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Mudanges— Pilg de Sf Copyright 2006 plo Instiuto Metodina de 14 Q)y jolsdez 2906, 136-142p Ensino Superior CGC 44,351,146/0001.57 O pai 'suficientemente bom': algumas consideragées sobre o cuidado na psicanalise winnicottiana Marcela Casacio Ferreira* Tania M. J. Aiello-Vaisberg** Resumo Apesir da importincia que atribuimos 20 peasamento de D.W. Winnicott, resonhecemos que teoriza sua experiéncia clinica abordando a familia de um modo que nlo wltrapasta os horizontes conservadores os quais, em sua época, demarcavam rigidamente as fungdes materna e paterna, Considerando as novas organiagGes familiares apresentadas 1a clinica atua, bem como as variagdes de lunges estabelecidas entre homens e mulheres este artigo invoca umz reflexio,eticamente inspirada, sobre o tema da maternagem, que a nosto ver possi raizes no potencal humano do cidade a0 outro, que, por sua vez, nia & p de devosio paterna no desenvolvimento infantil, incluindo etapas precoces, ¢ faz questionamentos éticos frente 3s civa do sexo feminino. Convida, assim, a0 debate acerea da capacidade necessidades das familias contemporiness Desoto: adosio, cuidado, maternagem, pai psicanslise, Winnicot. The ‘good enough’ father: some considerations about ‘concer’ in Winnicott’s psychoanalysis Abstract Despite the importance of D.W. Winnicott’s thinking, which has been able to renew psychoanalysis i is recognized that his theory tackles “amily in a way vo not exceed conservative limits that in his time rigidly demarcate t functions of mothers and fathers. However, in present clinic, we are faced with diferent contemporaty models of family, fact that demands an ethically inspired reflection. This paper tackles the issue of new family organizations, a8 ‘yell as variations of established functions between women and men, This invokes the topic of mothering, which soems +0 have origins in the human potential to concern for others ~ which, in turn, is not a prerogative of females, Thus, this paper invites to the debate about the ability of paternal devotion through the whole child development, including precocious sages, and males ethical questions in the face of contemporary families’ needs. Indecterme. soption, concer, father, psychoanalysis, Winnicore Le pére “suffisamment bon": certains considérations sur le devouement chez Winnicott Résumé ‘Malgré 'importance de ls pensée chee D. W. Wi servatrice en rematquant rigidement les fonctions maternele et paternelle, Néamoins, aujourd'hui nows sommes cot lest reconnu que sa théorie aborde la famille de fon com confrontés en clinique & plusieurs modéles de famille, ce qui demande wae rflexion thique. Cet article propose un bat sur les nouvelles organisations familias, comme les variations des fonctions tables entre les hommes ct les 7 Docent de Fale de agunifan, ‘Vasberg:bosta do CNPa. * Prof, orenadora do Programa de Pé-Graduasi em Psicologia do Centro de Ciaciae da Vid, PUC de Campinas prof. staciads do Insinuto de Ps cologia da USP + orentadora do Programa de Pe-Gradvagio em Psicologia Clinica da USP. Sp Paloy Doutora em Pssologa linia pela PUC de Campinas, sob a erenasio da prof. dr. Tania MJ. Aiello Adve nila Pong, 14 @) 186142, Jul Dec, 2006 © PAI ‘SUFICIENTEMENTE BOM’ femmes. Tinvoque le thime de a materité qui « comme base le poteniel humain de soigner 'autre, ce qui n'est pas Ja fonction exclusive de la femme. Il invite ainsi au débat sur la capacité de soin paternelle dans le développement des cafants ct il questionne les nouvelles nécesits des famillesactelles. Mote clic adoption, psychanalyse, dévouement, famille, pire, Winnicot. EI padre ‘suficientemente bueno’: algunas consideraciones sobre el cuidado en la psicoandlisis winnicottiana Resumen A pesar de la importancia que atribuimos al pensamiento de D.W.Winnicott,reconocemos que teoriza ss experiencia clinica abordando la familia de un modo que no ultrapas los horizantes conservadores, los cuales, en su época, de- marcaban rgidament las fenciones matersa y paterna. Considerando las nuevas organizaciones familiares presomadas sa clinica actual, bien como las varaciones de funciones extablecidas entre hombres y mujeres, este articulo invita una reflexién, éicamenteinspirada, sobre el tema de la maternidad que a nuestro ver posee races en el potencial Jnumano del cuidado al otro, que, por su turno, no esta relacionado solamente con el sexo femenino. Asi, invita, al debate sobre la capacidad de vocacién paterna en el desarrollo infantil, incluyendo etapas precozes, y realiza 137 cuestionamientos éticos frente a las nccesidades de ls familias contemporiness Darton: dopcién,cuidado, maternager, padre, psicoaniliss, Winnicott Introducao E no contexto pés vitoriano de Londres, século XX, a partir dos anos trinta, que Winnicott teoriza sobre sua vasta experiéncia clinica pedidtrica e psicanalitica, que inclui, além das andlises individuais, um alto nimero de consultas com duplas de mies ¢ filhos. Nessa época, observava-se na Inglaterra - assim como em outros paises da Europa, a exemplo da Franga - um padrio familiar conservador, que delegava & me a responsabilidade da atengio ¢ dos cuidados com o filho, A familia nuclear, constituida de mie, pai e filhos, que se acomodava em casas separadamente de outros parentes e vizinhos , atri- bufa ao pai, em tese, a fungio do trabalho rentivel e da garantia das despesas da casa, enquanto se esperava da mie que se incumbisse dos cuidados da casa e dos filhos. Malgrado o fato da guerra ter gerado condigées ex- cepcionais de vida, que afetaram profundamente as pes- soas, esta organizacio familiar vigente permaneceu como padrio. Winnicott trabalhou durante a segunda guerra mundial, presenciando diversas situagdes de separagio entre membros da familia, muitas vezes ligadas 4 neces- sidade de envio de criancas a cidades vizinhas, visando sua protesio frente aos ataques © bombardeios (Winnicott, 1940, 1945). A partir do que observava, am- pliava sua visio da importincia da familia como ‘sustentadora emocional’ do desenvolvimento saudével das criangas, a comecar pela fundamental necessidade da relagio suficientemente boa da mie com seu bebé, inclu- indo aquele “adoecer” saudivel, conhecido como preocu- pavio materna priméria, uma capacidade que permite 0 exercicio pleno da maternagem no inicio da vida de uma crianga, Revelava, entio, a0 longo de sua obra, a convie- so de que a mie é tio fundamental 3 constituigio da subjetividade quanto o ar que o bebé respira, principal- mente, nos primeiros meses de sua vida . Paralelamente, Winnicott atribuiu ao pai e & familia a fangio de propor- cionar & mie a seguranga necessdria & realizagio da aco- Ihida segura e tranquila do recém nascido, (Ora, ao mesmo tempo em que assistimos a esta re- tomada do estudo do pensamento de Winnicott, somos confrontados, no fazer clinico, com modelos contempo: rineos de familia marcadamente diferentes daquele do qual provinham seus pacientes. © aumento continuo da presenga da mulher no campo de trabalho, assim como nos estudos ¢ na universidade, modificou a cena domés- tica, dando origem a novas formas de organizagio das fungées familiares ¢ parentais, que podem ser vistas, por exemplo, quando a maternagem é exercida por pais en- quanto a mie est fora trabalhando, ou, quando mies voltam a trabalhar apés duas semanas do parto.. Diante deste quadro, propomo-nos, como objetivo do presente trabalho, refletir sobre a contribuigio que a psicandlise pode trazer 4 elucidagio e superacio do sofri- mento humano que é vivido em contextos familiares marcadamente diversos daqueles prevalentes nos pri- mérdios das descobertas e teorizagdes de Freud e seus se- guidores. A demanda clinica aparece veemente, tanto no consultério como em varias instituigées, educacionais,ju- Mudanes = Psi Side 14 2) 136142, JulDen, 2006 138 idicas, sanitérias e outras, nas quais o profissional se insere, tornando necessirio o estudo sobre as peculiarida- des dessas modalidades de familias ditas ps modernas ~ de certa forma ainda novas a0s nossos olhos ~ para viabilizar 0 acompanhamento ¢ sustentagio do desenvol- vimento emocional saudével. E interessante lembrar que um grande nimero de pessoas acredita que Winnicott limitou-se a enfatizar a importincia da fungi materna, esquecendo-se do pai. Entretanto, a leitura de suas obras revela que chegou a abordar consideravelmente o pai, a paternidade, a funcio paterna ¢ a triangulagio edipica, apesar de fazélo, como cera de seu feitio, de forma um tanto dispersa e no siste- ‘matizada (Outeiral, 1997). Por outro lado, nio se pode negar que, no infcio de sua obra, Winnicott parega ter realmente deixado de reconhecer a importincia do regis- tro paternal (Dupare, 2004) © texto winnicottiano mais conhecido sobre o pai tem um titulo direto e expressive: “What about father?” (Winnicott, 1964). Neste trabalho, que se insere numa série dedicada a resolver questées colocadas pelas mies, afirma que, devido ao seu trabalho, nem sempre o pai podia estar em casa quando o bebé ainda estava acorda- do. Acrescenta, também, que mesmo quando o pai est em casa, enquanto a crianga esta acordada, a mie pode experimentar dificuldades sobre como “utilizat” 0 mari- do... A seu ver, muitas mies pensavam ser mais simples dar comida e banho no bebé, e levalo para a cama, antes ‘que o pai chegasse. Todavia, mesmo conhecendo a pritica corrente, pensava que a divisio do cuidado pelo casal, a0 permitir o compartilhamento de pequenos detalhes do cotidiano, enriqueceria ¢ aprofundaria o vinculo conjugal @, consegiientemente, a familia, Apesar de perceber mui tos pais timidos ou desinteressados, consentia que as mies ajudassem seu maridos num processo de aproxima- io da crianga, permitindo-Ihes assumir atividades que thes imeressassem ou mesmo assistindo alguma tarefa delas com o filho. Percebia que a presenca e participagio do pai dependia do como e do que a mie podia fazer frente a tudo isso ‘Num contexto mais amplo, Winnicott referiu-se ao pai para além da questio da provisio de cuidados priticos em familia, Nest linha, atribuiu posteriormente ao pai e & familia, a mesma condigio de espelho inicialmente assumi- da pela mie, por meio da qual a crianga poders reconhecer se ¢ sentirse existente ¢ real (Winnicott, 1967), aleangando ‘maturidade emocional. Contemplou a importincia da exis- ‘nei de um terceiro a se aproximar e interfere na peculiar Advani Pacong, 14 @) 186142, Jl Dec, 2606 MARCELA CASACIO FERREIRA, TANIA M. J. AIELLO.VAISBERG: relagio da dupla mie e bebé, destacando sua contribuisio direta na teoria do desenvolvimento do self do bebe. O pai, enquanto terceiro, pode alcangar, ou mii, éxito na tarela de apresentar-se como diferente, de acordo com sua maturi- dade emocional e, sem diivida, de acordo com a maturida- de emocional e com a historia da mie. Aparentemente, seguiu Freud num caminho de reco- shecimento da importincia da figura e da funcio paterna, como aponta Outeiral (1997). Winnicott concorda com 0 pai da psicandlise no que diz respeito a atribuir ao monoteismo a consequéncia universal do amor ao pai e da sua repressio. Diz Winnicott: «© pai pode sero primeiro vishimbre que a crianga tem da integragio e da pessoalidade tora. E facil passar desta interagio entre introjegio e projegio para o importante conceito, na histéria do mundo, de um monotelsmo, nio de um deus Gnico para mim e outro deus inieo para voe8. (Winnicott, 1969, p. 188) Apesar da tradigio freudiana, Winnicott parece ir mais longe, conduzindo-nos a pensar que muitas pessoas podem nio chegar ao desenvolvimento emocional refe rente a0 Complexo de Edipo ~ momento este no qual pode acontecer o recalque ~ fazendo-nos rever 0 sentido do pai e das falhas ambientais no desenvolvimento inicial dos pacientes bem como a possibilidade de nfo se alcan- gar um status de pessoa total. Para Winnicott (1956), & fundamental que o pai seja verdadeiramente importante para a mie, num sentido dramitico e existencial, permitindo o estabelecimento de uma relagio mic-filho saudivel. Deste modo, 0 bebé poderd integrar'se com auxilio da presenca paterna, Neste Ultimo caso, © pai no “duplica” o cuidador materno, mas aparece como elemento inscrito num processo de diferen- ciagio da alteridade. Diferentemente do que vemos em alguns casos de psicose, onde a mie ~ e nfo apenas o bebé - mantém um vinculo fusional com o filho, o pai desempenharia importante fungio auxiliar no processo de desenvolvimento saudével do bebé. ‘Quando tudo vai bem, a erianga elaboraréfantasias a0 redor da unio sexual dos pais, a partir das quais eriard/ encontrars formas pessoais de viver e solucionar a questio da triangulagio edipica (Winnicow, 1964). Além do suporte moral que oferece & mie, o pai deverd, ainda, enriquecer 0 uuniverso da erianga com seu conhecimento e sobreviver a seus ataques, para que o filho possa sentir-e como vivo e real, Concordando no sentido de que também a mulher © PAI ‘SUFICIENTEMENTE BOM’ ‘poderia realizar tal funcSo, lembra que sio tantos os cuida- dos maternais a serem despendidos, que melhor seria se a mie nio precisasse ser a receptora do ddio do bebé, dei- xando esta funcio para o pai. Diz Winnicott: and has to provide the whole of the strong or strict clement in her children's li carries a big burden indeed. (Winnieot, 1964, p. 115) sas well as the love, she Notamos, assim, algumas diferengas culturais impor- tantes na perspectiva winnicottiana que parecem estar em transigio hoje, entre as quais, aquela que consiste em deixar parte da mogio do édio de um filho dirigida ao pai, en- quanto a mie permanece como a destinataria do amor. Encontramos também elementos interessantes para pensar a paternidade nas obras dedicadas ao estudo da tendéncia antisocial (Winnicott, 1967), em relagio a qual Winnicott considera importante a distingio de dois aspec- tos. De um lado, observa a ocorréncia de falha na relagio da mic com a crianga, no sentido de que alguma privagio tenha ocorrido impedindo 0 encontro criativo de objetos necessitados, como causa do surgimento na crianga de uma necessidade intensa de busca de objeto, que poderd estar na base de comportamentos tais como o furto. De outro lado, atribui ao pai, neste contexto de exame da tendéncia anti-social, uma fungio de manutengio de um enquadre seguro, que permita 3 crianga lidar com sua agressividade, ddio ¢ destruigio, caracteristicas estas par- ciais do elemento masculino, tanto em meninos como em meninas. Esta questo é fundamental, em termos de amadurecimento emocional, desde o ponto de vista winnicottiano, porque sé se completa satisfatoriamente um processo de estabelecimento de vinculo saudavel com a realidade na medida em que seja possivel, pela via da propria destrutividade, chegar a se conceber a alteridade, a externalidade do mundo. (Winnicott, 1968) © exame de suas formulagdes sobre a tendéncia anti-social, contudo, leva-nos a observar o inevitavel amilgama cultural preservado na obra de Winnicott quan- do cle discute os problemas da fungio materna na origem de tal tendéncia ¢ a necessidade do pai de acolher a agressividade da crianca em momentos posteriores. Esta distingio faz-se natural para o autor, uma vez. que, a par- tir de seu ponto de vista e de seu lugar naquela época, quem estava a maioria do tempo com o filho e era a cuidadora responsivel por atender is necessidades do bebé era a mie; o pai, diferentemente, encontravase em plano secundério no que diz respeito a0 cuidado 139 De qualquer forma, nesta breve varredura de alguns de seus textos, fica evidente a preocupagio de Winnicott cm tematizar questées relativas 4 imporvincia atribuéda ao ambiente cuidador no processo de favorecimento do deseavolvimento emocional infantil. Apesar de no evie denciar um questionamento antropol6gico sistematizado sobre a forma de organizagio familiar daquela época - na qual mulheres estio 4 frente dos cuidados da casa e 08 homens provendo sustento - hoje podemos reconhecer, como faz a antropologia, que as diferentes formagies sociais podem tratar da criagio de criangas de muitas maneiras, ¢ solucionar a questio da imaturidade humana, no inicio do seu desenvolvimento, de variadas formas, porquanto existem platicidade ¢ flexibilidade humanas. Sendo assim, ao pensarmos em funges maternas ou paternas e suas variéveis culturais, remetemo-nos inevitae velmente &s origens ¢ atribuigdes de aspectos fernininos masculinos na constituigio subjetiva, os quais também poderio ser abordados conforme o modo estabelecido pelo contexto social, discussio esta que se faz premente, dadas as inusitadas formas de organizagio familiar da contemporancidade E necessario pelo fato de nossas familias ociden tais virem se modificando rapidamente ~ caminharmos, rds psicanalistas, paralelamente a aquilo criado pelas mu- dangas sociais . Dentre elas, 0 cuidado e a devocio, sem- pre atrelados i mée e A maternidade, parecem-nos impor- tantes temas ja que, assim como perguntavam as mies de Winnicott "e o pai", atualmente, am das mies, também 1s pais propéem-nos esta pergunta. Um modelo de devocio esti longe de definir-se como préprio das mulheres e sequer de mies biolégicas. Badinter (1985), Morel (2003), Marinopoulos (2003), a0 mostrarem quantos bebés foram abandonados na Franca antiga até meados do século XIX, indicam que uma com- preensio de abordagem meramente econdmica, segundo a qual a entrega do bebé estaria essencialmente ligada & pobreza, é absolutamente superficial, uma vez. que muitas mulheres pertencentes a classes mais favorecidas simples- ‘mente deixavam os filhos durante anos entregues &s amas de leite. A nosso ver, fica assim patente que a questio do abandono filial é bastante complexa e demanda conside- rages a partir do vértice da deliberagio e da autonomia pessoal - sempre relativa mas existente, Para alguns, o mito do amor maternal significa, em termos imagindvios, a existéncia de um quantum transbor- dante de afeto e dedicacio em relacio 20 filho. Assim, hi que se compreender que esta idéia, quando pensada em ter- Mudanes = Psi Side 14 2) 136142, JulDen, 2006 140 MARCELA CASACIO FERREIRA, mos miticos e nao reais, possa gerar alguma resistencia emocional. De fato, pensar que a relagio afetiva entre mie e bebé depende de vicissitudes e circunstincias especificas, de modo tal a favorecer - ou nio - 0 estabelecimento de tum vinculo verdadeiramente amoroso, pode ser bastante assustador e ainda pode explicar 0 desconforto que a tese de Badinter (1985) sobre o mito do amor materno suscitow, Sabemos que cada sociedade organiza sua forma de viver, de modo que nossas representagées ¢ condutas nio so naturais, mas sociais. Assim, é possivel revermos 0 que é destinado como fungio a cada um na familia a partir do método psicanaltico, cujo fundamento ético reconhece todas as condutas dos seres humanos - eruéis, sublimes - como manifestagées humanas, que devem ser compreendidas como possibilidades do acontecer huma- no (Aiello-Vaisberg, Machado, Ambrosio, 2003). Em nossos estudos sobre a adogio (Ferreira & Vaisberg, 2004), contemplamos alguns aspectos de ‘cuida- dores’ que nio mantém filiagio bioldgica com criangas e, sequer, sio mulheres. As familias adotivas podem nos servir de exemplo de devogio e de cuidado que transcen: dem as organizagées familiares tradicionais de lago san- guineo, mas que sobretudo acontecem com a mesma forga de um encontro interhumano. ‘A fungio do ‘cuidador devotado comum’ é, 20 nos- so ver, favorecer o desenvolvimento da crianga no senti- do da integracio pessoal e da constituigio do self. ‘Ousamos complementar esta afirmacio, dizendo que 0 cuidado devotado pode ser executado, por exemplo, pelo pai ou por alguém que esteja presente de forma es- pontinea, no momento oportuno com aquele bebé, sen- do, assim, capaz de realizar suficientemente bem sua fun- io. As responsabilidades, caso fossem assim organizadas, seriam divididas e talvez muitos homens encontrassem algum tipo de prazer neste tipo de realizagio. Ademais, se ‘um homem chegou a ser pai, s6 pode por ter nascido de uma mie. Se cresceu e sobreviveu, é porque algum cuidador dele se ocupou. Para Winnicott, o SER, na con- digio do sentimento de exist, antes do fazer, é propri- edade do elemento feminino de cada um de nds, homens e mulheres, O bebé, a0 encontrar o seio, diz. Winnicot (1971), encontra seu préprio self, experimenta o existir e isso esta diretamente relacionado 3 capacidade da mie em ser suficientemente boa, ¢ de ter um seio que E, possibi- litando o bebé de SER. Caso contrario, o bebé precisa se desenvolver sem a capacidade de SER, ou sob uma forma mutilada de ser. Esse perfodo ~ que fundamental mas eurto - ¢ Advani Pacong, 14 @) 186142, Jl Dec, 2606 TANIA M. J. AIELLO-VAISBERG comum na vida de homens e mulheres, 0 que nos faz acreditar que ambos possam vir a ser capazes de auxiliar um outro rumo 4 existéncia. Por outro lado, quando acompanhamos a afirmagio winnicottiana de que o ho- mem-pai pode ¢ deve proporcionar um ambiente confor- tivel para a dupla mie-bebé, chegamos facilmente & se- guinte pergunta: por que, entio, nio seria o pai capaz de proporcionar um bom ambiente para o bebé? Como conduta, 0 cuidado prestado a outrem acon- tece no contexto inter-humano, envolvendo sempre dois polos, um mais nitidamente ativo, outro mais receptivo. No campo da psicanilise, a maternidade tem sido fre- quentemente tomada como modelo de cuidado devotado. Este modelo parece-nos rico por levar-nos ao acompa- nhar os passos de uma mie devotada comum com seu filho, a enxergar o que proporciona ao bebé, o que traz, © que recebe, enfim, o que podem ambos trocar, porque mesmo antes de existir como individualidade separada, “desde seu proprio ponto de vista”, a presenga humana do bebé é doadora de sentido. Entramos, assim, em con- tato com condutas constitutivas de uma relagio inter- humana, que pode ser vista, a priori, como a base do vinculo e da constituigo do self. Entretanto, se é dbvio que esta relagio é a primeira, cronologicamente falando, na vida do individuo, temos diividas acerca do acerto em romarla como modelo quando, na verdade, existem mui- tas outras situagdes humanas caracterizadas por cuidado, que visam favorecer o desenvolvimento de um dos envol- vidos, ¢ que podem ser bem sucedidas, tal como, aquelas existentes entre professor e aluno, chefe e funcionario, médico e paciente, e outras, Evidentemente, nao des- consideramos que a especificidade da primeira relagio consiste no favorecimento da constituigio do self. Entre- tanto, se é fato que a integracio primordial do “eu sou” do bebé , como unidade existencial, é fundamental, nio podemos negar que o viver genufno, sendo desenvolvi- mento, busca sempre, para se realizar, o holding ambiental. Desta forma, estariamos abarcando as relagdes estabelecidas entre os individuos a partir do cuidado espon- tineo, de um devotamento que nio estaria baseado em exigncias ou deveres, como pode ser com uma mie e um filho, e sim, com a disponibilidade humana para o cuidado. Podemos pensar que o cuidado ¢ espontineo quando acontece como gesto do verdadeiro self, um gesto, portan- to, auténtico ¢ integrado. ‘Todavia, este gesto pode estar, paradoxalmente, harmonizado As regras e normas, ja que nem toda norma é insana. Winnicott (1962) abordou 0 paradoxo “ser eu mesmo e me portar bem”, quando des- © PAI ‘SUFICIENTEMENTE BOM’ 14 creveu sua forma de se comportar frente a um paciente em enquadres psicanaliticos, considerando tanto sua autentici- dade quanto as necessidades de seu paciente. Foi além, contudo, pois contemplou ambos movimentos humanos, envolvendo aguele fundamental, existencial, de constituigio do self, de ser auténtico e, portanto, o movimento de criar ~ e poder ser eu mesmo -, com 0 movimento de conside- rar o meio, de considerar 0 outro, o ambiente, e portanto, © movimento de encontrar ~ e me portar bem. A respeito do cuidado, Aiello-Vaisberg, Correa ¢ Ambrésio (2000) comentam: A relacio mielactente, sendo cronologicamente anterior a todas as outras relagdes, no mbito individual, é um caso particular de encontro humano, aquele que tem lugar quando o nascimento biolégico teve lugar mas o ser hue ‘mano ainda nio "chegou" a0 mundo humano, requeren- do, por iso, uma parceria absolutamente especial (p. 3). A relagio mie ¢ filho é historicamente a primeira na vida individual, mas corresponde, de um ponto de vista légico, a um tipo particular de relagdes de cuidado, que se configura a partir de alguma assimetria funcional. O trabalho de Chamuska (2000), realizado com pessoas contando e relatando experitncias das suas relagBes com professores, ilustra bem nosso ponto de vista, Entrevis- tando pessoas que falam sobre professores que foram importantes em suas vidas, esta autora soube colher re- Jatos que expressam com muita clareza como devogio pode acontecer no contexto da relacio professor-aluno, uma ver, que aqueles que ficam na meméria slo justa- mente os que foram devotados. Assim, parece-nos pos- sivel conceber que nio necessariamente as relagbes de cuidado seguem © modelo da relagio mie ¢ filho € © contririo, que a relagio mie-bebé se inscreve no con- texto das relagdes humanas de cuidado. Consequen- temente, o paradigma a seguir nio é o da maternagem, e sim 0 do cuidado, no qual evidentemente se inscreve a propria maternidade. e sim Referéncias Aieloaiterg, T.M.Js Machado, M,C. 8 Ambrosi, FF 2003). A alma, oolho ea alc estates metodliyjens de petqui wa Pcologia Clea Socal Winicoiana. In: T. MJ. 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Essa forma de pensar faz muito senti- do, quando nos remetemos &s familias adotivas Enfim, em relagio 3 angio do pa, ¢ preciso reconhe cer a importincia trazida pela psicandlise, e em destaque por ‘Winnicott (1969), quando este resslta “o terceiro de papel diferenciado” a ser bem utilizado como diagrama para integragio do bebé, Este outro/unidade total, que nos tem- pos de Winnicott era geralmente © pai, caso no esteja pre sente, acarreta ao bebé uma ardua tarefa rumo A integracio. Mas, como fala o préprio Winnicott em 1969, uma outra alternativa dada a auséncia do pai, é a utilizagio, em busca da totalidade pessoal, de *.. algum outro relacionamento que soja bastante esivel com uma pessoa total” (p. 188) ~ fazen- do-nos muito sentido hoje, quando transpomos sua premis- sa aos modos de organizacio familiar contemporineos. ‘Aqueles que serio escolhidos para estarem em tal fungio, cabe & sociedade ditar. Psicanalistas, precisamos viver em consonincia com o exercicio continuo da per- cepgio destes fendmenos e destas representagdes. Assim, poderemos trabalhar bascados em uma ética que nos permita transitar pelo imagindrio que nos circunda, ¢ ao ‘mesmo tempo, visualizélo sob um Angulo externo, 0 que, contudo, aconteceri, sempre, de forma relativa. Pensamos que estes movimentos sio necessirios se estamos empe- nhados nio apenas no processo de desenvolvimento do individuo, mas também no processo de desenvolvimento do meio ambiente humano em que existimos. Ais, . (986). Huns aldo ans fom Tradsfo Dora Faksman.2* ‘sig. Rio de ani, RJ: Gsanshsra (Trabalho original publica em 1973) adinter,E (1988). Uw amor capa: 6 mits de aor mats (W. Dara ‘uul), Rio de Janczo, RJ: Nova Frotera ‘Chamusca, VS. 2000) Ew bs do temps gue nde 1 pede, Dissertasio de Mestrao, Faculdade de Ease. Universidade de Sto Paulo, SP. Dupare, F. 2004) Le pire chez Winnicott (eat “sulfisamment bon)? 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