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Consideragao intempestiva sobre 0 ensino da literatura‘ s problemas atuais do ensino da literatura decorrem da situagao incerta em que se encontra a propria literatura neste fim deséculo,época queseconvencionou chamar de p6s-moderna. No momento atual a literatura esté sendo questionada em sua produ- ‘glo eem sua recepgio, encontrando-seameagada em seus préprios fundamentos. Como atividade autnoma,aliteratura data de mea. dosdoséculo xvi, Como instituigaoe matéria de ensino,elaalcan- ‘gaoauge de seu prestigio no periodo que vai do inicio do século xix até meados de nosso século, Seu prestigio decorria, entao, de uma determinada concepgao da cultura, que implicavaaestima consen: stal pelas humanidadesea valorizacao da tradigao escrita. Essa tra~ igo estava sacramentada num cinone, fundamentado em deter- rminados valores, o qual orientava a organizagao dos programas ¢ dos manuais escolares. Entretanto, desde o fim do século pasado, quando o lugar social e institucional da literatura parecia ainda assegurado, os + Incidéncias.n |, Lisboa, Edges Coibri/Universidade Nova de Lisboa, 1999, os escritores da modernidade procediam a um profundo questiona- ‘mento dos fundamentos de sua pratica eda inse sociedade. Como disseram Blanchot e outros, a literatura cami jo da mesma na nhou em direcao a sua propria esséncia, num movimento ao mesmo tempo autoglorificador e suicida, e colocou-se em franca oposigao aos valores da sociedade burguesa,rejeitando ass lugar institucional oseu O ensino, como instituigao, tem por objetivo manter os fun- damentos da sociedade, e nao questiond-los de maneira profunda. Assim sendo, 0 ensino de uma literatura que punha em xeque seus préprios fundamentos como pratica social, ¢, indiretamente, as praticas sociais em seu conjunto, comecou a apresentar-se como problematico. As produgdes das vanguardas do inicio do século, porseuaspectodemolidoreanérquico, agravaram o divércioentre apraticada literatura eseu ensino, Entretanto,oensino daliteratu- 1a pode manter-se sem grandes problemas, na medida em que esse ensino, até meados de nosso século, continuow apoiado nos prin- ipios da literatura anterior (principios neockassicos e moderada- mente romanticos) ignorando as praticas iterarias mais recentese fazendo de conta que a intituigio literdria permanecia incélume, ‘a verdade, literatura da alta modernidade nao era ensiné- vel. Se ensinar é repetir (como apontava Barthes), obras que se apresentam como tinicas, ecujo valor maior €a transformagao do cédigo anterior (segunde 0 formalismo russo e a semidtica), naio tém nada aensinar, pelo menos no sentido de fornecer valores fixos formas repetiveis pelos aprendizes. O ensino da literatura (assim como a critica literaria) foi, assim, ameagado pela propria pratica dos escritores modernos, inassimilavel aos objetivos praticos ¢ socializantes de qualquer representagio ou aprendizagem. A partir da segunda metade de nosso século, uma nova situa- cao configurou-se, ¢, nesta, a literatura tem sido relegada a um 346 lugar cada vez mais desimportante. A produgao literaria comecou a sofrer de exaustio. Os gestos revoluciondrios das vanguardas ja haviam sido assimilados e neutralizados pela sociedade, 0“novo” tornou-se repetitivo, Enquanto isso, os avangos tecnolégicos dos meios de comunicasao ea propria vida cotidiana na “sociedade do espeticulo” habituaram 0 piblico a um consumo répido e cabtico deinformagées,em tudo diverso da concentragao edalentidao-exi- gidas pela leitura do texto literario. 0s efeitos dessa situagao no ensino da literatura tém sido devastadores. Seduzidos pelas novas ofertas da informatica e dos ‘meios de comunicagao de massa, ¢ na esperanga de captar 0 inte- resse dos alunos, muitos professores de literatura tém tentado assi- mili-las em suas aulas. Ora, a tinica maneira de aderir a essa nova situagao é abandonar de ver. tudo 0 que justificava 0 ensino ante- rior da literatura, desde o mais elementar: 0 livro,aleitura solitaria, seletiva e reflexiva, Nao é possivel uma verdadeira alianga entre as ntigas andlises de textos e a espetacularizagao dos mesmos,a nao ser como mais um dos numerosos simulacros da indistria cultu- ral, Um cb-RoM com imagem, som ehipertexto pode ser, no maxi- mo, um arremedo das infinitas possibilidades sinestésicas sugeri- das por um textoliterario, Ou uma contextualizagao auxiliar,como a dos verbetes de uma enciclopédia. Enquanto isso, na universidade, a reflexio teérica foi toman- do 0 lugar do estudo das textos literérios. Depois do encantamen- to pelo estruturalismo e pela semidtica, logo transformados em aplicagio mecinica de modelos classificat6rios, 0s universitarios receberam, com um entusiasmo compreensivel, mais filos6fico e politico do que propriamente estético, as propostas teéricas do pés-estruturalismo.A critica dologocentrismo,o questionamento da verdade e da origem, assim como 0 processo do sujeito classico, substancial e unitario, ea conseqiiente proposta de descentramen- 7 to,de liberagao das margens. valorizagao da diferensa, passaram a ‘ocuparosprofessoresdeliteraturaea fornecer-Ihes um arsenal dis caursivo de prestigio académico local e internacional As propostas dos teéricos pés Derrida, Foucault, o tiltimo Barthes — foram lidas nos Estados truturalistas franceses — Unidos de modo superficial, batizadas com o nome genético de “desconstrusio’, ede la reexportadas para as universidades de ou- tros paises. A “desconstrugao”, concebida e praticada por Derrida como uma critica fina dos discursos idealistas do Ocidente, tran: formou-se,nos Estados Unidos, numa demoligao grosseirae gene- ralizada dos saberesanteriores,a servigo de posigdes“politicamen- te corretas” e de apoio as chamadas minorias. As boas intengoes apregoadas também serviam, é claro, a criagao de novas reas de poder dentro das universidades, / valiadas a partir de posigdes ideol6gicas, as obras literirias, foran afogadas na enxurrada dos “estudos culturais”, que tém pouco de estud e pouco de cultural, por recorrerem a um ecletis mo nao interdisciplinar n asadisciplinar,e por se aplicarem a obje- tos cujo valor ¢ indeterminado, O resultado dessa tendéncia foi nocivo para os estudos literarios, porque redundou no questiona- mento dos valores estéticose cognitivos das obras e no nivelamen- to da pratica literaria com outras priticas culturais, dentro das ‘quais cla perdesua especificidade e até mesmo sua legitimidade. As brechas abertas pela “desconstrugao” foram aproveitadas por pro- fessores de literatura que nao gostam de literatura, mas estao inte- ressados em outras coisas: sociedade, ideologia, politica, enfim, tudo © que, na literatura, aparece de forma indireta e refratada, ¢ que agora se pretende atingir por meio dela, como se 0s textos lite- ries fossem meros documentos e discursos apenas referenciais, Reduzidas a essa condi 1o de discurso entre outros, as obras literdrias perderam qualquer privilégio com relacao a outros tipos sa de texto. A propria nogao de texto alargou-se para abrigar até mesmo as manifestagoes nao verbais, Desinteressados daquilo que € especifico da pritica literaria, e numa atitude de complacéncia para com o meioambiente, muitos professores de literatura passa~ ram a cuidar de manifestagdes paraliterarias da comunicagao de ‘massa, Evidentemente, todas essas manifestacdes merecem esturdo, ‘mas problema é que elas comecaram a tomar olugar antes ocupa~ do pelos textos literérios nos curriculos e nas aulas. As intengoes expressas pelos novos professores de literatura sao aparentemente louvaveis: Ievar 0s alunos descoberta do prazer deller,liberar sta criatividade. Mas se o “prazer de ler” € concebido como facilitagaio eadesio a0 gosto médio do piiblico,e sea liberagao da criatividade se da sem a prévia e concomitante consolidagao de uma bagagem cultural, e sem 0 desenvolvimento da capacidade critica, 08 rest tados sio ou inécuos ou lamentaveis. Mais grave do que isso, para o ensino da literatura, foi o ques- tionamento do canone ocidental em nome do“politicamente cor- reto”, que resultou em censuras ¢ exclusdes nos curriculos escola res, Ora, mesmo quando nao assume esse aspecto inquisitorial {puritano) que assumiu nos Estados Unidos, a reformulagao dos curriculos,& luz das questdes ideolégicas atuais, resulta em abrir espagos para a inclusao de representantes de classes, etnias e géne- ros sexuais particulares, empurrando para fora (tanto em fungao do principio da escolha como em fungao da simples falta de tempo no calendario escolar) as obras menos exemplares para essas posi- bes ideol6gicas, isto €, aquelas que “nao passam de obras dearte"s ou, pior, aquelas que se propdem como arte, atividade considerada como idealista, eurocéntrica, anacr6nica e pelos “culturalista: idcologicamente suspeita Defender 0 cénone ocidental ou o nacional pode parecer (e imuitas vezes é) uma posigao conservadora. Entretanto,se conside- Mo rarmos que o “canon” é apenas uma tabua de referéncia de deter- ‘minada cultura (por acaso, a nossa), ¢ que os curriculos escolares, até segunda ordem, devem permitir aos alunos o conhecimento de sua propria tradigao cultural, assim como ade outrasculturas, ndo cestaremos defendendo o canone, mas apenas permitindo 0 acesso a0 mesmo. O cinone, como outras tabuas de referéncia de nossa cultura, nao é um repertorio imével e sagrado;esté sujeito a trans- formacoes, em nome de valores que mudam segundo as épocas, e que é preciso sempre revisar, reformular, wwentar, por meio de um juizo reflexivo e da busca de um consensoampliado. A alegagao 1p6s-moderna da relatividade dos valores (como se isso fosse urna descoberta recente) élevada até o extremo da negagao de qualquer valor, mesmo que provisério ou transitério, Ora, a aboligao pura e simples dos repertérios culturais s6 pode resultar em descultura,e a descultura nao necessita do apoio das nstituigoes de ensino, Osjovens nao precisam ser introduzidos na descultura global; estamos todos imersos nela. Aquilo de que os jovens precisa édecultura,a qual ésempreconhecimentodeuma tradigio, condicao minima até mesmo para a contestar e renovsr. Eo acesso dos ovens a cultura é uma responsabilidade dos profes- sores (afirmagao ou dbvia, ou antiquada, segundo 0 ponto de vista). literatura, tal como a entendemos desde 0 inicio da moder- nidade, nao é ensinavel. Masa leitura hteréria nao apenas pode ser ensinada como necesita de uma aprendizagem,¢ € por isso que os professores de literatura ainda existem, O conhecimento aprofun- dado das obras nas quais cada lingua atingiu 0 maximo de suas potencialidades expressivas e sugestivas € 0 que garante 0 prosse- guimento da atividade literaria, quer do lado dos leitores, quer do lado de futuros e eventuais escritores. Se os professores negligen- ciarena a tarefa de mostrar aos alunos os caminhos da literatura, 0 estes serao desertados, a cultura como um todo ficaré ainda mais empobrecida. (O mestre da critica brasileira, Antonio Candido, fez uma vez uma conferéncia na qual defendia o direito a literatura como um dos direitos humanos. Isso me parece nao apenas verdadeiro, mas oportuno como titica. No momento atual, em que todos preten- dem defender alguma causa minoritaria, a defesa de uma discipli na tao ameagada é uma boa causa que os professores de'literatura literdria’,essa corporagio quase extinta, deveriam adotar. A manu- tensiodo ensino daliteratura nao deve (nem podemais) ser defen- dida com argumentos aprioristicos, mas com base em seus beneli- cios. Segundo Antonio Candido, a literatura deve ser ensinada porque atua como organizadora da mente e refinadora da sensil lidade, como oferta de valores num mundo onde eles se apresen- tam flutuantes. Acesses argumentos, podemos acrescentar outros, que slo decorrentes: a obra literdria é sempre uma leitura critica do real, mesmo que essa critica nao esteja expressa qua simples postu- lagao de uma outra realidade coloca oleitor numa posigao virtual- mente critica com relagao aquilo que ele acreditava ser 0 real. E, finalmente, a escrita e a leitura literdrias sio exercicios de liberda- de: liberdade no uso da linguagem, esclerosada ¢ estereotipada no uuso cotidiano, liberdade do imaginario, oposto a uma suposta fatalidade da historia ‘Mas, para que o ensino literario continue dando seus frutos,é necessério que o professor, antes do aluno, continue acreditando nas virtudes da literatura. Se 0 proprio professor nao confia mais no objeto de seu ensino, e nao faz deste um projeto de vida, é me- Ihor que escolha uma profissio mais atual, menos exigente e mais rentavel

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