o que uma vez existiu 0 Império Romano, eram to certos quanto qualquer coisa em matemitica Da mesma forma, um biologista poderia insistir que a existéncia, no pas- sado, de dinossauros ¢ trilobitas era to certa quanto um teorema mate- mético. Um outro autor a langar um ataque devastador as interpretagdes, matemético-geométricas do mundo de Descartes foi Giambattista Vico. Ele asseverava que os métodos de observagiio, a classificagdo e as hipéte- ses eram com certeza aptos a fornecer um genuino, embora modesto, conhecimento “exterior” do mundo material. A hist6ria natural foi a segunda fonte de rebelido contra o ideal ma- temitico da ciéncia de Galileu. Ela foi movida, em particular, por Buffon, que afirmava enfaticamente (Oewvr. Phil.: 26) que alguns temas so ex- cessivamente complicados para um uso aproveitavel da matemitica, co- locando entre eles todas as partes da hist6ria natural. Aqui, a observagio e a comparagiio eram os métodos apropriados. A Histoire naturelle de Buffon, por sua vez, influenciou decisivamente Herder, e por intermédio dele os rominticos ¢ a Filosofia da natureca, © préptio Kant, em 1790, abandonou a sua subserviéncia A matemiética. Se a invalidade do ideal matemitico da ciéncia ndo era bvia antes, certamente acabou sendo com a publicagdo do Origin of Species. Pode-se mencionar, incidentalmente, o quanto é enganoso referit-se & ‘matemética como sendo a “‘rainha das ciéncias”. H evidente que a mate- miética 6 uma ciéncia tdo pequena quanto a gramética é uma linguagem (comparavel ao latim ou ao russo); a matemética é uma linguagem que se relaciona com todas as cigncias, ou com nenhuma, conquanto em graus altamente varidveis. Existem algumas ciéncias, como as ciéncias fisicas € grande parte da biologia funcional, em que a quantificagao ¢ outras abor- dagens matematicas t8m um alto valor explicativo ou heuristico. Outras cigncias hd, como a sistemética e grande parte da biologia evolutiva, em que as contribuigdes da matemética so muito menores. De fato, uma aplicagdo imprudente da matemética nesses ramos da biologia conduziu, por vezes, a um pensamento tipol6gico, e por isso a ‘O LUGAR DA BIOLOGIA NAS CIENCIAS ESUA ESTRUTURA CONCEITUAL 59 concepgdes erradas. © geneticista Johannsen, por exemplo, foi vitima dessa tentagio, e “simplificou” populagdes geneticamente varidveis em “linhas puras”, perdendo com isso 0 verdadeiro sentido de “populagio” e tirando conclusdes erréneas em relagdo 4 importancia da selegao natural, Os fundadores da genética matemética de populagées, da mesma forma, em nome de um tratamento matemético, supersimplificaram os fatores que entravam nas suas formulas. Isso conduziu a uma énfase nos valores absolutos de adaptagio dos genes, a uma supervalorizagio dos efeitos genéticos aditivos, e & admissio de que os genes, em vez dos individuos, eram o alvo da selego natural, Isso, invariavelmente, levou a resultados inreais. Quando Darwin calculou que a terra devia ter mais do que um bilho de anos, de modo a poder explicar os fendmenos da geologia e da filoge- nia, Lord Kelvin declarou-o enfaticamente errado, com base nos célculos da perda de calor de um globo do tamanho do Sol: 24 milhdes de anos era o maximo que ele podia permitir (Burchfield, 1975), E simplesmente divertido ver com que seguranga Kelvin admitia a correo da sua pro- pria determinago da idade, e 0 erro da dos naturalistas, Considerando que @ biologia era uma ciéncia inferior, nfo podia haver diivida sobre onde estava o erro. Kelvin jamais permitiu a possibilidade da existéncia de um fator fisico desconhecido, que eventualmente viesse a validar os célculos dos biologistas.. Nesse clima intelectual, os biologistas abando- naram seu caminho para interpretar as suas descobertas em termos da simples fisica. Weismann (na sua primeira obra) explicava a hereditarie- dade como sendo devida a “movimentos moleculares”, e Bateson, como sendo atribuida a “movimento de vértices”, explicagdes essas que sim- plesmente retardaram 0 progresso cientifico. A situagio mudou, de modo bastante dramético, durante os titimos cinqtienta anos. O indeterminismo dos processos mais estritamente biol6- gicos j4 nfo esté em agudo contraste com o determinismo estrito dos processos fisicos. O estudo dos efeitos de turbuléncia nas galaxias e ne- bulosas, bem como nos oceanos € nos sistemas climéticos, mostrou como sfo freqiientes e poderosos os processos aleatérios na natureza inanimada. Tal conclusto no foi bem aceita por alguns cientistas, levando Einstein, por exemplo, a exclamar: “Deus nao joga dados!” Todavia, processos estocésticos ocorrem em cada nivel hierdrquico, desde 0 niicleo atémico até os sistemas produzidos pela grande explosiio. E os processos estocés- ticos, embora permitindo previsdes mais probabilisticas (ou imposstveis) que absolutas, so tio causais como os processos deterministicos. S6 que 60 ‘ODESENVOLVIMENTO DO PENSAMENTO BIOLOGIC predigdes absolutas so imposstveis, devido ao fato da complexidade dos sistemas hierérquicos, do grande mimero de opgGes possiveis-em cada fase, e das inumerdveis interagdes de processos que acontecem simulta- neamente. Sistemas climéticos ¢ nebulosas césmicas, sob esse aspecto, nfo si, em princfpio, diferentes dos sistemas vivos. O ntimero de interagdes potencialmente possfveis, em sistemas to altamente comple- xos, é demasiadamente elevado para petmitir previsdes, como atualmente todos se do conta. Os estudiosos da selecdo natural e de outros processos evolutivos, da mecdinica quantica e da astrofisica chegaram a essa conclu- so em tempos diferentes, e mais ou menos independentemente. Por todos esses motives, a fisica j4 no é mais o critério da ciéncia, Em particular, quando se trata do estudo do homem, é a biologia que fornece a metodologia e a conceituagHo. O presidente da Franga formulou ‘essa conviceao, com as seguintes palavras: Nao hé dvida que a matemética, a fisica, ¢ outras ciéncias, considera das bastante indevidamente “exatas” (., continuarfo a apresentar des- cobertas surpreendentes ~ todavia, nfo posso evitar o pensamento de que a verdadeira revolugdo cientfica do futuro deverd vir da biologia. Os conceitos nas ciéncias bioldgicas Em vez de formular leis, os biologistas, usualmente, organizam as suas generalizagées em estruturas conceituais, Tem-se afirmado que leis versus conceitos nio passa de uma diferenga formal, uma vez que todo conceito pode ser traduzido em uma ou em diversas leis. Mesmo que isso fosse formalmente verdadeiro, coisa de que nfo estou absolutamente seguro, tal tradugio seria de pouca utilidade no desempenho atual da pesquisa biol6gica, Faltam as leis a flexibilidade e o aproveitamento heu- ristico dos conceitos progresso na ciéncia biol6gica 6, talvez, em grande medida, uma {questo de desenvolvimento desses conceitos, ou prinefpios. O progresso da sistematica caracterizou-se pela cristalizagao e refinamento de con- ceitos, tais como classificagao, espécie, categoria, taxa, e assim por diante; a ciéncia evolutiva por conceitos, tais como descendéncia, selegiio e apti- Bo, Conceitos-chaves semelhantes poderiam ser listados para cada ramo da biologia® (LUGAR DA BIOLOGIA NAS CIENCIAS E SUA ESTRUTURA CONCEITUAL. 6 progresso cientifico consiste no desenvolvimento de novos con- ceitos, como selecdo ou espécie biolégica, e no repetido aperfeicoamento das definigdes pelas quais esses conceitos sfo articulados. Particularmente importante € 0 reconhecimento ocasional que um termo mais ou menos técnico, que anteriormente se acreditava pudesse caracterizar ou designar uum certo conceito, era na realidade utilizado para uma mistura de dois ou mais conceitos; assim, “isolamento”, para isolamento geogréfico e repro- dutivo, “variedade” (como, por exemplo, usado por Darwin), para indivi- duos e para populagdes, ou “teleolégico”, para quatro fendmenos diferentes. B estranho que a filosofia da ciéncia deu to pouca atengdo & impor- tancia avassaladora dos conceitos. Por esse motivo, ainda nao & possivel uma descrigio detalhada dos processos de descoberta e maturagio dos conceitos. Mas muito evidente, de qualquer maneira, que a contribuigio maior dos mestres do pensamento biol6gico consistiu no desenvolvi- ‘mento € no refinamento de conceitos, e, ocasionalmente, na eliminagdo de conceitos errOneos. A biologia evolucionista deve notavelmente grande parte desses conceitos a Charles Darwin; e a etologia a Konrad Lorenz. A histéria dos conceitos, tio negligenciada até agora, cheia de sur- Presas. “Afinidade” ou “parentesco”, usados na sistemitica pré-evolu- cionista para designar nao muito mais do que simples similaridade, Ppassaram a significar, apés 1859, “proximidade de descendéncia”, sem provocar qualquer confusio ou dificuldade. Mas, por outro lado, a tenta- tiva de Hennig de transpor o termo “monofilético”, de uma caracterizagio de um grupo taxionémico, para a caracterizagio de uma linhagem de descendéncia, causou penosos sobressaltos na taxionomia. O estudo dos conceitos, por vezes, revela sérias deficiéncias terminolégicas em algu- mas lfnguas. O termo resource. por exemplo, tao importante para a eco- logia (comparticéo de, competigao para, e assim por diante), nao tinha ‘equivalente em alemio, até que a palavra inglesa foi germanizada para Ressourcen, ‘HA conceitos de natureza mais diversa. A biologia, por exemplo, be- neficiou-se grandemente do apuro de conceitos quase filoséficos ou me- todol6gicos, como causalidade préxima e evolutiva, ou a delimitagao clara entre © método comparativo e o método experimental. O reconhe- cimento da existéncia de uma aproximagao comparativa significou a in- trodugio de um novo conceito na biologia. As dificuldades no interior de uma ciéncia sao particularmente gran- des quando se introduz um conceito verdadeiramente novo. Isso aconte- a (0 DESENVOLVIMENTO DO PENSAMENTO BIOLOGIC ceu, por exemplo, com a introdugdo da idéia de populagdo, como substi- tuta do conceito de esséncia de Plato, ou com a introdugdo de conceitos como selegdio, ou como genético (fechado) ou programas abertos. FE isso que Kuhn, em parte, estava dizendo quando se referia a revolugdes cienti- ficas. Em alguns casos, a simples introdugo de um termo novo, como “mecanismos de isolamento”, “‘taxionomia”, ou “teleondmico”, ajudou grandemente a esclarecer situagdes de conceitos anteriormente confusos. No mais das vezes, a barafunda conceitual teve que ser previamente eli- minada, antes que a introdugio de uma nova terminologia pudesse trazer algum beneficio. Isso aconteceu com os termos “gendtipo” e “'fendtipo”, de Johannsen (embora eles mesmos fossem um pouco confusos; veja Roll-Hansen, 1978a). ‘Uma outra dificuldade apresentada pelo fato de que um mesmo termo pode ser usado para conceitos diferentes, em ciéncias diferentes, ou mesmo em disciplinas de uma mesma ciéncia. O termo “evolugio” teve por vezes um significado muito diferente para embriologistas do século XVIII (Bonnet), ou para Louis Agassiz (1874), em comparagio com 0 dos darwinianos; igualmente, ele significou algo muito diverso para a maioria dos antropologistas (pelo menos os direta ou indiretamente influ- enciados por Herbert Spencer) do que para os selecionistas. Muitas con- trovérsias célebres na hist6ria da ciéncia foram provocadas quase inteiramente pelo fato de que os adversérios se referiam a conceitos muito diferentes, sobre o mesmo termo. Na histéria da biologia, a formulagdo de definiges comprovou-se como sendo muito dificil, bom nimero de definigées foi repetidamente ‘modificado. Isso nio deve causar surpresa, tendo em vista que as defini- ‘gOes so verbalizagbes tempordrias de conceitos, € os conceitos (parti cularmente 08 dificeis) sio usualmente repetidas vezes revisados, quando crescemos 0s nosso conhecimento e intelecedo, Isto é muito bem ilustra- do pelas definigdes de conceitos como espécie, mutagio, territério, gene, individuo, adaptagio e aptidao. HE um aspecto metodolégico da cigncia, extremamente importante, que foi muitas vezes mal compreendido, e que foi a causa maior da con- trovérsia sobre os conceitos de homologia ou classificagao. Trata-se da relagio entre uma definigZo e a evidéncia que essa definigio se efetiva ‘num caso particular (Simpson, 1961: 68-70). Isso fica melhor ilustrado por meio de um exemplo: o termo “homélogo” jé existia antes de 1859, ‘mas adquiriu o seu atual significado consensual apenas depois que Darwin estabeleceu a teoria da descendéncia comum. Segundo essa teoria, a de- OLUOAR DA BIOLOGIA NAS CIENCIAS ESUA ESTRUTURA CONCEITUAL, 8 finigao biologicamente mais significativa de “homélogo” & como segue: “Os tragos de duas ou mais taxas so homélogos, quando derivam de um mesmo (ou correspondente) trago do seu ancestral comum”, Mas qual a natureza da evidéncia que pode ser empregada para demonstrar uma pro- vavel homologia num caso dado? Existe todo um conjunto de tais crité os (como a posi¢ao de uma estrutura em relago a outras), mas seria completamente perturbadora a incluso de tal evidéncia na definigdo de “homélogo”, como foi feito por alguns autores. A mesma relago entre definigdo ¢ a evidéncia da sua realizagao concreta também na definiglo de virtualmente todos os termos usados em biologia. Por exemplo, um autor poderia tentar uma “classificagfio filogenética", mas pode estar con- fiando inteiramente na evidéncia morfol6gica para inferir parentesco. Essa particularidade nao faz com que seja uma classificago morfol6gica. A definigio de espécie mais largamente aceita hoje em dia inclui o crité- rio da-comunidade reprodutor (“intergerag30”). Um paleontélogo no tem como comprovar a intergeragdo nos seus materiais fésseis, mas pode usualmente juntar vérias outras espécies de evidéncias (associagZo, simi- laridade, ¢ assim por diante) para fortalecer a probabilidade de co- especificidade. A defini¢Zo articula um conceito, mas no precisa incluir as evidéncias da sua realizagao. A idéia de populagao versus essencialismo O pensamento ocidental, durante mais de dois mil anos depois de Platdo, foi dominado pelo essencialismo. Apenas no século XIX, come- ‘cou a espalhar-se um modo novo e diferente'de pensamento sobre a natu- reza, 0 assim chamado pensamento de populagio. O que é a idéia de Populago, e em que ela difere do essencialismo? Os pensadores de po- pulago acentuam a unicidade de cada coisa no mundo organico. O que para eles 6 importante 6 o individuo, nao o tipo, Eles enfatizam que cada individuo, em espécies reproduzfveis sexualmente, é, de maneira tinica, diferente de todos os outros, existindo, inclusive, grande individualidade em elementos de reprodugio uniparental. Nao h4 individuos “tipicos”, e valores de significagéo sio abstragdes. Muito do que pelo passado foi designado em biologia como “classes” & de fato populagées, constituidas de indivfduos tinicos (Ghiselin, 1974; Hull, 1976). pensamento de populagao existia em potencial na teoria leibnizia- nna das mOnadas, pois Leibniz postulava que cada ménada era individua- o ‘© DESENVOLVIMENTO DO PENSAMENTO BIOLOGICO listicamente diferente de qualquer outra mOnada: um abandono maior do essencialismo. Todavia, o essencialismo estava tfo fortemente arraigado na Alemanha, que a sugestio de Leibniz nfo resultou em qualquer pen- samento de populagio. Quando finalmente ele veio a se desenvolver alhu- res, teve duas vertentes. Uma constituida pelos criadores ingleses de animais (Bakewell, Sebright, e muitos outros) que chegaram a perceber que cada individuo dos seus rebanhos tinha caracterfsticas hereditérias diferentes, com base no que eles selecionavam os machos ¢ as matrizes para a proxima geragZo. A outra vertente foi a sistemética. Todo natura- lista prético ficava impressionado com a observagio de que, ao juntar uma “série” de individuos de uma iinica espécie, descobria que nem ‘mesmo dois espécimens eram completamente iguais. Nao foi apenas Da- win que acentuou isso, na sua obra sobre gansos, mas os seus préprios ctiticos colaboraram para esse ponto. Wollaston (1860), por exemplo, escreveu que centre as milhares de pessoas que nasceram no mundo, estamos seguros de que nem duas delas jamais foram precisamente iguais sob todos os aspectos; e, de modo sémelhante, nio seria excessivo afirmar o mesmo respeito de todas as criaturas vivas que jamais existiram (por mais se- ‘melhantes que algumas delas possam parecer aos nossos olhos destrei- nados). Afirmagdes semelhantes foram feitas por muitos taxionomistas da metade do século XIX. Tal unicidade se aplica no s6 aos individuos, ‘mas também a cada estégio do ciclo de vida do individuo, e a agregagdes de individuos, seja que se trate de demes (grupos de células indiferencia- das), de espécies, ou de associagdes de plantas e animais. Considerando 0 grande niimero de genes, que ora sio admitidos ora so eliminados de uma determinada célula, é perfeitamente possfvel que nem mesmo duas células do organismo sejam completamente iguais. Essa unicidade dos individuos biol6gicos implica que uma abordagem dos mesmos deve set feita num espftito bem diferente da maneira como tratamos grupos de seres inorginicos idénticos. Esse € 0 significado basico da idéia de po- pulagdo. As diferengas entre os individuos biol6gicos sdo reais, enquanto 0s valores de significagdo que podemos estipular na comparagdo de gru- pos de individuos (por exemplo espécies) sdo inferéncias externas. Essa diferenga fundamental entre as classificagdes dos cientistas fisicos € as populagdes dos biologistas traz vérias conseqiléncias. Aquele, por exem- ‘OLUGAR DA BIOLOGIA Nas CIENCIAS E SUA ESTRUTURA CONCEITUAL, 6s plo, que no entende a unicidade dos individuos € incapaz, de entender 0 funcionamento da selegao natural.® As estatisticas do essencialista sfo totalmente diferentes das do po- pulacionista, Quando medimos uma constante fisica - por exemplo, a velocidade da luz ~, sabemos que em circunstancias equivalentes ela 6 constante, e que qualquer variaco nos resultados observados é devida & inexatiddo da medida, sendo que a estatfstica simplesmente indica o grau de confiabilidade dos nossos resultados. As estatisticas antigas, de Petty ¢ Graunt a Quetelet (Hilts, 1973), eram estatisticas essencialistas, procu- rando chegar a valores verdadeiros, no intuito de superar 0s efeitos con- fusos da variagdo. Quetelet, um seguidor de Laplace, estava interessado nas leis deterministicas. Ele esperava, por esse método, poder chegar a calcular as caractertsticas do “homem médio”, isto é, a descobrir a “essén- cia” do homem. A variagdo no passava de “erros” em tomo dos valores significativos. Francis Galton foi talvez o primeiro a dar-se conta, plenamente, de que o valor de significago de populagdes biolégicas varidveis no passa de uma construgao. As diferengas de altura, dentro de um grupo de pes- soas, so reais, e nao o resultado da imprecisio da mensuragio, Os pard- metros mais interessantes na estatistica das populagdes naturais so a variag&o atual, o seu volume e a sua natureza. O volume da variagio dife- re de carter para cardter, e de espécie para espécie. Darwin no podia ter chegado a teoria da selegdo natural se nio tivesse adotado 0 pensamento de populagio. As afirmagdes radicais da literatura racista, por outro lado, quase sempre esto baseadas no pensamento essencialista (tipol6gico). ‘Tio importante quanto a introdugio de novos conceitos, como a idéia de populagdo, foi a’eliminagao, ou revisio, de conceitos err6neos, Este aspecto vem bem ilustrado pelo conceito de teleologia. O problema da teleologia Desde Platio, Aristételes ¢ os estéicos, prevalecia a crenga (negada pelos epicuristas) de que existe um objetivo, um fim predeterminado, na natureza € nos seus processos. Os partidérios dessa idéia, nos séculos XVIL e XVIII - 0s teleologistas ~ viam claramente a expresso de um objetivo n&o apenas na scala naturae, culminando no homem, mas tam- ‘bém na total unidade e harmonia da natureza e suas miltiplas adaptagbes, Em oposig&o aos teleologistas, estavam os mecanicistas estritos, que 6 (0 DESENVOLVIMENTO DO PENSAMENTO BIOLOGICO. encaravam 0 universo como um mecanismo que funciona de acordo com leis naturais. Mas, de qualquer maneira, a aparente finalidade do univer- s0, 08 processos orientados para um objetivo, no desenvolvimento dos individuos, bem como a adaptago dos érgios eram algo por demais evi- dente para ser ignorado pelos mecanicistas. Como poderia um mecanismo ser dotado de todas essas propriedades, como puro resultado de leis, sem ‘© concurso de causas finais? Talvez ninguém mais do que Kant tinha uma consciéncia aguda desse dilema. Ser a favor ou contra a teleologia per- ‘maneceu um grito de guerra ao longo do século XIX, entrando mesmo ‘nos tempos modernos. Somente nos iiltimos vinte e cinco anos, mais ou menos, a solugo tomou-se evidente. Estd bem claro hoje em dia que existem na natureza processos aparentes orientados para um fim, e que de forma alguma estio em conflito com uma explicagdo estritamente fisico-quimica. Como tan- tas vezes acontece na hist6ria da ciéncia, a solugéo foi encontrada pela dissecagio de um problema complexo, repartindo-o nos seus componen- tes. Ficou ébvio (Mayr, 1974d) que o termo “teleol6gico” tinha sido apli- cado a quatro diferentes conceitos ou processos. (1) Atividades teleonémicas. A descoberta da existéncia de programas genéticos forneceu uma explicagio mecdnica para uma categoria de fendmenos teleolégicos. Um proceso fisiolégico, ow um com- portamento, que deve a sua orientagdo a um fim & operagio de um programa, pode ser designado “teleondmico” (Pitendrigh, 1958). ‘Todos os processos de desenvolvimento individual (ontogenia), bem como todos os comportamentos aparentemente direcionados dos individuos, incidem nessa categoria, e se caracterizam por duas componentes: eles so guiados por um programa; e eles depen- dem da existéncia de algum termo, ou objetivo, previsto no programa que regula 0 comportamento. © termo final pode ser ‘uma estrutura, uma fungdo fisiolégica ou uma situagdo estével, a conquista de uma nova posi¢io geogréfica, ou um ato comporta- mental consumado. Cada programa particular € 0 resultado da se~ lego natural, e & ajustado constantemente pelo valor seletivo do termo alcangado (Mayr, 1974d). Arist6teles chamou essas causas “as causas do para qué” (Gotthelf, 1976). Do ponto de vista da causalidade, 6 importante salientar que tanto 0 programa como os estimulos que desencadeiam 0 comportamento finalistico prece- dem no tempo aos aparentes movimentos em direc a0 objetivo. Existem normalmente miltiplos expedientes de retroalimentagao, ‘LUGAR DA BIOLOGIA NAS CIENCIAS ESUA ESTRUTURA CONCEITUAL, a que melhoram a precistio do processo teleondmico, mas 0 aspecto verdadeiramente caracteristico do comportamento teleondmico & que ha mecanismos que iniciam, ou “causam”, esse comporta- mento voltado para o objetivo. Os processos teleondmicos sio particularmente importantes na ontogenia, na fisiologia e no com- portamento, Eles pertencem ao campo das causas préximas, mes- ‘mo que os programas tenfiam sido adquiridos ao longo da hist6ria da evolugio. So as metas que determinam a pressio seletiva, a qual causa a construgdo hist6rica do programa genético. (2) Processos teleomdticos. Qualquer processo, particularmente algum ‘que se relacione a objetos inanimados, em que um fim definido alcangado estritamente como consequéncia das leis fisicas, pode ser designado “teleomstico” (Mayr, 1974d). Quando uma rocha ‘que despenca alcanga o seu ponto final, 0 chiio, nfo esto af impli- ‘cados nenhuma busca do objetivo, nenhum comportamento inten- cional ou programado, mas apenas a conformidade com a lei da gravitagdo, £ o que acontece com um rio que flui inexoravelmente para 0 oceano. Quando uma pega incandescente de ferro alcanga uum estado final, em que a sua temperatura e a do meio ambiente siio iguais, 0 atingimento desse ponto é, mais uma vez, devido ao estrito cumprimento de uma lei fisica, a primeira lei da termodina- mica. O inteito processo da evolugio césmica, desde o primeiro big bang até 0 tempo presente, é rigorosamente devido a uma se- qiléncia de processos teleomticos, em que perturbagGes aleatérias so superimposigdes. As leis da gravitagdo e da termodinmica si- tuam-se entre as leis naturais que mais freqilentemente governam ‘08 processos teleomaticos. © préprio Arist6teles tinha consciéncia da existéncia em separado dessa classe de processos, referindo se a eles como sendo causados por “necessidade”. (3) Sistemas adaptados. Os tedlogos da teologia natural estavam par- ticularmente impressionados com o plano de todas as estruturas, responsdveis pelas fungOes fisiolégicas: 0 corago, que foi feito para bombear o sangue pelo corpo; os rins, que foram feitos para celiminar os subprodutos do metabolismo protéico; o tubo intestinal, que realiza a digestdo ¢ toma as substéncias nutritivas apro- veitéveis para 0 corpo, ¢ assim por diante. Uma das conquistas mais decisivas de Darwin foi haver mostrado que a origem e 0 aperfeigoamento gradual desses drgios podiam ser explicados por meio da selegao natural. E aconselhdvel, por isso, no usar o termo Cy (© DESENVOLVIMENTO DO PENSAMENTO BIOLOGICO teleol6gico (“orientado a um fim") para designar érgiios que deve a sua adaptagdo a um passado processo seletivo. Aqui, uma lin- guagem de adaptagio, ou selecionista, é mais apropriada (Munson, 1971; Wimsatt, 1972) do que uma linguagem teleolégica, a qual pode implicar a existéncia de forgas ortogenéticas como respons4- veis pela origem desses érgios. Estudamos sistemas adaptados mediante indagagées do porqué. Por que existem vélvulas nas veias? Sherrington (1906: 235) acentuou essa questo, de modo muito apropriado, em relagao ao reflexo: 'N&o podemos (...) obter um devido proveito do estudo de um particular Teflexo tipico, a menos que possamos discutir o seu objetivo imediato como um ato de adaptacio. (..) O objetivo de um reflexo parece um objeto de inguirigzo natural to legitimo e urgente como 0 objetivo da coloragio de um inseto ou de uma flor. E a importancia para a fisiologia consiste em que 0 reflexo no pode realmente ser inteligivel a0 fisiolo- gista, até que conhega a sua finalidade. (4) Teleologia césmica. Embora Aristételes tenha desenvolvido o seu conceito de teleologia com base no estudo do desenvolvimento in- dividual, onde ele 6 inteiramente legitimo, eventualmente aplicou-o também ao universo como um todo. Tendo isso acontecido dois ‘mil anos antes da proposi¢o da teoria da selecio natural, Arist6- teles s6 pOde pensar em duas altemnativas ao defrontar-se com ca- sos de adaptagiio: coincidéncia (acaso) ou objetivo. Desde que nao pode ser coincidéncia que os dentes molares so sempre achatados € 98 incisivos sempre agudos, a diferenga deve ser assinalada como objetivo. “Existe entio finalidade, no que hé e no que aconteve na natureza”, Por certo, séo tantos os reflexos no universo, que apa- rentam um objetivo, que a causalidade final deve ser postulada.” No devido tempo, esse conceito de teleologia césmica, particular- mente quando combinado com o. dogma cristo, tomou-se 0 conceito predominante da teologia natural. E essa teleologia que a ciéncia moder- na rejeita sem reservas. Nao h4, e nunca houve, qualquer programa com base no qual ocorreu uma evolugio césmica ou biolégica. Se existe um aparente aspecto de progress na evolucio biol6gica, desde os procarié- ticos de dois ou trés bilhGes de anos atrds, até as plantas ¢ os animais superiores, isso pode ser inteiramente explicado como o resultado de (LUGAR DA BIOLOGIA NAS CIENCIAS E SUA ESTRUTURA CONCEITUAL, o forgas seletivas, geradas pela competigio entre individuos e espécies, e pela colonizagio de novas zonas de adaptagio. Até que a selegfio natural nao fosse plenamente compreendida, mui- tos evolucionistas, desde Lamarck até H. F. Osborn e Teilhard de Chardin, postulavam a existéncia de uma forga nflo-fisica (talvez mesmo nfo- material), que impelia o mundo vivo para cima, na diregto de uma perfei- G0 sempre maior (ortogénese). Nao foi muito dificil para os biGlogos ‘materialistas mostrar que no hé evidéncia de uma tal forga, e que a evo- lugo raramente produz a perfeicdo, bem como que o aparente progresso na diregao de maior perfeicao pode ser perfeitamente bem explicado pela selegdo natural. A linearidade de muitas tendéncias evolutivas é devida as inumerdveis coagdes que o gendtipo e o sistema epigenético impéem na resposta as pressGes seletivas. A teoria da ortogénese foi recentemente reavivada por cientistas fisicos obstinados. Eigen (1971), na sua hist6ria dos hiperciclos, esté convencido de “que a evolucao da vida (...) deve ser considerada um pro- cesso inevitivel, a despeito do seu curso indeterminado”. Monod (1974a: 22) refere-se a Eigen e a Prigogine como sendo “animistas”, que deveram 0s seus esforgos 0 “haver mostrado, primeiramente, que a vida ndo podia deixar de aparecer sobre a terra, e, segundo, que a evolugao néo podia dei- xar de acontecer”. Os biologistas, naturalmente, haveriam de rejeitar os aspectos determinfsticos da teoria de Eigen, considerando que semelhan- tes conclusGes podem ser baseadas muito melhor em processos imprevi- stveis, constantemente “ordenados” pela selecZo natural. Monod, na sua teoretizagio, curiosamente nfo soube reconhecer 0 devido peso da sele- «do natural. ‘A decomposigio, em quatro titulos, do agregado de conceitos abran- gidos pelo termo “eleoldgico” é de ordem a eliminar a teleologia como fonte de argumento. Seria desejavel, todavia, que esses recentes avangos fossem mais amplamente conhecidos entre os ndo-biologistas. Por exem- plo, muitos psicélogos, nas suas discusses sobre comportamento direcio- nado, ainda trabalham com conceitos to indefintveis, como “inteng6es”, e “consciéncia”, que tomam impossfvel uma andlise objetiva. Desde que no temos como determinar quais animais (ou plantas) so dotados de intengdes ou de consciéncia, 0 uso desses termos nao acrescenta nada & andlise; a0 contrério, apenas a ofusca. O progresso na soluglo desses problemas depende de uma reconceitualizagio da intengo e da conscién- cia, em termos do nosso novo entendimento evolutivo. 0 ‘ODESENVOLVIMENTO DO PENSAMENTO BIOLOGICO Caracteristicas especiais dos organismos vivos ‘A questo por que alguns objetos da natureza so inanimados, en- quanto outros so vivos, € quais so as caracterfsticas especiais dos orga- nismos vivos j4 ocupou o pensamento dos antigos. Desde os tempos dos epicuristas e de Aristoteles, até as primeiras décadas deste século, sempre houve duas interpretagdes opostas sobre o fenémeno da vida, De acordo ‘com uma das escolas ~ os mecanicistas -, 0s organismos no passam de méquinas, cujos movimentos podem ser explicados pelas leis da mecéni- a, da fisica e da quimica. Muitos mecanicistas dos séculos XVII e XVIII no chegavam a discernir uma diferenga significativa entre uma pedra e um organismo vivo, No compartilhavam ambos as mesmas caracterfsticas — gravidade, inércia, temperatura, e assim por diante - € niio obedeciam as mesmas forgas fisicas? Quando Newton propds a sua lei da gravitagZo, ‘em termos puramente mateméticos, muitos dos seus seguidores postula- vam uma forga gravitacional invisivel, mas estritamente materialista, para explicar tanto os movimentos planetérios como a gravidade terrestre. Fa- zendo recurso & analogia, alguns biologistas invocaram uma forga igual- ‘mente materialista invistvel (vis viva), para explicar os processos vivos. ‘Autores posteriores, todavia, acreditavam que essa forga vital era exterior ao domfnio das leis fisico-quimicas. Continuaram, assim, a tradi- go que comegou com Arist6teles € outros fil6sofos antigos. Essa escola vitalista opunha-se aos mecanicistas, acreditando que nos organismos vivos existem processos que no obedecem as leis da fisica e da quimica. vitalismo teve os seus expoentes mesmo no século XX, sendo 0 embrio- logista Hans Driesch um dos wtimos. De qualquer modo, pelos anos 1920 ou 1930, os biologistas ja praticamente rejeitavam universalmente 0 vitalismo, por duas razdes principais. Em primeiro lugar, o vitalismo, virtualmente, abandona o reino da ciéncia, para cair num fator desconhe- cido, e presumivelmente desconhecfvel; e segundo, porque se tornou eventualmente possivel explicar em termos fisico-qumicos todos aqueles fenémenos que, de acordo com os vitalistas, “demandavam” uma expli- cago vitalista, Pode-se dizer tranqjlilamente que, para os bidlogos, 0 Vitalismo foi um natimorto durante mais de cinglienta anos. Mas, curio- samente, nesse mesmo perfodo, ainda foi defendido por bom niimero de fisicos e filésofos. abandono do vitalismo foi possfvel pela rejeigio simultanea do conceito tosco de que “os animais outra coisa nao sio do que méquinas”. Como Kant, nos seus itimos anos, muitos biologistas deram-se conta de (LUGAR DA BIOLOGIA NAS CIENCIAS ESUA ESTRUTURA CONCETTUAL n que os organismos vivos so diferentes da matéria inanimada, e que essa diferenga devia ser explicada no postulando uma forga vital, mas, antes, modificando drasticamente a teoria mecanicista. Tal teoria comega por admitir que nos processos, fungdes e atividades dos organismos vivos nada hé que esteja em conflito com qualquer lei da fisica e da quimica, ou de fora delas. Todos os biologistas sfo inteiramente “materialistas”, no sentido de que néo reconhecem forgas sobrenaturais, ou imateriais, mas apenas forgas fisico-quimicas. Nao aceitam, contudo, a explicagio mecanicista ingénua de século XVII, e discordam da afirmagao segundo 2 qual os animais “ndo so outra coisa” do que méquinas. Os bidlogos organicistas acentuam o fato de que os organismos so dotados de muitas caracteristicas que nfo tém paralelo no mundo dos objetos inanimados. © aparato explicativo das ciéncias fisicas 6 insuficiente para dar conta dos sistemas vivos complexos, e, em particular, da interago entre infor- ‘magdo historicamente adquirida e as respostas desses programas genéti cos sobre o mundo fisico. Os fendmenos vitais tém um objetivo mais amplo do que os fenémenos relativamente simples de que tratam a fisica a quimica. E essa a razio por que é simplesmente impossivel incluir a biologia na fisica, tanto quanto € impossfvel incluir a fisica na geometria. Tentativas para definir a “vida” foram feitas com frequéncia. Tais esforgos sdo simplesmente fiteis, pois hoje esté perfeitamente claro que ‘no hé uma substincia especial, um objeto, ou uma forga que possam ser identificados com a vida. Contudo, os processos da vida podem ser defini- dos. Nao hi divida de que 0s organismos vivos possuem certos atributos {que ndo se encontram, ou nfo se encontraim da mesma maneira, nos objetos inanimados. Autores diversos salientaram caracterfsticas diversas, mas eu no consegui encontrar na literatura uma listagem adequada de tais tragos. A lista que a seguir apresento é presumivelmente 20 mesmo tempo incompleta e um pouco redundante. Ela poderd servir, de qualquer maneira, para a busca de uma melhor tabulagdo, para ilustrar os tipos de caracte- risticas pelas quais os organismos vivos diferem da matéria inanimada, Complexidade e organizagao A complexidade, por si s6, ndo & uma diferenga fundamental entre sistemas orginicos e inorginicos. Existem alguns sistemas inanimados altamente complexos (as massas do sistema climético do mundo, ou qualquer galéxia), mas existem também alguns sistemas organicos relati- ‘vamente simples, como muitas macromoléculas. Os sistemas podem ter Invern roe n O DESENVOLVIMENTO DO PENSAMENTO BIOLOGICO qualquer grau de complexidade, mas, em média, os sistemas no mundo dos organismos so infinitamente mais complexos do que os dos objetos inanimados. Simon (1962) definiu os sistemas complexos como sendo aqueles em que ‘© todo € mais do que a soma das partes, ndo no sentido tiltimo, meta co, mas no importante sentido pragmético, em que, dadas as proprieda- des das partes ¢ as leis da sua interaglio, mo € questio de menor importincia inferir as propriedades do todo. Aceito essa definigto, exceto que podemos continuar a considerar al- guns sistemas relativamente simples - como o Sistema Solar ~ tio com- plexos ainda, mesmo apés termos conseguido explicar a sua complexidade, A complexidade dos sistemas vivos existe em todos os nfveis, desde o nticleo (com 0 seu programa de DNA), até a célula, até cada sistema organico (como os rins, 0 figado, ou 0 cérebro), 0 individuo, © ecossistema, ou a sociedade. Os sistemas vivos so invariavelmente caracterizados por sofisticados mecanismos de retroalimentagdo, desco- nhecidos, na sua preciso e na sua complexidade, em qualquer sistema inanimado, Eles tém a capacidade de responder aos estimulos extemnos, a capacidade de metabolismo (absorvendo ou liberando energia), bem ‘como a capacidade de crescer e diferenciar-se. Os sistemas vivos nao possuem uma complexidade casual, a0 contré- tio, so altamente organizados. Muitas estruturas de um organismo sio sem sentido, quando separadas do organismo; asas, cabega, pernas, rins no podem viver por si mesmos, mas apenas como partes do conjunto. Conseqilentemente, todas as partes tém um significado de adaptagio, € podem ser capazes de realizar atividades teleon6micas. Uma tal adapta- Go mdtua das’ partes no existe no mundo inanimado, Essa miétua co- adaptagio das partes j& era conhecida por Aristételes, quando dizia: “As- sim como cada instrumento € cada membro corporal servem a um fim parcial, isto &, a alguma especializagdo, assim também o corpo todo deve estar destinado a servir a alguma esfera plendria de ago" (De Partibus 1.5.645a 10-15) Unicidade quimica Os organismos vivos so compostos de macromoléculas, com as mais extraordinérias caracteristicas. Por exemplo, h4 Acidos nucléicos (LUGAR DA BIOLOGIA NAS CIENCIAS SUA ESTRUTURA CONCEITUAL n que podem ser convertidos em polipeptidios, enzimas que servem de catalisadores nos processos metabélicos, fosfatos que permitem transfe- réncia de energia, e lipidios que podem construir membranas. Muitas dessas moléculas sto tdo especificas e tio unicamente capazes de realizar ‘uma fungio particular, como a rodopsina nos processos de fotorrecepcio, que ocorrem no reino animal e das plantas sempre que hé necessidade dessa particular fungio. Essas macromoléculas orgiinicas no diferem, ‘em principio, das outras moléculas. Mas, de qualquer maneira, elas so muito mais complexas do que as moléculas de baixo peso molecular, que so as componentes regulares da natureza inanimada. As macromoléculas orgfinicas maiores normalmente nffo se ncontram na matéria inanimada, Qualidade O mundo fisico é um mundo de quantificagdo (movimentos e forgas newtoniianos) e de agdes de massa. Em contraste, o mundo vivo pode ser designado como um mundo de qualidades. Diferengas individuais, siste- ‘mas de comunicagdo, informages armazenadas, propriedades das gran- des moléculas, interagdes em ecossistemas e muitos outros aspectos dos organismos vivos so prevalentemente de natureza qualitativa. Pode-se traduzir esses aspectos qualitativos em aspectos quantitativos, mas com isso perde-se 0 real significado do respectivo fendmeno bioldgico, exa- tamente como se se quisesse descrever uma pintura de Rembrandt em termos do comprimento de ondas da cor predominant, refletida por cada milfmetro quadrado da obra. De forma semelhante, muitas vezes na hist6ria da biologia os esfor- g0s diligentes para traduzir fendmenos biol6gicos qualitativos em termos Tatemiticos revelaram-se, finalmente, um completo fracasso, porque perderam o contato com a realidade. Os primeiros esforgos no sentido de enfatizar a importincia da qualidade, como os de Galeno, Paracelso e van Helmont, voltaram-se igualmente a0 insucesso, por causa da escolha de parimetros errados; mas foram os primeiros passos na diregio certa, Os campedes da quantificago tendem a considerar as manifestagdes da qua- lidade algo ndo-cientifico, ou, na methor das hipéteses, algo puramente descritivo e classificat6rio, Revelam, por esse viés, quio pequena é a sua compreensiio dos fendmenos da natureza biolégica. A quantificagéo é importante em muitos campos da biologia, mas nfo a ponto de excluir todo aspecto quantitativo, ™ ‘ODESENVOLVIMENTO DO PENSAMENTO BIOLOGIC Este € particularmente importante nos fendmenos relacionais, que sio precisamente os fendmenos que dominam a natureza viva. Espécies, classificagio, ecossistemas, comportamento comunicativo, regulagdo, bem como quase todos os outros processos biol6gicos dizem respeito a pro- priedades relacionais. Estas, na maioria dos casos, s6 podem ser expres- sas qualitativamente, néo quantitativamente. Unicidade e variabilidade Em biologia, raramente lidamos com classes de entidades idénticas, ‘mas quase sempre se estudam populagdes, que consistem em individuos Ainicos. Isso & vélido para cada nfvel da hierarquia, das células aos ecos- sistemas. Muitos fendmenos biolégicos, particularmente fendmenos de po- pulagio, caracterizam-se por variagdes extremamente altas. Tipos de evolu- 40, ou tipos de especiagto, podem diferir entre si em trés e até cinco ordens de magnitude, um grau de variabilidade que, raramente ou nunca, se encontra nos fenémenos fisicos. Enquanto as entidades nas ciéncias fisicas, digamos dtomos ou partf- cculas elementares, possuem caracterfsticas constantes, as entidades biol6- gicas caracterizam-se por sua mutabilidade. As células, por exemplo, alteram continuamente as suas propriedades, e assim também ocorre com 05 individuos. Todo individuo esté sujeito a mudangas drésticas, desde 0 nascimento até a morte, isto é, desde 0 zigoto original, ao longo da ado- lescéncia, da idade adulta, da senectude, até a morte. Mais uma vez, nfo hd nada parecido com isso na natureza inanimada, exceto em relagio a0 declinio radioativo, ao comportamento de sistemas. altamente complexos (tais como a Torrente de Gulf, ¢ sistemas climéticos), e a algumas vagas analogias na astrofisica. Posse de um programa genético ‘Todos os organismos possuem um programa genético historicamente aperfeigoado, codificado no DNA do niicleo do zigoto (ou no RNA, em alguns virus), Nada de semelhante existe no mundo inanimado, exceto nos computadores, feitos por mio humana, A presenga desse programa confere aos organismos uma peculiar dualidade, consistindo num fenstipo ipo (veja Cap. 16). Dois aspectos desse programa devem ser ‘OLUGARDA BIOLOGIA NAS CIENCIAS E SUA ESTRUTURA CONCETTUAL 15 especialmente enfatizados: o primeiro é que ele € 0 resultado de uma hist6- ria que remonta & origem da vida, e por isso incorpora as “experiéncias” de todos os antepassados (Delbriick, 1949). O segundo € que ele dota os organismos da capacidade de realizar processos e atividades teleondmi- cos, capacidade essa totalmente ausente no mundo inanimado. Exceto em relagio & zona de penumbra da origem da vida, a posse de um programa genético € responsével por uma diferenga absoluta entre os organismos € amatéria inanimada, ‘Uma das propriedades do programa genético & que ele consegue co- ‘mandar a sua prépria repeticZo precisa, bem como a de outros sistemas vivos, como organelos, células € organismos inteiros. Nada ha exata- mente igual na natureza inorganica. Um erro ocasional poderé ocorrer durante a réplica (digamos um erro em dez mil ou em cem mil réplicas). ‘Uma vez consumada tal mutagio, ela passa a ser um trago constante do programa genético. A mutagio é a fonte priméria de toda variagio genética. ‘A plena compreensio da natureza do programa genético foi alcanga- da pela biologia molecular, apenas em 1950, apés haver elucidado a es- trutura do DNA. Sem embargo, os antigos j4 haviam sentido que devia existir alguma coisa que ordenava a matéria bruta nos sistemas padroni- zados dos seres vivos. Como Delbriick (1971) salientou corretamente, os eidos de Atist6teles (embora considerado imaterial, por ser invisfvel) era virtualmente idéntico, no conceito, ao programa ontogenético do fisiolo- gista evolutivo. O moule intérieur de Buffon era também uma descoberta, nesse sentido. Todavia, foi necessério o surgimento da informatica para que 0 conceito de um tal programa fosse realmente levado em considera- ‘slo. O que € particularmente importante & que o programa genético em si mesmo permanece inalterado, enquanto emite as suas instrugbes para 0 corpo. O conceito global de programa é to inovador que ainda encontra resisténcias por parte de muitos filésofos. Natureza hist6rica Um dos resultados da posse de um programa genético herdado € que as classes dos organismos vivos nd se aproximam ou nio se reconhecem primariamente pela similitude, mas pela descendéncia comum, isto é, por ‘um conjunto de propriedades reunidas, devidas a uma hist6ria comum, Em decorréncia disso, muitos dos atributos das classes, reconhecidos pelos Iégicos, nfo sto de forma alguma caracterfsticas préprias da espé- 16 (ODESENVOLVIMENTO DO PENSAMENTO BIOLOGICO cie ou de ordenamentos superiores. Isso também é vélido para as linha- gens de células, na ontogenia, Em outras palavras, as “classes” do biolo- gista muitas vezes nio sfo equivalentes as “classes” do I6gico. Isso deve ser lembrado em muitos aspectos relativos a definigdes, acima de tudo no que se refere & questio de saber se 0s critérios da espécie so “os indivi- duos” ou as classes Selegdo natural A selegio natural, a reprodugo diferenciada de individuos que dife- rem unicamente na sua superioridade de adaptagao, € um processo que no tem equivalente exato nos processos de mudangas do mundo inani- mado. Tendo em vista 0 quanto a seleg4o natural ainda continua sendo mal compreendida, vale a pena citar a arguta observagdo de Sewall Wright (19674): © proceso darwiniano do jogo continuo entre 0 acaso e 0 processo se~ Ietivo nfo se situa no meio termo entre a pura casualidade e 0 puro de- terminismo, mas sim nas suas conseqléncias, completamente diferentes de uma. de outro, no seu aspecto qualitativo. Tal proceso, pelo menos nas espécies reproduzfveis sexualmente, & além disso caracterizado pelo fato de que, por meio de recombinagio, se organiza um novo conjunto de genes, a cada geragio, e com isso se ins- taura um comego novo e imprevisivel, no procedimento seletivo da nova geragé Indeterminismo Foi discutida longamente entre biologistas e fildsofos a questo de se (8 processos fisicas e os processos biol6gicos diferem nos aspectos de de- io, Infelizmente, consideragdes epistemol6gicos € on- tolégicas foram solidamente confundidas, e isso impediu uma boa solugo. ‘A previsdo do mundo esté sendo usada em dois sentidos inteira- mente diferentes. Quando 0 filésofo da ciéncia fala de previsio, ele tem em mente a previsio ldgica, isto é, a conformidade da observagto indivi- dual com uma teoria ou uma lei cientifica, A teoria da descendéncia co- mum de Darwin, s6 para dar um exemplo, permitiu a Haeckel a previsto (OLUGAR DA BIOLOGIA NAS CIENCIAS E SUA ESTRUTURA CONCEITUAL, n de que “os elos perdidos” entre o macaco € o homem seriam encontrados nos documentos fésseis. As teorias so testadas mediante as previs6es que elas permitem, Dado que as ciéncias fisicas so um sistema de teorias com um alcance bem mais amplo do que a biologia, a previstio desempe- ‘nha nelas um papel muito maior do que na biologia. > A previsdo, no uso cotidiano, 6 uma inferéncia do presente no futuro; ela trata de uma seqiiéncia de eventos, ela & uma previsdo temporal, Nas leis estritamente deterministicas da fisica, as previsdes temporais abso- Tutas sio muitas vezes possiveis, como as previsdes da ocorréncia de eclipses. Mas as previsOes temporais nas ciéncias biolégicas so muito mais raramente possiveis. O sexo do préximo filho de uma familia nfo pode ser previsto. Ninguém poderia ter previsto, no inicio do Cretéceo, que 0 florescente grupo dos dinossauros se extinguiria ao final daquela era, As previsées, na biologia, em média, sdo muito mais probabilisticas do que nas ciéncias fisicas. ‘A existéncia dos dois tipos de previso deve ser levada em conta quando se discutem causalidade e explicagio. G. Bergmann define uma explicagao causal como sendo tal “que, pertencendo a uma lei da nature- za, permite fazer previsdes sobre estados futuros de um sistema, quando conhecido o seu estado no presente”. Essencialmente, trata-se af apenas a tradugo em outras palavras da notGria pretensio de Laplace. Enuncia- dos desse tipo foram rejeitados por Scriven (1959: 477), ao afirmar que a previsdo (temporal) nao é parte da causalidade e “que no se pode consi- derar explicagdes como insatisfat6rias, quando elas (...) ndo sao tais que petmitiram a previsio do evento em questo”. Na biologia, e particularmente na biologia evolutiva, as explicagdes, ordinariamente, dizem respeito a narrativas hist6ricas. J4 no distante ano de 1909, Baldwin especificava duas razBes por que os eventos biolégicos sfo tio freqiientemente imprevisfveis: a grande complexidade dos siste- mas biolégicos, e a freqiiéncia com que emergem novidades inesperadas nos nfveis hierérquicos mais altos. Eu poderia enumerar diversas outras. Algumas delas podem ser consideradas indeterminagdes ontol6gicas, outras epistemolégicas. Esses fatores nfo abalam o principio da causali- dade, concebido num sentido “pés-visto”.* Casualidade de um evento, em relagio & sua significincia. A mutagdo espontinea, causada por-um erro na réplica do DNA, ilustra muito bem essa causa da indeterminagdo. NZo h4 conexdo alguma entre o evento molecular e sua significancia potencial, © mesmo se aplica a eventos tais como permuta, segrezagio cromossémica, selecdo gamética, selegdo de 8 ‘ODESENVOLVIMENTO DO PENSAMENTO BIOLOGICO parceiro, e a muitos outros aspectos da sobrevivéncia, Nem os fenémenos moleculares subjacentes, nem 0s movimentos mecdnicos envolvidos em alguns desses processos esttio relacionados aos seus efeitos biolégicos. Unicidade. As propriedades de um evento tnico, ou de uma entidade \inica recentemente produzida, nfo podem ser previstas (veja anterior- mente). Magnitude das perturbagdes estocésticas, Permito-me ilustrar os efeitos dese fator mediante um exemplo. Digamos que uma espécie con- siste em um milhio de individuos diferentes e tinicos, Cada individuo tem a possibilidade de ser morto por um inimigo, sucumbir a uma pato- genia, enfrentar uma catdstrofe da natureza, de padecer desnutrigto, fra- cassar no encontro de um parceiro, ou perder a sua descendéncia antes que esta possa reproduzir. Estes so alguns dos numerosos fatores que determinam 0 éxito reprodutivo, Qual desses fatores seré 0 verdadeiro agente, isso depende de constelages circunstantes altamente variéveis, as quais sio tinicas e imprevisfveis. Temos, assim, dois sistemas alta- mente varidveis (individuos tinicos e constelagGes circunstanciais Gnicas) interagindo. 6 0 acaso que determina, em larga medida, a forma como eles se entrelagam. Complexidade, Cada sistema orginico é to rico em retroalimen-tagao, recursos homeostiticos, e de caminkos miltiplos possiveis, que uma des- crigaé completa é simplesmente impossivel. Por isso, é também impossf- vel a previsdo dos seus efeitos. Além do mais, a andlise de um tal sistema requereria a sua destruigdo, impedindo, com isso, a propria efetivagao da andlise. Emergéncia de qualidades novas imprevisiveis nos niveis hierdr- quicos (isso seré discutido mais detalhadamente a seguir). As oito caracterfsticas apontadas, a par de algumas outras adicionais, a serem mencionadas mais adiante, na discussio sobre 0 reducionismo, tornam bem claro que um sistema vivo é algo profundamente diferente de qualquer objéio inanimado. Ao mesmo tempo, nenhuma dessas caracte- risticas est em conflito com uma interpretagao estritamente mecanicista do mundo. Redugao e biologia A proclamagio de uma autonomia da ciéncia dos organismos vivos segundo manifestado pelos oito caracteres tinicos ou especiais, anterior- mente listados, teve acolhida bastante impopular junto a muitos cientistas ‘OLUGAR DA BIOLOGIA NAS CIENCIAS B SUA ESTRUTURA CONCEITUAL, 9 fisicos e a filésofos das ciéncias fisicas. Bles reagiram, afirmando que a aparente autonomia do mundo da vida realmente ndo existe, mas que todas as teorias da biologia podem, pelo menos em principio, ser reduzi- das as teorias da fisica. Isto, segundo afirmam, restabelece a unidade da cigncia, ‘ A assertiva de que o reducionismo é a tinica aproximagio justificével € muitas vezes reforgada pela afitmagio adicional de que a alternativa seria 0 vitalismo, Isso ndo € verdade. Mesmo que alguns anti-reducio- nistas tenham sido de fato vitalistas, virtualmente todos os anti-redu- cionistas recentes rejeitaram, de modo enfético, o vitalismo. Hoje em dia, seria dificil encontrar uma palavra mais ambfgua do que © verbo “reduzir”, Ao estudar a literatura reducionista, descobrimos que 0 termo “redugio” foi utilizado em pelo menos ts sentidos diferentes (obrhansky e Ayala, 1974; Hull 1973b; Schaffner, 1969; Nagel, 1961). Reducionismo constitutivo Ele afirma que a composi¢ao material do organismo € exatamente a mesma que se encontra no mundo inorganic. Além disso, estabelece que nenhum dos eventos e processos no mundo dos organismos vivos esté em qualquer conflito com os fendmenos fisico-quimicos, em nivel dos éto- mos e das moléculas. Tais afirmagdes so aceitam pelos modemos biolo- gistas, A diferenga entre a matéria inorginica ¢ os organismos vivos no consiste na substincia de que sio compostos, mas na organizagtio dos sistemas biol6gicos, O reducionismo constitutivo, por isso, nao é contro- vertido. Virtualmente, todos os biologistas aceitam as proposigdes do Teducionismo constitutivo, ¢ assim o fizeram (exceto os vitalistas) nos iiltimos duzentos anos ou mais. Os autores que aceitam 0 reducionismo constitutive, mas rejeitam outras formas de redugGo, ndo sio vitalistas, apesar das opinides em contrétio de alguns fil6sofos. Reducionismo explicativo Este tipo de reducionismo assevera que nio se pode compreender um todo enquanto no é dissecado nos seus componentes, e estes, por sua vez, nos seus préprios componentes, e assim por diante até o nivel {nfimo de imegrago, Nos fendmenos biol6gicos, isto significa reduzir o estudo 80 (ODESENVOLVIMENTO DO PENSAMENTO BIOLOGICO de todos os fendmenos em nfvel molecular, isto é, “a biologia molecular & tudo na biologia”. Sem diivida, 6 bem verdade que tal reducionismo ex- plicativo, por vezes, é iluminante. O funcionamento dos genes ndo era entendido, até que Watson e Crick estabelecessem a estrutura do DNA. Da mesma forma, na fisiologia, 0 funcionamento de um érgio em geral no € plenamente compreendido, até que sejam esclarecidos os processos moleculares, em nivel de célula, Hi, contudo, diversas limitagGes severas em relagdo a uma tal redugio explicativa. Uma delas 6 que os processos, no seu nfvel hierdrquico mais ele- vado, sio muitas vezes largamente independentes dos de niveis mais baixos. As unidades dos niveis mais baixos podem ser to completamente integradas que operam como unidades nos niveis mais altos. O funciona- mento de uma articulagdo, por exemplo, pode ser explicado sem um co- nhecimento da composico quimica da cartilagem. Além disso, 20 substituir a superficie articulada por um plistico, como ¢ feito na modema cirurgia, pode-se restaurar completamente 0 funcionamento normal de ‘uma articulagio. Existem, provavelmente, tantos casos em que a disseca- ‘gd de um sistema funcional nos seus componentes € instil, ou pelo menos itrelevante, quanto outros em que isso oferece valor explicative, Uma aplicagao fécil da reduc explicativa, na histéria da biologia, fez. muitas vezes mais mal do que bem. Exemplos disso s4o a antiga teoria das célu- las, que interpretava 0s organismos como sendo “um agregado de células”, ou a primitiva genética de populagdo, que considerava o genétipo um agregado de genes independentes, com constantes valores de adaptagio, reduciopismo analttico extremo é um fracasso, porque nao conse- gue atribuir 0 valor apropriado a interagdo dos componentes de um siste- ma complexo. Um componente isolado, quase invariavelmente, tem caracteristicas que sio diferentes das do mesmo componente, quando faz parte do seu conjunto; ¢ quando isolado nao revela a sua contribuigo para as interag6es. René Dubos (1965: 337) salientou bem as razbes por que a aproximagdo atomizada é singularmente improdutiva, quando apli- cada a sistemas complexos: Nos fendmenos vitais mais comuns, e provavelmente os mais importan- tes, as partes constitutivas sio to interdependentes que perdem 0 seu ccaréter, 0 seu sentido, € com certeza a sua existéncia prépria, quando dissecadas dos conjunto funcional. Ao tratar de problemas de complexi- dade organizada, é por isso essencial investigar as situagdes em que di- versos sistemas correlacionados funcionam de uma maneira integrada, ‘LUGAR DA BIOLOGIA NAS CIENCIAS ESUA FSTRUTURA CONCEITUAL. a AAs conclusdes mais importantes que podemos extrair de um estudo critico do reducionismo explicativo 6 que os niveis inferiores das hierar- quias, ou sistemas, fornecem apenas uma quantidade limitada de infor- magGes sobre as caracteristicas e processos dos niveis superiores. Como bem o exprimiu 0 fisico P. W, Anderson (1972: 393-396): Quanto maior aimportncia da panculaelementar, de que flam os fisi- ‘cos, para a natureza das leis fundamentais, tanto menor a relevncia que essas particulas parecem ter para os problemas verdadeiramente reais do resto da ciéncia, e muito menos para a sociedade. Quanto ao mais, 6 propriamente equivocado aplicar o termo “redugao” a um método analitico. H& muitas outras maneiras pelas quais a andlise de sistemas biol6gi- cos complexos pode ser facilitada, A genética de animais, por exemplo, foi originariamente estudada em cavalos, vacas e cachorros, @ outros mamiferos grandes. Os geneticistas, mais tarde, voltaram-se para as aves varias espécies de roedores. Para obter mais numerosas geragoes por ano, ¢ talvez sistemas genéticos mais simples, os roedores foram substi- tufdos, apés 1910, na maioria dos laborat6rios genéticos, pela Drosophila melanogaster, e por outras espécies de Drosophila. A isso se seguiu a ‘mudanga, nos anos 1930, para o Neurospora e outras qualidades de fun- ‘g0s (fermentos). Finalmente, a maior parte da genética molecular passou a ser realizada com bactérias (por exemplo, Escherichia coli) e virus di- versos. Acrescentando-se a uma mais répida seqtiéncia de geragdes, 0 esforgo voltou-se para a procura de sistemas genéticos cada vez mais, simples, deles extrapolando para sistemas mais complexos. De modo geral, esse objetivo coroou-se de pleno éxito, exceto 0 fato de que o sis- tema genético de procariotos (bactérias).¢ de virus revelou-sc, eventual- mente, nfo perfeitamente compardvel ao de eucariotos, em que o material genético € organizado em cromossomos complexos. Por esse motivo, a simplificagdo deve ser encarada com cuidado. H4 sempre 0 perigo de passar-se a um sistema que, na sua simplicidade, seja a tal ponto diferente que nfio serve mais como comparagto, Reducionismo tedrico Esse tipo de reducionisino postula que as teorias e as leis, formuladas em um campo da ciéncia (usualmente um campo mais complexo, ou mais elevado na hierarquia), podem revelar-se como casos especiais de 82 CO DESENVOLVIMENTO DO FENSAMENTO BIOLOGICO teorias ¢ de leis formuladas em algum outro ramo da cigncia. Quando isso ocorre efetivamente, um ramo da ciéncia foi “reduzido” a outro, na * curiosa linguagem de certos fil6sofos da cigncia. Para tomarmos um caso especifico, a biologia 6 considerada como sendo reduzida a fisica, quando 08 termos da mesma sfo definidos em termos da fisica, e quando as suas leis so deduzidas das leis da fisica. Essa redugio te6rica foi tentada repetidas vezes no seio das ciéncias fisicas, mas, de acordo com Popper (1974), nunca com pleno éxito. Nao tenho conhecimento de que alguma teoria bioldgica tenha jamais sido reduzida a uma teoria fisico-quimica. A afirmago de que a genética te- tha sido reduzida A quimica, apés a descoberia da estrutura do DNA, RNA, € certas enzimas, nfio tem como ser justificada. £ certo que a natu- reza quimica de numerosas caixas-pretas, na teoria genética clissica, foi confirmada, mas isso de forma alguma afetou a natureza da teoria da genética de transmissdo. Por mais gratificante que seja poder suplementar a teoria classica da genética por meio da andlise quimica, isso nfo reduz minimamente a genética & quimica. Os conceitos essenciais da genética, tais como gene, genstipo, mutacao, diploidia, heterozigoticidade, segrega- go, recombinagdo, e assim por diante, nao sao de forma alguma conceitos quimicos, e debalde procurar-se-ia por eles nos manuais de quimica. O reducionismo teérico € uma faldcia, porque confunde processos e conceitos, Como Beckner (1974) acentuou, processos tais como meiose, gastrulagio © predago sfo também processos quimicos e fisicos, mas s6 biologicamente so conceitos, e nao podem ser reduzidos a concepgdes ffsico-quimicas. Além disso, qualquer estrutura adaptada & resultado da selegdo, mas isso, mais uma vez, 6 um conceito que nifo pode ser expresso em (ermos estritament fisico-quimicos. Trata-se de uma falécia, porque deixa de levar em consideragio 0 fato de que © mesmo evento pode ter sentidos inteiramente diferentes, em diversos esquemas conceituais diferentes. O cortejo de um macho, por exemplo, pode ser inteiramente descrito na linguagem e na estrutura con- ceitual das cigncias fisicas (locomog&io, movimentagdo de energia, pro- cessos metabélicos, e assim por diante), mas pode também ser descrito mediante 0 aparato da biologia comportamental ou reprodutiva, © mesmo se aplica a muitos outros eventos, propriedades, relagdes e processos relativos aos organismos vivos. Espécie, competi¢ao, territério, migragao € hibemagao sto exemplos de fendmenos de organismos, para os quais uma descrigao puramente fisica 6, na melhor das hipéteses, incompleta, ¢ em geral biologicamente irrelevante, ‘OLUGAR DA BIOLOGIA NAS CIENCIAS ESUA ESTRUTURA CONCEFTUAL, 83 Essa discussdo do reducionismo pode ser resumida, dizendo que a andlise de sistemas € um método vélido, mas que as tentativas de “redugdo” de conceitos ou fendmenos puramente biol6gicos a leis das ciéncias fisicas raramente, ou nunca, t@m conduzido a qualquer avango ha nossa compreensio. A redugo é quando muito uma aproximagao in6- cua, mas com muito maior freqtiéncia completamente enganadora e Tatil, Essa futilidade € particularmente bem ilustrada pelo fendmeno da emergéncia, Emergéncia Os sistemas quase sempre tém a peculiaridade de que as caracteristi- cas do todo, por mais completo que seja, nfio podem (nem mesmo em teoria) ser deduzidas do conhecimento das partes, consideradas em sepa- rado ou em outras combinagées parciais, Esse aparecimento de caracte- risticas novas nos conjuntos foi designado emergéncia? A emergéncia, muitas vezes, foi invocada nas tentativas de explicar fenémenos tao difi- ceis como a vida, a mente e a consciéncia, Atualmente, a emergéncia € também uma caracterfstica de sistemas inorganicos. Jé em 1868, T. H. Huxley afirmava que as propriedades peculiares da égua, a sua “aquosi- dade”, nfio podiam ser deduzidas do nosso entenidimento das proprieda- des do hidrogénio e do oxigénio. Mas a pessoa que, mais do que ninguém, foi responsdvel pelo reconhecimento da importancia da emer- géncia foi Lloyd Morgan (1894), Nao hé diivida, disse ele, “que, nos varios graus de organizagio, as configuragdes materiais revelam fendme- ‘nos novos e inesperados, e que estes envolvem os tragos mais evidentes do maquinismo de adaptagdo”. Tal emergéncia é simplesmente universal, ©, como disse Popper, “nds vivemos num universo de novidade emer- gente"(1974; 281), A emetgéncia é uma nogio descritiva que, particular- mente nos sistemas mais complexos, parece resistir 4 andlise. Dizer simplesmente, como foi dito, que a emergéncia é devida & complexidade nao é evidentemente uma explicagio. Talvez as duas caracterfsticas mais interessantes de conjuntos novos so (1) que eles, por sua vez, podem tomar-se partes de sistemas de nivel mais elevado, e (2) que esses mes- mhos conjuntos podem afetar as propriedades dos componentes nos niveis inferiores. O dltimo fendmeno é, por vezes, designado “causalidade para baixo” (Campbell, 1974: 182). O emergentismo € uma filosofia inteira- mente materialistica. Aqueles que o negam, como Rensch (1971; 1974), sio forgados a adotar 0 panpsiquismo, ou teorias hilozéicas da matéria, 84 (ODESENVOLVIMENTO DO PENSAMENTO BIOLOGICO Duas afirmagGes falsas sobre o emergentismo devem ser rejeitadas. A primeira é que os emergentistas so vitalistas. Tal assertiva, por certo, era vélida para alguns emergentistas do século XIX e comego do século XX, mas no é valida para os emergentistas modernos, que aceitam a redugio constitutiva sem reservas, e sfo assim, por defini¢ao, nio- vitalistas. A segunda ¢ a declaragio de que & proprio do emergentismo acreditar que 08 organismos s6 podem ser estudados como um todo, de- vendo ser rejeitada qualquer outra espécie de andlise. Pode ser que houve alguns holistas que emitiram essa proposigo, mas esse ponto de vista € certamente alheio a 99% de todos os emergentistas. Tudo que afirmam € que a redugfio explicativa é incompleta, desde que emergem caracteres novos ¢ antecipadamente nao previsiveis, em niveis superiores de com- plexidade dos sistemas hierdrquicos. Daf que sistemas complexos devem ser estudados a cada nfvel, pois cada nfvel é dotado de propriedades que no se revelam nos niveis inferiores. Alguns autores recentes tém rejeitado o termo “emergéncia” como sendo contaminado de um indesejével saibo metafisico. Simpson (1964b) referiu-se a ele como um método “composicional”, e Lorenz. (1973), como uma fulguragdo. De qualquer maneira, tantos so os autores que hoje em dia adotaram o termo “emergéncia” ~ e, como o termo “selego”, ele foi “purificado” pelo freqtiente uso nesse sentido (eliminando-se as conotagées vitalistae finalista) — que nao vejo razBes para nao adoté-lo. A estrutura hierdrquica dos sistemas vivos Os sistemas complexos, com muita freqliéncia, so dotados de es- trutura hierérquica (Simon, 1962), em que os elementos de um nivel compéem-se em novas entidades no préximo nivel superior, como células em tecidos, tecidos em drgdos, e drgiios em sistemas funcionais, A orga- nizagao hierérquica também est presente no mundo inanimado, como, por exemplo, particulas elementares, stomos, moléculas, cristais, e assim por diante, mas é nos sistemas vivos que a estrutura hierérquica adquire especial significagdo. Pattee assegura (1973) que todos os problemas da biologia, particularmente aqueles que se relacionam com a emergéncia (veja a seguir), sto, em Gitima instancia, problemas de organizagio hie- rérquica. A despeito do interesse largamente difundido em relago As hierar- quias, estamos ainda bastante inseguros no que conceme 2 classificagio ‘O LUGAR DA BIOLOGIA NAS CIENCIAS E SUA ESTRUTURA CONCEITUAL 85 das hierarquias, ¢ aos atributos especiais das diferentes espécies de hierar- quias. Em biologia, aparentemente, tratamos de duas espécies de hie- rarquias. Uma delas é representada pelas hierarquias constitutivas, como a série macromolécula, organelo celular, célula, tecido, érgio, e assim por diante. Em tal hierarquia, os membros de um nfvel inferior, digamos {98 tecidos, so combinados em novas unidades (6rgfos), que possuem fungdes unitérias e propriedades emergentes. A formagio de hierarquias constitutivas 6 uma das propriedades mais caracteristicas dos organismos vivos. Em cada nfvel hé diferentes problemas, diferentes questdes a se- rem colocadas, e diferentes teorias e serem formuladas. Cada um desses nfveis deu origem a um ramo em separado da biologia: moléculas a bio- logia molecular, as células & citologia, os tecidos & histologia, e assim por diante, até a biogeografia e ao estudo dos ecossistemas, Tradicionalmen- te, 0 reconhecimento desses nfveis hierérquicos tem sido uma das formas da subdiviséo da biologia em campos distintos. A que nivel particular um pesquisador vird a se dedicar, isso depende dos seus interesses. Um bio- logista molecular, simplesmente, ndo est interessado nos problemas estudados pelo morfologista funcional, ou pelo zoogedgrafo, e vice-versa. Os problemas e as descobertas em outros niveis so, de modo ge- ral, largamente irrelevantes para 0s profissionais de um nivel hierdrquico determinado. Para a plena compreensio dos fendmenos vitais, cada nivel deve ser estudado, mas, como acentuado anteriormente, as descobertas realizadas nos niveis inferiores notmalmente acrescentam muito pouco para a solugdo dos problemas colocados nos niveis superiores. Quando um bem conhecido prémio Nobel, Iaureado em bioquimica, disse que “existe apenas uma biologia, e essa é a biologia molecular”, ele simples- ‘mente revelou a sua ignordincia e a falta de compreensio da biologia, ‘Com tantos componentes integrando 0 funcionamento de un sistema biolégico, € questo de estratégia e interesse para o cientista profissional decidir sobre 0 estudo de qual nivel ter condigdes de trazer a maior con- tribuigéo para o pleno entendimento do sistema, nas presentes circunstin- cias, Isso envolve a decisio de deixar certas caixas-pretas fechadas, Um tipo de hierarquia completamente diferente pode ser designado uma hierarquia agregacional. O seu paradigma mais conhecido é a hie- rarquia lineana de categorias taxiondmicas, desde a espécie, através do género e famflia, até o filo ¢ o reino. E estritamente um arranjo de conve- cia, As unidades do nivel inferior ~ por exemplo, as espécies de um género, ou os genéros de uma famflia — no compoem qualquer iteragao para fazer emergir unidade de nfvel superior como um todo. Em vez disso, 86 ‘ODESENVOLVIMENTO DO PENSAMENTO BIOLOGICO 0 taxionomista lista grupos de taxas em cada categoria superior. A vali- dade dessa proposigdo ndo vem enfraquecida pelo fato de que os mem- bros de uma categoria superior (natural) sejam descendentes de um ancestral comum, Tais hierarquias, produzidas pela designagtio de grupos sucessivos como categorias, so essencialmente desprovidas de plano classificat6rio. Desconhego em que medida poderia ainda haver outros tipos de hierarquias, Holismo-organicismo s biologistas conscientes, desde os tempos de Aristételes, nunca se deram por satisfeitos com uma aproximago puramente atomista-redu- cionista para os problemas da biologia. Muitos biologistas, simplesmente, colocaram toda a énfase no todo, isto , na integracdo dos sistemas. Ou- tros puseram de lado explicagGes cientificas, para invocar forgas metafi- sicas. O vitalismo era a explicagdo favorita, até dentro do século XX. Quando Smuts (1926) introduziu o conveniente termo “holismo” para exprimir que o todo é maior do que a soma das suas partes, ele combinou isso com idéias vitalistas, que infelizmente comdmperam desde 0 seu prinefpio 0 termo “holisino", de resto adequal, Os termos “organis- mico” ¢ “organicismo” foram aparentemente tiitraduzidos por Ritter (1919), ¢ so ainda hoje amplamente usados, por exemplo por Beckner (1974: 163). Bertalanffy (1952) listou uns trinta autores que declararam @ sua simpatia por uma aproximagio holistico-organismica, Todavia, essa lista 6 muito incompleta, nao incluindo nem mesmo os nomes de Lloyd Morgan, Jan Smuts e J. $. Haldane. O conceito de integron, de Frangois Jacob (1970), € um endosso particularmente bem fundamentado do pen- samento organfsmico. Em contraste com as proposigdes holisticas mais antigas, que usual- mente eram mais ou menos vitalistas, as mais recentes so estritamente materialistas. Elas acentuam que as unidades em niveis hierérquicos su- periores so mais do que a soma das suas partes, e que por isso a disseca- Gio das partes deixa sempre um res{duo no solucionado ~ em outras palavras, que a reducdo explicativa é malsucedida. Mais importante ain- da, elas acentuam a autonomia dos problemas e teorias de cada nivel, € finalmente a autonomia da biologia como um todo. A filosofia da ciéncia ‘j4 ndo pode permitir-se ignorar o conceito organfsmico da biologia, como se ela fosse vitalista, © por isso pertencendo & metafisica. Uma filosofia ‘OLUGAR DA BIOLOGIA NAS CIENCIAS E SUA ESTRUTURA CONCEITUAL 87 da cincia, restrita ao que pode ser observado nos objetos inanimados, é deploravelmente incompleta. HA muitos cientistas que se concentram no estudo de objetos e pro- cess0s isolados. Ocupam-se com eles, como se existissem num vécuo. Talvez.o aspecto mais importante do holismo seja 0 fato de dar énfase 20 Parentesco. Eu, péssoalmente, sempre senti que nao foi dado 0 devido peso As relagdes. E esse o motivo por que chamei 0 conceito de espécie como sendo um conceito relacional, e por que os meus trabalhos sobre a revolugio genética (1954) e sobre a coestio do genétipo (1975) tratam de fenémenos relacionais. © meu ataque & genética do saco-de-feijao (1959b) provede da mesma fonte (veja o Capitulo 13). Houve também outros que pensaram da mesma maneira. O pintor Georges Braque (1882-1963) declarou: “Eu no acredito em coisas, acre- dito somente em suas relagdes”. Einstein, evidentemente, baseou toda a ‘sua teoria da relatividade na consideragiio da relagio. E eu mesmo, ao discutir 0s valores seletivos e cambiantes do gene, em ambientes genéti- cos diferentes, chamei esse conceito, um pouco brincando, de teoria da relatividade dos genes. Acestrutura conceitual da biologia Ao fazer a comparacdo da biologia com as cincias fisicas, tratei até agora da biologia como se ela fosse uma ciéncia homogénea, Isso nfo é correto. Atualmente, a biologia é diversificada ¢ homogénea, em diregdes miltiplas e diferentes. Durante milhares de anos, os fenémenos bioldgi- cos foram encarados sob dois rétulos: medicina (fisiologia) e hist6ria natural. Isso se revelou, atualmente, como sendo uma divisio de notével bom discenimento, muito mais penetrante do que essas recentes etique- tas de conveniéncia, como zoologia, botanica, micologia, citologia, ou genética, A raziio disso € que a biologia pode ser dividida entre 0 estudo das causas préximas, objeto das ciéncias fisiolégicas (em sentido lato); € © estudo das causas titimas (evolutivas), objeto da histéria natural (Mayr, 1961). © que sto as causas préximas € as causas evolutivas pode ser mais claramente ilustrado por meio de um exemplo conereto. Por que um de- terminado individuo de ave canora, da Norte América temperada, princi- pia sua migragio para o sul, na noite de 25 de agosto? As causas Pr6ximas so que 0 passaro, pertencendo a uma espécie migrat6ria, cor- 88 (0 DESERVOLVIMENTO DO PENSAMENTO BIOLOGICO respondendo & fotoperiodicidade, achou-se fisiologicamente preparado para migrar nessa data, uma vez que o ntimero das horas do dia alcangou tum certo limite, ¢ desde que as condigdes do tempo (vento, temperatura, pressio barométrica) foram favordveis & partida naquela noite. Jé uma coruja e um pica-pau, habitando no mesmo territério, expostos ao mesmo declinio da luz do dia e &s mesmas condigdes do tempo, nfo partem para © sul; na realidade, essas outras espécies permanecem na mesma Area durante todo ano, por serem desprovidas da urgéncia migratéria. Obvia- mente, entdo, deve haver um segundo conjunto de fatores causais, int ramente diferentes, para explicar a diversidade entre espécies migratérias @ espécies sedentérias. Consiste ele um genétipo adquirido por meio da selegio natural, ao longo de milhares e milhdes de anos de evolugio, determinando se uma populagio, ou espécie, é ou ndo é migratéria, Um péssaro insetivoro, ou comedor de insetos, teria sido selecionado para ‘emigrar, porque, caso contrétio, morreria de fome durante o inverno, Ou- tras espécies, que conseguem achar a sua comida durante o inverno, foram selecionadas para evitar a migragdo perigosa e, para elas, desnecessdria. Dando um outro exemplo, a causa préxima do dimorfismo sexual pode ser fatores hormonais, ou determinado desenvolvimento genético, enquanto 2 selegdo natural ou uma vantagem seletiva de utilizagio diferenciada das condigBes de alimentago pode ser a causa tltima. Qualquer fenémeno bio- 6gico se explica por esses dois tipos diferentes de causalidade. Hé uma considerdvel incerteza em relagdo & origem da terminologia préximo-titimo. Herbert Spencer e Georges Romanes usaram esses ter- mos num sentido bastante vago, mas John Baker, aparentemente, foi o primeiro autor a distinguir claramente entre causas tltimas, responséveis pela evolugio de um determinado programa genético (selego), e causas Proximas, responsdveis, por assim dizer, pela liberagdo da informago ‘genética armazenada, em resposta aos presentes estimulos ambientais: Dessa forma, a abundiincia de alimentagio de insetos, para os filhotes (em determinados meses), pode ser a causa ditima, ¢ 0 comprimento do dia, a causa préxima, de uma temporada de procriago Baker, 1938: 162), As duas biologias, decorrentes dos dois tipos de causalidade, so marcadamente auto-suficientes. As causas préximas dizem respeito as fungdes de um organismo e as suas partes, bem como ao seu desenvolvi- mento, desde a morfologia funcional até a bioquimica. Por outro lado, as OLUGAR DA BIOLOGIA NaS CIENCIAS B SUA ESTRUTURA CONCEITUAL 89 causas evolutivas, histéricas, ou causas tltimas, procuram explicar por {que um organismo é do jeito que 6. Os organismos, em contraste com os objetos inanimados, tm dois grupos diferentes de causas, pois os orga- nismos possuem um programa genético. As causas préximas tratam da decodificagao do programa de um individuo determinado; as causas evolutivas tratam das mudangas dos programas genéticos ao longo do tempo, e das razdes dessas mudangas. O biologista funcional atém-se vitalmente & operagiio e interago dos elementos estruturais, desde as moléculas até os drgios, ¢ 0 individuo inteiro. A sua pergunta sempre reiterada 6 “por qué”? Como algo se ope- ra, como funciona? O anatomista, que estuda uma articulagdo, partilha o seu método e aproximagao com o biologista molecular, que estuda a fun- io das moléculas do DNA na transferéncia de informages genéticas. biologista funcional procura isolar a componente particular sob exame, em qualquer estudo determinado, normalmente lida com um tinico in- dividuo, um tnico érgio, uma nica célula, uma tnica parte de uma cé- lula, Ele se debruga sobre 0 controle e eliminagao de todas as varidveis, e repete as suas experiéncias, sob condigdes constantes ou varidveis, até que acredite haver esclarecido a fungo do elemento que esté estudando. A principal técnica do biologista funcional € o experimento, e a sua aproximagiio é essencialmente a mesma do fisico e do qufmico. Por certo que, isolando suficientemente o objeto estudado das complexidades do organismo, ele est em condig6es de realizar o ideal de um experimento puramente fisico, ou quimico. A despeito de certas limitagbes desse mé- todo, devemos concordar com o biologista funcional, no sentido de que tal aproximagio simplificada € absolutamente necessdria para atingir os seus objetivos particulares. O sucesso espetacular da pesquisa bioquimica « hiofisica justifica essa aproximacio direta, embora claramente simplista (Mayr, 1961). Ha pouca discusstio em tomo da metodologia e dos éxitos da biologia funcional, desde William Harvey até Claude Bernard ¢ a biologia molecular. Todo organismo, seja ele um individuo ou uma espécie, é o produto de uma longa hist6ria, hist6ria que remonta a mais de trés mil milh6es de anos, Como disse Max Delbrilck (1949: 173), Um fisico abalizado, familiarizando-se pela primeira vez com os proble- mas de biologia, fica intrigado pelo fato de nao existirem “fendmenos absolutos” em biologia. Cada coisa esté ligada a0 tempo ¢ ao espaco. © animal, a planta, ou o microorganismo com que venha a se ocupar 0 CO DESENVOLVIMENTO DO PENSAMENTO BIOLOGICO nfo passam de um elo na cadeia evolutiva de formas cambiantes, nao tendo nenhuma delas uma validade permanente, Dificilmente existe uma estrutura, ou fungio, ou organismo, que pos- ssa ser plenamente compreendido, se nfo for confrontado com 0 estudo do seu fundo histérico. Encontrar as causas das caracteristicas atuais dos organismos, e particularmente das suas adaptagSes, constitui a preocupa- go principal do bidlogo evolucionista. Este fica impressionado pela enorme diversidade, bem como pelos caminhos, pelos quais isso pode acontecer. Ele estuda as forgas que determinam as mudangas na fauna e na flora (como parcialmente documentado pela paleontologia), e estuda ‘0s passos pelos quais evolufram as adaptagdes miraculosas, tfo caracte- risticas de cada aspecto do mundo organico, Na biologia evolutiva, quase todos os fendmenos e processos sfio ex- Plicados por inferéncias, baseadas em estudos comparativos, Estes, por sua ‘vez, tomaram-se possfveis mediante estudos descritivos muito cuidadosos. As vezes, perde-se de vista 0 quanto o subjacente trabalho descritive é um ‘componente essencial no método da biologia evolutiva. Os desbravamentos conceituais de Darwin, Weismann, Jordan, Rensch, Simpson e Whitman teriam sido simplesmente impossiveis sem o s6lido fundamento da pes- quisa descritiva, sobre o qual puderam erigir 0 seu edificio conceitual (Lorenz, 1973). A histéria, por necessidade, era estritamente descritiva nos seus comegos, e assim foi também com a primitiva anatomia. Os esforgos dos sistematizadores do século XVIII e do prinefpio do século XIX, no sentido da classificagiio da diversidade da natureza, elevaram-se ‘mais ¢ mais acima da simples descrico, Apés 1859, a autonomia da biolo- gia evolutiva, como disciplina biol6gica legftima, j4 nfo era mais posta fem questi. A biologia funcional, muitas vezes, tem sido designada como sendo quantitativa; em contrapartida, em muitos casos perfeitamente legitimo roferit-se a biologia evolutiva como sendo qualitativa, O termo “quali- tativo” era uma designagio pejorativa, durante 0 perfodo antiaristotélico da revolugao cientifica. A despeito dos esforgos de Leibniz e de outros autores penetrantes, essa situagdo permaneceu até a revolugdo darwinia- na, Sob o seu impacto libertador, ocorreu uma mudanga no clima inte- lectual, tornando possivel o desenvolvimento da biologia evolutiva. Tal revolugdo, porém, nao foi de pronto bem-sucedida. Muitos cien- tistas fisicos e bidlogos funcionais fracassaram profundamente na com- preensdo da natureza especial da biologia evolutiva. Driesch, na sua OLUGAR DA BIOLOGIA NAS CIENCIAS E SUA ESTRUTURA CONCETTUAL or autobiografia, escrita pelos anos 1930, comenta com uma considerdvel satisfagio que a docéncia da biologia é hoje cometida “unicamente aos experimentalistas. Os problemas sistemticos retrocederam inteiramente aos fundos do quintal”. Ele ignorou totalmente a existéncia da biologia evolutiva. Essa atitude era largamente difundida entre os biologistas ex- perimentais Haeckel (1887) foi talvez 0 primeiro biologista a objetar vigorosa- mente a nogo de que toda a ciéncia devia ser como a ciéncia fisica, ou baseada na matematica. A biologia evolutiva, insistia ele, € uma ciéncia hist6rica, Particularmente os estudos da embriotogia, da paleontologia da filogenia so hist6ricos, dizia. Em vez de “hist6ricos”, talvez. hoje poderfamos dizer “regulados por programas genéticos historicamente adquiridos, e por suas mudangas no tempo histérico”. Infelizmente, esse onto de vista teve um progresso apenas lento. Quando Baldwin, em 1909, salientava 0 quanto a aceitagtio do darwinismo tinha mudado pensamento dos bidlogos, conclufa que “o reinado da ciéncia fisica e da ei mecénica sobre a mentalidade cientifica e filos6fica est superado hoje, no limiar do século XX”. Ele estava enganado nesse otimismo; ain- da existem muitos fil6sofos que escrevem como se Darwin nunca tivesse existido, e como se a biologia evolutiva nfo fizesse parte da ciéncia, Narrativas histdricas e biologia evolutiva A filosofia da ciéncia, quando foi desenvolvida pela primeira vez, baseava-se solidamente na fisica, mais especificamente na mecfnica, onde os processos ¢ os eventos podem ser explicados como conseqiiéncias de leis especificas, com previsio em simetria com 2 causalidade. Em contraste, os fendmenos cientificos ligados a uma hist6ria no se enqua- dram bem nessa conceitualizagio. Como afirmou corretamente 0 fisico Hermann Bondi (1977: 6), ‘qualquer teoria sobre a origem do Sistema Solar, sobre a origem da vida na Terra, sobre a origem do universo, & de natureza excepcional (quando comparada com as teorias convencionais da fisica), onde se procura des- crever o evento em certo sentido tnico. A unicidade, efetivamente, é a caracteristica predominante de qual- quer evento da histéria evolutiva. 2 ‘ODESENVOLVIMENTO DO PENSAMENTO BIOLOGICO Por esse motivo, diversos fil6sofos da ciéncia argtifram que as expli- cages na biologia evolutiva ndo so proporcionadas por teorias, mas por “narrativas hist6ricas”. Segundo afirmou T. A. Goudge (1961: 65-79): As explicagées narratives entram na teoria evolucionista em pontos em que se discutem eventos singulares da maior importancia para a hist6ri da vida (..) As explicages narrativas so armadas sem meng a qual- quer lei geral (..) Sempre que a explicagéo narrativa de um evento evolutivo € invocada, esse evento nfo & a instincia de um tipo (classe), ‘mas sim uma ocorréncia singular, algo que acontecen apenas uma vez, € que nfio pode repetir-se (da mesma maneira) (.) As explicagSes hist6ti- cas constituem uma parte essencial da teoria evolucionista. Morton White (1963) desenvolveu mais longamente essas idéias, A nogdo de temas centrais é crucial na estrutura l6gica das narrativas hist6- ricas. Qualquer linha filética, qualquer fauna (na zoogeografia), ou qual- quer taxa superior constituem assunto central, em termos da teoria da narrativa hist6rica, e tém continuidade ao longo do tempo. As ciéncias em que a narrativa histética desempenha um papel importante incluem a cosmogonia, a geologia, a paleontologia (filogenia) e a biogeografia. As natrativas hist6ricas tm valor explicativo porque os eventos mais antigos de uma seqiéncia hist6rica normalmente constituem uma contri- bbuigdo causal para eventos posteriores. Por exemplo, a extingdo dos di- nossauros, ao final do Cretéceo, abriu 0 espaco para grande néimero de nichos ecol6gicos, e com isso proporcionou o cenério para o floresci- mento espetacular dos mamiferos, durante o Paleoceno e 0 Eoceno. Um dos objetivos da hist6ria narrativa, por isso, € descobrir as causas respon- séveis pelos acontecimentos seguintes Os fil6sofos treinados nos axiomas da l6gica essencialista parecem ter grande dificuldade de entender a natureza peculiar da unicidade e das seqiiéncias histéricas de acontecimentos. Os seus esforgos, no sentido de negar a importncia das narrativas hist6ricas, ou de axiomatizé-las em termos de leis gerais, ndo chegam a convencer. O aspecto mais caracterfstico da biologia evolutiva sio as questdes que pde. Em vez, de concentrat-se no 0 qué?, como faz a biologia das causas préximas, ela pergunta pelo por qué? Por que certos organismos so muito semelhantes a outros, enquanto outros so profundamente dife- rentes? Por que existem dois sexos na maioria das espécies de organis- ‘mos? Por que ha uma tio grande diversidade entre a vida animal ea da (LUGAR DA BIOLOGIA NAS CIENCIAS ESUA ESTRUTURA CONCEITUAL, 93 planta? Por que as faunas de algumas dreas sio ricas em espécies, e ou- tras so pobres? Se um organismo possui certas caracterfsticas, elas devem ter deri- vado das de um ancestral, ou elas foram adquiridas, por gozarem de vantagens seletivas. A questo do “por qué”, no sentido de “para qué”, no tem sentido no mundo dos objetos inanimados. Pode-se perguntar “Por que o Sol é quente?”, mas somente no sentido de “como isso acon- tece”? Em contraste, no mundo vivo, a questo “para qué?” tem um po- deroso valor heuristico. A indagacdo sobre “por que existem vélvulas nas ‘veias” contribuiu para a descoberta de Harvey em relago & circulagio do sangue. Com a pergunta “por que os nticleos nas células se submetem 20 complexo processo de reorganizagao, durante a mitose, em vez de sim- plesmente dividirem-se ao meio?”, Roux (1883) conseguiu dar a primeira interpretago correta da divisfo da célula. Ble entendeu plenamente que “q questo relativa ao significado de um processo biolégico pode ser indagada de duas maneiras. Primeiramente, em relago a sua fungo na estrutura do processo biol6gico em que acontece, mas, em segundo lugar, pode-se (..) também (indagar) pelas causas que respondem pela origem e pela evolugo desse processo”, Por esse motivo, o bidlogo evolucionista, quando procura analisar as causalidades evolutivas, deve sempre colocar as questdes do “porque”. Todos os processos biol6gicos tém’ao mesmo tempo uma causa pr6- xima e uma causa evolutiva, Muita confusto se originou na hist6ria da biologia, pelo fato de os autores terem-se concentrado exclusivamente ou numa, ou noutra. Por exemplo, consideremos a pergunta, “qual 6 a razio do dimorfismo sexual?” T. H. Morgan (1932) castigava os evolucionistas por especularem sobre essa questio quando, dizia ele, a resposta é tio simples: os tecidos do macho e da fémea, durante a ontogenia, corres- pondem a diferentes influéncias hormonais. Nunca ele considerou a ‘questo evolutiva concemente ao porqué da diferenga entre os sistemas hormonais dos machos e das fémeas. O papel do dimorfismo sexual no namoro, e em outros contextos comportamentais e ecolégicos, nio tinha para ele interesse algum. Ou, tomando outro exemplo: qual é 0 sentido da fertilizagio? Muitos biologistas funcionais, ao considerar essa questo, ficaram impressiona- dos pelo fato de que um dvulo nao fertilizado permanece inativo, en- quanto € imediato 0 desenvolvimento (indicado pela primeira divisio de clivagem), depois que 0 espermatozdide penetrou o 6vulo. A fertilizagio, por isso, como foi afirmado por alguns biologistas funcionais, tem por 94 ‘© DESENVOLVIMENTO DO PENSAMENTO BIOLOGICO, objetivo 0 infcio do desenvolvimento. © biGlogo evolucionjsta, em con- traste, salientou que, nas espécies partenogenéticas, nfo foi necesséria a fertilizagio para dar inicio ao desenvolvimento, e assim ele concluiu que 0 verdadeiro objetivo da fertilizagao é efetuar a recombinagio dos genes paternos e maternos, tal recombinago produzindo a variabilidade genéti- ca, requerida como matéria para a selegdo natural (Weismann, 1886) Por essas hist6rias de caso, fica evidente que nenhum problema biol6- gico pode ser plenamente resolvido sem a elucidagao tanto das causas pr6- ximas como das causas evolutivas. Além disso, 0 estudo das causas evolutivas & uma parte da biologia tio legitima quanto o é o estudo das ‘usualmente causas prOximas fisico-quimicas. A biologia da origem dos programas genéticos e de suas mudangas ao longo da hist6ria evolutiva & {io importante como a biologia da tradugo (decodificago) dos progra- mas genéticos, isto 6, 0 estudo das causas préximas. A proposi¢io de Julius von Sachs, Jacques Loeb, ¢ outros mecanicistas ingénuos, no senti- do de que a biologia consiste exclusivamente no estudo das causas pré- ximas, é de todo errada. ‘Uma nova filosofia da biologia Ficou claro, agora, que € necesséria uma nova filosofia da biologia. Ela deverd incluir e combinar as idéias cibemético-funcional-organizacio- nais, da biologia funcional, e 08 conceitos populago-hist6ria, programa- unicidade-adaptagao, da biologia evolutiva. Embora ébvia nas suas grandes Tinhas, essa nova filosofia da biologia é, no presente momento, mais um manifesto de algo que deve ser completado do que a declaragao de um sistema conceitual maduro, Ela mais explicita no seu cti do positivismo l6gico, do essencialismo, do fisicalismo e do reducionis- mo, mas ainda & hesitante e incoativa nas suas teses maiores. Os diversos autores que nos tiltimos anos escreveram sobre o assunto, como Simpson, Rensch, Mainx, que contribufram para o volume de Ayala e Dobzhansky (1974), € 08 autores de filosofias da biologia (Beckner, Campbell, Hull, ‘Munson, e outros) ainda divergem profundamente entre si, néo apenas na questo de énfases, mas mesmo em alguns principios bsicos (por exem- plo, aceitagdo ou rejeigdio do emergentismo), Mas, de qualquer maneira, existe um desenvolvimento muito encorajador. Todos os escritores mais, sagazes que escreveram sobre o assunto rejeitam os pontos de vista ex- tremos do passado: nenhum deles aceita 0 vitalismo, sob qualquer forma ‘OLUGAR DA BIOLOGIA NAS CIENCIAS ESUA ESTRUTURA CONCEITUAL 9s que for. Nenhum deles também endossa qualquer espécie de reducior ‘mo, atomista ou explicativo. Bem balizadas as delimitages de uma nova filosofia da biologia, hd toda a esperanga de uma verdadeira sintese, num futuro nfo muito distante. 5 fil6sofos da ciéncia, quando tratam da biologia, dedicam bom tempo e atengio aos problemas da mente, da consciéncia e da vida. Eu penso que eles arranjaram para si mesmos algumas dificuldades desne- cessdrias. No que tange A consciéncia, é impossivel defini-la. Critérios varios indicam que mesmo os invertebrados inferiores tm uma conscién- cia, possivelmente os préprios protozodrios, nas suas reagbes de repulsdo. Se se quiser descer mais ainda, até os procariotos (por exemplo, bactérias magnéticas), isso € questo de gosto, Em qualquer caso, 0 conceito de consciéncia nfo pode ser definido nem mesmo aproximadamente, razio pela qual se toma impossfvel uma discussio em detalhe. No que diz respeito aos termos “vida” e “mente”, eles apenas se refe- rem a coisificagGes de atividades, ¢ nfo possuem uma existéncia em sepa- rado como entidades. A “mente” ndo faz referéncia a um objeto, mas a uma atividade mental, e desde que ocorrem atividades mentais em grande pparte do reino animal (dependendo de como se define o “mental”, pode-se dizer que a mente acontece sempre que.se encontram organismos que revelam possuir processos mentais. A vida, da mesma forma, é simples- mente a coisificagio dos processos de vida. Os critérios para a vida po- dem ser estabelecidos € adotados, mas nao existe algo como uma “vida” independente num organismo vivo. E muito grande o perigo de que a admisso de uma existéncia em separado de uma tal “vida” venha a es- tender-se a uma alma (Blandino, 1969). A exclusdo de substantivos, que outra coisa no sio que coisificagdes de processos, ajuda grandemente a anélise dos fendmenos que sdo caracterfsticos da biologia, ‘A emergéncia gradual de uma filosofia da biologia, aut6noma, foi ‘um proceso longo, trabalhoso e sofrido. As primeiras tentativas foram condenadas ao fracasso, em vista da falta de conhecimento dos fatos da biologia e a prevaléncia de conceitos inadequados ou exrOneos. Isso muito bem ilustrado pela filosofia da biologia de Kant. O que Kant no percebeu foi que 0 objeto proprio da biologia necessitava primeiro ser bem definido pelos proprios biologistas (pela ciéncia!) - por exemplo, que era tarefa dos sistematizadores explicar causalmente a hierarquia Jineana (0 que foi feito por Darwin, na sua teoria da descendéncia co- mum), ou que era tarefa do evolucionista explicar a origem da adaptagio, sem invocar forgas sobrenaturais (0 que foi feito por Darwin ¢ Wallace, 96, (ODESENVOLVIMENTO DO FENSAMENTO BIOLOGICO or meio da sua teoria da selegio natural). Uma vez de posse dessas ex- Plicagées, os fil6sofos poderiam retomar a empresa. Assim o fizeram, mas infelizmente — no seu conjunto ~ combatendo Darwin, e éndossando teorias biol6gicas sem fundamento. Isso continuou até os tempos moder- nos, como 0 testemunham as publicagdes de autores como Marjorie Gre- ene, Hans Jonas, entre outros. Eu acredito que € leg{timo afirmar que biologistas como Rensch, Waddington, Simpson, Bertalanfly, Medawar, Ayala, Mayr e Ghiselin deram uma contribuigao muito maior para uma filosofia da biologia do que toda a velha geragio de fil6sofos, incluindo Cassirer, Popper, Rus- sell, Bloch, Bunge, Hempel e Nagel. Somente a geragdio de fildsofos mais novos (Beckner, Hull, Munson, Wimsatt, Beatty, Brandon) tem finalmente ‘condigdes de abandonar as obsoletas teorias biol6gicas do vitalismo, orto- génese, macrogénese, e 0 dualismo, ou as teorias positivistas-reducio- nistas dos filésofos mais antigos.'" Basta ler 0 que diz o filésofo Cassirer, de resto to brilhante, sobre a Critique of Judgement, de Kant, para nos darmos conta do quanto € dificil para um fil6sofo tradicional entender os problemas da biologia. Para sua excusa, é preciso afirmar que a culpa deve ser dividida com os biologistas, que falharam em apresentar uma andlise clara dos problemas conceituais da frea. Diante das drvorés, fo- ram incapazes de ver a floresta. Quais princfpios ou conceitos poderiam constituir uma boa base para fundamentar uma filosofia da biologia? Sem que eu pretenda de forma alguma ser exaustivo, acredito que da discussio anterior ficou bastante evidente (J)que uma compreensio plena dos organismos néo pode ser assegu- rada apenas pelas teorias da fisica e da quimica; (2)que a natureza histérica dos organismos deve ser considerada ple- namente, em particular a sua posse de um progratna genético histo- ricamente adquirido; G)que os individuos, na maioria dos niveis hierérquicos, desde ‘a cé- lula, so tnicos, e formam populagdes, cuja variagao é uma das su- as caracteristicas maiores; (@que existem duas biologias; a biologia funcional, que trata das in- dagagdes préximas, ¢ a biologia evolutiva, que trata das indagagdes ‘iltimas; (S)que a histéria da biologia foi dominada pelo estabelecimento de conceitos, e pelo seu amadurecimento, modificago e - ocasional- mente ~ por sua rejei¢ao; ‘OLUGAR DA BIOLOGIA NaS CIENCIAS E SUA ESTRUTURA CONCEITUAL, 7 (que a complexidade padronizada dos sistemas vivos € organizada hierarquicamente, e que os nfveis superiores da hierarquia sao ca- racterizados pela emergéncia de novidades; " (que a observagao ¢ a comparagio so métodos da pesquisa biol6gi- ca tio plenamente cientfficos e heuristics quanto a experiéncia; (B)que a insisténcia na autonomia da biologia nfo significa endosso do vitalismo, da ortogénese, ou de alguma outra teoria que esteja em conflito com as leis da quimica ou da fisica, Uma filosofia da biologia deve incluir a consideragdo de todos os conceitos maiores, especificamente biolbgicos, nfo apenas os da biologia molecular, fisiologia, e desenvolvimento, mas também aqueles da biolo- gia evolutiva (como a selego natural, incluindo aptidao, adaptagao, pro- gresso, descendéncia), da sistematica (espécie, categoria, classificagio), e da biologia comportamental e ecologia (competig¢ao, aproveitamento de disponibilidade, ecossistema), Permito-me acrescentar alguns “nfo pode”. Por exemplo, uma filoso- fia da biologia ndo pode perder tempo algum na tentativa fiitil de um reducionismo teérico, Nao deve tomar uma das filosofias da fisica exis- tentes como ponto de partida. (E deprimente constatar quéo pouco certos volumes de prestfgio nesse campo tém a ver com as atuais préticas da pesquisa cientffica, pelo menos na biologia,) Néo deve concentrar a sua maior atengdo nas leis, considerando © quanto é reduzido atualmente 0 Papel desempenhado pelas leis em muitas teorias biolégicas. Em outras palavras, 0 que é preciso é uma filosofia da biologia nao comprometida, que permaneca igualmente distante do vitalismo e outras ideologias nfo- cientfficas, e do reducionismo fisicalista, que é incapaz de fazer justiga aos fendmenos e sistemas especificamente biol6gicos. Biologia e pensamento humano C. P. Snow, num ensaio bem conhecido (1959), afirmou que existe tum fosso intranspontvel entre as culturas da ciéncia e as humanidades. Ele tem razdo quanto ao hiato da comunicagio entre os fisicos e os hu- manistas, mas existe também hiato quase to grande entre, digamos, os fisicos ¢ os naturalistas. Existe, também, uma falha bem pronunciada da comunicagio entre os representantes da biologia funcional e os da biolo- gia evolutiva. Além disso, a biologia funcional divide com as ciéncias 98 ‘ODESENVOLVIMENTO DO PENSAMENTO BIOLOGICO fisicas um interesse por leis, previsdo, todos os aspectos de quantidade e quantificagao, bem como os aspectos funcionais dos processos, enquanto na biologia evolutiva as questdes como qualidade, histoticidade, infor- magdo e valor seletivo so de especial interesse, questdes essas que en- tram também nas ciéncias sociais e do comportamento, mas no na fisica. Por isso, no é de forma alguma desarrazoado considerar a biologia evo- lutiva uma espécie de ponte entre as ciéncias fisicas, de um lado, e as ciéncias sociais e humanidades, de outro. Em uma comparago da histéria com as cigncias, Cart (1961: 62) afirma que a histéria, supostamente, difere de todas as cincias em cinco aspectos principais: (1) a hist6ria trata exclusivamente do tinico, a ciéncia do geral; (2) a histéria nfo dé aulas; (3) a hist6ria € incapaz. de predizer; (4) a hist6ria 6 necessariamente subjetiva; e (5) a histria (diferentemente da ciéncia) envolve aspectos de religiio e moralidade. Essas diferencas sfo vélidas somente no confronto com as ciéncias fisicas. Os enunciados 1,3, 4 € 5 sto também largamente verdadeiros para a biologia evolutiva, , como 0 préprio Carr admite, alguns deles (por exemplo, o enunciado 2) nfo so estritamente verdadeiros nem para a hist6ria. Em outras pala- vras, nfo existe uma cisto precisa entre a ciéncia e as ndo-ciéncias. ‘A natureza do impacto que a ciéncia teve sobre o homem ¢ 0 seu pensamento & assunto controvertido. Que Copémico, Darwin e Freud alteraram profundamente 0 pensamento humano é algo que dificilmente poderd ser questionado. O impacto das ciéncias fisicas, nos dltimos pou- ‘cos cem anos, foi primeiramente por meio da tecnologia. Kuhn (1971) preconiza que um cientista, para exercer uma real influéncia no pensa- mento humano, deve ser lido pela populacdo leiga. Independentemente do quanto se distinguiram certos fisicos matemiticos (af inclufdos Eins- tein e Rohr), “nenhum deles, tanto quanto consigo discernir, teve mais do que um impacto {nfimo e indireto sobre o desenvolvimento do pensa- ‘mento extracientéfico”. Tenha ou nfo tenha razio Kuhn, pode-se com certeza afirmar que alguns cientistas tém mais influéncia do que outros sobre o pensamento dos leigos inteligentes. Também depende muito da medida em que o tema de um cientista é de interesse imediato do piblico leigo. Daf que a biologia, a psicologia, a antropologia e ciéncias conge- eres exercem naturalmente um impacto muito maior sobre o pensa- ‘mento humano do que as ciéncias fisicas. Antes do impulso da ciéncia, eram os fil6sofos que, por assim dizer, detinham o encargo de conduzir a compreensao deste mundo. A partir do século XIX, a filosofia retraiu-se mais e mais ao estudo da légica ¢ da LUGAR DA BIOLOGIA NAS CIENCIAS F SUA ESTRUTURA CONCETTUAL, 99 metodologia da ciéncia, abandonando em larga medida vastas Areas, como a metafisica, a ontologia, a epistemologia, que usualmente consti- tufam as preocupagées maiores da filosofia. Grande parte dessa rea, infelizmente, ficou uma virtual terra de ninguém, porque muitos cientistas esto inteiramente satisfeitos com 0 prosseguimento,das suas pesquisas especificas, de forma alguma preocupados com a maneira pela qual as concluses gerais, decorrentes desses estudos, possam afetar assiintos de preocupagao humana e da epistemologia geral. Os fildsofos, por outro lado, acham dificil, para ndo dizer impossivel, acompanhar os répidos avangos da ciéncia e, como resultado disso, voltam-se para problemas triviais ou esotéricos. As oportunidades de aproximagdes conjuntas de fil6sofos e cientistas, por mais iteis que poderiam ser, muito raramente sio aproveitadas, Biologia e valores humanos Foi por vezes afirmado que, ao contrario das interpretagSes religio- sas, a ciéncia tem a grande vantagem de ser impessoal, isenta, néo emoti- va, e, por isso, completamente objetiva. Isso bem pode ser verdade para a maioria das explicagbes das cigncias fisicas, mas de forma alguma é ver- dadeiro para muitas explicagSes das ciencias biol6gicas. As descobertas € as teorias do biologista esto quase sempre em conflito com os valores tradicionais da nossa sociedade. Por exemplo, o professor de Darwin, Adam Sedgwick, rejeitava com todo vigor a teoria da selegao natural, Porque ela implicava a refutagao do argumento de um plano, e permitiria com isso uma explicagdo materialista do mundo, isto 6, segundo ele en- tendia, uma eliminagiio de Deus na explicagao da ordem e da adaptagao no mundo. E certo que uma teoria biol6gica é muitas vezes plena de valo- res. Como exemplos, podemos mencionar a teoria darwiniana da descen- déncia comum, que privou o homem do seu lugar tnico no universo. Mais recentemente, a questio sobre se, e em que medida, 0 Q. I. é geneti- camente determinado, particularmente quando ligado a0 problema da raga, € se, e em que medida, os argumentos da sociobiologia sao ilustra- ges aptas. Em todos esses casos levantaram-se conflitos entre certas descobertas cientificas, ou interpretagdes, e determinados sistemas tradi- cionais de valores. Por mais objetiva que seja a pesquisa cientifica, as ma descobertas, freqilentemente, conduzem a conclusdes carregadas de valor. 100 (ODESENVOLVIMENTO DO FENSAMENTO BIOLOGICO A critica literdria hé muito tempo estava consciente do impacto que 08 escritos de alguns cientistas exerciam sobre novelistas e ensafstas, ¢ por meio deles sobre o grande pablico. Os relatos sobre a felicidade ¢ a inocéncia de primitivos aborigenes de pafses exéticos, trazidos para casa por exploradores do século XVIII, por mais errOneos que tenham sido, afetaram grandemente os escritores dos séculos XVIII e XIX, e ultima- mente as ideologias politicas. Foi uma tragédia, tanto para a biologia como para a humanidade, 0 fato de que a configuragdo atual predominante dos nossos ideais sociais ¢ politicos desenvolveu-se, ¢ foi adotada, quando o pensamento do homem ocidental era largamente dominado pelas idéias da revolugao cientifica, isto 6, pelo conjunto de idéias baseadas nos principios das ciéncias fisi- cas. Isso implicou um pensamento essencialista e, correlativamente, a crenga da identidade essencial dos membros de uma classe. Mesmo que arevolugao ideol6gica do século XVIII tenha sido, em larga medida, uma rebelido contra o feudalismo e os privilégios de classe, nflo se pode negar que os ideais da democracia derivaram, em parte, dos principios estabele- cidos pelo fisicalismo. Em conseqiiéncia, a democracia pode ser inter- pretada como sustentagio nfo apenas da igualdade perante a lei, mas também da identidade essencialista sob todos os aspectos. Isto vem tra- duzido pela expressio “todos os homens foram criados iguais”, 0 que 6 algo muito diferente da afirmagao “todos os homens tém direitos iguais, diante da lei". Todo aquele que acredita na unicidade genética de cada individuo acredita, por isso mesmo, na conclusio “nem sequer dois in viduos foram criados iguais”. Quando se desenvolveu a biologia evolutiva, no século XIX, ela de- monstrou a inaplicabilidade desses prineipios fisicos aos individuos bio- l6gicos tnicos, as populagBes heterogéneas € aos sistemas evolutivos. Mas, apesar disso, a fusio ideol6gica do fisicalismo e do antifeudalismo, usualmente chamada democracia (no hé nem dois povos que tém exata- mente 0 mesmo conceito de democracia), prevaleceu no mundo ociden- tal, a ponto de a mais ligeira critica que se faga (como nas presentes linhas) ser rejeitada, com intolerancia completa. A ideologia democratica € © pensamento evolucionista compartilham de uma elevada considera- 40 pelo individuo, mas diferem em muitos outros aspectos da nossa escala de valores, A recente controvérsia sobre a sociobiologia € uma triste ilustragdo da intolerncia exercida por um segmento da nossa soci dade, quando as afirmag6es de um cientista entram em conflito com dou- trinas poltticas. Orwell (1972) descreveu isso muito bem: ‘OLUGARDA BIOLOGIA NAS CIENCIAS E SUAESTRUTURACONCEITUAL 101 Em cada momento determinado, existe uma ortodoxia, um corpo de idéias que se admite seja aceito por todas as pessoas bem pensantes, sem contestagio, Néo é propriamente proibido constatar isso, ou aquilo, ou outra coisa, mas “no é permitido” falar assim... Todo aquele que amea- gar a ortodoxia predominante vé-se silenciado com uma eficdcia surpre- endente, A uma opinido genuinamente em desacordo com a moda, quase ‘nunca se Ihe dé um ouvido atento, tanto na imprensa popular como nos periGdicos de alta especializagio, Eu receio que os propri tolerdncia. Todos os reformadores sociais, desde Helvetius, Rousseau e Robert Owen, até certos marxistas (mas néo proprio Karl Marx), aceitaram a maxima de Locke, de que 0 homem ao nascer & uma tabula rasa, sobre a qual qualquer caracteristica pode ser estampada, Assim, proporcionando (© ambiente apropriado e a educagdo, pode-se fazer qualquer coisa de cada individuo, considerando que todos eles so potencialmente idénti- 0s. Isso levou Robert Owen (1813) a afirmar que “mediante treinamento judicioso, as criangas de qualquer classe do mundo podem ser facilmente moldadas em homens de qualquer outa classe”. Considerando que as classes eram definidas em termos socioecon6micos (pelo menos por im- plicagao), a afirmagio de Owen tinha considerdvel validade, mas, quando estendida aos individuos, e aplicada de uma forma um pouco mais extre- ‘ma, como foi feito pelo behaviorista John B. Watson, em 1924, ela se toma muito discutfvel. Nada a admirar que os que admitiram pontos de vista to otimistas tenham sido desencorajados pelas constatagées da- queles que investigaram a genética das caracteristicas humanas em gé- meos ¢ em estudos de adogo. ‘A demonstragio, feita pela sistemética, pela antropologia fisica, pela genética, e pela biologia comportamental, de que no existem sequer dois individuos, em qualquer espécie (inclusive a humana), que sejam idénti- cos, criou um profundo mal-estar entre aqueles que so adeptos sinceros do principio da igualdade humana. Como salientaram Haldane e Do- bzhansky, 0 dilema pode ser superado, dando-se uma definigio de igual- dade que seja constoante com as modemas descobertas biolégicas, Todos 0 individuos sao iguais perante a lei, e t8m direito a iguais oportunida- des. Todavia, considerando a sua desigualdade biolégica, deve ser-lhes proporcionado um meio diversificado (por exemplo, oportunidades edu- cacionais diferentes), de sorte a assegurar-lhes iguais oportunidades. Paradoxalmente, o identicismo, que ignora a auséncia da identidade bio- cientistas nfo estejam inocentes de tal in- 102 CO DESENVOLVIMENTO DO PENSAMENTO BIOLOGIC 6gica, 6 0 pior inimigo da democracia, quando ela chega a implementar 05 ideais de igual oportunidade. A biologia tem uma tremenda responsabilidade. Dificilmente se pode negar que ela contribuiu para minar crengas tradicionais e sistemas de valores. Muitas das idéias mais otimistas do Iluminismo, inclusive a igualdade a possibilidade de uma sociedade perfeita, faziam parte, em iiltima instincia (embora subconscientemente), da fisico-teologia. Foi Deus quem fez este mundo quase perfeito. A crenga em tal mundo foi destinada ao colapso, quando solapada a crenga em Deus como autor de um plano, Daf a justificada angiistia de Sedgwick. A perda da crenga em Deus conduziu a um vacuo existencial e a uma pergunta sem resposta sobre o sentido da vida. Os mais importantes pensadores, desde o Tumi- nismo, sentiram com veeméncia que a biologia no podia ser meramente uma destruidora de valores tradicionais, mas também criadora de ovos sistemas de valores. Virtualmente, todos os biologistas sfo religiosos, no sentido mais profundo da palavra, mesmo embora possa haver uma reli- gido sem revelagio, como foi chamada por Julian Huxley. O desconhecido, e talvez o incognoscfvel, induz. em nds um senso de humildade e temor, ‘mas muitos daqueles que tentaram substituir a fé em Deus pela f€ no ho- ‘mem deram com um caminho errado. Eles definiram o homem como 0 préprio, 0 ego pessoal, e promoveram uma ideologia de preocupagio consigo mesmo, e de egotismo, que ndo apenas fracassa em trazer a feli- cidade, mas também é grandemente destrutiva a longo prazo. Evidentemente, seria da mesma forma simplério e perigoso tratar 0 homem simplesmente como uma criatura biol6gica, isto é, como se ele fosse nada mais que um animal. O homem, devido aos seus recursos nu- -merosos e tinicos, tem a capacidade de desenvolver cultura, ¢ de transmi tir &s gerages posteriores informagdes adquiridas, tanto quanto sistemas de valores e normas éticas. Por esse motivo, terfamos do homem um con- ceito muito unilateral e enganoso, se fOssemos basear a nossa avaliago inteiramente no estudo das criaturas infra-humanas. Nao resta divida que © estudo dos animais nos proporcionou alguns dos conhecimentos mais significativos sobre a natureza do homem, mesmo quando esses estudos revelaram nada mais do que o quanto o homem é diferente, em algumas caracteristicas, dos seus mais préximos parentes simios. Se, ao em vez de definir o homem como o ego pessoal, ou como mera- mente uma criatura biol6gica, o definirmos como humanidade, tornam-se possiveis uma ética e uma ideologia inteiramente diferentes. Seria uma ideologia que € perfeitamente compativel com os valores sociais tradicio- ‘OLUGARDA BIOLOGIA NAS CIENCIASESUAESTRUTURACONCEITUAL 103 nais, no sentido de desejar uma “humanidade melhor”, e ainda que & compativel com qualquer uma das novas descobertas da biologia. Se es- colhermos essa aproximaco, nao haverd conflito entre a ciéncia e os mais profundos valores humanos (Campbell, 1974: 183-185, 1971). Tal abordagem, & primeira vista, parece estar em conflito com 0 Princfpio da aptidao inclusiva, Mas nfo é necessaridmente assim, ¢ isso or uma dupla razio, Em primeiro lugar, porque, no seio da massa social andnima da modema humanidade, ela pode perfeitamente contribuir para ue a aptidio pessoal imanente seja colocada a servigo da melhoria da sociedade como um todo, Em segundo lugar, porque o homem é uma espécie tinica, em que um grande acervo de “heranga” cultural se acres- centou a heranga biolégica, ¢ porque a natureza dessa heranga cultural pode relacionar-se com a aptido darwiniana. Uma interagto, a esse nfvel, nfo foi suficientemente considerada por aqueles que se interessavam Pelos efeitos do darwinismo sobre a evolugdo humana. E minha convic- ‘40 pessoal que os aparentes conflitos entre a implicita aptidio, a heranga cultural e uma ética sadia podem ser resolvidos. O MEIO INTELECTUAL DA BIOLOGIA EM TRANSFORMACAO Escrever uma hist6ria das idéias requer que a ciéncia de um determi- nado perfodo hist6rico seja dividida nos seus problemas maiores, e que 0 desenvolvimento de cada problema seja situado no tempo. Um trata- ‘mento tdo estritamente t6pico tem as suas vantagens, mas isola cada pro- blema das suas conexdes com outros problemas contemporineos da cigncia, bem como do inteiro meio cultural do perfodo. No intuito de compensar essa grave deficiéncia, darei, no presente capitulo, uma breve hist6ria da biologia como um todo, numa tentativa de relacioné-la com 0 ‘meio intelectual do seu tempo. O tratamento mais especializado dos pro- blemas biol6gicos individuais, apresentado nos -capitulos posteriores, deverd ser lido em confronto com esta visdo geral. Este capftulo introdu- {rio estabelecerd também algumas conexGes com éreas da biologia fun- cional (anatomia, fisiologia, embriologia, comportamento), que no tém cobertura em qualquer outra parte deste volume. ' Cada época tem o seu préprio “temperamento”, ou estrutura concei- tual, que, embora longe de ser uniforme, afeta bastante 0 pensamento e a ago. A cultura ateniense dos séculos Ve IV a.C., os diversos absolutis- mos de grande parte da Idade Média, ou a revolugao cientffica do século XVI, so exemplos de meios intelectuais notavelmente diferentes. De qualquer modo, seria erréneo pensar que cada era sempre € dominada por ‘um modo de pensar, isto é, por um quadro explicativo ou uma ideologia, fa serem eventualmente substitu{dos por um aparato conceitual novo e muitas vezes bem diferente. No século XVIII, por exemplo, 0 mundo conceitual de Lineu era, em todos os seus aspectos, totalmente diferente daquele do seu contempordineo Buffon. Duas tradigdes de pesquisa muito diversas podem coexistir, com os seus respectivos adeptos trabalhando em completo isolamento intelectual. Por exemplo, 0 positivismo dos fisi- ciatos, na segunda metade do século XIX, permanecendo numa base es- sencialista, péde coexistir com o darwinismo dos naturalistas, que se fundamentava no pensamento de populagdo, ocupando-se de questdes de , que eram completamente sem sentido para um fisico positi- 106 ‘ODESENVOLVIMENTO DO PENSAMENTO BIOLOGIC Antiguidade Todos os povos primitivos so marcadamente naturalistas; ¢ isso no causa surpresa alguma, uma vez que a sua sobrevivéncia depende do conhecimento da natureza. Eles precisam conhecer os inimigos potenciais, ‘bem como os meios de subsisténcia; eles estio interessados na vida e na ‘morte, na doenga € no nascimento, na “mente” ¢ nas diferengas entre 0 homem e os outros seres vivos, E quase universal entre os homens pri- itivos do mundo a crenga de que tudo na natureza é “vivo”, que mesmo as rochas, as montanhas e o firmamento so habitados por espititos, al- ‘mas, ou deuses. Os poderes dos deuses fazem parte da natureza, ¢ a pré- pria natureza é ativa e criativa, Todas as religides, antes do judafsmo, eram mais ou menos animistas, e a sua atitude em relagdo ao divino era completamente diferente da do monotefsmo dos judeus. A interpretagao do mundo pelo homem primitivo era uma conseqiiéncia direta das suas crengas animistas (Sarton, Thorndike). Existem razGes para acreditar que a ciéncia das civilizagées primiti- ‘yas tenha avangado consideravelmente além desse estégio primitivo, ‘mas, exceto em relagio a algum saber medicinal, quase nao temos infor- Imago sobre 0 conhecimento biol6gico dos sumérios, babilGnios, egipcios, € de outras civilizagGes anteriores & dos gregos. Nao hé evidéncia de que tenham sido feitas tentativas de organizagio de esquemas explicativos sobre quaisquer fatos que tenhiam sido acumulados. [AS grandes obras épicas gregas de Homero ¢ Hesfodo retratam viva- mente © politefsmo dos gregos antigos, que estava em estrito contraste com 0 monotefsmo do judafsmo, do cristianismo e do istamismo. Parece que esse politefsmo permitiu o desenvolvimento da filosofia e da ciéncia primitiva. Para os gregos nio existia um Deus poderoso e tinico, com um livro “revelado”, torando sacrilego o pensamento de causas naturais. ‘Nem existia um sacerdécio poderoso, como na BabilGnia, no Egito e em Israel, que proclamava 0 monopélio do pensamento sobre o natural ¢ 0 sobrenatural, Por isso, nada impedia, na Grécia, que pensadores diferen- tes chegassem a diferentes conclusdes. No que conceme a biologia grega, podemos distinguir trés grandes tadigdes. A primeira é uma tradigao de histéria natural, baseada no co- nhecimento de plantas e animais locais, tradigio essa que remonta aos nossos ancestrais pré-humanos. Esse conhecimento foi transmitido oral- mente, de gerago em geracio, e podemos admitir como certo que o pou- co que dele sabemos, por meio da Historia animalium, de Arist6teles, © ‘OMEIO INTELECTUAL,CAMBIANTE DA BIOLOGIA 107 dos escritos de Theofrasto sobre plantas, ndo representa nada mais do que um vislumbre de um acervo muito maior de conhecimentos. As informa- ‘ges sobre animais selvagens eram validamente suplementadas, em mui- tas culturas, pela experiéncia com animais domésticos. Comportamento individual, nascimento, crescimento, mutriglo, doenga, morte € muitos ‘outros fendmenos de significado biol6gico siio mais facilmente observa- dos em animais domésticos do que em animais selvagens. Dado que muitas dessas manifestag6es da vida nos animais sio as mesmas que no homem, elas encorajaram estudos comparativos. Oportunamente, isso Proporcionou uma importante contribuigao para o desenvolvimento da pesquisa na anatomia e na cigncia médica. ‘A segunda tradico grega, a da filosofia, originou-se com os fil6sofos jonios ~ Thales, Anaximandro, Anaximenes, e seus seguidores -, que inauguraram uma aproximagio radicalmente nova.’ Eles relacionaram 0s fendmenos naturais a causas naturais e a origens naturais, nao a espfritos, deuses, ou outros agentes sobrenaturais. Na sua busca de um conceito unificador, que pudesse explicar muitos fendmenos diferentes, eles pos- tulavam freqientemente uma causa tiltima, ou um elemento, a partir do qual tudo o mais se originava, como a 4gua, 0 ar, a terra, ou uma matéria indefinida. Aparentemente, esses fil6sofos jOnios tinham considerével conhecimento das realizagées dos babilénios e de outras culturas do Oriente Préximo, ¢ adotaram algumas das suas interpretagdes, principal- ‘mente as relativas & natureza inanimada. As especulagdes dos j6nios sobre a origem dos seres vivos nfo tiveram uma influéncia duradoura, De signifi- ‘ado um pouco maior foram as suas idéias sobre a fisiologia humana, A importancia real da escola jénica & que ela representa os primérdios da cigncia; isto 6, eles procuraram causas naturais para fendmenos naturais, © centro do pensamento filos6fico transferiu-se mais tarde, nos s&- culos Vie V aC., para as colénias gregas na Sicflia ¢ no sul da Itélia, onde as figuras-chaves foram Pitégoras, Xen6fanes, Parménides e Empé- docles. Pitégoras, com a sua énfase nos ntimeros e quantidades, deu infcio 4 uma poderosa tradigo, afetando ndo apenas as ciéncias fisicas, mas também a biologia. Parece que Empédocles se dedicou a assuntos biol6- gicos mais do que qualquer outro dos seus predecessores, mas pouco do seu pensamento foi preservado. Ele é mais conhecido pela sua postulagdo da existéncia de quatro elementos: fogo, ar, agua e terra, Todo o mundo material, segundo ele, composto por combinagdes variadas desses qua- tro elementos, ora conduzindo a maior homogeneidade, ora a maior mis- tura, Uma crenga nesses quatro elementos continuou por mais de dois mil

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