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INTRODUGAO UMA REFORMA PARA A CIDADANIA A Reforma Gerencial da administragio publica, que tem inicio em 1995 esta voltada para a afirmagao da cidadania no Brasil, por meio da adogao dt formas modernas de gesto no Estado brasileiro, que possibilitem atender de forma democritica e eficiente as demandas da sociedade. E uma reforma que ao fazer uso melhor e mais eficiente dos recursos limitados disponiveis, con- tribuird para o desenvolvimento do pais ¢ tornard vidvel uma garantia mais cfetiva dos direitos sociais por pazte do Estado. A expectativa é que venha 2 ser a segunda grande reforma administrativa no pais. A primeira, nos anos 30, criow a burocracia profissional no pais: foi a Reforma Burocratica, que ocorreu nos quadros de um regime autoritdrio, come, alids, aconteceu com as reformas que implantaram 0 servigo publico profissional nos paises euro- peus, no século passado, A segunda, nos anos 90, muda as instituicdes para permitir que os administradores piiblicos possam gerenciar com eficiéncia as agéncias do Estado e colocé-las a servico da cidadania. Fficiéncia adminis- trativa ¢ democracia sao dois objetivos politicos maiores da sociedades con- tentpordneas, que o saber convencional coloca como contraditérios. Uma tese fundamental deste livro, entretanto, é que a Reforma Gerencial, por meio da qual se atingiré maior eficiéncia dentro do Estado, s6 sera vitoriosa se con- tar com a existéncia de um regime democratico e buscar fortalecer suas ins- tituigdes, Ou, em outras palavras, se a maior autonomia assegurada aos ad- ministradores piblicos, que a Reforma Gerencial prevé, for acompanhada nao ‘apenas pelos controles administrativos e pela competicao administrada, mas principalmente pelos controles democraticos que esto séndo e deverdo ser aprofundados: 0 controle social ou participativo, o controle da imprensa ¢ da opinigo pitblica, o controle da oposicao politica. Uma segunda tese é a de que esta reforma s6 fard sentido se realmente lograr atender melhor 0 cidadao. A Reforma Gerencial tem como documento basico no Brasil o Plano Diretor da Reforma do Aparetho do Estado, de setembro de 1995. Por meio desse documento 0 governo procurou definir as instituigdes € estabelecer as ditetrizes para a implantagao de uma administragao pitblica gerencial. A re- forma é gerencial porque busca inspiracio na administragao das empresas pri- Reforma do Estado para a Cidadania v7 vadas, ¢ porque visa dar a0 administrador piblico profissional condigdes efetivas de gerenciar com eficiéncia as agéncias piblicas. E democratica por- que pressupée a existéncia de um regime democritico, porque deixa claro 0 carter especifico, politico, da administrasao piblica, e principalmente por- que nela os mecanismos de controle, de caréter democratico, sao essenciais Para que possa kaver delegagdo de autoridade e controle a posteriori dos resultados. E social-demacratica porque afirma o papel do Estado de garan- tir os direftos sociais e Ihe fornece os instrumentos gerenciais para fazé-lo, de forma nao apenas mais democrética, mas, também, mais eficiente do que faria 0 setor privado. E social-liberal porque acredita no mercado como um timo, embora imperfeito, alocador de recursos; porque utiliza a estratégia da competigéo administrada em quase-mercados, para controlar as ativida- des sociais financiadas pelo Estado, por intermédio de entidades descentrali- zadas: as organizages publicas ndo-estatais; e porque, embora teafirmando © dever do Estado de proteger os mais fracos — as criancas pobres, as mies solteiras, os velhos —, nao é paternalista, nao subestimando a capacidade de cada individuo de defender seus préprios direitos de cidadania, nem sua ca- pacidade de trabalhar, desde que se Ihe oferecam os devidos incentivos ¢ oportunidades. E preciso nao confundir a Reforma Gerencial com a emenda constiti- cional, apresentada pelo governo em 1995, que ficou chamada de “teforma administrativa”. A reforma constitucional é parte fundamental da Reforma Gerencial, uma vez.que mudou instituigdes normativas fundamentais e pro- moveu um debate nacional que a rornou emblemética da reforma maior, mas. «existem muitas mudangas institucionais que sao infra-constitucionais. Quando as duas instituig6es organizacionais bésicas da reforma — as “agéncias exe- cutivas” (instituigdes estatais que executam atividades exclusivas de Estado) © as “organizacées sociais” (instituigdes hfbridas entre o Estado e a socieda- de que executam os servicos sociais e competitivos) — foram formalmente ctiadas, nao foi necessdrio mudar a Constituigao. Grandes alteragdes tam- bhém foram realizadas na forma de remunerago dos cargos de confianca, na forma de recrutar, selecionar ¢ remunerar as carreiras de Estado, ¢ nas re- Bras que presidem o regime de trabalho (iinico) dos servidotes estatutdrios, sem envolver reforma constitucional, Por outro lado, a Reforma Gerencial ica uma mudanga cultural, que est ocorrendo. A accitagao das idéias do Plano Diretor pela alta burocracia piblica, que compreenden que seu objetivo ¢ foralecer sua capacidade de gestio, é uma indicacdo dessa mudanca. E implica uma mudanga nas formas de gestio, com o uso da gestio da qua~ lidade, que est em curso. 18 Luiz Carlos Bresser Pereira A aprovagao da reforma constitucional, praticamente nos termos em que foi originalmente proposta pelo governo, foi um processo lento e dificil que durou cerca de trés anos. Essa aprovagdo ocorreu contra todas as apostas daqueles que, quando ela foi proposta, em janeiro de 1995, nao acreditaram que pudesse ter éxito. A reacao inicial a reforma foi, na verdade, de hostilidade, descrenga e perplexidade, Hostilidade da parte daqueles que estavam com- prometidos com a velha visto burocratica da administracdo publica, seja por luma questo ideolégica, seja por se sentirem ameagados em seus privilégios, Perplexidade da parte dos que se viram diante de uma proposta inovadora, que mudava a agenda do pais, e nao tinham ainda tido tempo para avaliar as novas idéias. Descrenga da parte dos que, accitando a proposta de reforma, sentiam que os interesses corporativos e pattimonialistas contrariados eram fortes demais. Aos poucos, porém, a perplexidade foi se transformando em apoio, ¢ a descrenga foi dando lugar a um nimero crescente de defensores da reforma em todos os setores da sociedade, e principalmente entre os mem: bros da alta burocracia brasileira. Os opositores, que inicialmente tentaram ridicularizar a proposta de reforma, foram obrigados em seguida a se opor veementemente a ela, ¢ afinal, dada a falta de argumentos e principalmente de apoio social, abriram espago para que o paradigma gerencial se tornasse dominante, Em um primeiro momento, muitos pensaram que 0 pais ndo estava ainda preparado para a proposta de reforma, que as forcas patrimonialistas e cor- porativistas eram ainda muito fortes a ponto de derroté-la, mas aos poucos {oj ficando claro que isto nao era verdade — o pais estava maduro para a mudanga. Também, em um primeiro momento, houve quem confundisse as novas idéias com uma visio neoconservadora da reforma do Estado. O fato de as reformas terem ocorrido principalmente no Reino Unido, durante 0 governo Thatcher, levava a essa confusio, embora outros paises com governos social-democratas tenham empreendido e continuem a levar adiante refor- ‘mas gerenciais. Aos poucos, entretanto, foi ficando claro que a pecha de neoliberal ou neoconservadora nao se aplicava a reforma brasileira: uma reforma neoconservadora da administracio piblica é aquela que se limita a propor a redugao do aparelho do Estado, a promover o downsizing; nao reconhece a especificidade da administracao publica, pretendendo reduzi-la A ndministragdo de empresas; ndo dé um papel decisivo ao controle social dos seevigos pliblicos; , ao adotar os principios da teoria da escolha racional, nega ou reduz. a0 minimo a possibilidade de cooperagio, acentuando apenas os controles rigidos. Na verdade, se partirmos dos prinefpios que orientam a visio neoliberal ‘Reforma do Estado para a Cidadania 9 ou neoconservadora, veremos que ela s6 é compativel com os principios da administragao pablica burocrética. Aquela perspectiva ideolégica parte do pressuposto do egofsmo essencial dos politicos e dos administradores pibli- os, que apenas fariam permutas entre si, com o objetivo de enriquecer as cus- tas do Estado e se recleger (se forem politicos) ou alcancar postos mais altos nna cazreira (se forem administradores piblicos). Ore, diante desse pressuposto, que exclui a possibilidade de acao coletiva ou de cooperagao por intermédio do Estado, as duas conseqiiéncias légicas so a opcao pelo Estado minimo e 0 controle burocratico rigido pelo Estado daquilo que ndo puder ser contro- lado automaticamente pelo mercado. A Reforma Gerencial em curso entende que o regime democtatico, ape- sar de todas as suas limitagGes reais, estd se consolidando no Brasil, nega 0 pressuposto do egofsmo intrinseco do ser humano, e no encontra hase em- pirica para a afirmagao neoliberal de que as falhas do Estado so sempre piores do que as do mercado, Por isso, est muito longe de ser neoliberal. Por outro lado, critica a alternativa estatista e burocrética, porque a vé como intrinse- camente ineficiente ¢ historicamente autoritaria, Sabe, entretanto, que essas falbas do Estado sio grandes, como sao fortes as tendéncias autoritarias da burocracia, Por isso, oferece uma combinagao de instrumentos administrati- vos ¢ politices, apostando que dessa forma logrard superar a ineficiéncia e o autoritarismo da burocracia e oferecer uma alternativa ao individualismo radical da nova direita neoliberal. ‘Tres FORMAS HisroRicas Este livro parte do pressuposto de que existem trés formas de admi trar 0 Estado: a “administragao patrimonialista”, a “administraco péblica burocratica” e a “administracao piblica gerencial”. A administragdo patri- monialista ¢ do Estado mas nao é pablica, na medida em que nao visa a0 interesse publico, E a administragao tipica dos estados pré-capitalistas, mais particularmente das monarquias absolutistas que antecederam imediatamente ocapitalismo e a democracia. E 2 administragio que confunde o patriménio privado do principe com o patriménio ptiblico. Sobrevive nos regimes demo- créticos imperfeitos por meio do clientelismo, A administracao piblica bu- rocratica € aquela baseada em um servigo civil profissional, na dominagdo racional-legal weberiana e no universalismo de procedimentos, expresso em normas rigidas de procedimento administrativo, A administragao piblica gerencial, que também pode ser chamada de “nova gesto piiblica” (new public management) é 0 objeto deste livro. Com a Reforma Buroeratica, ocorrida na Europa no século passado, nos 20 Luiz Carlos Breséer Pereira Estados Unidos no inicio deste século, e no Brasil nos anos 30, nos quadros do liberalismo, mas no da democracia, estabeleceu-se a administragio pi- blica burocrética. A Reforma Burocritica foi um grande avango ao romper om o patrimonialismo e estabelecer as bases para o surgimento da adminis- tragéo profissional. Foi uma verdadeira reforma porque se antepds & admi- histtagéo patrimonialisca e criou as instituigdes necessdrias a racionalizagao buroccética e, mais especificamente, 2o surgimento de uma burocracia pro- fissional, Mas quanto mais tarde ela veio a ocorrer, como foi o caso do Bra- sil, mais se caracterizou como uma reforma fora do tempo, na medida em que exigia a observancia dos principios da administracao piblica burocréti- a, em um momento em que o desenvolvimento tecnolégico torava-se ace- lerado ¢ o Estado assumia papéis crescentes na rea econdmnica e social. Durante um Jongo periodo, que vai aproximadamente dos anos 30 aos anos 70, houve uma clara inconsistéacia entre as novas tarefas assumidas pelo Estado eo ritmo acelerado do progresso técnico em tadas as direas, Por meio de reformas parciais ou simplesmente da desobedincia aos principios burocra- ticos, politicos e burocratas procuravam integrar a administragao publica 3s noyas realidades. Uma dessas reformas intermediarias foi a Reforma Desen- volvimentisca, que nos paises em desenvolvimento ocorreu nos anos 60 ¢ 70.! Porém, foi s6 a partir dos anos 80 que teve inicio, em paises da OCDE, principalmente no Reino Unido, Nova Zelandia, Australia e paises escandi- nnavos, a segunda grande reforma administrativa nos quadros do sistema ca- pitalista: a Reforma Gerencial. Nos anos 90, essa reforma se estendeu para 198 Estados Unidos e para o Brasil. Constituiu-se, entio, todo um quadro te6- ico e uma pratica administrativa que, nos quadros da democracia, visam modernizar o Estado ¢ tornar sua administragao piiblica mais eficiente e mais voltada para o cidadao-cliente. Esta reforma, apoiada nos principios do geten- sialismo ou da nova gestao piblica, seré 0 objeto deste livro2 "No caso do Brasil, a reforme de 1967, eairada por meio do Decreto-Lein* 200, pro- Conforme relata Spink (1998: 12), os pacticipantes de um seminavio zealizado em junho de 1994, entre agéncias estatais britanicas e suecas, 20 verificarem a identificacéo feita pelo Banco Mundial entre reforma administrativa e civil service reform, decidiram que usati- ama expressio public administration reform para designar a Reforms Gerencial SIDA, 1994). ” Luiz Carlos Bresser Pereira fazer parte integrante da Reforma Gerencial na medida em que as mudanga institucionais e a5 correspondentes mudancas culturais 630 realizadee, Embora a Reforma Burocrética nunca tenka sido plenamente implan tada na América Latina eno Brasil, a insisténcia de suas ¢lites em telagdo ac tema acabou tendo um efeito perverso, contrério ao desejado, porque con essa atitude nao se reconheciam os fatos novos que haviam mudad» a eco. homia ¢ a sociedade, ¢ exigiam mudangas no Estado e em sua administra, $20, Reformas rotineiras supunham uma realidade rotineira. Quando, no Brasil, o Presidente Fernando Henrique Cardoso decidiu pela Reforma Geren tial, ele rompeu com o falso reformismo das reformas rotineiras, ¢ deu umm Passo & frente, a parti do pressuposto de que a melhor maneiea de comple. jit @ Reforma Burocrética ¢ implantar as instieuigBes da administracdo pie blica gerencial, Esta ¢ a estratégia de avangar mesmo que todas as condigées Para 0 avango no tenham sido satisfeitas, a partir do pressuposto de que no Processo de avanco essas condig6es acabarao sendo razoavelmente atendidas, ‘Tres Dimensoes Embora tenha um caréter primordialmente institucional, a Reforma Gerencial esta sedo execntada em trés cimensdes: uma dimensio institucis, nal-legaljé eeferida; uma dimensio cultural, baseada na mudange dos vale, ‘es burocraticos para os gerenciais; e uma dimensdo-gestao, A dimensto aul, tural da reforma significa, de um lado, sepultar de vez 0 Patrimonialismo, ¢, de outro, transitar da cultura burocritica para a gerencial. Tenho dito que a sultura patrimonialistajé néo existe no Brasil, porque s6 existe como prati-

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