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CONTRIBUICOES DA PSICOLOGIA CONTEMPORANEA PARA A COMPREENSAO DO PAPEL DA MULHER * Nao creio ser possivel arrolar, em uma palestra, as contribuledes da psicologia contemporanea para @ compreenséo do papel da mulher, mesmo que seja somente para dar uma visio geral da drea, pois estas contribuigGes so inimeras e seria muito Aifiell seleclonar os t6picos de maior importineia. ‘A nfio ser que me detivesse na enumeracio das @iferencas psicoldgleas encontradas entre os dois, sexos; 05 dados descritivos da psicologia diferen- lal constituem um conjunto significativo de con- tribuigdes em termos de retrato psicolégico dos dois sexos. No entanto, considerando-se que & psicolo- gia clentifica interessam postulados explicativos e ‘no dados descritivos puros, parece-me que a sim~ ples enumeracko de caracterfsticas psicoldgicas diferencials no ¢ a melhor abordagem. A rigor, enquanto ciéncia do comportamento humano, a pstcologia deveria elaborar leis gerais que fossem universalmente validas, isto 6, se apli- ‘assem ao ser humano independentemente de sexo ou raga. Este € 0 caso, por exemplo, de grande parte das teorias de aprendizagem, que se aplicam no 86 80s seres humanos mas também aos ani- mais. Todavia, € preciso reconhecer que apenas em algumas éreas da psicologia encontramos esse grau de generalidade das leis que, embora dese- Jével, € dificil de ser alcancado. Na maioria das votes, a psicologia tem-se contentado em estabe- lecer hipSteses explicativas restritas derivadas de alguns estudos especificos, as quals necessitam ser testadas com diferentes grupos populacionais antes do serem generalizadas. Nao obstante, os psied- logos freqllentemente generallzam indevidamente, elevando essas hipéteses explicativas limitadas & categoria de lels gerais sobre 0 comportamento hhumano. No easo do estudo psleoldgico da mulher, ‘Comunleagio aprezentada no Simpisio “Contribuigtes das Clénciag Humanas para a Compreenaio da. Situaglo Muller", XXVH Reunlto Anual di SBPC, Belo Horizont Julho ae 1875. Do Departamento de Pesquisas Faucacionais da Fundacio Carlos Chases. CADERNOS DE PESQUISA/I5 MARILIA GRACIANO** veremos que essa generalizag&o indevida ocorre com ‘mutta freqiiéneia, levando & interpretacio errnea do comportamento feminino a partir de estudos realizados com sujeitos masculinos. Evidentemente, ansiamos pelo desenvolvimento da psicologia en- quanto ciéneia a tal ponto que nfo haja mais sen- tido falar-se em uma psicologia do homem, outra da mulher, outra especttica do adolescente, outra Ga crianga, ete. Nesse estégio ideal, princfpios gerais serdo capazes de explicar o desenvolvimento fe 2 manifestagio dos comportamentos em todos 0s, seres humanos. Até ld, no entanto, é necessério que se estude cada um desses sub-grupos para se poder qualificar as hipsteses explicativas restritas e, even- tualmente, reformulé-las em termos mais gerais. Em relagéo ao sub-grupo mulher, que constitu simplesmente metade da raca humana, a psicologis por muito tempo ignorou a necessidade de estu- dé-lo separadamente. A nfio ser em alguns casos isolados (como, por exemplo, o da psicanalista Karen Horney), poucos autores se preocuparam em ver a mulher como um ser com caracterfsticas psicoldgicas especiais, em fungBo de sua condicao social inferlorizada que perdura por séculos ¢ sé- culos. Como veremos adiante, os pstodlogos ten- deram a negar ot minimizar a importéncia dessa situacdo social para 0 desenvolvimento psicol6gico da mulher, mesmo quando se preocupavam em con- siderd-la como diferente do homem. Em geral, essa diferenca era explicada em termos de dife- rangas biolégieas 0 que, de certa forma, contribufa para manter a mulher conformada sua situagéo. Nos ltimos anos, sentimos claramente uma mudanca da atitude da psicologia em relagéo a este problema, paralelamente & malor aceitagBo das rei- vindicagées feministas pela sociedade em geral Essa mudanga de atitude esté longe de ser com- pleta, principalmente em termos dos psicdlogos en- quanto pessoas. Sinto que ainda nfo conseguimos, enguanto grupo profissional, valorizar adequada- 145, mente a mulher, e principalmente a mulher pro- fissional de sucesso (mesmo no Brasil, onde a psico- Jogia 6 uma carreira essonclalmente feminina). Multos de nds ainda niio conseguiram se despojar totalmente dos esteredtipos culturals que fazem do homem um ser mais capaz, mais inteligente e eria- tivo do que a mulher e, consegiientemente, mais valorizado profissionalmente. A este respelto, néo creio que sejamos mais avangados que outros grupos profissionais, embora nossa’ drea de trabalho e 0 conjunto de conhecimento que possuimos leve a ressupor tal avanco Acredito, porém, que o quadro esté mudando. Principalmente em’ relagio & mulher enquanto objeto de estudo, sendo que um grande niimero de psicdlogos hoje em dia estd preocupado em ana- Usar sua verdadeira situagéo psicoldgica e relacio- né-la com condigées sociais de desigualdade. Esta preocupacdo se evidencia no aparecimento de estu- dos que procuram, de um lado, denuneiar os erros ‘cometidos pela psicologia na andlise do comporta~ mento feminino e, de outro, fornecer explicacdes para a permanéncia da situagio de inferloridade da mulher. CONTRIBUIGOES EM TERMOS DE DENUNCIA Grande parte da literatura psicolégica que en- contramos atualmente sobre a situagio da mulher ode ser classificada como dentincla do enfoque que 2 psicologia tem dado a este problema. Esta de- niincia se d4 principalmente em relagio a trés aspectos, que apresentarei a seguir. I~ A psicologia tende sistematicamente a ignorar ou menosprezar a existéncia de diferencas de- vidas ao sero. Esta critica se refere a despreocupacio dos tedricos em investigar a existéncia de diferencas entre 0s dois sexos nos processos psicolégicos que estudam. Como disse anteriormente, essa atitude se Justificaria apenas se a psicologia } houvesse atingido o status de ciéncla que formula lels uni- vorsais. No entanto, no estiigio em que nos encon- tramos, longe ainda da possibilidade de postular relagdes causais puramente abstratas, nada nos ga- rante que as “leis” baseadas no estudo do compor- tamento de homens sejam aplicivels ao comporta- mento das mulheres. Thelma Alper (1974), em artigo publicado na revista American Psychologist, ‘mostra bem este fato, principalmente em relagio ‘208 estudos sobre 0 motivo para a realizagio, pos- tulado por McClelland, que 6 detinido como a ten- déncia dos individuos para realizar bem as taretas © obter sucesso. Os primeiros estudos sobre mo- tivo para a realizagio empregaram sujeltos mas- culinos e geraram uma sério de postulados que no se confirmaram quando os estudos foram replica~ dos recentemente com mulheres. Além disso, Alper chama a atencio para o niimero reduzidissimo de InvestigagSes sobre o motivo para a realizacio em mulheres, sendo que no livro de McClelland (1953), que continha 400 paginas, os estudos com mulheres ocuparam apenas 8 paginas. Posteriormente, o livro Publicado por Atkinsons (1958) sobre 0 mesmo assunto trazla, entre 873 paginas, apenas uma nota. de rodapé dedicada & muther... Nio obstante, desde 1951 havia dados dos quais se poderia deduzir a existéncia de diferencas cruciais entre os motivos 146 de realizagdo nos homens e nas mulheres: Field (2951) havia demonstrado que, nelas, o motivo para realizacdo esté ligado a0 motivo para ser social- mente acelta, ou seja, ser gostada, Esse problema 86 foi seriamente considerado a partir dos estudos de Matina Horner (1970), nos quais ela mostra que as mulheres (mesmo de nivel universitério) tem ‘medo do sucesso, que & perecbido como incompati- vel com a feminilidade, e pode impedir que elas sejam amadas. Este exemplo mostra como a desatencio & exis- téncia de diferencas entre os sexos acaba por mas- carar fendmenos importantes. Essa desatengio, no entanto, existe como uma constante na histéria da psicologia, refletindo-se nio sé na auséncia de estu- dos comparativos (como no caso de motivo para realizagéo), mas também na tendéncia dos tedri- cos em negar, minimizar ou nfo buscar explicagSes para algumas diferencas que foram objetivamente encontradas (por exemplo, na realizagio escolar). Il ~ A psicologia considera as caractertsticas psico- Iogicas que a maioria das mulheres apresenta como “naturais” e ndo culturalmente condi- cionadas. Essa critica refere-se 20 fato de que muito Poucas teorias da psicologia consideram serlamente © peso que o esteredtipo cultural do papel da mu- Ther exerce sobre a sua formagéo psicologica. Apesar dos dados antropoldgicos de Margaret Mead (949) mostrarem claramente que diferengas entre as “personalidados” masculinas e femininas sfo cul- turalmente ¢ no biologicamente determinadas, pot muito tempo permaneceu na psicologia a nocdo de que as caracteristicas psicoldgicas das mulheres séo decorrentes de sua natureza biol6gica. Entre essas caracteristicas, podemos citar os sentimentos maternais, a emotividade, a dependén- cia, a fragilidade, a passividade e o conformismo, Bm oposicio, o homem é visto como “naturalmente” agressivo, independente, egofsta, dominante, estdtco, FUNDAGAO CARLOS CHAGAS corajoso e capa. Sistematicamente encontramos teorlas psicolégicas que se referem, direta ou indi- retamente, as diferencas “naturals” entre homens e mulheres para explicar os seus comportamentos, motivagées e atitudes. Isto se dé, principalmente, nas éreas de psicologia da personalidade ¢ psicolo- gia clinica onde a postulagio dos chamados “tracos de personalidade” femininos e masculinos ¢ mals evidente. Se considerarmos esses tragos em si mesmos, independentemente de se aplicarem a um ou outro sexo, conchuiremos que 0 conjunto de tragos mas- culinos so muito mais valorizados socialmente © representativos daquilo que, em psicologia, chama~ mos de “personalidade sadia”, do que os tracos fe- mininos, Aligs, isso ficou comprovado empirica- mente por Broverman e colaboradores (1972), que pediram a seus sujeltos para indicarem, entre um dado conjunto de tragos, aqueles que eram repre- sentativos da pessoa saudvel e ajustada. Os resul- tados mostraram que os tragos masculinos foram sistematicamente mais valorizados e considerados mals representativos da pessoa sadia do que os tragos femininos, 0 que 6 aliés bastante compre- ensivel dentro do contexto social em que vivemos, onde a agressividade e a independénc! clais- silo essen- Uma critica interessante A nogho de tracos masculinos e femininos, aparece na conferéncia de Freud, entitulada “A feminilidade”, que 6 parte das Novas Conferéncias Introdutérias & Psicunilise (4933). Nessa palestra, em que procura aplicar sua teoria ao desenvolvimento psicol6gico da mulher, Freud comenta que 0 uso dos termos “feminino” e “masculino” em relago a estados psicol6gicos de- verse @ uma generalizacdo indevida do plano de diferengas andtomo-biolgicas para o plano de dife- rengas mentais. Segundo ele, a nogéo de que o mas- culino 6 ativo e 0 feminino passivo s6 tem funda- mento real na situacio especifica de fecundacio, ‘quando 0 espermatozéide busca ativamente 0 dvulo, que 0 espera. Além dessa situaco, Freud nfo en- contra razio para se esperar passividade psicol6- gica na fémea, chegando mesmo a citar algumas espécies animais (como as aranhas) onde a fémea 6 nitidamente mais ativa e agressiva, ¢ outras (como alguns sub-grupos de macacos) onde os machos se encarregam dos culdados com a cria. Freud lembra que as mulheres em geral tendem a ser extremamente ativas, por exemplo, no cuidado ‘com os filhos, e adverte textualmente que “fazer ativo colncidir com masculino e passivo com femi- nino (...) nfio tem nenhuma utilidade e no acres centa nada ao nosso conhecimento” (Freud, 1933, pég. 115). Mais adiante, acrescenta: “Talvez seja verdade que em uma mulher, a partir da sua parti- cipagdo no ato sexual, a preferéneia por compor- CADERNOS DE PESQUISA/I5, ‘tamentos e objetivos passivos se transferira em maior ot menor grau para outros aspectos de vida (.,.). Mas devemos ter culdado, a esse res pelto, para nfo subestimar a influéncla dos cos. tumes socials que igualmente forcam as mulheres fa situagdes passivas” (Freud, 1933, pags. 115-116). Apesar da adverténcia de Freud, o “masculino” fe “feminino” permaneceram por muito tempo na psicologia, permeando inclusive a nogio de que a realizagio “natural” ¢ “sadia” da mulher estaria no envolvimento afetivo e na procriagio (sendo fo trabalho colocado em segunda ordem de impor- ‘tncla), enquanto que a realizagio “natural” do hhomem estaria Iigada a objetivos concretos, inde- Pendentes da satisfacdo emocional. Hoje em essa posigo ¢ claramente criticada, sendo Inegt vel que essas motivagSes e atitudes aparentemente “naturals” do homem e da mulher sio aprendidas desde multo cedo e moldadas segundo os esteredtipos aceitos por cada cultura. MII — A psicologia menospreza 0 aspecto social do problema da mulher e tende a definir como intra-psiquicos alguns conflitos que decorrem de uma situagdo social objetiva. Esta critica € dirigida principalmente & psico- logia clinica e & psicandlise. Freud, particular- ‘mente, apesar de reconhecer, na passagem que citel acima, a determinacio social das caracteristicas femininas, deixou muito a desejar em seus traba~ Thos tedricos sobre a situacio da mulher. Como pai da psicandlise, tem sido muito criticado pela falta de compreensio da verdadeira problemdtica femi- nnina, 0 que, de certa forma ele proprio reconhecett ao afitmar que estava longe de compreender 0 enigma feminino. Segundo ele, apenas por volta Ga década de 30, e gracas ao trabalho de algumas mulheres analistas, a psicandlise comecou » conhe- cer um pouco melior o processo de desenvolvimento psicolégico da mulher (Freud, 1993) Os seguidores de Freud, no entanto, parecem So ter levado muito em conta esta sua reconhe- ida limitagio, pols nfo hesitaram em adotar ¢ defender proposigées intelramente infundadas sobre a pstcologia feminina, apesar das intimeras dificul- dades tedricas que apresentavam. Por exemplo, na teoria da identificagio, a adaptagéio da hipdtese do complexo de £dipo para o caso da menina levou f& postulacio da existéncla da inveja do pénis que, apesar de ser muito pouco fundamentada, & até hoje aceita por alguns psicanalistas como o cere inconsciente dos problemas psicol6gicos temininos. No entanto, entre os prdprios analistas, e desde os primérdios da psicandlise, apareceram algumas manifestagdes eritioas a essa concepgio. Por exem- plo, Karen Horney (1926) acreditava que a psicand- 14a lise, por ter sido dosenvolvida basicamente por homens, era uma psicologia masculina que enten- dia mais do desenvolvimento do homem do que da mulher. Ela chamou a atencGo para o fato de que alguns aspectos da psicologia feminina, enqua- Grados como processos intra-psiquicos, poderiam ser explicados através da andlise da situagio social desprivilegiada da mulher, argumento que foi enfa- ticamente retomado por Clara Thompson (1943) Para esta, hé uma explicagio social para os senti- mentos de inferioridade da mulher em relaglo a0 hhomem e a inveja do pénis pode ser entendida como uma simbolizagéo destes sentimentos. Se- gundo ela, “o pénis é 0 sinal da pessoa que detém © poder numa situagio especifica nesta cultura, que € a da competigéo entre homem e mulher. A ati- tude da mulher, nesta situacio, nfo é qualitativa- mente diferente da encontrada em qualquer grupo minoritério de uma cultura competitiva. Assim, a atitude denominada inveja do pénis é semelhante a atitude de qualquer grupo desprivilegiado em re- ago aos que esto no poder” (Thompson, 1943, lig. 124), ‘Todavia, Horney e Thompson nfo podem ser consideradas como as autoras mals representativas da corrente psieanalitica A posigéio por elas de- fendida em relagéo & inferioridade da mulher no encontrou eco entre tedricos de maior prestigio — os quais continuaram a menosprezar a importéncia da situacéo objetiva de existéncia de desigualdade entre os sexos — e, em conseqiiéneia disto, tem sido sistematicamente criticadas, CONTRIBUICAO EM TERMOS DE FORMULAGOES TEORICAS A demtincia do enfoque que a psicologia tem dado ao problema da mulher, apresentada acima, em- bora seja de grande valor, nfo ¢ suficiente enquanto contribui¢o para a andlise da situagio feminina, Resta aos psicdlogos a tarefa de elaborar formu- lagdes tedricas que ajudem a compreender a infe- rloridade social da mulher e, principalmente, a acet- tagio e perpetuacdo dessa inferioridade. A anélise teérica sistemética do problema da mulher € ainda bastante incipiente na psicologia, embora j4 possamos citar algumas contribuigdes importantes, tais como os estudos de Horner (1970) sobre motivo para realizago e medo de sucesso, os quals tém gerado intimeras investigacées e dis cusses tedricas. Na psicologia social, duas linhas Principals de investigagéo se apresentam, que dis- cutirei a seguir a titulo de exemplo de como a Psicologia pode contribuir para a compreensio do papel da mulher. I~ A sociatizacéo dos napéis seruais, © estudo da socializagho do ser humano inves tiga 0 processo pelo qual o individuo adota e inter- naliza atitudes, valores e comportamentos que cor- Tespondem as expectativas de seu grupo social. A soclalizagéo é entendida como 0 processo de aqui- sigdo de normas socials que abrangem desde habitos simples (por exemplo: comer com garfo ¢ faca) até regras extremamente sutis e complexas de relacio- namento interpesseal Ao estudar o processo de socializagio do papel Sexual, ou seja, como meninos e meninas séo mol- ados desde muito cedo para assimilarem os mo- tivos, atitudes, valores e comportamentos préprios de seu sexo, os psicdlogos procuram eselarecer um aspecto fundamental da situagio feminina que é 148 © da génese da sua dependéncia, passividade © am- Divalénela quanto & auto-realizagéo. A identificacéo da crianga com um esterestipo semual € forgada a partir do momento em que ela nasee, quando € vestida com roupa azul ou cor-de- rosa. Os brinquedos que ganha, os comportamentos que ¢ incentivada a manifestar, as expectativas que 0s adultos manifestam em torno dela, tudo exerce ‘uma influénela mareante na adogdo de caracteris- teas psicol6gicas “femininas” ou “masculinas’. No caso da menina, destle cedo ela € incenti- vada a manifestar comportamentos de dependén- cla, emotividade, passividade e submissfio, tanto em feasa como na escola, e entre colegas de mesma idade. Hé uma grande pressfo social, direta e indireta, para que ela apresente caracteristicas “temininas” que acabam por se fixar como atitudes motivagées profundas na mulher adulta. Essas caracteristicas passam, entéo, a ser consideradas “naturais”, ow seja, “parte da natureza da mulher”, quando na verdade sio determinadas por influéncias sutis e profundas, © estudo do proceso de socializagio 6, portanto, uum campo riquissimo de investigagio para os psicé- logos interessados em explicar a situacdo da mu- ther. Por um lado, a melhor compreensio desse proceso deveré dar elementos para uma argumen- taco valida contra aqueles que defendem os fun- damentos biolégicos ou naturals da inferioridade feminina. Por outro, o estudo das varidveis que atuam sobre 0 processo de socializagio servité como base para que se possa atuar desde cedo nas crian- gas, no sentido de berd-las para adotar comporte- mentos e atitudes préprios, independentemente de suas caracteristicas sexuals anatomicas, # preciso reconhecer, no entanto, que esta in- tervengio sobre 0 processo de sociallzagio dos FUNDACAO CARLOS CHAGAS papéis sexuals s6 seré possivel através de uma mu- danga de atitude das mulheres adultas que assu- mem, em nossa sociedade, os papéis de principals agentes socializadores (mies e professoras). Tal mudanga implica no reconhecimento da existéncia de desigualdade social entre homens e mulheres e (0 desejo de contribuir efetivamente para uma re- formulagio dos papéis sexuais existentes. Enquanto isto néo ocorrer, as mulheres estaréo contribuindo para a perpetuagio de sua situagdo inferiorizada através da adaptago das criancas aos valores viv gentes. I — 0 comportamento de grupos desprivilegiados. Uma outra linha interessante de aniilise da situagéo da mulher, dentro da psicologia social, € @ que procura investigar os processos de conflito entre grupos de poder desigual e 0 comportamento dos grupos desprivilegiados. A situacéo de desigual- dade entre homens e mulheres, que perdura ha varios séculos, mantinhase estacionéria e equili- brada enquanto as mulheres aceitavam a superio- ridade “natural” dos homens: No momento em que esta superioridade fol questionada e as mulheres passaram a reivindicar maior autonomia e partici- pagio, gerou-se uma situacdo de conflito tipica, que pode ser comparada & luta pela integracéo racial A anilise desse conflito é, sem duivida alguma, um ‘campo riquissimo de investigagies para a psico- logia, pols podera esclarecer as razies porque as mulheres enquanto grupo manifestam dificuldades em atuar objetivamente para mudar sua situagio. Em sou livro sobre resolugéo de conflito, Mor- ton Deutsch (1973) analise a situacdo entre grupos de poder desigual, mostrando como os grupos de menor poder usam 2 adulaco dos grupos pode- rosos ¢ a 6nfase no préprio desamparo e dependén- cla como formas de obter gratificagdes e benevolén- ela. Com isto a situago de dominio e submissio ¢ perpetuada, Para que soja mudada, é necessério que 0 grupo desprivilegiado desenvolva a conscién- cia de sua frustracio ¢ resolva atuar com coesio e firmeza para gerar uma modificacéo, pols a ten- déncia do grupo dominante sera sempre a de resis- tir 8 qualquer tentativa de mudanga. Segundo Deutseh: “at evidente que os que estiéo satisfeltos com seus papéls e com os resultados de um proceso de interagio, freqlentemente investem grande inte- resse em preservar a situacdo existente e desenvol- vem racionalizagdes apropriadas para justificé-la. Para os que esto dominando, estas racionalizacbes geralmente aparecem na forma de atribuicéo de maior competéncia (maior habilidade, conheci- ‘mento, capacidade) e/ou maior valor moral (maior iniclativa, motivagdo, senso de responsabilidade, CADERNOS DE PESQUISA/15 auto-controle) a si mesmos do que aos grupos de status inferior (...). As racionalizagdes que apdiam 6 status-quo sfo geralmente acompanhadas por sen- timentos correspondentes que Ievam seus possul- dores a reagir com desaprovagio e resisténcia &s tentativas de mudar as relagOes de poder, e com apreensio e defesa diante da possibilidade que tals tentativas possam ter sucesso” (Deutsch, 1973, pag. 91). Aplicando-se esta andlise para a situacio entre homens e mulheres, pode-se prever grau de re~ sisténcia que a chamada revolugio feminista de- verd encontrar. Para vened-la, 6 necessirio que as mulheres defxem de aceitar seu status inferior como natural e legitimo e passem a atuar no sentido de reformular 2 ideologia existente © obter uma situa do social de igualdade. No entanto, o que encon- tramos hoje, no grupo feminino em geral, ¢ a ten- déncla para negar ou ridicularizar as dentincias fe- ‘ministas e uma enorme presséo para que a passi- ‘vidade e a submissio continuem existindo. & como se, na fantasia das mulheres, a perda da depen- Géncia e submissio significasse também a perda do afeto mascullno, conforme demonstraram os estudos de Horner (1970) e Field (951), que cttel. Este fendmeno de perpetuar uma situagio des- privilegiada Jé foi explicado na psicologia em ter- ‘mos de identificagdo com o agressor, que significa ‘a assimilago das caracterfsticas punitivas © repres~ ‘soras da figura (ou figuras) que detém o poder. ‘Ocorreu nos campos de concentracéo nazistas, onde alguns prisioneiros judeus adotavam em relagio a0 seu préprio grupo as atitudes punitivas e discrimi- natorias dos guardas alemfes (Bettelheim, 1952), 0 ‘que pode ser explicado de duas formas: de um lado, 6 possivel que através dessas identificagées 0s pri sioneiros se sentissem em igualdade com seus agres- sores, 0 que diminufa 0 medo. De outro, na medida fem que dominavam os prisioneiros, eles evitavam atos de insubordinago que poderiam acarretar re~ presdlias. Neste sentido, a identificagio com agressor tinha um sentido instrumental valioso. Embora a hipdtese da identificagio com o agressor nfo possa ser acelta trangiiilamente pela psicologia clentifiea, tanto por falta de compro- vagio empirica quanto por dificuldades teéricas de defini¢fo, nada impede que a um nivel puramente analogico possamos dizer que as mulheres estio identifieadas com o grupo repressor. Isto porque elas adotam e perpetuam valores que determinam sua situagéo inferiorizada, negando-se a defender seus proprios interesses. Crelo que a psicologia, & ‘medida em que compreender melhor as causas € 0 funcionamento deste processo, estaré mais apta a atuar objetivamente na busca de igualdade entre homens e mulheres. 149 Estas duas linhas de investigacfio que apre- sentel, evidentemente njlo esgotam o universo de contribuigSes tedrioas da psicologia para a com- preensio do papel da mulher. Servem apenas para ‘mostrar 0 tipo de abordagem que a psicologia pode Gar ao problema feminino, contribuindo pata resol- vélo, Uma anélise mais exaustiva das conteibui goes existentos seria de grande valor, mas nfo cabe no ambito deste trabalho. Em conclusfio, acredito realmente que, nos ltimos anos, houve uma mudanga radical no en- foque que a psicologia dava ao estudo da mulher. A bibliografia de estudos com sujeltos temininos, ou comparativos dos dois sexos, cresceu enorme- mente. Além disso, notamos ume preocupagéo em ALPER, T. 1674, Achievement motivation in college women, American Paychologiet, 29 (3): 184-08 ATKINSONS, J. 31, od. 1955. Motives im fantasy, action ond society, Van Nostrand, Princeton STTRLWEIM, B. 1952. Individual and mass behavior in extremo situations. In SWANSON, G. Bj NEWCOMB, 7. M. © HARTLEY, B. L. ed, Readings in social payehotogy. Xevisod edition, Holt, Rinehart and Winston, New York 1. Kj VOGRL, 8. Ri BROVERMAN, D. af N, F. B © ROSENKRANTZ, P. 8, 192, Sex role stereotypes; A current appreiasl. Journal of Sootal Issues, 28°)! 584%, DEVISCH, Mf. 1973, The resolution of conflict. Yate Univers sity Prose, New Haven FIELD, W, F. 1661, The effects of thematic apyerception of certain experimentally aroused needs, University of Mae ryland, [Unpublished doctoral. dissertation). 150 se levar em conta os determinantes sociais da situa- io da mulher na explicacdo de suas atitudes ¢ comportamentos. A nogéo de tragos femininos na- turais esté pouco a pouco sendo substituida pela hipdtese de “valores e atitudes socialmente condi- cionados”. A dentincia erescente da situacéo infe- riorizada da mulher em éreas de realizagio acadé- mica ¢ profissional determinou a busea das causas desta situagio, entre ag quais esté, certamente, 0 medo do sticesso deserito por Horner. Além disso, 4 uma tendéncia & utilizaglo dos conhecimentos da psicologia (sobre processo de socializacéo e con- ‘litos intergrupais, por exemplo) para melhor com- Preensio da submissio feminina. Ao que parece, Portanto, estamos no caminho certo, embora haja ainda muito por fazer, REFERENCIAS BIBLIOGRAFICAS FREUD, S, i988. Femininity. In STRACHEY, 3. ed. Now introductory Tectures in psychoanalysie, Kovton and Co, New York, HORNEY, K, 1028, The flight from womaahood. The Interne tional Journal of Poychoanalysts, 73, 524-89 HORNER, 3, 1970. Femininity and successful achievement; '@ basic Inconsistency. In BARDWICK, J. M. al od, Feminine personality ond conflict. Bocks/Cole, Belmont. MCCLELLAND, D, C.: ATKINSON, R. A.C. 0 LOWELL, BH. L, 1958, The achicvemont motive, Appleton-Century: Crofts, New York. MEAD, M. 149, Male and female, William Morrow, New York, THOMPSON, C. 1049, Penis envy in women, Paychiatry, 6: 123-135, [Reeebido para publicage em julko de 3675) FUNDAQAO CARLOS CHAGAS

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