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Problemas de género | Feminismo e subversao da identidade Judith Butier COPYRIGHT © Routledge, Chapman & Hall, Inc., 1990 Edigéo em lingua portuguesa publicada mediante acordo com Routledge, Inc. TITULO ORIGINAL EM INGLES: Gender Trouble — Feminism and the Subversion of Identity CAPA: Evelyn Grumach PROJETO GRAFICO: Evelyn Grumach e Jodo de Souza Leite PREPARAGAO DE ORIGINAIS E REVISAO TECNICA: Vera Ribeiro ‘ EDITORAGAO ELETRONICA: Imagem Virtual CIP-BRASIL. CATALOGAGAO-NA-FONTE SINDICATO NACIONAL DOS EDITORES DE LIVROS, RJ. Butler, Judith 2 8992p _Problemas de género : feminismo e subversio da identidade J Judith Butler 5 traducdo, Renato Aguiar. — Rio de Janeiro: lagi Brasileira, 2003, «= Gujeito e Histéria) Ci ISBN: 85-200-0611-6 sta. 3. Papel sexu . Identidade (Psicologia). IL Titulo: Feminism ¢ subversio da identicade. Sexo — Difereneas (Psicologia). 1, Tul. CDD — 305.4 02-2104 CDU — 396 Todos os direitos reservados. Proibida a reprodugao, armazenamento ou transmissdo de partes deste livro, através de quaisquer meios, sem prévia autorizagao por escrito. Direitos desta edigao adquiridos pela EDITORA CIVILIZACAO BRASILEIRA Um selo da DISTRIBUIDORA RECORD DE SERVICOS DE IMPRENSA S.A. Rua Argentina 171 - 20921-380 Rio de Janeiro, RJ Tel.: (21) 2585-2000 PEDIDOS PELO REEMBOLSO POSTAL: Caixa Postal 23.052, Rio de Janeiro, RJ, 20922-970 Impresso no Brasil 2003 Sumario PREFACIO. 7 CAPITULO I Sujeitos do sexo/género/desejo 15 1. "MULHERES” COMO SUIEITO DO FEMINISMO. 17 2. AORDEM COMPULSORIA DO SEXO/GENERO/DESHIO 24 3. GENERO: AS RUINAS CIRCULARES DO DEBATE CONTEMPORANEO = 26 4. TEORIZANDO O BINARIO, O UNITARIOE ALEM 33 5. IDENTIDADE, SEXO E A METAFISICA DA SUBSTANCIA 37 6. LINGUAGEM, PODER E ESTRATEGIAS DE DESLOCAMENTO 49. CAPITULO 2 Proibigao, psicandlise e a produgao da matriz heterossexual 61 1. APERMUTA CRITICA DO ESTRUTURALISMO 68 2. LACAN, RIVIERE E AS ESTRATEGIAS DA MASCARADA = 74 3. FREUD EA MELANCOLIA DO GENERO 91 4. A COMPLEXIDADE DO GENERO E OS LIMITES DAIDENTIFICACAO = 102 5. REFORMULANDO A PROIBIGAO COMO PODER §= 109. CAPITULO 3 Atos corporais subversivos 119 1. ACORPO-POLITICA DE JULIA KRISTEVA 121 2, FOUCAULT, HERCULINE E A POLITICA DA DESCONTINUIDADE SEXUAL 140 3, MONIQUE WITTIG: DESINTEGRACAO CORPORALE SEXO FICTICIO. 162 4, INSCRIGOES CORPORAIS, SUBVERSOES PERFORMATIVAS 185, SUMARIO CONCLUSAO Da parédia a politica 203 Notas 215 indice 233 Prefacio Os debates feministas contemporaneos sobre os significados do con- ceito de género levam repetidamente a uma certa sensag4o de proble- ma, como se sua indeterminagao pudesse culminar finalmente num fracasso do feminismo. Mas “problema” talvez nao precise ter uma valéncia tao negativa. No discurso vigente em minha infancia, criar problema era precisamente 0 que nao se devia fazer, pois isso traria problemas para nds. A rebeldia e sua repressio pareciam ser apreen- didas nos mesmos termos, fendmeno que deu lugar a meu primeiro discernimento critico da manha sutil do poder: a lei dominante amea- ¢ava com problemas, ameagava até nos colocar em apuros, para evitar que tivéssemos problemas. Assim, concluf que problemas s4o inevité- veis € nossa incumbéncia é descobrir a melhor maneira de crid-los, a melhor maneira de té-los. Com o passar do tempo, outras ambigiiida- des alcangaram 0 cendrio critico. Observei que os problemas algumas vezes exprimiam, de maneira eufemistica, algum misterioso problema fundamental, geralmente relacionado ao pretenso mistério do femini- no. Li Beauvoir, que explicava que ser mulher nos termos de uma cultura masculinista é ser uma fonte de mistério e de incognoscibili- dade para os homens, o que pareceu confirmar-se de algum modo quando li Sartre, para quem todo desejo, problematicamente presu- mido como heterossexual e masculino, era definido como problema. Para esse sujeito masculino do desejo, o problema tornou-se escandalo com a intrusao repentina, a intervengao nao antecipada, de um “ob- jeto” feminino que retornava inexplicavelmente o olhar, revertia a mirada, e contestava o lugar e a autoridade da posig&o masculina. A dependéncia radical do sujeito masculino diante do “Outro” feminino PREFACIO expés repentinamente o cardter ilusério de sua autonomia. Contudo, essa reviravolta dialética do poder nao péde reter minha atengio — embora outras o tenham feito, seguramente. O poder parecia ser mais do que uma permuta entre sujeitos ou uma relagdo de inversao cons- tante entre um sujeito e um Outro; na verdade, o poder parecia operar na propria produg’o dessa estrutura bindria em que se pensa 0 con- ceito de género. Perguntei-me entao: que configuragao de poder cons- tr6i 0 sujeito e o Outro, essa relagdo bindria entre “homens” e “mu- lheres”, e a estabilidade interna desses termos? Que restricao estaria operando aqui? Seriam esses termos nao-problemdticos apenas na me- dida em que se conformam a uma matriz heterosexual para a concei- tuacdo do género e do deseyo? O que acontece ao sujeito e a estabili- dade das categorias de género quando o regime epistemoldgico da presungio da heterossexualidade € desmascarado, explicitando-se como produtor e reificador dessas categorias ostensivamente onto- légicas? Mas como questionar um sistema epistemoldgico/ontolégico? Qual a melhor maneira de problematizar as categorias de género que sustentam a hierarquia dos géneros e a heterossexualidade compuls6- ria? Considere 0 fardo dos “problemas de mulher”, essa configuragao histérica de uma indisposicao feminina sem nome, que mal disfarga a nogio de que ser mulher € uma indisposigao natural. Por mais séria que seja a medicalizagio dos corpos das mulheres, o termo também é risivel, e rir de categorias sérias € indispensavel para o feminismo. Sem diivida, o feminismo continua a exigir formas préprias de seriedade. Female Trouble € também o titulo do filme de John Waters estrelado por Divine, também her6i/heroina de Hairspray — Eramos todos jo- vens, cuja personificagao de mulheres sugere implicitamente que o género é uma espécie de imitacao persistente, que passa como real. A performance dela/dele desestabiliza as préprias distingdes entre natu- ral e artificial, profundidade e superficie, interno e externo — por meio das quais operam quase sempre os discursos sobre género. Seria o drag uma imitago de género, ou dramatizaria os gestos significantes mediante os quais 0 género se estabelece? Ser mulher constituiria um PROBLEMAS DE GENERO “fato natural” ou uma performance cultural, ou seria a “naturalidade” constitufda mediante atos performativos discurstvamente compelidos, que produzem o corpo no interior das categorias de sexo e por meio delas? Contudo, as praticas de género de Divine nos limites das cul- turas gay e lésbica tematizam freqiientemente “o natural” em contex- tos de parédia que destacam a construgao performativa de um sexo original e verdadeiro. Que outras categorias fundacionais da identida- de — identidade bindria de sexo, género e corpo — podem ser apre- sentadas como produgoes a criar 0 efeito do natural, original e inevi- tavel? Explicar as categorias fundacionais de sexo, género e desejo como efeitos de uma formagio especifica de poder supde uma forma de inves- tigacdo critica, a qual Foucault, reformulando Nietzsche, chamou de “genealogia”. A critica genealégica recusa-se a buscar as origens do gé- ‘ nero, a verdade intima do desejo feminino, uma identidade sexual ge- nuina ou auténtica que a repressio impede de ver; em vez disso, ela investiga as apostas politicas, designando como origem e causa catego- rias de identidade que, na verdade, sao efeitos de instituigdes, praticas e discursos cujos pontos de origem sao miltiplos e difusos. A tarefa dessa investigagao é centrar-se — e descentrar-se — nessas instituigées defin- doras: o falocentrismo e a heterossexualidade compulséria. A genealogia toma como foco 0 género e a andlise relacional por ele sugerida precisamente porque o “feminino” j4 nao parece mais uma nocdo estavel, sendo seu significado tao problematico e erratico quanto o de “mulher”, e porque ambos os termos ganham seu significado pro- blemAtico apenas como termos relacionais. Além disso, j4 nao esté claro _ que a teoria feminista tenha que tentar resolver as questdes da identidade priméria para dar continuidade 8 tarefa politica. Em vez disso, devemos nos perguntar: que possibilidades politicas sf0 conseqiiéncia de uma critica radical das categorias de 1dentidade? Que formas novas de poli- tica surgem quando a nogao de identidade como base comum ja nao restringe o discurso sobre politicas feministas? E até que ponto 0 esforgo para localizar uma identidade comum como fundamento para uma po- PREFACIO litica feminista impede uma investigagao radical sobre as construgGes e as normas politicas da propria identidade? O presente texto se divide em trés capftulos, que empreendem uma genealogia critica das categonas de género em campos discursivos muito distintos. O capitulo 1, “Suyeitos do sexo/género/desejo”, reconsidera 0 status da “mulher” como suyeito do feminismo e a distingao de se- xo/género. A heterossexualidade compulséria e o falocentrismo sio compreendidos como regimes de poder/discurso com maneiras freqiten- temente divergentes de responder 4s questées centrais do discurso do género: como a linguagem constré1 as categorias de sexo? “O feminino” resiste 4 representagao no 4mbito da linguagem? A linguagem é com- preendida como falocéntrica (a pergunta de Lucy Ingaray)? Seria “o feminmo” o tinico sexo representado numa linguagem que funde o fe- minino € o sexual (a afirmagao de Monique Wittig)? Onde e como con- vergem heterossexualidade compulséria ¢ falocentrismo? Onde estao os pontos de ruptura entre eles? Como a lnguagem produz a construgao ficticia de “sexo” que sustenta esses varios regimes de poder? No ambito de uma lingua da heterossexualidade presumida, que tipos de continui- dades se presume que existam entre sexo, género e desejo? Seriam esses termos distintos e separados? Que tpos de praticas culturais produzem uma descontinuidade ¢ uma dissonancia subversivas entre sexo, género e desejo, e questionam suas supostas relagdes? O capitulo 2, “Proibigéo, psicandlise e a produgao da matriz hete- rossexual”, oferece uma lertura seletiva do estruturalismo, relatos psica- nalfticos e feministas do tabu do incesto como mecanismo que tenta impor identudades de género distintas e internamente coerentes no im- bito de uma estrutura heterossexual. Em alguns discursos psicanaliticos, a questao da homossexualidade é invarravelmente associada a formas de ininteligibilidade cultural e, no caso do lesbianismo, a dessexualizagao do corpo feminino. Por outro lado, usa-se a teorta psicanalitica para explicar “identidades” de género complexas por meio de andlises da identidade, da identificagao e do disfarce ou mascarada, como em Joan Riviere e outros textos psicanaljticos. Uma vez submetido o tabu do PROBLEMAS DE GENERO incesto & critica de Foucault da hipétese repressiva, em “A histéria da sexualidade”, revelou-se que essa estrutura proibitiva ou juridica tanto instala a heterossexualidade compulséria no interior de uma economia sexual masculimsta como possibilita um questionamento dessa econo- mua. Seria a psicandlise uma investigagao antifundamentalista a afirmar 0 upo de complexidade sexual que desregula eficientemente codigos sexuais rigidos e hier4rquicos, ou preservaria ela um conjunto de supo- sigdes nao confessadas sobre os fundamentos da identidade, o qual fun- ciona em favor dessas hierarquias? O iiltimo capitulo, “Atos corporais subversivos”, inicia-se com uma consideragao critica sobre a construgio do corpo materno em Julia Kris- teva, para mostrar as normas implicitas que governam a inteligibilidade cultural do sexo e da sexualidade em seu trabalho. Embora Foucault se empenhasse em apresentar uma critica de Kristeva, um exame mais de- tido de alguns dos préprios trabalhos de Foucault revela uma indiferenga problematica em relagao a diferenga sexual. Contudo, sua critica da categoria de sexo prové uma visdo das praticas reguladoras de algumas ficgées médicas contemporaneas, concebidas para designar um sexo uni- voco. Tanto a teoria como a ficgao de Monique Wittig propdem uma “desintegracio” de corpos culturalmente constitufdos, sugerindo que a propria morfologia seria conseqiiéncia de um sistema conceitual hege- ménico. A parte final do capitulo, “Inscrigdes corporais, subversoes per- formativas”, considera que a fronteira e a superficie dos corpos sao po- liticamente construidas, inspirando-se no trabalho de Mary Douglas e de Julia Kristeva. Como estratégia para descaracterizar e dar novo sig- mificado as categorias corporais, descrevo e proponho uma série de pra- ticas parodisticas baseadas numa teorta performativa de atos de género que rompem as categorias de corpo, sexo, género ¢ sexualidade, ocasio- nando sua re-significagao subversiva ¢ sua proliferacao além da estrutura bindria. Parece que cada texto possu mais fontes do que pode reconstruir em seus pr6prios termos. Trata-se de fontes que definem e informam a hin- 1 PREFACIO guagem do texto, de modo a exigir uma exegese abrangente do préprio texto para ser compreendido —, € claro, nao haveria garantias de que tal exegese pudesse acabar um dia. Embora eu tenha iniciado este pre- facio com uma histéria de infancia, trata-se de uma fabula irredutivel aos fatos. Certamente, a proposta aqui é, de maneira geral, observar o modo como as fabulas de género estabelecem e fazem circular sua de- nominagao errénea de fatos naturais. E claramente impossivel recuperar as origens destes ensaios, localizar os varios momentos que viabilizaram este texto. Os textos esto reunidos para facilitar uma convergéncia politica das perspectivas feministas, gays e lésbicas sobre o género com a da teoria pés-estruturalista. A filosofia é o mecanismo disciplinar pre- dominante a mobilizar presentemente esta autora-sujeito, embora muito raramente aparega dissociada de outros discursos. Esta investigacdo bus- ca afirmar essas posigGes nos limites criticos da vida disciplinar. A ques- to nao é permanecer marginal, mas participar de todas as redes de zonas marginais geradas a partir de outros centros disciplinares, as quais, jun- tas, constituam um deslocamento miltiplo dessas autoridades. A com- plexidade do conceito de género exige um conjunto interdisciplinar e p6s-disciplinar de discursos, com vistas a resistir domesticagao acadé- mica dos estudos sobre 0 género ou dos estudos sobre as mulheres, e de radicalizar a nogSo de critica feminista. Escrever estes textos foi possivel gracas a numerosas formas de apoio institucional e individual. O Americain Council of Learned Socie- ties forneceu uma bolsa para 0 outono de 1987 (Recent Recipient of the Ph.D. Fellowship) e a School of Social Science do Institute for Advanced Study, em Princeton, proporcionou bolsa, alojamento e discussées esti- mulantes ao longo do ano académico de 1987-1988. A George Washing- ton University Faculty Research Grant também apoiou minha pesquisa durante os verdes de 1987 € 1988. Joan W, Scott foi uma critica inesti- miyel e incisiva ao longo das varias etapas deste trabalho. Seu compro- misso € sua disposicéo de repensar criticamente os pressupostos da po- lftica feminista me desafiaram e inspiraram. O “Gender Seminar”, rea- lizado no Institute for Advanced Study sob a direcao de Joan ajudou-me a esclarecer e a elaborar meus pontos de vista, em virtude das divisées PROBLEMAS DE GENERO significativas e instigantes em nosso pensamento coletivo. Conseqiien- temente, agradeco a Lila Abu-Lughod, Yasmine Ergas, Donna Haraway, Evelyn Fox Keller, Dorinne Kondo, Rayna Rapp, Carroll Smith-Rosem- berg e Louise Tilly. Meus alunos no semindrio “Género, identidade e desejo”, realizado na Wesleyan University e em Yale, em 1985 e 1986 respectivamente, foram indispensdveis por sua disposic¢ao de imaginar mundos com géneros alternativos. Também apreciei muito a variedade de respostas criticas que recebi do Princeton Women’s Studies Collo- quium, do Humanities Center da Johns Hopkins University, da Univer- sity of Notre Dame, da University of Kansas, da Amherst College e da Yale University School of Medicine, quando da apresentagao de partes _ do presente trabalho. Meus agradecimentos igualmente a Linda Singer, Cujo radicalismo persistente foi inestimavel, a Sandra Bartky, por seu trabalho e suas oportunas palavras de estimulo, a Linda Nicholson, por seu conselho editorial e critico, e a Linda Anderson, por suas agudas in- tuigdes politicas. E também agradeco as seguintes pessoas, amigos e co- - legas, que deram forma a meu pensamento e 0 apoiaram: Eloise Moore _ Agger, Inés Azar, Peter Caws, Nancy F. Cott, Kathy Natanson, Lois Na- tanson, Maurice Natanson, Stacy Pies, Josh Shapiro, Margaret Soltan, | Robert V. Stone, Richard Vann e Eszti Votaw. Agradecoa Sandra Schmidt por seu excelente trabalho de ajuda na preparagio do manuscrito, e a Meg Gilbert por sua assisténcia. Também agradeco a Maureen MacGro- ‘Wun, por encorajar este projeto e outros com humor, paciéncia e exce- lente orientagao editorial. Como sempre, agradego a Wendy Owen por sua imaginagao impla- eiyel, sua critica agucada e pela provocagao de seu trabalho. 13 cariuio: Sujeitos do sexo/género/desejo A gente nao nasce mulher, torna-se mulher. — Simone de Beauvoir Estritamente falando, no se pode dizer que existam “mulheres”. — Julia Kristeva Mulher nao tem sexo. —Luce Irigaray A manifestacao da sexualidade... estabeleceu essa nogao de sexo. — Miche! Foucault A categoria do sexo é a categoria politica que funda a sociedade heterossexual. — Monique Wittig 1. "MULHERES” COMO SUJEITO DO FEMINISMO. Em sua esséncia, a teoria feminista tem presumido que existe uma iden- tidade definida, compreendida pela categoria de mulheres, que nao s6 deflagra os interesses e objetivos feministas no interior de seu proprio discurso, mas constitui 0 sujeito mesmo em nome de quem a repre- SUJEITOS DO SEXO/GENERO/DESEIO senta¢ao politica é almejada. Mas politica e representacdo s4o termos polémicos. Por um lado, a representagdo serve como termo operacional no seio de um processo politico que busca estender visibilidade e legiti- midade as mulheres como sujeitos politicos; por outro lado, a repre- sentag’o é a fung4o normativa de uma linguagem que revelaria ou dis- torceria 0 que é tido como verdadeiro sobre a categoria das mulheres. Para a teoria feminista, o desenvolvimento de uma linguagem capaz de representé-las completa ou adequadamente pareceu necessario, a fim de promover a visibilidade polftica das mulheres. Isso parecia obviamente importante, considerando a condicdo cultural difusa na qual a vida das mulheres era mal representada ou simplesmente nao representada. Recentemente, essa concep¢g4o dominante da relacdo entre teoria feminista e politica passou a ser questionada a partir do interior do discurso feminista. O préprio sujeito das mulheres nao é mais compreen- dido em termos estaveis ou permanentes. E significativa a quantidade de material ensaistico que n4o s6 questiona a viabilidade do “sujeito” como candidato iiltimo a representagao, ou mesmo 2 libertacgao, como indica que é muito pequena, afinal, a concordancia quanto aot que cons- titui, ou deveria constituir, a categoria das mulheres. Os dominios da “representacdo” politica e lingiifstica estabeleceram a priori o critério segundo 0 qual os préprios sujeitos sio formados, com o resultado de a representacao s6 se estender ao que pode ser reconhecido como sujeito. Em outras palavras, as qualificagdes do ser sujeito tem que ser atendidas para que a representag4o possa ser expandida. Foucault observa que os sistemas juridicos de poder produzem os sujeitos que subseqiientemente passam a representar.' As nog6es juridi- cas de poder parecem regular a vida politica em termos puramente ne- gativos — isto €é, por meio de fimitagdo, proibicdo, regulamentagao, controle e mesmo “proteg4o” dos individuos relacionados aquela estru- tura politica, mediante uma ag4o contingente e retratavel de escolha. Porém, em virtude de a elas estarem condicionados, 0s sujeitos regulados por tais estruturas sao formados, definidos e reproduzidos de acordo com as exigéncias delas. Se esta andlise é correta, a formago juridica da linguagem e da politica que representa as mulheres como “o sujeito” do 18 PROBLEMAS DE GENERO feminismo é em si mesma uma formagio discursiva e efeito de uma dada versao da politica representacional. E assim, o sujeito feminista se revela discursivamente constituido —, e pelo proprio sistema politico que su- postamente deveria facilitar sua emancipagio, 0 que se tornaria politi- camente problematico, se fosse possivel demonstrar que esse sistema produza sujeitos com tragos de género determinados em conformidade com um eixo diferencial de dominagao, ou os produza presumivelmente masculinos, Em tais casos, um apelo acritico a esse sistema em nome da emancipagio das “mulheres” estaria inelutavelmente fadado ao fracasso. “O sujeito” é uma questo crucial para a politica, e particularmente para a politica feminista, pois os sujeitos jurfdicos s4o invariavelmente produzidos por via de praticas de exclusio que nao “aparecem”, uma vez estabelecida a estrutura jurfdica da politica. Em outras palavras, a constru¢4o politica do sujeito procede vinculada a certos objetivos de legitimagao e de exclusdo, e essas operacées polfticas sao efetivamente ocultas e naturalizadas por uma anilise politica que toma as estruturas jurfdicas como seu fundamento. O poder juridico “produz” inevitavel- mente o que alega meramente representar; conseqiientemente, a politica tem de se preocupar com essa fungao dual do poder: jurfdica e produtiva. Com efeito, a lei produz e depois oculta a nogao de “sujeito perante a lei”, de modo a invocar essa formacao discursiva como premissa basica natural que legitima, subseqiientemente, a propria hegemonia regulado- ra da lei. Nao basta inquirir como as mulheres podem se fazer repre- sentar mais plenamente na linguagem e na politica. A critica feminista também deve compreender como a categoria das “mulheres”, o sujeito do feminismo, é produzida e reprimida pelas mesmas estruturas de po- der por intermédio das quais busca-se a emancipagao. Certamente, a. questao das mulheres como sujeito do feminismo suscita a possibilidade de nao haver um sujeito que se situe “perante” a lei, 4 espera de representagio na lei ou pela lei. Talvez o sujeito, bem como a evocacao de um “antes” temporal, sejam constitufdos pela lei como fundamento ficticio de sua propria reivindicagao de legitimidade. A hip6tese prevalecente da integridade ontoldgica do sujeito perante a lei pode ser vista como 0 vestigio contemporaneo da hipotese do estado 19 SUJEITOS DO SEXO/GENERO/DESEIJO natural, essa fabula fundamte que € constitutiva das estrituras jurdicas do liberalismo classico. A invocagao performativa de vm “antes” nao hist6rico torna-se a premiss4 basica a garantir uma ontologia pré-ocial de pessoas que consentem Jivremente em ser governadss, Constituindo assim a legitimidade do contrato social. Contudo, além das ficgSes “fundacionistas” que sustentam a s0¢io de sujeito, h4 o problema politico que o feministno encontra. na siposi- c&o de que 0 termo mudher’s denote uma identi dade comumn, Aoinvés de um significante estavel a zomandar 0 consentismento daquelas aquem pretende descrever e repreentar, mulheres — mesmo 1 pharal — tor- nou-se um termo problemitico, um ponto de contest¢40, umacausa de ansiedade. Como suger¢ 0 titulo de Denise Riley, Ai I That Name? [“Sou eu este nome?”], tra‘-se de uma pergunta gerad pella posibili- dade mesma dos miltiplossignificados do nome. Se ilgué:m “é uma mulher, isso certamente n@ € tudo o que esse alguémé; 0 terno nao logra ser exaustivo, nao ptque Os tragos preclefinidis de. génro da “pessoa” transcendam a pa’afernilia especifica dle seu ¢nerro, ms por- que © género nem sempre € constituiu de maneira co¢ente ou wonsis- tente nos diferentes contest0s historicos, e porque o gner® estdelece intersegdes com modalidacs raciais, classistas, étnicassexuaais eregio- nais de identidades discursVamente constitufda:s. Resula quae se ornou impossivel separar a nocac de “género” das intersegos polliticate cul- turais em que invariavelmate ela € produzida e mantila. A presungao politica Je ter de haver uma base mniveersal vara 0 feminismo, a ser encontrala numa identidade supospmen-te exstente em diferentes culturas, aempanha freqtientemente : idétia deque a opressdo das mulheres pos i uma forma singu lar, disernfwel ni estru- tura universal ou hegemérca da domina¢ao pautriarcaou mmascilina. A nogao de um patriarcado iniversal tem sido aamplamate Criticda em anos recentes, por seu fra@sso em explicar os umecanimos. da orressio de género nos contextos ulturais concretos emn que la exxiste.Exata- mente onde esses varios cDtextos foram consualtadosior esssas eorias, eles 0 foram para encontrr “exemplos” on “ilaustragés” dee umprinci- plo universal pressupostolesde o ponto de parrtida, ta faormade teo- 20 PROBLEMAS DE GENERO rizagao feminista foi criticada por seus esforgos de colonizar e se apro- priar de culturas nao ocidentais, instrumentalizando-as para confirmar nogdes marcadamente ocidentais de opressdo, e também por tender a construir um “Terceiro Mundo” ou mesmo um “Oriente” em que a opressio de género é sutilmente explicada como sintomatica de um bar- barismo intrinseco e nao ocidental. A urgéncia do feminismo no sentido de conferir um status universal ao patriarcado, com vistas a fortalecer aparéncia de representatividade das reivindicagdes do feminismo, mo- tivou ocasionalmente um atalho na direg4o de uma universalidade cate- gorica ou ficticia da estrutura de dominagio, tida como responsdvel pela produgio da experiéncia-comum de subjugagao das mulheres. Embora afirmar a existéncia de um patriarcado universal nao tenha mais a credibilidade ostentada no passado, a nogao de uma concepgio genericamente compartilhada das “mulheres”, corolario dessa perspec- tiva, tem se mostrado muito mais dificil de superar. E verdade, houve muitos debates: existiriam tragos comuns entre as “mulheres”, preexis- tentes A sua opressdo, ou estariam as “mulherés” ligadas em virtude somente de sua opressao? Ha uma especificidade das culturas das mu- lheres, independente de sua subordinac&o pelas culturas masculinistas hegem6nicas? Caracterizam-se sempre a especificidade e a integridade das praticas culturais ou lingiifsticas das mulheres por oposigao e, por- tanto, nos termos de alguma outra formagdo cultural dominante? Existe uma regiao do “especificamente feminino”, diferenciada do masculino como tal e reconhecivel em sua diferenga por uma universalidade indis- tinta e conseqiientemente presumida das “mulheres”? A nogio bindria de masculino/feminino constitui nao sé a estrutura exclusiva em que essa especificidade pode ser reconhecida, mas de todo modo a “especificida- de” do feminino é mais uma vez totalmente descontextualizada, analftica e politicamente separada da constituigao de classe, raga, etnia e outros eixos de relagdes de poder, os quais tanto constituem a “identidade” como tornam equivoca a nogao singular de identidade.* E minha sugestao que as supostas universalidade e unidade do su- jeito do feminismo sao de fato minadas pelas restrigdes do discurso representacional em que funcionam. Com efeito, a insisténcia prematura 21 SUJEITOS DO SEXO/GENERO/DESEJO uum sujeito estavel do feminismo, compreendido como uma categoria una das mulheres, gera, inevitavelmente, miltiplas recusas a aceitar essa categoria. Esses dominios de exclusio revelam as conseqiiéncias coerci- tivas e reguladoras dessa construgao, mesmo quando a construgao é claborada com propésitos emancipatérios. Nao ha ddvida, a fragmen- taco no interior do feminismo e a oposigdo paradoxal ao feminismo — por parte de “mulheres” que o feminismo afirma representar — sugerem os limites necessdrios da politica da identidade. A sugestio de que o feminismo pode buscar representagao mais ampla para um sujeito que ele proprio constréi gera a conseqiiéncia irénica de que os objetivos feministas correm 0 risco de fracassar, justamente em funcao de sua recusa a levar em conta os poderes constitutivos de suas proprias reivin- dicag6es representacionais. Fazer apelos 4 categoria das mulheres, em nome de propésitos meramente “estratégicos”, nao resolve nada, pois as estratégias sempre tém significados que extrapolam os propésitos a que se destinam. Nesse caso, a prdpria exclusio pode restringir como tal um significado inintencional, mas que tem conseqiiéncias. Por sua conformacéo as exigéncias da politica representacional de que © femi- nismo articule um sujeito estdvel, o feminismo abre assim a guarda a acusagées de deturpac’o cabal da representagdo. Obviamente, a tarefa politica nao € recusar a politica representa- cional — como se pudéssemos fazé-lo. As estruturas juridicas da lingua- gem e da politica constituem 0 campo contemporaneo do poder; con- seqiientemente, nao ha posigéo fora desse campo, mas somente uma genealogia critica de suas proprias praticas de legitimagao. Assim, o pon- to de partida critico é 0 presente hist6rico, como definiu Marx. E a tarefa justamente formular, no interior dessa estrutura constitufda, uma cri- tica as categorias de identidade que as estruturas jurfdicas contempora- neas engendram, naturalizam’e imobilizam. Talvez exista, na presente conjuntura politico-cultural, perfodo que alguns chamariam de “pés-feminista”, uma oportunidade de refletir a partir de uma perspectiva feminista sobre a exigéncia de se construir um sujeito do feminismo. Parece necessdrio repensar radicalmente as cons- trugdes ontoldgicas de identidade na pratica politica feminista, de modo 22 PROBLE MA! DE GENERO uma politica repre-sentzional capaz de renovar o feminismo terms, Por outro lado é tempo de empreender uma critica husque libertar a teoia feminista da necessidade de cons- base Gnica e permanene, invariavelmente contestada pelas le identidade ou anti-idatidade que o feminismo invariavel- Ini. Serd que as prAticasexcludentes que baseiam a teoria fe~ uma nocdo das “mualherg” como sujeito solapam, paradoxal- os objetivos feministas le ampliar suas reivindicagées de uitagao”?> ser que o problema sejaainda mais sério. Seria a construgdo joria das mulheres como swito coerente ¢ estavel uma regulagio so inconsciente das relages de género? E nao seria essa reifi- isamente 0 contrario do objetivgs feministas? Em que medida poria das mulheres s6 alcang estabilidade e coeréncia no contexto iz heterossexual?* Se a ncio estavel de género da mostras de nais servir como premissa bsica da politica femiinista, talvez um tipo de politica feminista sja agora desejavel para contestar as wias reificagdes do génexo e a identidade — isto é, uma politica sta que tome a construcao ariavel da identidade como um pré- lisito metodoldgico e normatio, sendo como um objetivo politico. Determinar as operacdes poticas que produzem e ocultam o que ifica como sujeito jurfdico lo feminismo é precisamente a tarefa ealogia feminista da categora das mulheres. Ao longo do esforco Ip questionar a nocao de “mulhe:s” como sujeito do feminismo, a in- gagiio nao problematizada dessccategoria pode obstar a possibilidade feminismo como politica reprcentacional. Qual o sentido de esten- Mera representacao a sujeitos cuja onstituigao se dé mediante a exclusio aqueles que nao se conformam s exigéncias normativas nao explici- tadas do sujeito? Que relagées ¢ dominagao e exclusao se afirmam inintencionalmente quando a reresentagdo se torna o tinico foco da politica? A identidade do sujeito minista nao deve ser o fundamento da politica feminista, pois a formgao do sujeito ocorre no interior de tim campo de poder sistematicarente encoberto pela afirmacao desse fundamento. Talvez, paradoxalmate, a idéia de “representacdo” s6 ve- SUJEITOS DO SEXO/GENERG/DESEIO nha realmente a fazer sentido para o feminismo quando o suje(to “mu- Theres” nao for presumido em parte alguma. 2. A ORDEM COMPULSORIA DO SEXO/GENERO/DESEJO Embora a unidade indiscutida da nocdo de “mulheres” seja freqiientemen- te invocada para construir uma solidariedade da identidade, uma divisao se introduz no sujeito feminista por meio da distingdo entre sexo e género. Concebida originalmente para questionar a formulagio de que a biologia € 0 destino, a distingao entre sexo e género atende a tese de que, por mais que 0 sexo parega intratavel em termos bioldgicos, 0 género é cultural- mente construfdo: conseqiientemente, nao é nem o resultado causal do seXo, nem tampouco tao aparentemente fixo quanto o sexo. Assim, a uni- dade do sujeito j4 € potencialmente contestada pela distingio que abre espaco ao género como interpretag4o multipla do sexo.” Se o género s4o as significados culturais assumidos pelo corpo se- xuado, nao se pode dizer que ele decorra, de um sexo desta ou daquela maneira. Levada a seu limite logico, a disting4o sexo/género sugere uma descontinuidade radical entre corpos sexuados e géneros culturalmente construidos. Supondo por um momento a estabilidade do sexo bindrio, nao decorre daf que a constru¢ao de “homens” aplique-se exclusivamen- te a corpos masculinos, ou que o termo “mulheres” interprete somente corpos femininos. Além disso, mesmo que os sexos parecam niio pro- blematicamente bindrios em sua morfologia e constituigao (ao que serd questionado), nao ha raz4o para supor que os géneros também devam permanecer em ntimero de dois.’ A hipétese de um sistema binério dos géneros encerra implicitamente a crenca numa relacdo mimética entre género e sexo, na qual o género reflete o sexo ou € por ele restrito. Quando 0 status construfdo do género é teorizado como radicalmente independente do sexo, o préprio género se torna um artificio flutuante, com a conseqiiéncia de que homem ¢ masculino podem, com igual fa- 24 PROBLEMAS DE GENERO cilidade, significar tanto um corpo feminino como um masculino, e mu- ther e feminino, tanto um corpo masculino como um feminino. Essa cisao radical do sujeito tomado em seu género [evanta outro conjunto de problemas. Podemos referir-nos a um “dado” sexo ou um “dado” género, sem primeiro investigar como sao dados 0 sexo e/ou género e por que meios? E o que é, afinal? o “sexo”? E ele natural, anatémico, cromossémico ou hormonal, e como deve a critica feminista avaliar os discursos cientificos que alegam estabelecer tais “fatos” para n6s?? Teria o sexo uma histéria?™ Possuiria cada sexo uma histéria ou hist6rias diferentes? Haveria uma histéria de como se estabeleceu a dua- _lidade do sexo, uma genealogia capaz de expor as op¢des bindrias como _uma construcdo varidvel? Seriam os fatos ostensivamente naturais do sexo produzidos discursivamente por varios discursos cientificos a ser- Be de outros interesses politicos e sociais? Se o carater imutavel do sexo é contestavel, talvez o proprio construto chamado “sexo” seja tao -culturalmente construfdo quanto o género; a rigor, talvez 0 sexo sempre tenha sido o género, de tal forma que a distingdo entre sexo e género "revela-se absolutamente nenhuma.!! 4 Se o sexo é, ele préprio, uma categoria tomada em seu género, nao - faz sentido definir 0 género como a interpretacao cultural do sexo. O género nao deve ser meramente concebido como a inscrigao cultural de significado num sexo previamente dado (uma concep¢ao juridica); tem de Becsignar também o aparato mesmo de produgao mediante o qual os pré- " prios sexos sao estabelecidos. Resulta daf que o género nao esta para a cultura como 0 sexo para a natureza; ele também é 0 meio discursivo/cul- tural pelo qual “a natureza sexuada” ou “um sexo natural” € produzido e - estabelecido como “pré-discursivo”, anterior & cultura, uma superficie po- -iticamente neutra sobre a qual age a cultura. Essa concepgao do “sexo” como radicalmente nao-construfdo sera novamente objeto de nosso inte- _resse na discussao sobre Lévi-Strauss e 0 estruturalismo, no capitulo 2. Na conjuntura atual, j4 esta claro que colocar a dualidade do sexo num do- minio pré-discursivo é uma das maneiras pelas quais a estabilidade interna €a estrutura bindria do sexo s4o eficazmente asseguradas. Essa produgao a do sexo como pré-discursivo deve ser compreendida como efeito do apa- 25 SUJEITOS DO SEXO/GENERO/DESEJO rato de construgao cultural que designamos por género. Assim, como dever a nogio de género ser reformulada, para abranger as relagdes de poder que produzem o efeito de um sexo pré-discursivo e ocultam, desse modo, a prépria operacao da produgio discursiva? 3. GENERO: AS RUINAS CIRCULARES DO DEBATE CONTEMPORANEO Havera “um” género que as pessoas possuem, conforme se diz, ou é 0 género um atributo essencial do que se diz que a pessoa é, como implica a pergunta “Qual € 0 seu género?” Quando tedricas feministas afirmam que o género € uma interpretago cultural do sexo, ou que 0 género é construfdo culturalmente, qual é o modo ou mecanismo dessa constru- Gio? Se o género € construido, poderia sé-lo diferentemente, ou sua caracteristica de construgao implica alguma forma de determinismo so- cial que exclui a possibilidade de agéncia ou transformagao? Porventura anocio de “construgao” sugere que certas leis geram diferencas de gé- nero em conformidade com eixos universais da diferenga sexual? Como e onde ocorre a construgao do género? Que juizo podemos fazer de uma construgaéo que nao pode presumir um construtor humano anterior a ela mesma? Em algumas explicagées, a idéia de que o género € construf- do sugere um certo determinismo de significados do género, inscritos em corpos anatomicamente diferenciados, sendo esses corpos com- preendidos como recipientes passivos de uma lei cultural inexordvel. Quando a “cultura” relevante que “constréi” o género € compreendida nos termos dessa lei ou conjunto de leis, tem-se a impressio de que o género € tdo determinado e tao fixo quanto na formulacdo de que a biologia € o destino. Nesse caso, nao a biologia, mas a cultura se torna o destino. Por outro lado, Simone de Beauvoir sugere, em O segundo sexo, que “a gente nao nasce mulher, torna-se mulher”!2. Para Beauvoir, 0 género € “construido”, mas ha um agente implicado em sua formulagao, um cogito que de algum modo assume ou se apropria desse género, poden- 26 PROBLEMAS DE GENERO , em principio, assumir algum outro. Eogénero tao varidvel e volitivo anto parece sugerir a explicagao de Beauvoir? Pode, nesse caso, a loca de “construgao” reduzir-se a uma forma de escolha? Beauvoir diz ramente que a gente “se torna” mulher, mas sempre sob uma com- pulsao cultural a fazé-lo. E tal compulsao claramente nao vem do “sexo”. Nao ha nada em sua explicacdo que garanta que 0 “ser” que se torna "mulher seja necessariamente fémea. Se, como afirma ela, “o corpo 6 uma “situagio”, nao hd como recorrer a um corpo que j4 nao tenha sido sempre interpretado por meio de significados culturais; conseqiente- mente, o sexonao poderia qualificar-se como uma facticidade anatémica __pré-discursiva. Sem davida, ser4 sempre apresentado, por definigao, como tendo sido género desde 0 comego.'4 A controvérsia sobre o significado de construgdo parece basear-se na polaridade filosdfica convencional entre livre-arbitrio e determinis- mo. Em conseqiiéncia, seria razodvel suspeitar que algumas restrigdes lingiifsticas comuns ao pensamento tanto formam como limitam os ter- mos do debate. Nos limites desses termos, “o corpo” aparece como um meio passivo sobre o qual se inscrevem significados culturais, ou entao como 0 instrumento pelo qual uma vontade de apropriacao ou interpre- tacao determina o significado cultural por si mesma. Em ambos 0s casos, o corpo € representado como um mero instrumento ou meio com o qual um conjunto de significados culturais € apenas externamente relaciona- do. Mas o “corpo” é em si mesmo uma construgdo, assim como 0 éa mirfade de “corpos” que constitui o dominio dos sujeitos com marcas de género. Nao se pode dizer que os corpos tenham uma existéncia significdvel anterior 4 marca do sea género; ¢ emerge entao a questao: em que medida pode 0 corpo vir a existir na(s) marca(s) do género e por meio delas? Como conceber novamente 0 corpo, nao mais como um meio ou instrumento passivo a espera da capacidade vivificadora de uma vontade caracteristicamente imaterial?'$ Se 0 género ou 0 sexo sao fixos ou livres, € fungao de um discurso que, como se ira sugerir, busca estabelecer certos limites 4 andlise ou sal- yaguardar certos dogmas do humanismo como um pressuposto de qual- quer andlise do género. O locus de intratabilidade, tanto na nogao de 27 SUJEITOS DO SEXO/GENERO/DESEJO “sexo” como na de “género”, bem como no préprio significado da nogio de “construgao”, fornece indicagdes sobre as possibilidades culturais que podem e nao podem ser mobilizadas por meio de quaisquer anilises pos- teriores. Os limites da andlise discursiva do género pressupoem e definem Por antecipa¢ao as possibilidades das configurag6es imaginaveis e realiza- veis do género na cultura. Isso nao quer dizer que toda e qualquer possi- bilidade de género seja facultada, mas que as fronteiras analiticas sugerem os limites de uma experiéncia discursivamente condicionada. Tais limites se estabelecem sempre nos termos de um discurso cultural hegeménico, baseado em estruturas bindrias que se apresentam como a linguagem da racionalidade universal. Assim, a coergio é introduzida naquilo que a lin- guagem constitui como 0 dominio imaginavel do género. Embora os cientistas sociais se refiram ao género como um “fator” ou “dimensao” da anilise, ele também é aplicado a pessoas reais como uma “marca” de diferenga bioldgica, lingiiistica e/ou cultural. Nestes tltimos casos, 0 género pode ser compreendido como um significado assumido porum corpo (ja) diferenciado sexualmente; contudo, mesmo assim esse significado s6 existe em relacdo a outro significado oposto. Algumas tedricas feministas afirmam ser o género “uma relacdo”, aliés um con- junto de relacées, e nao um atributo individual. Outras, na senda de Beauvoir, argumentam que somente o género feminino é marcado, que a pessoa universal e o género masculino se fundem em um s6 género, definindo com isso, as mulheres nos termos do sexo deles e enaltecendo os homens como portadores de uma pessoalidade universal que trans- cende 0 corpo. Num movimento que complica ainda maisa discussao, Luce Irigaray argumenta que as mulheres constituem um paradoxo, se ndo uma con- tradigao, no seio do préprio discurso da identidade. As mulheres sio 0 “sexo” que nao € “uno”. Numa linguagem difusamente masculinista, uma linguagemr falocéntrica, as mulheres constituem 0 irrepresentdvel. Em outras palavras, as mulheres representam 0 sexo que nao pode ser pensado, uma auséncia e opacidade lingiifsticas. Numa linguagem que 28 PROBLEMAS DE GENERO repousa na significado univoca, o sexo feminino constitui aquilo que fio se pode restringir nem designar. Nesse sentido, as mulheres sao 0 sexo que nao é “uno”, mas miltiplo.’6 Em oposigio a Beauvoir, para ‘quem as mulheres so designadas como o Outro, Irigaray argumenta " que tanto 0 sujeito como 0 Outro sao os esteios de uma economia sig- nificante falocéntrica e fechada, que atinge seu objetivo totalizante por yia da completa exclusao do feminino. Para Beauvoir, as mulheres sio © negativo dos homens, a falta em confronto coma qual a identidade r masculina se diferencia; para Irigaray, essa dialética particular constitui um sistema que exclui uma economia significante inteiramente diferen- te. Nao sé as mulheres sao falsamente representadas na perspectiva sar- ttiana do sujeito-significador e do Outro-significado, como a falsidade da significagdo salienta a inadequacdo de toda a estrutura da repre- sentacdo. Assim, 0 sexo que ndo é uno propicia um ponto de partida para a critica das representagoes ocidentais hegemOnicas e da metafisica da substancia que estrutura a propria nogio de sujeito. O que é a metafisica da substancia, e como ela informa 0 pensamen- to sobre as categorias de sexo? Em primeiro lugar, as concepgdes huma- nistas do sujeito tendem a presumir uma pessoa substantiva, portadora de varios atributos essenciais e nao essenciais. A posig&o feminista hu- manista compreenderia o género como um atributo da pessoa, caracte- rizada essencialmente como uma substAncia ou um “niicleo” de género preestabelecido, denominado pessoa, denotar uma capacidade universal de razao, moral, deliberacao moral ou linguagem. Como ponto de par- tida de uma teoria social do género, entretanto, a concepcao universal da pessoa € deslocada pelas posicdes historicas ou antropolégicas que compreendem o género como uma relagdo entre sujeitos socialmente constituidos, em contextos especificdveis. Este ponto de vista relacional ou contextual sugere que o que a pessoa “é” — e a rigor, 0 que o género “€” — refere-se sempre as relacdes construidas em que ela é determi- tada.'” Como fendmeno inconstante e contextual, o género nao denota “um ser substantivo, mas um ponto relativo de convergéncia entre con- juntos especificos de relagGes, cultural e historicamente convergentes. Irigaray afirmaria, no entanto, que o “sexo” feminino é um ponto 4 29 SUJEITOS DO SEXO/GENERO/DESEJO de auséncia lingitistica, a impossibilidade de uma substncia gramatical- mente denotada e, conseqiientemente, o ponto de vista que expde essa substancia como umailusio permanente e fundante de um discurso mas- culinista. Essa auséncia nao é marcada como tal na economia significante masculinista — afirmacéo que se contrapée ao argumento de Beauvoir (e de Wittig) de que 0 sexo feminino é marcado, ao passo que o mascu- lino nfo o é. Para Irigaray, @ sexo feminino nao é uma “falta” ou um “Outro” que define 0 sujeito negativa e imanentemente em sua mascu- linidade. Ao contrario, o sexo feminino se furta as prdprias exigéncias da representagao, poisela nao € nem o “Outro” nema “falta”, categorias que permanecem relativas ne sujeito sartriano, imanentes a esse esque- ma falocéntrico. Assim, para Irigaray, o feminino jamais poderia ser a marca de um sujeito, como sugeriria Beauvoir. Além disso, o feminino nao poderia ser teorizado em termos de uma relagéo determinada entre © masculino ¢ o feminino em qualquer discurso dado, pois a nocéo de discurso nao é€ relevante aqui. Mesmo tomados em sua variedade, os discursos constituem modalidades da linguagem falocéntrica. O sexo feminino é, portanto, também 0 sujeito que nao é uno. A relacao entre masculino e feminino nao pode ser representada numa economia signi- ficante em que 0 masculino constitua o circulo fechado do significante e do significado. Paradoxalmente, Beauvoir prefigurou essa impossibi- lidade em O segundo sexo, a0 argumentar que os homens nao podiam resolver a questéo das mulheres porque, nesse caso, estariam agindo como juizes € como partes interessadas. !8 As distincdes existentes entre as posic6es acima mencionadas estdo longe de ser nitidas, podendo cada uma delas ser compreendida como a problematizacao da localizacao e do significado do “sujeito” e do “gé- nero” no contexto de uma aisimetria de género socialmente institufda. As possibilidades interpretativas do conceito de género nao se exaurem absolutamente nas alternativas acima sugeridas. A circularidade proble- matica da investigagao femirista sobre o género é sublinhada pela pre- sen¢a, por um lado, de posiges que pressupdem ser 0 género uma ca- racteristica secundaria das pessoas, e por outro, de posigdes que argumentam ser a prépria nd¢40 de pessoa, posicionada na linguagem 30 \PROBLEMAS DE GENERO (0 “sujeito”, uma construgao masculinista e uma prerrogativa que clui efetivamente a possibilidade semAntica e estrutural de um género inino. Essas discordancias tao agudas sobre o significado do género género é de fato o termoa ser discutido, ou se a construgao discursiva sexo € mais fundamental, ou talvez a nogaio de mulheres ou mulher 3u de homens ou homem) estabelecem a necessidade de repensar ra- ente as Categorias da identidade no contexto das relagées de uma simetria radical do género. ‘Para Beauvoir, o “sujeito”, na analitica existencial da misoginia, é re j4 masculino, fundido com o universal, diferenciando-se de um Dutro” feminino que esta fora das normas universalizantes que cons- lem a condic4o de pessoa, inexoravelmente “particular”, corporifica- }e condenado a imanéncia. Embora veja-se freqiientemente em Beau- dit uma defensora do direito de as mulheres se tornarem de fato sujeitos nciais, e portanto, de serem inclufdas nos termos de uma univer- idade abstrata, sua posicdo também implica uma critica fundamental ‘6pria descorporificagao do sujeito epistemoldégico masculino abstra- ». ? Esse sujeito é abstrato na medida em que repudia sua corporificacao jalmente marcada e em que, além disso, projeta essa corporificagao enegada e desacreditada na esfera feminina, renomeando efetivamente 9 corpo como feminino. Essa associacéo do corpo com o feminino fun- jona por relagGes magicas de reciprocidade, mediante as quais 0 sexo inino torna-se restrito a seu corpo, € 0 corpo masculino, plenamente renegado, torna-se, paradoxalmente, o instrumento incorpéreo de uma Jiberdade ostensivamente radical. A anélise de Beauvoir levanta impli- ‘¢itamente a questdo: mediante que ato de negacao e renegacao posa 0 masculino como uma universalidade descorporificada e € o feminino construido como uma corporalidade renegada? A dialética do senhor e do escravo, aqui plenamente reformulada nos termos nao reciprocos da assimetria do género, prefigura o que Irigaray descrevia mais tarde como a economia significante masculina, a qual inclui tanto © sujeito exis- tencial como o seu Outro. _ Beauvoir propde que o corpo feminino deve ser a situagao e o ins- _ trumento da liberdade da mulher, e nao uma esséncia definidora e limi- 31 SUJEITOS DO SEXO/GENERO/DESEJO tadora.° A teoria da corporificacao que impregna a andlise de Beauvoir € claramente limitada pela Teproducao acritica da distingao cartesiana entre liberdade ¢ corpo. Apesar de meus proprios esforcos anteriores de argumentar 0 contrario, fica Claro que Beauvoir mantém o duatismo mente/corpo, mesmo quando propde uma sintese desses termos.2' A Preservacao dessa distincao pode ser lida como sintomitica do prdprio falocentrismo que Beauvoir subestima. Na tradigao filos6fica que se ini- cia em Platao e continua em Descartes, Husserl e Sartre, a distingao ontol6gica entre corpo e alma (consciéncia, mente) sustenta, invariavel- mente, relagdes de subordinagéio ¢ hierarquia politicas e psiquicas. A mente nao sé subjuga 0 corpo, mas nutre ocasionalmente a fantasia de fugir completamente a Corporificagio. As associagées culturais entre mente ¢ masculinidade, por um lado, e corpo e feminilidade, por outro, so bem documentadas nos campos da filosofia ¢ do feminismo.22 Re- sulta que qualquer reprodugdo acritica da distingao corpo/mente deve ser repensada em termos da hiekarquia de género que essa distingdo tem convencionalmente produzido, mantido e racionalizado. A construgio discursiva “do corpo”, ¢ sua separagio do estado de “liberdade”, em Beauvoir, nao consegue marcar no eixo do género a pré- pria distingéo corpo/mente que deveria esclarecer a persisténcia da assi- metria dos géneros. Oficialmente, Beauvoir assevera que oO corpo feminino € marcado no interior do discurso masculinista, pelo qual 0 corpo mascu- lino, em sua fusao com o universal, permanece nao marcado. Irigaray sugere claramente que tanto 0 marcador como 0 marcado sio mantidos no interior dé um modo masculinista de significagdo, no qual 0 corpo feminino é como que “separado” do dominio do significdvel, Em termos pés-hegelianos, ela seria “anulada”, mas nao preservada. Na leitura de Irigaray, a afirmacio de Beauvoir de que mulher “6 sexo” inverte-se para significar que ela nao € 0 sexo que € designada a ser, mas, antes, é ainda — encore (€ en corps)* — 0 sexo masculino, paradeado A maneira da alteridade. Pura Irigaray, esse modo falocéntrico de significar o sexo femi- * Ressalta-se 0 jogo de palavras, citadas 6rn francés no origi i no original, entre encore (ainda) © en corps (no corpo), homéfonas em francés. (N. da Rev. Téc.) a 32 PROBLEMAS DE GENERO io reproduz perpetuamente as fantasias de seu préprio desejo auto-en~ randecedor. Ao invés de um gesto lingiifstico autolimitativo que garanta alteridade oua diferenga das mulheres, o falocentrismo oferece um nome ira eclipsar © feminino € tomar seu lugar. TEORIZANDO 0 BINARIO, © UNITARIO E ALEM voir e Irigaray diferem claramente sobre as estruturas fundamentais reproduzem a assimetria do género; Beauvoir volta-se para a reci- rocidade malograda de uma dialética assimétrica, ao passo que Irigaray re ser a propria dialética a elaborag4o monolégica de uma economia ficante masculinista. Embora Irigaray amplie claramente o espectro critica feminista pela exposicio das estruturas légicas, ontolégicas é remolégicas de uma economia significante masculinista, o poder de andlise € minado precisamente por seu alcance globalizante. Sera olégica que atravessa toda a colecao de contextos culturais € histéricos bm que ocorre a diferenga sexual? Ser4 0 fracasso em reconhecer as ie de imperialismo epistemoldgico, imperialismo esse que no se ate- pela elaboracao pura e simples das diferencas culturais como “exem- los” do mesmissimo falocentrismo? O esforgo de incluir “Outras” ras como ampliagdes diversificadas de um falocentrismo global constitui um ato de apropriagdo que corre o risco de repetir o gesto wuto-engrandecedor do falocentrismo, colonizando sob 0 signo do mes- mo diferengas que, de outro modo, poderiam questionar esse conceito _ totalizante.”* A sritica-feminista tem de explorar as afirmacGes totalizantes da conomia significante masculinista, mas também deve permanecer au- tocfitica em relagdo aos gestos totalizantes do feminismo. O esforgo de identificar o inimigo como singular em sua forma é um discurso invertido que mimetiza acriticamente a estratégia do opressor, em vez 33 SUJEITOS DO SEXO/GENERO/DESEJO de oferecer um conjunto diferente de termos. O fato de a tatica poder funcionar igualmente em contextos feministas e antifeministas sugere que o gesto colonizador nao é primaria ou irredutivelmente masculi- nista. Ele pode operar para levar a cabo outras relagdes de subordina- ¢ao hetero-sexista, racial e de classe, para citar apenas algumas, Claro que arrolar as variedades de opressao, como comecei a fazer, supde sua coexisténcia descontinua e seqiiencial ao longo de um eixo hori- zontal que nao descreve suas convergéncias no campo social. Um mo- delo vertical seria igualmente insuficiente; as opressdes nao podem ser sumariamente, classificadas, relacionadas causalmente, e distribufdas entre planos pretensamente correspondentes ao que € “original” € ao que € “derivado”.*4 Certamente, o campo de poder em parte estrutu- rado pelo gesto imperializante de apropriagéo dialética excede e abrange o eixo da diferenga sexual, oferecendo um mapa de interse- goes diferenciais que nao podem ser sumariamente hierarquizadas, nem nos termos do falocentrismo, nem nos de qualquer outro candi- dato a posicdo de “condigao primdria da opressao”. Em vez de tatica exclusiva das economias significantes masculinistas, a apropriagao e a supressao dialéticas do Outro so uma tatica entre muitas, centralmen- te empregada, é fato, mas nao exclusivamente a servico da expansao e da racionalizagao do dominio masculinista. Os debates feministas contemporaneos sobre 0 essencialismo colo- cam de outra maneira a questéo da universalidade da identidade femi- nina e da opressdo masculina. As alegagées universalistas so baseadas em um ponto de vista epistemolégico comum ou compartilhado, com- preendido como consciéncia articulada, ou como estruturas comparti~ Ihadas de opressao, ou como estruturas ostensivamente transculturais da feminilidade, maternidade, sexualidade ¢/ou da écriture feminine. A discuss4o que abre este capitulo argumenta que esse gesto globalizante gerou um certo niimero de criticas da parte das mulheres que afirmam ser a categoria das “mulheres” normativa e excludente, invocada en- quanto as dimensées nfo marcadas do privilégio de classe e de raga permanecem intactas. Em outras palavras, a insisténcia sobre a coeréncia e unidade da categoria das mulheres rejeitou efetivamente a multiplici- 34 PROBLEMAS DE GENERO das intersecGes culturais, sociais e politicas em que é construido o o concreto das “mulheres”. / Alguns esforgos foram realizados para formular politicas de coalizao nfo pressuponham qual seria 0 contetido da nogio de “mulheres”. propdem, em vez disso, um conjunto de encontros dialégicos me- ite o qual mulheres diferentemente posicionadas articulem identida- separadas na estrutura de uma coalizao emergente. E claro, nao mos subestimar o valor de uma politica de coalizao; porém, a forma da coalizao, de uma montagem emergente € imprevisivel de po- s, n4o pode ser antecipada. Apesar do impulso claramente demo- tizante que motiva a construgao de coaliz6es, a tedrica aliancista pode dvertidamente reinserir-se como soberana do processo, ao buscar an- {par uma forma ideal para as estruturas da coalizao, vale dizer, aquela ue garanta efetivamente a unidade do resultado. Esforgos correlatos a determinar qual é e qual nao é a verdadeira forma do didlogo, aquilo que constitui a posicao do sujeito —e, o mais importante, quando ‘a “unidade” foi ou nao alcangada —, podem impedir a dinamica de “autoformacao e autolimitagao da coalizao. : Insistir a priori no objetivo de “unidade” da coalizao supde que a " golidariedade, qualquer que seja seu prego, é um pré-requisito da acao F politica. Mas que espécie de politica exige esse tipo de busca prévia da unidade? Talvez as coalizées devam reconhecer suas contradicGes e agit ~ deixando essas contradigoes intactas. Talvez 0 entendimento dialégico também encerre em parte a aceitagao de divergéncias, rupturas, dissen- sGes e fragmentacoes, como parcela do processo freqiientemente tortuo- so de democratizagao. A propria nocdo de “didlogo” € culturalmente especifica e historicamente delimitada, e mesmo que uma das partes esteja certa de que a conversacao esta ocorrendo, a outra pode estar certa de que nao. Em primeiro lugar, devemos questionar as relagées de poder que condicionam e limitam as possibilidades dialégicas. De outro modo, o modelo dialdgico corre o risco de degenerar num liberalismo que pres- supde que os diversos agentes do discurso ocupam posicdes de poder iguais de poder e falam apoiados nas mesmas pressuposigdes sobre o que 7 constitui “acordo” e “unidade”, que seriam certamente 0S objetivos a 35 SUJEITOS DO SEXO/GENERO/DESEJSO serem perseguidos. Seria errado supor de antemao a existéncia de uma categoria de “mulheres” que apenas necessitasse ser preenchida com os varios componentes de raga, classe, idade, etnia e sexualidade para tor- nar-se completa. A hipétese de sua incompletude essencial permite a categoria servir permanentemente como espaco disponivel para os sig- nificados contestados. A incompletude por definigao dessa categoria po- der, assim, vir a servir como um ideal normativo, livre de qualquer forga coercitiva. Ea “unidade” necessaria para a acao politica efetiva? Nao ser preci- samente a insisténcia prematura no objetivo de unidade a causa da frag- mentagao cada vez maior e mais acirrada das fileiras? Certas formas aceitas de fragmentacao podem facilitar a agdo, € isso exatamente porque a “uni- dade” da categoria das mulheres nao € nem pressuposta nem desejada. Nio implica a “unidade” uma morma excludente de solidariedade no 4m- bito da identidade, excluindo a possibilidade de um conjunto de agdes que rompam as prdprias fronteiras; dos conceitos de identidade, ou que bus- quem precisamente efetuar essa ruptura como um objetivo politico expli- cito? Sem a pressuposic4o ou © objetivo da “unidade”, sempre institufdo no nivel conceitual, unidades provisdrias podem emergir no contexto de agdes concretas que tenham outras propostas que nao a articufagao da identidade. Sera a expectativa compulséria de que as agées feministas de- vam instituir-se a partir de um acordo estavel e unitario sobre a identidade, essas ac6es bem poderao desemcadear-se mais rapidamente e parecer mais adequadas ao grande nimero de “mulheres” para as quais 0 significado da categoria esté em permanemte debate. Essa abordagem antifundlacionista da politica de coalizées nao su- poe que a “identidade” seja u:ma premissa, nem que a forma ou signifi- cado da assembléia coalizada jpossa ser conhecida antes de realizar-se na pratica. Considerando que a articulagao de uma identidade nos termos culturais disponiveis instaura, uma definigio que exclui previamente o surgimento de novos conceitios de identidade nas agées politicamente engajadas e por meio delas, a tatica fundacionista nao é capaz de tomar como objetivo normativo a transformagéo ov expansao dos conceitos de identidade existentes. Além disso, quando as identidades ou as estru- 36 PROBLEMAS DE GENERO 4s dialégicas consensuais pelas quais as identidades j4 estabelecidas comunicadas nao constituem o tema ou o objeto da politica, isso fica que as identidades podem ganhar vida e se dissolver, depen- do das praticas concretas que as constituam. Certas praticas politicas ituem identidades em bases contingentes, de modo a atingir os ob- em vista. A politica de coalizdes nao exige uma categoria amplia- “mulheres” nem um ew internamente miltiploa desvelar de chofre 1 complexidade. O género é uma complexidade cuja totalidade € permanentemente relada, jamais plenamente exibida em qualquer conjuntura conside- Uma coalizio aberta, portanto, afirmaria identidades alternativa- institufdas e abandonadas, segundo as propostas em curso; tra- “ge-4 de uma assembléia que permita miltiplas convergéncias e di- cias, sem obediéncia a um #elos normativo e definidor. '§. IDENTIDADE, SEXO E A METAFISICA DA SUBSTANCIA © que pode entao significar “identidade”, e o que alicerca a pressupo- igfio de que as identidades so idénticas a si mesmas, persistentes a0 0 do tempo, unificadas e internamente coerentes? Mais importante, como essas suposicées impregnam o discurso sobre as “identidades de genero”? Seria errado supor que a discussao sobre a “identidade” deva ser anterior A discussao sobre a identidade de género, pela simples razao - de que as “pessoas” s6 se tornam inteligiveis ao adquirir seu género em conformidade com padrées reconheciveis de inteligibilidade do género. Convencionalmente, a discussio sociolégica tem buscado compreender anocdo de pessoa como uma agéncia que reivindica prioridade ontol6- gica aos varios papéis e fungdes pelos quais assume viabilidade e signi- ficado sociais. No proprio discurso filos6fico, a nogao de “pessoa” tem sido analiticamente elaborada com base na suposigao de que, qualquer que seja 0 contexto social em que “esta”, a pessoa permanece de algum modo externamente relacionada a estrutura definidora da condigio de 37 SUJEITOS DO SEXO/GENERO/DESEJO pessoa, seja esta a consciéncia, a capacidade de linguagem ou a delibe- racio moral. Embora nao esteja aqui em exame essa literatura, uma das premissas dessas indagagées é 0 foco de exploragdo e inverso criticas. Enquanto a indaga¢do filoséfica quase sempre centra a questao do que constitui a “identidade pessoal” nas caracteristicas internas da pessoa, naquilo que estabeleceria sua continuidade ou auto-identidade no de- correr do tempo, a questdo aqui seria: em que medida as prdticas regu- ladoras de formagio e divisio do género constituem a identidade, a coeréncia interna do sujeito, ¢, a rigor, 0 stats auto-idéntico da pessoa? Em que medida é a “identidade” um ideal normativo, ao invés de uma caracterfstica descritiva da experiéncia? E como as praticas reguladoras que governam o género também governam as nogées culturalmente in- teligiveis de identidade? Em outras palavras, a “coeréncia” € a “conti- nuidade” da “pessoa” nao sao caracteristicas ldgicas ou analiticas da condicao de pessoa, mas, ao contrario, normas de inteligibilidade social- mente institwidas e mantidas. Em sendo a “identidade” assegurada por conceitos estabilizadores de sexo, género e sexualidade, a propria nogéo de “pessoa” se veria questionada pela emergéncia cultural daqueles seres cujo género é “incoerente” ou “descontinuo”, os quais parecem ser pes- soas, mas nao se conformam as normas de género da inteligibilidade __ cultural pelas quais as pessoas sao definidas. Géneros “inteligiveis” so aqueles que, em certo sentido, instituem e mantém relagées de coeréncia e continuidade entre sexo, género, pra- tica sexual e desejo. Em outras palavras, os espectros de descontinuidade e incoeréncia, eles proprios 6 concebiveis em relagdo a normas existen- tes de continuidade e coeréncia, so constantemente proibidos ¢ produ- zidos pelas proprias leis que buscam estabelecer linhas causais ou ex- spressivas de ligacdo entre o sexo bioldgico, o género culturalmente constituido e a “expresso” ou “efeito” de ambos na manifestagao do desejo sexual por meio da pratica sexual. A nogao de que pode haver uma “verdade” do sexo, como Foucault a denomina ironicamente, é produzida precisamente pelas prfticas re- guladoras que geram identidades coerentes por via de uma matriz de normas de género coerentes. A heterossexualizagao do desejo requer e 38 PROBLEMAS DE GENERO itui a producio de oposigdes discriminadas e assimétricas entre “fe- ino” e “masculino”, em que estes s40 compreendidos como atributos ressivos de “macho” ¢ de “fémea”. A matriz cultural por intermédio qual a identidade de género se torna inteligivel exige que certos tipos “identidade” nao possamr. “existir” — isto é, aquelas em que o género decorre do sexo e aquelas em que as praticas do desejo nao “decor- ” nem do “sexo” nem do “géniero”. Nesse contexto, “decorrer” seria relacdo politica de direito instituido pelas leis culturais que estabe- m e regulam a forma e 0 significado da sexualidade. Ora, do ponto vista desse campo, certos tipos de “identidade de género” parecem meras falhas do desenvolvimento ou impossibilidades légicas, preci- samente porque no se conformarem as normas da inteligibilidade cul- tural. Entretanto, sua persisténcia e proliferacéo criam oportunidades ériticas de expor os limites e os objetivos reguladores desse campo de inteligibilidade e, conseqiientemente, de disseminar, nos proprios ter- mos dessa matriz de inteligibilidade, matrizes rivais e subversivas de desordem do género. Contudo, antes de considerar essas praticas perturbadoras, parece cru cial compreender a “matriz de inteligibilidade”. Fela singular? De que se compée? Que alianga peculiar existe, presumivelmente, entre um sistema de heterossexualidade compulséria ¢ as categorias discursivas que estabe- lecem os conceitos de identidade do sexo? Se a “identidade” € um efeito de praticas discursivas, em que medida a identidade de género — enten- dida como uma relacio entre sexo, género, pratica sexual e desejo—seria © efeito de uma prtica reguladora que se pode identificar como heteros- sexualidade compulséria? Tal explicacao nao nos faria retornar a mais uma estrutura totalizante em que a heterossexualidade compulséria tomaria meramente o lugar do falocentrismo como causa monolitica da opressao de género? No espectro da teoria feminista e pos-estruturalista francesas, com- preende-se que regiines muitos diferentes de poder produzem os con- ceitos de identidade sexual. Consideremos a divergéncia que existe entre posigdes como a de Irigaray, que afirma s6 haver um sexo, 0 masculino, que elabora a si mesmo na e através da produgao do “Outro”, ¢ posigoes 39 SUJEITOS DO SEXO/GENERO/DESEJO como a de Foucault, por exemplo, que presumem que a categoria do sexo, tanto masculino como feminino, é produto de uma economia re- guladora difusa da sexualidade. Consideremos igualmente 0 argumento de Wittig de que a categoria do sexo €, sob as condigées de heterosse- xualidade compulséria, sempre feminina (mantendo-se o masculino nao marcado e, conseqiientemente, sindnimo do universal). Ainda que pa- radoxalmente, Wittig concorda com Foucault ao afirmar que a propria categoria do sexo desapareceria e a rigor se dissiparia no caso de uma ruptura e deslocamento da hegemonia heterosexual. Os varios modelos explicativos oferecidos aqui sugerem os caminhos muitos diferentes pelos quais a categoria do sexo € compreendida, depen- dendo de como se articula 0 campo do poder. E possivel preservar a com- plexidade desses campos de poder e pensar suas capacidades produtivas ao mesmo tempo? Por um lado, a teoria da diferenca sexual de Irigaray sugere que as mulheres jamais poderdo ser compreendidas segundo 0 mo- delo do “sujeito” nos sistemas representacionais convencionais da cultura ocidental, exatamente porque constituem o fetiche da representagio e, por conseguinte, o irrepresentdvel como tal. Segundo essa ontologia das substancias, as mulheres nunca podem “ser”, precisamente porque cons- tituem a relagao da diferenga, excluido pelo qual esse dominio se distingue. As mulheres também sao uma “diferenga” que nao pode ser compreendida como simples negacéo ou como o “Outro” do sujeito desde sempre mas- culino. Como discutido anteriormente, elas nao sao nem 0 sujeito nem o seu Outro, mas uma diferenca da economia da oposigao bindria, um ardil, ela mesma, para a elaborac4o monolégica do masculino. Anogio de que o sexo aparece na linguagem hegeménica como subs- tancia, ou, falando metafisicamente, como ser idéntico a si mesmo, é cen- tral para cada uma dessas concepgoes. Essa aparéncia se realiza mediante um truque perfomativo da linguagem e/ou do discurso, que oculta o fato de que “ser” um sexo ou um género é fundamentalmente impossjvel. Para Irigaray, a gramatica jamais poderd ser um indice seguro das relagdes de género, precisamente porque sustenta o modelo substancial do género como sendo uma relacao bindria entre dois termos positivos e repre- sentiveis.25 Na opiniao de Irigaray, a gramatica substantiva do género, que 40 PROBLEMAS DE GENERO pde homens e mulheres assim como seus atributos de masculino e femi- 0, € um exemplo de sistema bindrio a mascarar de fato o discurso ‘unfvoco e hegeménico do masculino, o falocentrismo, silenciando o femi- ‘nino como lugar de uma multiplicidade subversiva. Para Foucault, a gra- miatica substantiva do sexo impde uma relagéo bindria artificial entre os sexos, bem como uma coeréncia interna artificial em cada termo desse sistema bindrio. A regulacao binaria da sexualidade suprime a multiplici~ dade subversiva de uma sexualidade que rompe as hegemonias heterosse- xual, reprodutiva e médico-juridica. Para Wittig, a restricio bindria que pesa sobre 0 sexo atende aos ob- jetivos reprodutivos de um sistema de heterossexualidade compulsérias ela afirma, ocasionalmente, que a derrubada da heterossexualidade com- puls6ria iré inaugurar um verdadeiro humanismo da “pessoa”, livre dos grilhdes do sexo. Em outros contextos, ela sugere que a profusilo ¢ difustio de uma economia erética nao falocéntrica ira banir as ilisdes do sexo, do género e da identidade. Em mais outras passagens de sen texto, parece que “q lésbica” emerge como um terceiro género, prometendo transcender a restrigdo bindria ao sexo, imposta pelo sistema da heterossexualidade com- pulséria, Em sua defesa do “sujeito cognitivo”, Wittig parece nilo entrar em disputas metafisicas com os modos hegeménicos de significagilo ou representa¢ao; de fato, o sujeito, com seu atributo de autodeterminagio, parece ser a reabilitago do agente da escolha existencial, sob o nome de lésbica: “o advento de sujeitos individuais exige, em primeiro higar, que se destruam as categorias de sexo (...) a lésbica é 0 tinico conceito que conhego que esta além das categorias de sexo.”*° Ela nao critica 0 “sujeito” como invariavelmente masculino, segundo as regras de um Simbdlico ine- vitavelmente patriarcal, mas propde em seu lugar o equivalente de um sujeito lésbico como usuario da linguagem.?” Para Beauvoir — como para Wittig — a identificagio das mulheres com 0 “sexo” é uma fusao da categoria das mulheres com as caracterfs- ticas ostensivamente sexualizadas dos seus corpos e, portanto, uma re- cusa a conceder liberdade e autonomia as mulheres, tal como as preten- samente desfrutadas pelos homens. Assim, a destruigio da categoria do sexo representaria a destruicdo de um atributo, 0 sexo, 0 qual, por meio 41 SUJEITOS CO SEXO/GENERO/DESEJO de um gesto miségino de sinédoque, tomou o lugar da pessoa, do cogito autodeterminador. Em outras palavras, s6 os homens sao “pessoas” e nao existe outro género sendo o feminino: O género € 0 indice lingiiistico da oposigao politica entre os sexos. E género € usado aqui no singular porque sem dtivida nao ha dois géneros. Ha so- mente um: 0 feminino, 6 “masculino” nao sendo um género. Pois 0 mas- culino nao € 0 masculino, mas o geral.28 Conseqiientemente, Wittig clama pela destruigao do “sexo”, para que as mulheres possam assumir o status de sujeito universal. Em busca dessa destruigao, as “mulheres” devem assumir um ponto de vista tanto particular quanto universal.2? Como sujeito que pode realizar a univer- salidade concreta por meio da liberdade, a lésbica de Wittig confirma, ao invés de contestar, as promessas normativas dos ideais humanistas cuja premissa é a metaffsica da substancia. Nesse aspecto, Wittig se di- ferencia de Irigaray, no s6 nos termos das oposigdes hoje conhecidas entre essencialismo e materialismo,*° mas naqueles da adesio a uma metafisica da substincia que confirma o modelo normativo do huma- nismo como 0 arcabougo do feminismo. Onde Wittig parece subscrever um projeto radical de emancipagio lésbica e impor uma distingao entre “lésbica” e “mulher”, ela 0 faz por via da defesa de uma “pessoa” cujo género é preestabelecido, caracterizada como liberdade. Esse seu movi- mento no s6 confirma o status pré-social da liberdade humana, mas subscreve a metafisica da substancia, responsavel pela produgao e natu- ralizagao da prépria categoria de sexo. A metafisica da substdncia 6 uma expressio associada a Nietzsche na critica contemporanea do discurso filos6fico. Num comentario sobre Nietzsche, Michel Haar argumenta que diversas ontologias filoséficas cafram na armadilha das ilusdes do “Ser” e da “Substancia” que so pro- movidas pela crenga em que a formulagao gramatical de sujeito e pre- dicado reflete uma realidade ontolégica anterior, de substancia e atribu- to. Esses construtos, argumenta Haar, constituem os meios filoséficos artificiais pelos quais a simplicidade, a ordem e a identidade sao cficaz- 42 PROBLEMAS DE GENERO institufdas. Em nenhum sentido, todavia, eles revelam ou repre~ uma ordem verdadeira das coisas. Para nossos propésitos, essa nietzschiana torna-se instrutiva quando aplicada as categorias fi- ficas que governam uma parte aprecidvel do pensamento tedrico € lar sobre a identidade de género. Segundo Haar, a critica @ meta- da substncia implica uma critica da propria nogao de pessoa psi- igica como coisa substantiva: ‘A destruicao da légica por intermédio de sua genealogia traz consigo a muta das categorias psicolégicas fundamentadas nessa légica. Todas as categorias psicoldgicas (ego, individuo, pessoa) deriva da ilusao da identidade substan cial. Mas essa ilusdo remonta basicamente a uma superstigao que engana nao 860 senso comum mas também os fildsofos — a saber, a crenga na linguagern e, mais precisamente, na verdade das categorias gramaticais. Foi a gramatica (aestrutura de sujeito e predicado) que inspirou a certeza de Descartes de que “eu” € 0 sujeito de “penso”, enquanto, na verdade, séo os pensamentos que vém a “mim”: no fundo, a fé na gramética simplesmente traduz avontade de ser a “causa” dos pensamentos de alguém. O sujeito, 0 eu ° individuo, sto apenas conceitos falsos, visto que transformam em substincias ficticias uni- dades que inicialmente s6 tém realidade lingitistica. Wittig fornece uma critica alternativa ao mostrar que nio é possivel -significar as pessoas na linguagem sem a marca do género. Ela apres uma anilise politica da gramatica do género em francés. Segundo ies 0 género nao somente designa as pessoas, as “qualifica”, por assim izer, ‘mas constitui uma episteme conceitual mediante a qual o género binario € universalizado. Embora a lingua francesa atribua um género a todos os tipos de substantivos além das pessoas, Wittig argumenta que aa andlise tem conseqiiéncias igualmente para 0 inglés. No principio de The Mark of Gender (“A marca do género”] (1984), ela escreve: Segundo os gramiticos, a marca do género afeta os substantivos. Eem termos de fungao que eles falam sobre isso. Se questionam seu significado, ‘as vezes brincam, chamando o género de “sexo ficticio”... no que concerne 43 SUJEIT OS DO SEXO/GENERO/DESEIO as categorias de pessoa, ambas as linguas [inglés ¢ francés] sao igualmente portadoras do género. Ambas abrem caminho a um conceito ontoldgico primitivo que impée, na linguagem, uma divisio dos seres em sexos,.. Como conceito ontoldgico que lida com a natureza do Ser, juntamente com toda uma névoa de Outros conceitos primitivos pertencentes 4 mesma linha de pensamento, o género parece pertencer primariamente & filosofia.32 Wittig nos diz que “pertencer a filosofia” significa, para o género, pertencer “Aquele corpo de conceitos evidentes sem os quais os fildsofos acham que nao podem desenvolver uma linha sequer de raciocinio, e que sao dbvios para eles, pois existem na natureza antes de todo pensa- mento, de toda ordem social”.33 A opiniao de Wittig € corroborada pelo discurso popular sobre a identidade de género, que emprega acritica- mente a atribuigdo inflexional de “ser” para géneros e “sexualidades”. Quando nao problematizadas, as afirmagoes “ser” mulher e “ser” hete- rossexual seriam sintométicas dessa metafisica das substdncias do géne- ro. Tanto no caso de “homens” como no de “mulheres”, tal afirmagao tende a subordinar a nogdo de género aquela de identidade, e a levar A conclusao de que uma pessoa é um género e o é em virtude do seu sexo, de seu sentimento psfquico do eu, ¢ das diferentes expressées desse eu psfquico, a mais notavel delas sendo a do desejo sexual. Em tal contexto pré-feminista, o génerO, ingenuamente (ao invés de criticamente) con- fundido com 0 sexo, serve como principio unificador do eu corporifi- cado e mantém essa unidade por sobre e contra um “sexo Oposto”, cuja _ estrutura mantém, presumivelmente, uma coeréncia interna paralela mas oposta entre sexo, género € desejo. O enunciado “sinto-me uma mulher”, proferido por uma mulher, ou “sinto-me um homem”, dito por um homem, supde que em nenhum dos casos essa afirmagao é ab- surdamente redundante. Embora possa parecer nao problematico ser de uma dada anatomia (apesar de termos de considerar adiante as muitas dificuldades dessa proposta), considera-se a experiéncia de uma dispo- sigdo psiquica ou identidade cultural de género como uma realizagéo ou conquista. Assim, “sinto-me uma mulher” é verdade na mesma medida em que é presumida a evocagao de Aretha Franklin do Outro definidor: 44 PROBLEMAS DE GENERO ‘océ me faz sentir uma mulher natural”.34 Essa conquista exige \iiim ferenciagao em relagdo ao género oposto. Conseqiientemente, Umit oa € o seu género na medida em que nao € 0 outro género, formt iO que pressupée e impée a restrigao do género dentro desse par rio. O género s6 pode denotar uma unidade de experiéncia, de sexo, ero e desejo, quando se entende que o sexo, em algum sentido, exige género — sendo o género uma designacao psiquica e/ou cultural do —e um desejo — sendo o desejo heterossexual e, portanto, diferen- ¢iando-se mediante uma relagao de opasigdo ao outro género que ele deseja. A coeréncia ou a unidade internas de qualquer dos géneros, ho- mem ou mulher, exigem assim uma heterossexualidade estavel e oposi- cional. Essa heterossexualidade institucional exige e produz, a um s6 tempo, a univocidade de cada um dos termos marcados pelo género que constituem o limite das possibilidades de género no interior do sistema de género bindario oposicional. Essa concepgao do género nao sé pres- sup6e uma relacdo causal entre sexo, género e desejo, mas sugere igual- mente que 0 desejo reflete ou exprime o género, € que o género reflete ou exprime 0 desejo. Supée-se que a unidade metafisica dos trés seja verdadeiramente conhecida e expressa num desejo diferenciador pelo género oposto — isto é, numa forma de heterossexualidade oposicional. O “velho sonho da simetria”, como chamou-o Irigaray, é aqui pressu- posto, reificado e racionalizado, seja como paradigma naturalista que estabelece uma continuidade causal entre sexo, género e desejo, seja como um paradigma expressivo auténtico, no qual se diz que um eu verdadeiro € simultanea ou sucessivamente revelado no sexo, no género eno desejo. Esse esbogo um tanto tosco nos da uma indicagéo para compreen- 0 do género como substancia. A insti~ dermos as razées politicas da vi tuigdo de uma heterossexualidade compulséria e naturalizada exige ¢ regula o género como uma relagao bindria em que 0 termo masculino diferencia-se do termo feminino, realizando-se essa diferenciagio por meio das praticas do desejo heterosexual. O ato de diferenciar os dois momentos oposicionais da estrutura bindria resulta numa consolidagio 45 SUJEITOS DO SEXO/GENERO/DESEJO de cada um de seus termos, da coeréncia interna respectiva do sexo, do género e do desejo. , O deslocamento estratégico dessa relacdo bindria e da metaffsica da substancia em que ela se baseia Pressup6e que a produgio das categorias de feminino e masculino, mulher e homem, ocorra igualmente no inte rior da estrutura bindria. Foucault abraca implicitamente essa explica- gao. No capitulo final do primeiro volume de A historia da sexualidade e em sua breve mas significativa introdugao a Herculine Barbin, Bein; , the Recently Discovered Journals of a Nineteenth-Century Hermaphro, dite [“Herculine Barbin, ou os recém-descobertos diarios de um herma- frodita do século XIX”P5, Foucault sugere que a categoria de sexo, anterior a qualquer caracterizagao da diferenca sexual, é ela pry ia construfda por via de um modo de sexualidade historicamente espectfi co. Ao postular 0 “sexo” como “causa” da experiéncia sexuais do com- portamento e do desejo a praducdo tatica da categorizagio descontinua ¢ bindria do sexo oculta os objetivos estratégicos do préprio aparato de produgao. A pesquisa genealdgica de Foucault expde essa “euusa” Os- tensiva como um “efeito”, como a produgao de um dado regime de se- xualidade que busca regular a experiéncia sexual ins 0 rias distintas do sexo como funcées fundacionais e qualquer tratamento discursivo da sexualidade. A introdugao de Foucault aos didrios do hermafrodita Herculine Barbin sugere que a critica genealdgica das categorias reificadas do sexo € uma conseqiiéncia inopinada de prticas sexuais que nao podem ser explicadas pelo discurso médico-legal da heterossexualidade naturaliza- ,da. Herculine nao é uma “identidade”, mas a impossibilidade sexual de uma identidade. Embora elementos anatémicos masculinos e femininos se distribuam conjuntamente por seu corpo, € dentro dele, nao esta afa « verdadeira origem do escAndalo. As convencées lingiiisti cas que produ- zem eus com caracteristicas de género inteligfveis encontram seu limite em Herculine, precisamente porque ela/ele Ocasiona uma convergéncia € desorganizacao das regras que governam sexo/género/desejo. Hercu- line desdobra e redistribui os termos do sistema bindrio, mas essa mesma redistribuigdo os rompe e os faz proliferar fora desse sistema, Segundo tituindo as catego- causais, em todo e 46 PROBLEMAS DE GENERO It, Herculine nao é categorizvel no género bindrio como tal; a ncertante convergéncia de heterossexualidade e homossexualida- sua pessoa sé é ocasionada, mas nunca causada, por sua descon- lade anatémica. A apropriagéo de Herculine por Foucault é duvi- , mas sua andlise implica a interessante crenga em que a erogeneidade sexual (paradoxalmente excluida por uma “hetero”-se- lade naturalizada) implica uma critica da metaffsica da substancia, jomo esta informa as caracteristicas identitarias do sexo. Foucault gina a experiéncia de Herculine como “um mundo de prazeres em ha sorrisos pairando a toa”.*” Sorrisos, felicidade, prazeres e desejos aqui representados como qualidades, sem a substancia permanente supostamente estao ligados. Como atributos flutuantes, eles su- a possibilidade de uma experiéncia de género que nao pode ser sendida pela gramAtica substancializante e hierarquizante dos subs- itivos (res extensa) e adjetivos (atributos, essenciais e acidentais). Pela wa cursiva de Herculine, Foucault propde uma ontologia dos atri- acidentais que exp6e a postulagao da identidade como um prin- io culturalmente restrito de ordem e hierarquia, uma ficgao regula- Se é possivel falar de um “homem” com um atributo masculino e ipreender esse atributo como um traco feliz mas acidental desse ho- ino, qualquer que seja, mas continuar a preservar a integridade do gé- nero. Porém, se dispensarmos a prioridade de “homem” e “mulher” como substincias permanentes, nao ser mais possivel subordinar tragos dissonantes do género como caracteristicas secundarias ou acidentais de uma ontologia do género que permanece fundamentalmente intata. Se @ nogao de uma substancia permanente é uma construgao ficticia, pro- duzida pela ordenagao compulséria de atributos em seqiiéncias de gé- nero coerentes, entio o género como substancia, a viabilidade de homemt e mulher como substantivos, se vé questionado pelo jogo dissonante de atributos que nao se conformam aos modelos seqiienciais ou causais de inteligibilidade. Desse modo, a aparéncia de uma substancia permanente ou de un 47 SUSEITOS DO SEXiO/GENERO/DESEJO eu com tragos de género, ao qual © psiquiatra Robert Stoller se refere como 0 “niicleo do género”38, é prioduzida pela regulacdo dos atributos segundo Jinhas de coeréncia culturtalmente estabelecidas. E resulta que a dentincia dessa producio ficticia € condicionada pela interagao desre- gulada de atributos que resistem 4 sma assimilagdo numa estrutura Pronta de substantivos primarios ¢ adjetivos subordinados. Claro que é sempre possivel argumentar que os adjetives dissonantes agem retroativamente, redefinindo as identidades substanttivas que supostamente modificam, e expandindo conseqiientemente asi categorias substantivas do género, para incluir possibilidades que ela:s antes exclufam. Mas se essas subs- tancias nada mais sio do que coeréncias contingentemente criadas pela regulacdo de atributos, a prépria -ontologia das substancias afigura-se nao s6 um efeito artificial, mas essencialmente supérflua. Nesse sentido, 0 género nao é 1um substantivo, mas tampouco é um conjunto de atributos flutuantes, pois virnos que seu efeito substantivo é performativamente produzido e innposto pelas praticas reguladoras da coeréncia do género. Conseqiienternente, 0 género mostra ser pberforma- tivo no interior do discurso herdado da metafisica da substancia — isto é constituinte da identidade que supo'stamente é. Nesse sentido, 0 género é sempre um feito, ainda que nao seja obra de um sujeito tido como pree- xistente & obra. No desafio de repensar as categorias do género fora da metafisica da substancia, é mister considerar a relevancia da afirmagao de Nietzsche, em A genealogia da moval, de que “nao hé ‘ser’ por trés do fazer, do realizar e do tornar-se; 0 ‘fazedor’ éuma mera ficg4o acrescentada a obra —a obra é tudo”.39 Numa aplicagao que o préprio Nietzsche nao teria antecipado ou aprovado, nés afirmariamos como corolério: nao ha identidade de género por tras das expressdes do género; essa identidade € performativamente constituida, peélas préprias “expresses” tidas como seus resultados. PROBLEMAS DE GENERO . INGUAGEM, PODER E ESTRATEGIAS DE DESLOCAMENTO rande parte da teoria e da literatura feministas supde, todavia, a exis incia de um “fazedor” por tras da obra. Argumenta-se que sem tn ente nao pode haver aco e, portanto, potencial para iniciar qualquer nsformagio das relagdes de dominago no seio da sociedade. A teoria -feminista radical de Wittig ocupa uma posigao ambigua no continuum das teorias sobre a questo do sujeito. Por um lado, Wittig parece con- testar a metafisica da substancia, mas por outro, ela mantém o sujeito humano, 0 individuo, como locus metafisico da agao. Embora o huma- nismo de Wittig pressuponha claramente a existéncia de um agente por trds da obra, sua teoria delineia a construgéo performativa do género nas praticas materiais da cultura, contestando a temporalidade das ex- plicagdes que confundem “causa” e “resultado”. Numa frase que sugere © espaco intertextual que liga Wittig a Foucault (e revela tragos da idéia marxista de reificacao nas.teorias de ambos os pensadores), ela escreve: Uma abordagem feminista materialista mostra que aquilo que tomamos por causa ou origem da opressao é na verdade a marca imposta pelo opressor; o “mito da muther”, somado a seus efeitos e manifestagdes materiais na consciéncia € nos corpos apropriados das mulheres. Assim, essa marca no preexiste 4 opress4o... 0 sexo € tomado como um “dado imediato”, um “dado sensivel”, como “caracteristicas fisicas” pertencentes a uma ordem natural, Mas 0 que acreditamos ser uma percepgao fisica e direta € somente uma construgio sofisticada e mitica, uma “formagio imagindria”.4° Por essa produgao de “natureza” operar de acordo com os ditames da heterossexualidade compulsoria, o surgimento do desejo homosse- xual transcende, na opiniao dela, as categorias do sexo: “se 0 desejo pudesse libertar a si mesmo, nada teria a ver com a marcag4o preliminar pelos sexos,”41 Wittig refere-se ao “sexo” como uma marca que de algum modo é aplicada pela heterossexualidade institucionalizada, marca esta que pode ser apagada ou obscurecida por meio de praticas que efetivamente 49 SUJEITOS DO SEXO/GENERO/DESEJO contestem essa instituigéo. Sua opiniao, é claro, difere radicalmente da- quela de Irigaray. Esta tiltima compreenderia a “marca” de género como parte da economia significante hegemédnica do masculino, que opera mediante a auto-elaboracio dos mecanismos especulares que virtual- mente determinaram 0 campo da ontologia na tradigao filoséfica oci- dental. Para Wittig, a linguagem é um instrumento ou utensilio que ab- solutamente no é miségino em suas estruturas, mas somente em suas aplicagées.*? Para Irigaray, a possibilidade de outra linguagem ou eco- nomia significante é a nica chance de fugir da “marca” do género, que, para o feminino, nada mais é do que a obliterac4o miségina do sexo feminino. Enquanto Irigaray busca expor a relacao ostensivamente “bi- naria” entre os sexos como um ardil masculinista que exclui por com- pleto o feminino, Wittig argumenta que posigdes como a de Irigaray reconsolidam a ldgica bindria existente entre o masculino e o feminino, e reatualizam uma idéia mitica do feminino. Inspirando-se claramente na critica de Beauvoir em O segundo sexo, Wittig afirma que “nao ha “escrita feminina’”.*3 ‘Wittig acata claramente a idéia de um poder da linguagem de subor- dinar e excluir as mulheres. Como “materialist”, contudo, ela considera a linguagem como uma “outra ordem de materialidade”*4, uma institui- G40 que pode ser radicalmente transformada. A linguagem figuraria en- tre as praticas e instituigGes concretas e contingentes mantidas pelas escolhas individuais, e conseqiientemente, enfraquecidas pelas agdes co- letivas de selecionar individuos. A ficgdo lingiifstica do “sexo”, argumen- ta ela, é uma categoria produzida e disseminada pelo sistema da hete- rossexualidade compulséria, num esforco para restringir a producdo de identidades em conformidade com 0 eixo do desejo heterossexual. Em alguns de seus trabalhos, tanto a homossexualidade masculina como a feminina, assim como outras posiGes independentes do contrato hete- rossexual, facultam tanto a subversio como a proliferacao da categoria do sexo. Em The Lesbian Body [“O corpo \ésbico”], como em outros escritos, Wittig parece discordar contudo de uma sexualidade genital- mente organizada per se e evocar uma economia alternativa dos praze- res, a qual contestaria a construgao de da subjetividade feminina, marcada 50 PROBLEMAS DE GENERO ela fungao reprodutiva que supostamente distingue as mulheres." Aqui proliferacao de prazeres fora da economia reprodutiva sugere wing rma especificamente feminina de difusao erética, compreendida como mntra-estratégia em relagdo A construcdo reprodutiva da genitalidade. um certo sentido, para Wittig, O corpo lésbico pode ser entendido como uma leitura “invertida” dos Trés ensaios sobre a teoria da sexuali- de, de Freud, em que ele defende a superioridade da sexualidade ge- jital em termos do desenvolvimento, sobre a sexualidade infantil, mais trita e difusa. Somente o “invertido”, classificagéo médica invocados por Freud para “o homossexual”, deixa de “atingir” a norma genital. Ao empreender uma critica politica da genitalidade, Wittig parece desdo- brar a “inversao” como pratica de leitura critica, valorizando precisa- mente os aspectos da sexualidade nao desenvolvida designada por “Freud, e inaugurando efetivamente uma “politica pos-geni ital”."¢ Alias, “a nocdo de desenvolvimento s6 pode ser \ida como uma normalizacao dentro da matriz heterossexual. Todavia, sera essa a tnica leitura possi-/ vel de Freud? Eem que medida a pratica de “inversao” de Wittig estara _ comprometida com o modelo de normalizagao que ela mesma busca) desmantelar? Em outras palavras, se o modelo de uma sexualidade an- | _tigenital e mais difusa serve como alternativa singular e de oposigao a | estrutura hegeménica da sexualidade, em que medida nfo estard essa | telagio bindria fadada a reproduzir-se interminavelmente? Que possibi- | “lidades existem de ruptura do préprio bindrio oposicional? : ; A oposigao de Wittig 4 psicandlise produz uma conseqiiéncia ines- perada. Sua teoria presume justamente a teoria psicanalftica do desen- volvimento, nela plenamente “invertida”, que ela busca subverter. A perversio polimérfica, que supostamente existiria antes da marca do sexo, € valorizada como um ¢elos da sexualidade humana.4” Uma res- posta psicanalitica feminista possivel as colocagdes de Wittig seria argu- mentar que ela tanto subteoriza como subestima 0 significado e a fungio da linguagem em que ocorre “a marca do género”. Ela compreende essa prdtica de marcagdo como contingente, radicalmente varidvel e mesmo dispensdvel. O status de proibigdo primaria, na teoria lacaniana, opera mais eficazmente e menos contingentemente do que a nogao de pratica 51 SUJEITOS DO SEXO/GENERO/DESEJO reguladora em Foucault, ou e do que a descrigéo materialista de um sistema de opressao heterossexista em Wittig. Em Lacan, como na reformulagao pés-lacaniana de. Freud por Iri- garay, a diferenga sexual nao é um binario simples que retém a metafisica da substancia como sua fundagio. O “ ito” masculino € uma cons- trugio ficticia, produzida pela lei que protbe o incesto e impoe um des- locamento infinito do desejo heterossexualizante. © feminino nunca é uma marca do sujeito; o feminino nado pode ser o “atributo” de um género. Ao invés disso, o feminino € a significagio da falta, significada pelo Simbélico, um conjunto de regras lingiiisticas diferenciais que efe- tivamente cria a diferenca sexual. A posicao lingiifstica masculina passa pela individuagao e heterossexualizagio exigidas pelas proibicdes fun- dadoras da lei Simbdlica, a lei do Pai. O incesto, que separa o filho da mde e portanto instala a relagao de parentesco entre eles, é uma lei decretada “em nome do Pai”. Semelhantemente, a lei que proibe 0 desejo da menina tanto por sua mie como por seu pai exige que ela assuma o emblema da maternidade e perpetue as regras de parentesco. Ambas as posigdes, masculina e feminina, sao assim institufdas por meio de leis proibitivas que produzem géneros culturalmente inteligiveis, mas so- mente mediante a producgao de uma sexualidade inconsciente, que res- surge no dominio do imaginario.48 A apropriag’o feminista da diferenga sexual, escrita em oposicdo a0 falocentrismo de Lacan (Irigaray) ou como sua reelaboragio critica, ten- ta teorizar o feminino, nao como uma expressio da metafisica da subs- tancia, mas como uma auséncia nao representdvel, produzida pela ne- gacao (masculina) que estabelece a economia significante por via da exclusio. Como repudiado/exclufdo dentro do sistema, o feminino constitui uma possibilidade de critica e de ruptura com esse esquema conceitual hegemdnico. Os trabalhos de Jacqueline Rose‘? e Jane Gal- Jop® sublinham de diferentes maneiras o status construido da diferenca sexual, a instabilidade inerente dessa construcio, ea linha de conseqiién- cias duais de uma proibigao que a um sé tempo institui a identidade sexual e possibilita a dentincia das ténues bases de sua construgéo. Em- bora Wittig ¢ outras feministas materialistas do contexto francés argu- 52 PROBLEMAS DE GENERO ’ mentem que a diferenga sexual é uma replicacao irrefletida de um Coty — junto reificado de polaridades sexuadas, suas reflexdes negligenciam a dimensao critica do inconsciente, o qual, como sede da sexualidade re« calcada, ressurge no discurso do sujeito como a propria impossibilidade de sua coeréncia. Como destaca Rose muito claramente, a construgio de uma identidade sexual coerente, em conformidade com o eixo dis- juntivo do feminismo/masculino, esta fadada ao fracasso’'; as rupturas dessa coeréncia por meio do ressurgimento inopinado do recalcado re- velam nao sé que a “identidade” é construfda, mas que a proibigéo que constr6i a identidade € ineficaz (a lei paterna nado deve ser entendida como uma vontade divina determinista, mas como um passo em falso perpétuo a preparar o terreno para insurreigées contra ela). As diferengas entre as posigdes materialista e lacaniana (e pos-laca- niana) emergem na disputa normativa sobre se ha uma sexualidade res- gatavel “antes” ou “fora” da lei, na modalidade do inconsciente, ou “depois” da lei, como sexualidade pés-genital. Paradoxalmente, 0 tropo normativo da perversao polimérfica €é compreendido como caracteriza- dor de ambas as vis6es de sexualidade alternativa. Contudo, nao ha acordo sobre a maneira de delimitar essa “lei” ou conjunto de “leis”. A erftica psicanalitica da conta da construgao do “sujeito” — e talvez tam- bém da ilusao da substancia — na matriz das relag6es normativas de género. Em seu modo existencial-materialista, Wittig presume que 0 sujeito, a pessoa, tem uma integridade pré-social e anterior a seus tragos de género. Por outro lado, “a lei paterna”, em Lacan, assim como a primazia monolégica do falocentrismo em Irigaray, levam a marca de uma singularidade monotefstica talvez menos unitdria e culturalmente universal do que presumem as suposig6es estruturalistas.52 A disputa, porém, também parece girar em torno da articulagao de um tropo temporal de uma sexualidade subversiva, que floresce antes da imposigao da lei, 2pds sua derrubada ou durante sua vigéncia, como desafio constante 4 sua autoridade. Aqui parece sensato evocar nova- mente Foucault, que, ao afirmar que sexualidade e poder sao coexten- sivos, refuta implicitamente a postulago de uma sexualidade subversiva ou emancipatoria que possa ser livre da lei. Podemos insistir nesse argu- 53 SUJEITOS DO SEXO/GENERO/DESEJO mento, salientando que “o antes” e “o depois” da lei sao modos de temporalidade discursiva e performativamente instituidos, invocados nos termos de uma estrutura normativa que afirma que a subversao, a desestabilizagdo ou o deslocamento exigem uma sexualidade que de al- gum modo escape das proibigdes hegemOnicas a pesarem sobre 0 sexo. Para Foucault, essas proibicdes sao invaridvel e inopinadamente produ- | tivas, no sentido de que “o sujeito” que supostamente é fundado e pro- duzido nelas ¢ por meio delas no tem acesso a uma sexualidade que esteja, em algum sentido, “fora”, “antes” ou “depois” do préprio poder. O poder, ao invés da lei, abrange tanto as funcdes ou relaces diferen- ciais juridicas (proibitivas e reguladoras) como as produtivas (ininten- cionalmente generativas). Conseqiientemente, a sexualidade que emer- \ ge na matriz das relagdes de poder nao é uma simples duplicagéo ou cOpia da lei ela mesma, uma repeticéo uniforme de uma economia mas- culinista da identidade. As produgées se desviam de seus propésitos ori- ginais e mobilizam inadvertidamente possibilidades de “sujeitos” que nao apenas ultrapassam os limites da inteligibilidade cultural como efe- tivamente expandem as fronteiras do que é de fato culturalmente inte- ligivel. A norma feminista da séxualidade pés-genital tornou-se objeto de uma critica significativa da parte das teéricas feministas da sexualidade, algumas das quais buscaram uma apropriacdo especificamente feminista e/ou lésbica de Foucault. Contudo, a nogao utdpica de uma sexualidade livre dos construtos heterossexuais, uma sexualidade além do “sexo”, nao conseguiu reconhecer as maneiras como as relagdes de poder con- tinuam construindo a sexualidade das mulheres, mesmo nos termos de uma homossexualidade ou lesbianismo “liberados”.*3 A mesma critica é feita contra a nogdo de um prazer sexual especificamente feminino, radicalmente diferenciado da sexualidade falica. Os esforcos ocasionais de Irigaray para deduzir uma sexualidade feminina especifica de uma anatomia feminina especffica foram, por algum tempo, o centro dos argumentos antiessencialistas.** O retorno a biologia como base de uma sexualidade ou significagao especificas femininas parece desbancar a premissa feminista de que a biologia nao € o destino. Porém, quer a se- 54 PROBLEMAS DE GENERO xualidade feminina se articule aqui num discurso da biologia por ranjey puramente estratégicas,*> quer seja de fato um retorno feminista a0 @y. “sencialismo bioldgico, a caracterizagao da sexualidade feminina como -radicalmente distinta da organizacdo falica da sexualidade continua firo~ blemAtica. As mulheres que nao reconhecem essa sexualidade como gua, ou nao compreendem sua sexualidade como parcialmente construjda nos termos da economia falica s4o potencialmente descartadas por essa teoria, acusadas de “identificacio com o masculino” ou de “obscuran- tismo”, Na verdade, o texto de Irigaray é freqiientemente obscuro sobre a questo de saber se a sexualidade é culturalmente construida, ou se 56 € culturalmente construida nos termos do falo. Em outras palavras, es- taria o prazer especificamente feminino “fora” da cultura, como gua pré-histéria ou seu futuro utépico? Se assim for, de que serve essa nog§o nas negociac6es das disputas contempordneas sobre a sexualidade em termos de sua construgio? . O movimento pré-sexualidade no Ambito da teoria e da pratica fe- ministas tem efetivamente argumentado que a sexualidade sempte é construfda nos termos do discurso e do poder, sendo o poder em parte entendido em termos das convengoes culturais heterossexuais e falicas, Aemergéncia de uma sexualidade construfda (nao determinada) nesses termos, nos contextos lésbico, bissexual e heterossexual, no constitui, portanto, um sinal de identificagao masculina num sentido reducionista, Nao se trata de nenhum projeto fracassado de criticar o falocentrismo ou a hegemonia heterosexual, como se criticas politicas tivessem 0 po- der de desfazer efetivamente a construgao cultural da sexualidade das criticas feministas. Se a sexualidade é construfda culturalmente no inte- rior das relages de poder existentes, ento a postulagao de uma sexya- Jidade normativa que esteja “antes”, “fora” ou “além” do poder constituj uma impossibilidade cultural e um sonho politicamente impraticdyel, que adia a tarefa concreta e contemporanea de repensar as possibilidades subversivas da sexualidade e da identidade nos proprios termos do po- der. Claro que essa tarefa critica supée que operar no interior da matriz, de poder nao é 0 mesmo que reproduzir acriticamente as relacée: de dominacio. Ela oferece a possibilidade de uma repeticao da lei que xo 55 SUJEITOS DO SEXO/GENERO/DESEJO Tepresenta sua consolidacao, mas seu deslocamento. No lugar de uma sexualidade com “identidade masculina”, em que o masculino atua como causa € significado irredutivel dessa sexualidade, nds podemos desenvolver uma nogio de sexualidade construida em termos das rela- g6es falicas de poder, as quais reestruturariam e redistribuiriam as pos- sibilidades desse falicismo por meio, precisamente, da operacdo subver- siva das “identificagdes” que sao inevitaveis no campo de poder da sexualidade. Se, como diz Jacqueline Rose, as “identificacdes” podem ser denunciadas como fantasias, entao deve ser possivel representar uma identificagao que exiba sua estrutura fantdstica. Em nao havendo um reptidio radical de uma sexualidade culturalmente construida, 0 que resta é saber como reconhecer e “fazer” a construgdo em que invaria- velmente estamos. Haver formas de tepeti¢ao que ndo constituam sim- ples imitagao, reprodugio e, conseqiientemente, consolidagao da lei (a nogao anacrénica de “identificagéo masculina” que deve ser descartada do vocabulario feminista)? Que possibilidades existem de configuragées de género entre as varias matrizes emergentes — e As vezes convergentes ~— da inteligibilidade cultural que rege a vida marcada pelo género? Nos termos da teoria sexual feminista, é claro que a presenga da dinamica do poder na sexualidade nao €,em nenhum sentido, a mesma coisa que a consolidag4o ou o aumento puro € simples de um regime de poder heterossexista ou falocéntrico. A “presenga” das assim cha- madas convengées heterossexuais nos contextos homossexuais, bem como a proliferagio de discursos especificamente gays da diferenca sexual, como no caso de “butch” e “femme”* como identidades hist6- ricas de estilo sexual, nao pode ser explicada como a representacio quimérica de identidades originalmente heterossexuais. E tampouco elas podem ser compreendidas como a insisténcia perniciosa de cons- trutos heterossexistas na sexualidade e na identidade gays. A repeticao de construtos heterossexuais nas culturas sexuais gay e hetero bem pode representar o lugar inevitavel da desnaturalizagaoe mobilizagao Os termos “butch” e “femme” designam 05 paptis masculino e feminino eventualmente assumidos nos relacionamentos lébicos. (N. dot.) 56 PROBLEMAS DE GENERO das categorias de génerg. A replicagao de construtos hetes estruturas nao heterossexuais salienta 0 status cabalmen! ido do assim chamado heterossexual original. Assim, o gay @ 9 hetero nao o que uma cépia é para 0 original, mas, em vez di stone que uma cépia é para uma cépia. A repeticao imitativa do “original! discutida nas partes finais do capitulo 3 deste livro, revela que 0 arly ginal nada mais é do que uma parédia da idéia do natural € do origi _nal.5¢ Mesmo que construtos heterossexistas circulem como lugares ' praticdveis de poder/discurso a partir dos quais faz-se © género, pers siste a pergunta: que possibilidades existem de recirculagao? Que pos- sibilidades de fazer 0 género repetem e deslocam, por meio da hipér- bole da dissonancia, da confusao interna e da proliferagdo, os proprios construtos pelos quais os géneros sao mobilizados? : Observe-se nao s6 que as ambigiiidades e incoeréncias nas praticas heterossexual, homossexual e bissexual —¢ entre elas — sao suprimidas e redescritas no interior da estrutura reificada do bindrio disjuntivo e assimétrico do masculino/feminino, mas que essas configuragées cultu- rais de confusio do género operam como lugares de intervengao, de- nincia e deslocamento dessas reificagdes. Em outras palavras, a “unida- de” do género € 0 efeito de uma pratica reguladora que busca unifor- mizar a identidade do género por via da heterossexualidade compuls6- __ tia. A forga dessa pratica é, mediante um aparelho de producao exclu- dente, restringir os significados relativos de “heterossexualidade”, “ho- mossexualidade” e “bissexualidade”, bem como os lugares subversivos de,sua convergéncia e re-significagao. O fato de os regimes de poder do heterossexismo e do falocentrismo buscarem incrementar-se pela repe- tigdo constante de sua légica, sua metafisica e suas ontologias naturali- zadas nao implica que a propria repetigio deva ser interrompida - como se isso fosse possivel. E se a repetigdo esta fadada a persistir como mecanismo da reprodugio cultural das identidades, dai emerge a ques- to crucial: que tipo de repeticao subversiva poderia questionar a pr6- pria pratica reguladora da identidade? ; . . Se nao pode haver recurso a uma “pessoa”, um “sexo” ou uma “se- xualidade” que escape & matriz de poder e as relagées discursivas que s7 SUJEITOS DO SEXO/GENERO/DESEJO efetivamente produzem e regulam a inteligibilidade desses conceitos para nés, o que constituiria a possibilidade de inversao, subversao ou deslocamento efetivos nos termos de uma identidade construida? Que possibilidades existem em virtude do caréter construido do sexo e do género? Embora Foucault seja ambiguo sobre o cardter preciso das “pra- ticas reguladoras” que produzem a categoria do sexo e Wittig pareca investir toda a responsabilidade da construcao na reproducao sexual e seu instrumento, a heterossexualidade compulséria, outros discursos convergem no sentido de produzir essa ficcao categérica, Por raz6es nem sempre claras ou coerentes entre si. As relag6es de poder que permeiam as ciéncias biolégicas nao sao facilmente redutiveis, e a alianga médico- legal que emergiu na Europa do século XIX gerou ficgGes categdricas que nao poderiam ser antecipadas. A prdpria complexidade do mapa discursivo que constréi 0 género parece sustentar a promessa de uma convergéncia inopinada e generativa dessas estruturas discursivas e re- guladoras. Se as ficgdes reguladoras do sexo e do género sao, elas pré- prias, lugares de significado multiplamente contestado, entao a propria multiplicidade de sua construgio oferece a Possibilidade de uma ruptura de sua postulagao unfvoca. Claramente, esse projeto nao propée desenhar uma ontologia do género em termos filoséficos tradicionais, pela qual o significado de ser mulher ou homem seja elucidado em termos fenomenolégicos. A pre- sungao aqui € que o “ser” de um género € um efeito, objeto de uma in- vestigagao genealdgica que mapeia os parametros politicos de sua cons- trug4o no modo da ontologia. Declarar que 0 género é construido nao é afirmar sua ilusao ou artificialidade, em que se compreende que esses termos residam no interior de um bindrio que contrapde como opostos 0 “real” e 0 “auténtico”. Como genealogia da ontologia do género, a presente investigagao busca compreender a produgao discursiva da plau- sibilidade dessa relaco bindria, e sugerir que certas configuragées cul- turais do género assumem o lugar do “teal” e consolidam e incrementam sua hegemonia por meio de uma autonaturalizacao apta e bem-sucedida. Se hé algo de certo na afirmagao de Beauvoir de que ninguém nasce € sim torna-se mulher decorre que mulher é um termo em processo, um 58 PROBLEMAS DE GENERO vir, um construir de que ndo se pode dizer com acerto que ‘igem ou um fim. Como uma pratica discursiva continua, o termnd erto a intervengOes € re-significagdes. Mesmo quando o género istalizar-se em suas formas mais reificadas, a propria “cristalizagha" @ a pratica insistente e insidiosa, sustentada e regulada por varios melow iais. Para Beauvoir, nunca se pode tornar-se mulher em definitive, como se houvesse um telos a governar o processo de aculturag4o € cons= trucao. O género € a estilizacao repetida do corpo, um conjunto de atos tepetidos no interior de uma estrutura reguladora altamente rigida, a ‘qual se cristaliza no tempo para produzir a aparéncia de uma substancia, de uma classe natural de ser. A genealogia politica das ontologias do género, em sendo bem-sucedida, desconstruiria a aparéncia substantiva do género, desmembrando-a em seus atos constitutivos, e explicaria € Jocalizaria esses atos no interior das estruturas compulsérias criadas pe- las varias forgas que policiam a aparéncia social do género. Expor os atos contingentes que criam a aparéncia de uma necessidade natural, tentativa que tem feito parte da critica cultural pelo menos desde Marx, € tarefa que assume agora a responsabilidade acrescida de mostrar como a propria nog4o de sujeito, sé inteligivel por meio de sua aparéncia de género, admite possibilidades excluidas 4 forga pelas varias reificagées do género constitutivas de suas ontologias contingentes. O capitulo seguinte investiga alguns aspectos da abordagem psica- _ nalitica estruturalista da diferenga sexual e da construgao da sexualidade relativamente a seu poder de contestar os regimes reguladores aqui es- bogados, e também a seu papel na reprodugao acritica desses regimes. A univocidade do sexo, a coeréncia interna do género e a estrutura bi- ndria para 0 sexo € 0 género séo sempre consideradas como ficg6es re- guladoras que consolidam e naturalizam regimes de poder convergentes de opress4o masculina e heterossexista. O capitulo final considera a pré- pria nogéo de “corpo”, nao como uma superficie pronta a espera de significag4o, mas como um conjunto de fronteiras, individuais e sociais, politicamente significadas e mantidas. Mostraremos que 0 sexo, j4 nao mais visto como uma “verdade” interior das predisposigGes e da identi- dade, é uma significagio performativamente ordenada (e portanto nao 59 SUJEITOS DO SEXO/GENERO/DESEJO “€” pura e simplesmente), uma significagao que, liberta da interioridade ¢ da superficie naturalizadas, pode ocasionar a proliferagdo parodistica € 0 jogo subversivo dos significados do género. O texto continuard, ent&o, como um esforgo de refletir a possibilidade de subverter e deslo- car as nogées naturalizadas e reificadas do géuero que dao suporte 4 hegemonia masculina e ao poder heterossexista, para criar problemas de género nao por meio de estratégias que representem um além utépi- co, mas da mobilizagao, da confusao subversiva e da proliferagao preci- samente daquelas categorias constitutivas que buscam manter o género em seu lugar, a posar como ilusdes fundadoras da identidade. 60 Proibicao, psicanilise e a producdo da matriz heterosexual A mentalidade hetero continua a afirmar que o incesto, e nao a homosse- xualidade, representa sua maior interdigéo. Assim, quando pensada pela mente hetero, a homossexualidade ndo passa de heterossexualidade. Monique Wittig, The Straight Mind (“A mentalidade hetero] Houve ocasides em que a teoria feminista sentiu-se atraida pelo pensa- mento de uma origem, de um tempo anterior ao que alguns chamariam de “patriarcado”, capaz de oferecer uma perspectiva imagindria a partir da qual estabelecer a contingéncia da hist6ria da opressao das mulheres. Surgiram debates para saber se existiram culturas pré-patriarcais; se eram matriarcais ou matrilineares em sua estrutura; € se o patriarcado teve um comegoe est, conseqiientemente, sujeito a um fim. Compreen- sivelmente, o fmpeto critico por tras desse tipo de pesquisa buscava mos- trar que 0 argumento antifeminista da inevitabilidade do patriarcado constituia uma reificagdo e uma naturalizacao de um fendmeno histérico e contingente. Embora se pretendesse que 0 retorno ao estado cultural pré-patriarcal expusesse a auto-reificagao do patriarcado, esse esquema pré-patriar- cal acabou mostrando ser outro tipo de reificagdo. Mais recentemente, 63 PROIBIGAO, PSICANALISE E A PRODUGAO DA MATRIZ HETEROSSEXUAL contudo, algumas feministas desenvolveram uma critica reflexiva de al- guns construtos reificados no interior do proprio feminismo. A prépria nogao de “patriarcado” andou ameagando tornar-se um conceito univer- salizante, capaz de anular ou reduzir expressdes diversas da assimetria do género em diferentes contextos culturais. Quando o feminismo buscou estabelecer uma relagao integral com as lutas contra a opressao racial e colonialista, tornou-se cada vez mais importante resistir 4 estratégia epis- temolégica colonizadora que subordinava diferentes configuragGes de do- minagao 4 rubrica de uma nogio transcultural de patriarcado. Enunciar a lei do patriarcado como uma estrutura repressiva e reguladora também exige uma reconsideragio a partir dessa perspectiva critica. O recurso feminista a um passado imagindrio tem de ser cauteloso, pois, ao desmas- carar as afirmagées auto-reificadoras do poder masculinista, deve evitar promover uma reificacao politicamente problematica da experiéncia das mulheres. A autojustificagao de uma lei repressiva ou subordinadora quase sempre baseia-se no histérico de como eram as coisas antes do advento da lei, e de como se deu seu surgimento em sua forma presente e neces- sdria.! A fabricagao dessas origens tende a descrever um estado de coisas anterior 4 lei, seguindo uma narragdo necessdria e unilinear que culmina na constituigao da lei e desse modo a justifica. A hist6ria das origens €, assim, uma tdtica astuciosa no interior de uma narrativa que, por apre- sentar um relato tinico e autorizado sobre um passado irrecuperdvel, faz a construgao da lei parecer uma inevitabilidade hist6rica. Algumas feministas encontraram tracos de um futuro utépico no passado pré-jurfdico, fonte potencial de subversdo ou insurreigao que encerraria a promessa de conduzir 4 destruigdo da lei e 4 afirmagao de uma nova ordem. Mas, se o “antes” imagindrio é inevitavelmente vis- lumbrado nos termos de uma narrativa pré-hist6rica — que serve para legitimar o estado atual da lei ou, alternativamente, o futuro imaginario além da lei —, entao esse “antes” esteve desde sempre imbuido das fabricagGes autojustificadoras dos interesses presentes e futuros, fossem eles feministas ou antifeministas. A postulagao desse “antes” na teoria feminista torna-se politicamente problematica quando obriga o futuro 64 PROBLEMAS DE GENERO materializar uma nogio idealizada do passado, ou quando apdia, mes- jnadvertidamente, a reificagio de uma esfera pré-cultural do autén- feminino. Esse recurso a uma feminidade original ou genuina é um | nostalgico e provinciano que rejeita a demandacontemporinea de mular uma abordagem do género como uma construglo cultural plexa. Esse ideal tende nao s6a servir a objetivos culturaimente con- adores, mas a constituir uma pratica excludente no seio dp feminis- 0, precipitando precisamente 0 tipo de fragmentagao que & ideai pree re - veda a especulacao de Engels, do feminismo soci lista & das por sigées feministas enraizadas na antropologia estruturalista, sie soe ‘os esforcos para localizar na hist6ria ou na cultura momentos ou este se isolar essas esi U- ras que estabelecam hierarquias de género. Busca 0 as esi turas ou periodos-chave de maneira a repudiar as teorias reaciondrias que naturalizam ou universalizam a subordinacao das mulheres, Como -esforcos significativos para produzir um deslocamento critico dos gestos universalizantes de opressdo, essas teorias constituem parte do campo e6rico contempor4neo onde amadurecem novas contestacoes da optes- sao. Contudo, € preciso esclarecer se essas importantes criticas da hie- rarquia do género fazem ou nao uso de pressuposigées ficticias que im- plicam ideais normativos problemiticos. a lemé- A antropologia estruturalista de Lévi-Strauss, inclusive a prob ems tica distingdo natureza/cultura, foi apropriada por algumas tedricas fe- ministas para dar suporte € elucidar a distingdo sexo/género: a suposicio de haver um feminino natural ou bioldgico, subseqiientemente trans for- com a conseqiiéncia de mado numa “mulher” socialmente subordinada, a < que 0 “sexo” estd para a natureza ou a “matéria-prima” assim como ° genero esta para a cultura ou 0 “fabricado”. Se a perspectiva de Lévi- Strauss fosse verdadeira, seria possivel mapear a transformagao do “oe em género, localizando 0 mecanismo cultural estavel — as regras ae intercambio do parentesco — que efetua essa transformacao de mo ° regular. Nessa visao, 0 “sexo” vem antes da lei, no sentido de ser cultural e politicamente indeterminado, constituindo-se, por assim dizer, na 65 PROIBIGAO, PSICANALIsE EA PRODUGAO DA MATRIZ HETEROSSEXUAL “matéria-prisma” cultural que sé comeca a gerar significacao por meio tle © apés sue sujeicéo as regras de parentesco. Contudo, © Proprio conceito do sexo-como-matéria, do sexo- ¢omo-instrurnento-de-significacao-cultural, €uma formacéo discursiva que atua cormo fundacéo naturalizada da distingso natureza/cultura e das estratégias de dominacio por eta sustentadas, A relagao bindria entre perieira enatureza Promove uma telacio de hierarquia em que a cultura ‘impGe” sigraificado livremente 3 natureza, transformando-a, conse- qiientemente 5 num Outro a ser apropriado para seu uso ilimitado sal- vaguardando a idealidade do significante e a estrutura de si nific 4 conforme o modelo de dominacao, es As antrop' Ologas Matilyn Strathern e Carol MacCormack argumen- taram que o discurso natureza/cultura normalmente concebe que a na- tureza é “femsinina © precisa ser subordinada pela cultura invariavel- mente concebida como masculina, ativa e abstrata.2 Como ‘na dialética existencial da misoginia, trata-se de mais um exemplo em que a razaoe amente sao associadas com a masculinidade ea AGO, a0 passo que corpo € natureza sao considerados como a facticidade muda do feminino, 2 espera de significacao a partir de um sujeito masculino oposto. Com na dialética mis6gina, materialidade e significado sao termos mutuamey . te excludentes- A politica sexual que constr6i e mantém essa distincgo Oculta-se por tras da produgio discursiva de uma natureza e, a rigor, de um sexo natural que figuram como a base inquestiondvel ‘da cultura Criticos do estruturalismo, como Clifford Geertz, argumentaram gue seu arcabouco universalizante nao considera a multiplicidade das con- figuragdes culturais da “natureza”, A andlise que supde ser a natureza Singular € pré-discursiva nao pode se perguntar: 0 que se caracteriza como “natureza” num dado contextg cultural, e com que propésito? & © dualismo realmente necessério? Como sao construidos e naturaliza- dos, um no outro e por meio um do outro, os dualismos sexo/género e natureza/cultura? A que hierarquias de género servem eles, e que rela- Soes de subordina¢ao reificam? Se a propria designacio do sexo é poli- tica, entdo 0 “sexo”, essa que se supée designacao ser a mais tosca mos- 66 PROBLEMAS DE GENERO se desde sempre “fabricado”, ¢ as distingdes centrais da antropologia uturalista perecem desmoronar.? Compreensivelmente, 0 esforgo para localizar uma natureza sexua- a antes da lei parece enraizar-se no projeto mais fundamental de se der pensar que a lei patriarcal nao é universalmente valida e determi- ite de tudo. Pois se o género construfdo € tudo que existe, parece nao er nada “fora” dele, nenhuma Ancora epistemolégica plantada em “antes” pré-cultural, podendo servir como ponto de partida episte- jolégico alternativo para uma avaliacao critica das relag6es de género istentes. Localizar o mecanismo mediante o qual 0 sexo transforma-se género é€ pretender estabelecer, em termos nao biolégicos, nao s6 0 iéter de construgao do género, seu status nao natural e nao necessario, também a universalidade cultural da opressio. Como esse mecanis- 10 € formulado? Pade ele ser encontrado, ou sé meramente imaginado? designacao de sua universalidade ostensiva é menos reificadora do que a posicéo que explica a opressdo universal pela biologia? A nogio per se de construto s6 se mostra til ao projeto politico de ampliar 0 espectro das possfveis configuragées do género quando 0 me- canismo de construcao do género implica a contingéncia dessa constru- -¢ao. Contudo, se h4 uma vida do corpo além da lei, ou uma recuperagao do corpo antes da lei, que assim emerge como objetivo normativo da teoria feminista, tal norma afasta o foco da teoria feminista dos termos concretos da uta cultural contemporanea. Os subcapitulos a seguir, so- bre psicanilise, estruturalismo e 0 status e poder de suas proibigdes ins- tituidoras do género, se concentrarao precisamente nessa nogao da lei: qual é seu status ontolégico — é ele juridico, opressivo e reducionista em seu funcionamento, ou cria inadvertidamente a possibilidade de sua prdpria substituicdo cultural? Em que medida a enunciagao de um corpo anterior ao proprio enunciado contradiz performativamente a si mesma e gera alternativas em seu lugar? 67 PROIBICAO, PSICANALISE E A PRODUCAO DA MATRIZ HETEROSSEXUAL 1. APERMUTA CRITICA DO ESTRUTURALISMO © discurso estruturalista tende a se referir 4 Lei, no singular, seguindo o argumento de Lévi-Strauss de que existe uma estrutura universal da troca reguladora que caracteriza todos os sistemas de parentesco. Segun- do As estruturas elementares de parentesco, as mulheres so 0 objeto da troca que consolida e diferencia as relagdes de parentesco, sendo ofer- tadas como dote de um cla patrilinear para outro, por meio da instituigao do casamento.‘ A ponte, o dote, o objeto de troca constitui “um signo e um valor”, o qual abre um canal de intercambio que atende nao s6 ao objetivo funcional de facilitar 0 comércio, mas realiza 0 propésito sim- bdlico ou ritualistico de consolidar os lagos internos, a identidade cole- tiva de cada cla diferenciado por esse ato.5 Em outras palavras, a noiva funciona como termo relacional entre grupos de homens; ela nao tem uma identidade, e tampouco permuta uma identidade por outra. Ela reflete a identidade masculina, precisamente por ser o lugar de sua au- séncia. Os membros do cla, invariavelmente masculino, evocam a prer- rogativa da identidade por via do casamento, um ato repetido de dife- renciacao simbélica. A exogamia distingue e vincula patronimicamente tipos especificos de homens. A patrilinearidade é garantida pela expul- sao ritualistica das mulheres e, reciprocamente, pela importagdo ritua- listica de mulheres. Como esposas, as mulheres nao s6 asseguram a re- produgio do nome (objetivo funcional), mas viabilizam 0 intercurso simbolico entre clas de homens. Como lugar da permuta patronimica, as mulheres s4o € nao sao 0 signo patronimico, pois sao excluidas do significante, do proprio sobrenome que portam. No matriménio, a mu- Iher nao se qualifica como uma identidade, mas somente como um termo relacional que distingue e vincula os varios clas a uma identidade patri- linear comum mas internamente diferenciada. A sistematicidade estrutural da explicagao de Lévi-Strauss das rela- Ges de parentesco faz apelo a uma légica universal que parece estruturar as relagdes humanas. Ainda que Lévi-Strauss nos revele, em Tristes tré- picos, ter abandonado a filosofia porque a antropologia fornecia uma textura cultural mais concreta para a andlise da vida humana, ele todavia 68 PROBLEMAS DE GENERO mila essa textura cultural a uma estrutura légica totalizante, a Z suas andlises retornarem de fato As estruturas filoséficas descontex= alizadas que ele teria pretensamente abandonado. Embora seja posite el levantar diversas questdes sobre as presungées de universalidade dia bra de Lévi-Strauss (assim como em Local Knowledge [“Conhecimento ocal”], do antropdlogo Clifford Geertz), as quest6es aqui dizem respei- © ao lugar das hipdteses identitarias nessa ldgica universal, e a relagdo lessa logica identitaria com o status subalterno das mulheres na reali- lade cultural que essa mesma légica busca descrever. Se a natureza sim- lica da troca é também seu carter uniyersalmente humano, e se essa rutura universal distribui “identidades” as pessoas do sexo masculino ma “negacao” ou-“falta”relacional e subalterna as- mulheres, entéo a gica em questdo pode ser contestada por uma posigo (ou conjunto de osi¢Ses) excluida de seus préprios termos. Como seria uma légica al- ativa do parentesco? Até que ponto os sistemas légicos identitarios pre exigem que a construcdo de identidades socialmente impossiveis upe o lugar de uma relacao nado nomeada, exclufda, mas pressuposta € subseqiientemente ocultada pela propria légica? Explicita-se aqui o mpeto demarcador de Irigaray em relagao a economia falocéntrica, bem omo o grande impulso pés-estruturalista no seio do feminismo que juestiona se uma critica efetiva do falocentrismo exige a eliminacao do mbdlico, como definido por Lévi-Strauss. _O carater toial.e fechado da linguagem € presumido e contestado 0 estruturalismo. Embora Saussure éntenda’ como arbitraria a relagao entre significante e significado, ele situa essa relagao arbitrdria no inte- ior de um sistema lingiiistico necessariamente completo. Todos os ter- mos lingiifsticos pressupGem uma totalidade lingiifstica de estruturas, cuja integridade é pressuposta e implicitamente evocada para conferir sentido a qualquer termo. Essa opinido quase leibniziana, em que a lin- guagem figura como uma totalidade sistematica, suprime efetivamente © momento da diferenca entre o significante ¢ o significado, relacionan- do e unificando esse momento de arbitrariedade dentro de um campo totalizante. A ruptura pés-estruturalista com Saussure e com as estrutu- fas identitarias de troca encontradas em Lévi-Strauss refuta as afirma- 69 PROIBIGAO, PSICANALISE E A PRODUGAO DA MATRIZ HETEROSSEXUAL goes de totalidade e universalidade, bem como a presunc4o de oposicdes estruturais bindrias a operarem implicitamente no sentido de subjugar a ambigiiidade e abertura insistentes da significagao lingiiistica e cultural.6 Como resultado, a discrepancia entre significante e significado torna-se a différance operativa e ilimitada de linguagem, transformando toda re- feréncia em deslocamento potencialmente ilimitado. Para Lévi-Strauss, a identidade cultural masculina € estabelecida por meio de um ato aberto de diferenciacao entre clas patrilineares, em que a “diferenga” nessa relagao € hegeliana — isto é, distingue e vincula ao mes- mo tempo. Mas a “diferenca” estabelecida entre os homens ¢ as mulheres que efetivam a diferenciacio entre os homens escapa completamente a essa dialética, Em outras palavras, o momento diferenciador da troca social parece ser um Jaco social entre os homens, uma uniao hegeliana entre ter- mos masculinos, simultaneamente especificados e individualizados.”? Num nivel abstrato, trata-se de uma identidade-na-diferenga, visto que ambos os clas retém uma identidade semelhante: masculinos, patriarcais € patri- lineares. Ostentando nomes diferentes, eles particularizam a si mesmos no seio de uma identidade cultural masculina que tudo abrange. Mas que re- facdo institui as mulheres como de objeto de troca, inicialmente portadoras de um sobrenome e depois de outro? Que tipo de mecanismo diferencia- dor distribui as fungdes do género desse modo? Que espécie de différance diferenciadora é pressuposta e exclufda que hd na economia hegeliana de Lévi-Strauss pela negacao explicita e mediadora do masculino? Como ar- gumenta Irigaray, essa economia falocéntrica depende essencialmente de uma economia da différance nunca manifesta, mas sempre pressuposta € , renegada. Com efeito, as relagdes entre clas patrilineares sio baseadas em um desejo homossocial (0 que Irigaray chama de “homo-sexualidade”)’, numa sexualidade recalcada e conseqiientemente desacreditada, numa re- lagao entre homens que, em ultima instancia, concerne aos lagos entre os homens, mas se dé por intermédio da troca e da distribuigéo heterossexual das mulheres. Numa passagem que revela 0 inconsciente homoer6tico da econo- mia falocéntrica, Lévi-Strauss apresenta a ligagdo entre o tabu do incesto © 4 consolidagio dos lagos homoeréticos: 70 PROBLEMAS DE GENERO Atroca—e, conseqiientemente, a regra da exogamia —ndo é simplesmente ada permuta de bens. A troca —e, conseqiientemente, a regra da exogamia que a expressa — tem em si mesma um valor social, Propicia os meios de manter os homens vinculados. O tabu produz a heterossexualidade exogamica, a qual Lévi-Strauss compreende como obra ou realizagao artificial de uma heterossexuali- dade no incestuosa, obtida mediante a proibicao de uma sexualidade mais natural e irrestrita (hipétese partilhada por Freud em Tiés ensaios sobre a teoria da sexualidade), Contudo, a relacao de reciprocidade estabelecida entre os homens €a condigao de uma relacdo radical de nao reciprocidade entre homens ¢ mulheres e, também, por assim dizer, de uma nao relacao entre as mulheres. A famosa afirmacdo de Lévi-Strauss de que “o surgimento do pensamento simbélico deve ter exigido que as mulheres, como as pala- vras, fossem coisas a serem trocadas” sugere uma necessidade que ° proprio Lévi-Strauss induz, a partir da posicao retrospectiva de um ob- servador transparente, das pretensas estruturas universais da cultura. Mas a expressao “deve ter exigido” s6 aparece como inferéncia perfor- mativa; considerando que o momento em que o simbélico surgiu nado poderia ter sido testemunhado por Lévi-Strauss, ele conjetura uma his- t6ria necesséria: © relato torna-se assim injungdo. Sua andlise induziu Irigaray a refletir sobre o que aconteceria se “os deuses se juntassem” e revelassem a imprevista atuagio de uma economia sexual alternativa. Seu trabalho recente, Sexes e parentés', oferece uma exegese critica de emo essa construgao da troca recfproca entre homens pressupde uma nio reciprocidade entre os sexos que no se pode articular dentro dessa economia, assim como a impossibilidade de nomear a fémea, 0 feminino € a sexualidade lésbica. Se existe um dominio sexual que € excluido do Simbélico e pode potencialmente revel4-lo como hegeménico, ao invés de totalizante em seu alcance, entdo tem de ser Possivel situar esse dominio excluido den- tro ou fora dessa economia, e pensar sua intervencao estrategicamente nos termos dessa localizagao. A releitura, a seguir, da lei estruturalista ; 71 PROIBIGAO, PSICANALISE E A PRODUGAO DA MATRIZ HETEROSSEXUAL da narrativa que explica a produgao da diferenca sexual em seus termos centra-se na fixidez e universalidade presumidas dessa lei, e, através de uma critica genealdgica, busca expor seu poder de generatividade inad- vertida e auto-anuladora. Produziria “a Lei” essas posigdes, unilateral- mente ou invariavelmente? Pode ela gerar configuragées de sexualidade que a contestem efetivamente, ou sdo essas contestagoes inevitavelmente fantasmaticas? E possivel especificar a generatividade dessa lei como va- ridvel ou até subversiva? . A lei que profbe 0 incesto € 0 locus da economia de‘parentesco que profbe a endogamia. Lévi-Strauss afitma que a centralidade do tabu do incesto estabelece o nexo significante entre a antropologia estrutural a psicandlise. Embora Lévi-Strauss reconheca 0 descrédito de Totem e tabu, de Freud, no terreno empirico, ele considera esse gesto de reptidio como uma prova paradoxal de apoio a tese de Freud. Para Lévi-Strauss, 0 incesto nao € um fato social, mas uma fantasia cultural muito diftn- dida. Presumindo a masculinidade heterossexual do sujeito do desejo, , Lévi-Strauss sustenta que “o desejo pela me ou irma, 0 assassinato do pai e o arrependimento dos filhos indubitavelmente nao correspondem a nenhum fato ou grupo de fatos a ocupar um dado lugar na histéria. Mas talvez expressem simbolicamente um sonho antigo e vivedouro”."! Num esforco para afirmar a percepcao psicanalitica da fantasia incestuosa inconsciente, Lévi-Strauss refere-se 4 “magia desse sonho, ao seu poder de moldar idéias que sao desconhecidas dos homens. os atos evocados [pelo sonho] nunca foram cometidos, porque a cul- tura se opde a eles em todos os tempos ¢ em todos os lugares”.'? Esta afirmacao deveras surpreendente nos dé uma percepcao nao s6 da visivel capacidade de negacao de Lévi-Strauss (atos de incesto “nunca foram cometidos”!), mas também da dificuldade central decorrente da suposigao da eficacia dessa proibigao. O fato de a proibigao existir nado significa absolutamente que funcione. Ao invés disso, sua existéncia parece sugerir que desejos, agdes e, a rigor, praticas sociais difundidas de incesto sao produzidos precisamente em virtude da erotizagao desse tabu. O fato de que os desejos incestuosos sejam fantasisticos nao im- plica de modo algum que deixem de ser “fatos sociais”. A questao 6 72 PROBLEMAS DE GENERO antes saber como tais fantasias so produzidas e efetivamente instituf- das, em conseqiiéncia de sua proibigio. Além disso, de que modo a convicgao social de que a proibigio é eficaz, aqui sintomaticamente articulada por Lévi-Strauss, renega e, portanto, cria um espaco social em que as praticas incestuosas ficam livres para se reproduzir sem proscrigao? Para Lévi-Strauss, tanto o tabu contra 0 ato do incesto heterossexual entre filho e mae como a fantasia incestuosa instalam-se como verdades culturais universais. Mas como se constitui a heterossexualidade inces- tuosa como matriz ostensivamente natural e pré-artificial do desejo, e de que modo se estabelece 0 desejo como prerrogativa heterosexual smasculina? Nessa perspectiva fundadora do estruturalismo, a naturali- vagio tanto da heterossexualidade como da agéncia sexual masculina sio construgées discursivas em parte alguma explicadas, mas em toda parte presumidas. , A apropriagao lacaniana de Lévi-Strauss esté centrada na proibigio’ do incesto € na regra da exogamia na reprodugao da cultura, sendo a cultura primordialmente entendida como um conjunto de estruturas € significagoes lingiiisticas. Para Lacan, a Lei que profbe a uniao incestuosa «entre © menino e a mae inaugura as estruturas de parentesco, uma série Altamente regulantentada de deslocamentos libidinais que ocorrem or intermédio da linguagem. Embora as estruturas da linguageni, soletiva. mente entendidas como o Simbélico, mantenham uma integridade on- tolégica separada dos varios agentes falantes pelos quais atuam, a Lei reafirma ¢ individualiza a si mesma’nos termos de toda entrada infantil na cultura. A fala s6 emerge em condicées de insatisfagao, sendo a insa- tisfacdo institufda por via da proibicdo incestuosa; perde-se a jouissance [o gozo] original pelo recalcamento primério que funda o sujeito, Em seu lugar emerge o signo que é analogamente barrado do significante, e que busca naquilo que significa a recuperacdo daquele prazer isrezopee nivel. Lastreado nessa proibigdo, o sujeito s6 fala para deslocar o desejo pelas substituigdes metonimicas desse prazer irrecuperdvel. A linguagem 0 resfduo e a realizacao alternativa do desejo insatisfeito, a pedi lo. cultural diversificada de uma sublimacdo que nunca satisfa vate 73 PROIBICAO, PSICANALISE E A PRODUGAO DA MATRIZ HETEROSSEXUAL inevitavelmente, nao conseguir significar € a li em, © fe cia mest possibilidade da conseqiiéncia necessdria da proibigéo que alicerga a 0 linguagem e marca a futilidade de seus gestos referenciais. 2. LACAN, RIVIERE E AS ESTRATEGIAS DA MASCARADA . Em termos lacanianos, perguntar sobre 0 “ser” do género e/ou do sexo éconfundir 0 proprio objetivo da teoria da linguagem de Lacan. oO autor contesta a primazia dada 4 ontologia na metafisica ocidental e insiste na subordinacgao da pergunta “o que é?” 4 pergunta “como se institui e lo- caliza o ‘ser’ por meio das praticas significantes da economia paterna? ’. A especificagao ontolégica do ser, a negagdo e as relagGes sao determi, nadas por uma linguagem estruturada pela lei paterna e seus mecanismos de diferenciacao. Uma coisa s6 entre elas assume a caracterizagao do” or a ma “ser” e passa a ser mobilizada por esse gesto ontolégico dentro de u estrutura de significagao que, come o Simbélico, é em si mesma pré-on~ toldgica. Nao ha portanto inquirigao da ontologia per se, nenhum acesso a0 ser, sem uma inquirigao prévia do “ser” do Falo, a significacao autoriza- dora da Lei que toma a diferenga sexual como pressuposicao de sua pr6- pria inteligibilidade. “Ser” o Falo e “ter” 0 Falo denotam posigoes sexuais divergentes, ou nao-posigoes (na verdade, posigdes impossiveis), no inte- rior da linguagem. “Ser” o Falo é ser 0 “significante” do desejo do Outro e apresentar-se como esse significante. Em outras palavras, ésero objeto, © Outro de um desejo masculino (heterossexualizado), mas também é representar ou refletir esse desejo. Trata-se de um Outro que constitui nao © limite da masculinidade numa alteridade feminina, mas o lugar de uma auto-elaboracao masculina. Para as mulheres, “ser” o Falo significa refletir © poder do Falo, significar esse poder, “incorporar” 0 Falo, prover ° lugar em que ele penetra, e significar 0 Falo mediante a condicao de’ ser” o seu Outro, sua auséncia, sua falta, a confirmagao dialética de sua identidade. ‘Ao afirmar que o Outro a quem falta o Falo é aquele que é 0 Falo, Lacan 74 PROBLEMAS DE GENERO sugere claramente que o poder é exercido por essa posigéo feminina de ndo ter, € que O sujeito masculino que “tem” o Falo precisa que esse Outro confirme e, conseqiientemente, seja o Falo em seu sentido “ampliado”.'3 Essa caracterizacao ontoldgica pressupde que a aparéncia ou efeito do scr sempre produzido pelas estruturas de significagao. A ordem simbdlica cria a inteligibilidade cultural por meio das posigdes mutuamente exclu- dentes de “ter” 0 Falo (a posicdo dos homens) e “ser” 0 Falo (a posigéo paradoxal das mulheres). A interdependéncia dessas posigdes evoca as estruturas hegelianas da reciprocidade falha entre o senhor e 0 escravo, particularmente a inesperada dependéncia do senhor em relagao ao escra- vo para estabelecer sua propria identidade, mediante reflexao.'* Lacan, entretanto, monta este drama num dominio fantasistico. Todo esforgo para estabelecer a identidade nos termos dessa disjuncao entre o “ser” e o “ter” retorna as inevitaveis “falta” e “perda” que alicercam sua construgao fan- tasistica e marcam a incomensurabilidade do Simbélico e do real. Se 0 Simbélico € compreendido como uma estrutura de significagao” cultural universal, em parte alguma plenamente exemplificada no real, faz sentido perguntar: 0 que ou quem significa o que ou quem nessa histéria ostensivamente transcultural? Essa pergunta, contudo, insere-se num con- texto que pressupGe um sujeito como significante e um objeto como sig- nificado, a dicotomia epistemologica tradicional da filosofia antes do des- jecamento estruturalista do sujeito. Lacan questiona esse ésquema de hignificacao. Ele apresenta a relacdo entre os sexos em termos que revelam 6 “cu” falante como um efeito masculinizado do recalcamento, que figura vomo uM sujeito auténomo e auto-referido, mas cuja propria coeréncia é posta em questo pelas posicGes sexuais que exclui no processo de forma- io da identidade. Para Lacan, 0 sujeito sé passa a existir — isto é, 86 _ tomeca a colocar-se como um significante auto-referido no corpo da lin- iagem — sob a condigado de um recalcamento primério dos prazeres Micestuosos pré-individuados associados com o corpo materno (entao re- Waleado). O sujeito masculino s6 se manifesta para originar significados e, por thio disso, significar. Sua autonomia aparentemente auto-referida tenta ‘iultar o recalcamento que, ao mesmo tempo, é sua base e a possibile 75 PROIBICAO, PSICANALISE E A PRODUGAO DA MATRIZ HETEROSSEXUAL dade perpétua de seu deslastreamento. Mas esse processo de constitui- Gao do sentido exige que as mulheres reflitam esse poder masculino e confirmem por toda a parte a esse poder a realidade de sua autonomia ilus6ria. Essa tarefa se confunde, para dizer o minimo, quando a deman- da de que as mulheres reflitam o poder aut6nomo do sujeito/significante masculino torna-se essencial para a construcao dessa autonomia, tornan- do-se, assim, a base de uma dependéncia radical que na verdade solapa a func4o a que serve. Além disso, porém, essa dependéncia, ainda que negada, também € buscada pelo sujeito masculino, pois a mulher como signo garante é 0 corpo materno deslocado, a promessa va mas persis- tente de recuperar o gozo pré-individuado. Assim, 0 conflito da mas- culinidade parece ser precisamente a demanda de um reconhecimento pleno da autonomia, o qual encerrara — também e todavia — a pro- messa de um retorno aos prazeres plenos anteriores ao recalcamento e a individuagao. . Diz-se que as mulheres “sao” 0 Falo no sentido de manterem 0 poder de refletir ou representar a “realidade” das postiras auto-referidas do su- jeito masculino, um poder que, se retirado, romperiaas ilusdes fundadoras da posigao desse sujeito. Para “ser” o Falo, refletoras ou garantes da posi- ¢4o aparente do sujeito masculino, as mulheres tém de se tornar, tém de “ser” (no sentido de “posarem como se fossem”) precisamente 0 que os homens nao sao e, por sua propria falta, estabelecer a func4o essencial dos homens. Assim, “ser” o Falo € sempre “ser para” um sujeito masculino que busca reconfirmar e aumentar sua identidade pelo reconhecimento dessa que “€ para”. Num sentido vigoroso, Lacan contesta a nogio de que os homens signifiquem o significado das mulheres, ou de que as mulheres signifiquem o significado dos homens. A divisao e a troca entre “ser” e “ter” 0 Falo € estabelecida pelo Simbélico, a lei paterna. Claro, parte da dimensao cémica desse modelo falho de reciprocidade € que tanto a po- sigéo masculina como a feminina so significadas, pertencendo 0 signifi- cante ao Simbdlico, o qual nunca pode ser mais do que nominalmente assumido por ambas as posigées. Ser o Falo € ser significado pela lei paterna, é tanto ser seu objeto e instrumento como, em termos estruturalistas, o “signo” e a promessa de 76 PROBLEMAS DE GENERO seu poder. Conseqiientemente, como objeto constitufdo ou significado de troca pelo qual a lei paterna estende seu poder e o modo como se apresenta, diz-se que as mulheres sao 0 Falo, isto é, o emblema de sua circulacgdo continua. Mas esse “ser” o Falo é necessariamente insatisfa- t6rio, na medida em que as mulheres jamais poderdo refletir plenamente essa lei; algumas feministas argumentam que isso exigiria uma rentincia ao proprio desejo das mulheres (uma dupla rentincia, de fato, corres- pondente a “onda dupla” de recalcamento que Freud afirmou fundar a feminilidade)'5, 0 que representaria a expropriagao desse desejo como um desejo de nao ser nada além do reflexo, do garante da necessidade difundida do Falo. Por outro lado, diz-se que os homens “tém” 0 Falo mas nunca o “sio”, no sentido de que o pénis nao € equivalente a Lei, e nunca poder simbo- liza-la plenamente. Assim, verifica-se a impossibilidade necessaria ou pres- suposta de todo esforco para ocupar a posigio de “ter” o Falo, com a conseqiiéncia de que ambas as posigies, a de “ter” ou a de “ser”, devem ser entendidas nos termos de Lacan, como fracassos cémicos, todavia obri- gados a articular e encenar essas impossibilidades repetidas. Mas, como as mulheres “parecem” ser 0 Falo, a falta que encarna e afirma 0 Falo? Segundo Lacan, isso se faz através da mascarada, efeito de uma melancolia que é essencial 4 posigao feminina como tal. No en- said “A significagao do Falo”, ele escreve sobre “as relagdes entre os sexos”: Digamos que essas relagSes girarfio em torno de um ser e de um ter que, por se reportarem a um significante, 0 falo, tém o efeito contrario de, por um lago, dar realidade ao sujeito nesse significante, e, por outro, irrealizar as celagdes a serem significadas.'6 Nas linhas imediatamente subseqiientes, Lacan parece referir-se A aparéncia de “realidade” do sujeito masculino, assim como a “irrealida- de” da heterossexualidade. Ele também parece referir-se 4 posigao das mulheres (minha intervengao esta entre colchetes): “E isso pela inter- vengao de um parcer que substitui o ter [exige-se uma substituigdo, sem 77 PROIBIGAO, PSICANALISE E A PRODUGAO DA MATRIZ HETEROSSEXUAL divida, pois diz-se que as mulheres nao ‘tém’), para, de um lado, pro- tegé-lo €, do outro, mascarar sua falta no outro.” Embora nao se expli- cite aqui propriamente o género gramatical, parece que Lacan esta des- crevendo a posigdo das mulheres para quem a “falta” € caracteristica, precisando portanto ser mascarada, e que, num sentido inespecifico, carecem de protegio. Lacan afirma entao que essa situagdo produz “o efeito [de] projetar inteiramente as manifestages ideais ou tipicas do comportamento de cada um dos sexos, até 0 limite do ato da copujacao, na comédia”. (701) Lacan continua sua exposi¢ao sobre a comédia heterosexual, ex- plicando que esse “parecer” o Falo que as mulheres sao compelidas a representar é inevitavelmente wma mascarada. O termo é significativo porque sugere sentidos contraditérios: por um lado, se o “ser”, a espe- cificagdo ontolégica do Falo, € uma mascarada, entdo isso pareceria re- , duzir todo ser a uma forma de aparéncia, a aparéncia de ser, com a conseqiiéncia de que toda a ontologia do género é redutivel a um jogo” de aparéncias. Por outro lado, mascarada sugere que existe um “ser” ou uma especificagio ontolégica da feminilidade anterior & mascarada, um desejo ou demanda feminina que € mascarado e capaz de revelagio, e que, na verdade, pode pressagiar uma ruptura e deslocamento eventuais da economia significante falocéntrica. Podem-se discernir pelo menos duas tarefas muito diferentes a partir da estrutura ambigua da andlise de Lacan. Por um lado, pode-se com- preender a mascarada como a producio performativa de uma ontologia sexual, uma aparéncia que se faz convincente como “ser”; por outro lado, pode-se ler a mascarada como a nega¢ao de um desejo feminino, a qual pressupde uma feminilidade ontoldgica anterior, regularmente nao representada pela economia falica. Irigaray observa nesse sentido que “a mascarada... € 0 que as mulheres fazem... para participar do de- sejo masculino, mas ao custo de abrir mao do delas mesmas”.'7 A pri- meira tarefa envolveria uma reflexao critica sobre a ontologia do género como (des)construgio imitativa e, talvez, buscar as possibilidades méveis da distingdo escorregadia entre “parecer” e “ser”, uma radicalizagio da dimensio “cémica” da ontologia sexual, s6 parcialmente empreendida 78 PROBLEMAS DE GENERO por Lacan. A segunda iniciaria estratégias feministas de desmascaramen- to para recuperar ou libertar qualquer desejo feminino que tenha per- manecido recalcado nos termos da economia félica. 18 Talvez essas direg6es alternativas nao sejam tio mutuamente exclu- dentes quanto parecem, pois as aparéncias s40 cada vez mais duvidosas. As reflexGes sobre o significado da mascarada em Lacan e em Womanliness as a Masquerade [“A feminilidade como disfarce”], de Joan Riviere, sao muito diferentes, em sua interpretago, precisamente daquilo que € mas- carado pelo disfarce. Ea mascaradaa conseqiiéncia de um desejo feminino que tem de ser negado e, assim, transformado numa falta que tem todavia de se manifestar de algum modo? E a mascarada a conseqiiéncia de uma negagao dessa falta, no intuito de parecer o Falo? Constrdi a mascarada a feminilidade como reflexo do Falo, para disfarcar possibilidades bissexuais que, de outro modo, poderiam romper a construgao sem suturas da femi- nilidade heterossexualizada? Transforma a mascarada a agressio eo medo de represdlias em sedugio e flerte, como sugere Joan Riviere? Serve ela primariamente para ocultar ou recalcar uma feminilidade ja dada, um desejo feminino que pode,estabelecer uma alteridade insubordinada ao sujeito masculino e expor o necessario fracasso da masculinidade? Ou sera a mascarada o meio pelo qual a prdpria feminilidade € inicialmente esta- belecida, a pratica excludente da formagio da identidade, em que © mas- culino € efetivamente excluido ¢ instalado como externo as fronteiras de uma posi¢ao com a marca feminina do género? Lacan continua a citacgdo mencionada acima: Por mais paradoxal que possa parecer essa formulagao, dizemos que € para ser 0 falo, isto é, 0 significante do desejo do Outro, que a mulher vai rejeitar uma parcela essencial da feminilidade, nomeadamente todos os seus atributos na mascarada. £ pelo que ela nao é que ela pretende ser desejada, a0 mesmo tempo que amada. Mas ela encontra o significante de seu proprio desejo no corpo daquele a quem sua demanda de amor € enderegada. Nao convém esquecer que, sem diivida, o érgao que se reveste dessa fungao significante adquire um valor de fetiche. (701) 79 PROIBIGAO, PSICANALISE E A pRODUGAO DA MATRIZ HETEROSSEXUAL Se esse “6rgdo” inominado, presumivelmente 0 pénis (tratado como 0 Yahweh hebraico, que nunca & mencionado), é um fetiche, como é possivel que © esquecamos tao facilmente, como presume 0 proprio Lacan? E que “parcela essencial de sua feminilidade” deve ser rejeitada? ‘Tratar-se-ia, uma vez mals, da parte inominada gue, uma vez rejeitada, aparece como falta? Ou serd a propria falta que deve ser rejeitada, para que a mulher possa parecer © proprio Falo? Eo carter inominavel dessa “parcela essencial” 0 mesmo carater inominAvel pertinente ao “6rgio” masculino, 0 qual nds corremos 0 risco permanente de esquecet? Nao sera precisamente esse esquecimento que constitui o recalcamento situa- do no cerne da mascarada feminina? “Tratar-se-ia de uma masculinidade presumida que tem de ser abandonada, para que pareca set a falta que confirma e, conseqientemente, € 0 Falo, ou de uma possibilidade falica que tem de ser negada, para se transformar na falta que confirma? Lacan esclarece sua posi¢ao ao observar que “a fungao da mascara. domina as identificagdes em que se resolvem as recusas da demanda {de amor]”: (702) Em outras palavras, a mascara € parte da estratégia incor- poradora da melancolia, a assungao de atributos do objeto/Outro per- dido, na qual a perda é a conseqiiéncia de uma recusa amorosa.!? O fato de que a mascara “dominar” e “resolver” essas recusas sugere que 2 apropriacao € a estratégia mediante a qual essas recusas sao elas mesmas recusadas, numa dupla negagao que reproduz a estrutura da identidade através da absorgao melancélica daquele que €, com efeito, duas vezes perdido. Significativamente, Lacan situa a discussao sobre a mascara em con- junto com a explicagao da homossexualidade ferninina. Ele afirma que “g homossexualidade feminina (...), como mostra a observacao, orien- ta-se por uma decep¢ao que reforca a vertente da demanda de amor”. (702) Quem esta observando € © que esta sendo observado sao conve- nientemente suprimidos aqui, mas Lacan acha que seu comentario € 6bvio para todos os que quiserem observar. O que se vé por melo da “observag4o” € o desapontamento fundante do homossexualismo femi- nino, em que esse desapontamento evoca as recusas dominadas/resolvi- das pela mascarada. “Observa-se” também que a homossexualidade fe- 80 PROBLEMAS DE GENERO minina esta de algum modo sujeita a wma idealizagao reforgad: demanda amorosa perseguida as expensas do desejo. “eons coma continua seu Pardgrafo sobre a “homossexualidade feminina” 7 irmagao parcialmente citada acima: “Esses comentarios mer ceria maiores nuances mediante um retorno a fungao da mnivcara, ida em que ela domina as identificagdes em que se resolyem 2s tecsas da demanda”, &, sea homossexualidade feminina € compreen. ° no a conseqiiéncia de um desapontamento, “como mostra a ob- servacao”, entao esse desapontamento tem de aparecer, e aparecer cl: ramente, para poder ser observado. Se Lacan presume ‘ homossexualidade feminina advém de uma heterosee uatidade de : pontada, como se diz mostrar a observacao, nao poderia ser igualmente claro Para 0 observador que a heterossexualidade provém de uma ho. mossexualidade desapontada? E a mascara da homossexual feminin: que € “observada”, € se assim for, que expressao claramente legivel f : nece provas desse “desapontamento” e dessa “orientag4o”, bem como do deslocamento do desejo pela demanda (idealizada) de amor? ‘Talver Lacan esteja sugerindo que 0 que € claro para a observagao é ost ti 4 dessexvalizado da lésbica, a incorporagao de uma recusa que aparece , vo ansineia de desejo. Mas podemos entender que essa conclusao lo necess4rio de uma observagao realizada a partir de um ponto de vista masculino e heterossexualizado, o qual toma a sexuali. dade lésbica como recusa da sexualidade per se, somente porque . xualidade € presumida heterossexual, e 0 observador, aqui entendido como heterosexual masculino, esté claramente sendo recusado. } . nAo seria essa explicag4o a conseqiiéncia de uma recusa que desa nt 0 observador, cujo desapontamento, rejeitado € projetado, é transfor. mado no traco essencial das mulheres que efetivamente 0 recusam? " - Num deslizamento caracteristico nas posiges pronominais, Lac nao consegue deixar claro quem recusa quem. Como leitores, contudo, nds devemos compreender que essa “recusa” flutuante esta vinculad : de modo significativo, 4 mascara. Se toda recusa € finalmente uma Teal dade para com outro laco no presente ou no passado, a recusa é a0 mesmo tempo preservacdo. A mascara oculta assim essa perda, mas a 81 PROIBIGAO, PSICANALISE E A PRODUCAO DA MATRIZ HETEROSSEXUAL preserva (¢ nega) por meio de sua ocultagao. A mascara tem uma dupla fungdo, que é a dupla fungao da melancolia. Ela é assumida pelo pro- cesso de incorporag4o, que € uma maneira de inscrever e depois usar uma identificagio melancélica dentro e sobre 0 corpo; com efeito, é a significagao do corpo no molde do Outro que foi recusado. Dominada mediante apropriagao, toda recusa fracassa, e o recusador se torna parte da propria identidade do recusado, torna-se, na verdade, a recusa psi- quica do recusado. A perda do objeto nunca é absoluta, porque é redis- tribuida numa fronteira psfquica/corporal que se expande para incorpo- rar essa perda. Isto situa 6 processo da incorporagdo do género na 6rbita mais ampla da melancolia. Publicado em 1929, o ensaio de Joan Riviere. Womanliness as a Masquerade*' introduz a nogao da feminilidade como mascarada, nos termos de uma teoria da agressao € da resolugéo de conflitos. A primeira vista, essa teoria parece muito distante da andlise lacaniana da mascara- da, em termos de comédia das posiges sexuais. Ela comeca com um respeitoso exame da tipologia de Ernest Jones do desenvolvimento da sexualidade feminina nas formas h:terossexual ¢ homossexual. Contu- do, concentra sua atencao nos “tigos intermediarios” que obscurecem as fronteiras entre 0 heterossexuale o homossexual, questionando im- plicitamente a capacidade descritiva do sistema classificatério de Jones. Num comentario que tem ressonatcia com a facil referéncia de Lacan & “observacio”, Riviere busca recorter 4 percepgdo ou experiéncia mun- dana para validar seu foco nesses ‘tipos intermedidrios”: ‘Na vida co- tidiana, encontram-se constantemante tipos de homens e mulheres que, embora principalmente heterossexiaisem seu desenvolvimento, exibem claramente caracteristicas marcants do outro sexo.” (35) O que aqui € mais 6bvio € a classificagao que cordiciona e estrutura a percepcao dessa 1 mistura de atributos. Claramente, tiviere parte de nogdes estabelecidas sobre 0 que é exibir caracteristica‘sexuais, e como essas caracteristicas obvias sAo compreendidas como «pressando ou refletindo uma orien- taco sexual ostensiva.?* Essa perepcao ou observagao nao sé supde uma correlagao entre caracteristics, desejos e “orientacdes””, mas cri essa unidade por meio do prépricato perceptivo. A unidade postulada 32 PROBLEMAS DE GENERO Por Riviere entre os atributos do géneroe uma “orientagéo” naturalizada aparece como um exemplo daquilo a que Wittig se refere como a “for- macao imaginaria” do sexo. Todavia, Riviere questiona essas tipologias naturalizadas ao fazer um apelo a uma explicacio psicanalitica que situa 0 significado dos atri- butos confusos do género na “interagio dos conflitos”. (35) Significati- vamente, ela contrasta esse tipo de teoria Psicanalitica com outro que reduz a presenga de atributos ostensivamente masculinos numa mulher auma “tendéncia radical ou fundamental”. Em outras palavras, a aqui- sigao de tais atributos ea consumagao de uma orientagio heterossexual ou homossexual sao produzidas mediante a resolugdo de conflitos que tém por objetivo a eliminagdo da angistia, Citando Ferenczi para esta- belecer uma analogia com sua propria explicagdo, Riviere escreve: Ferenczi ressaltou... que os homens homossexuais exageram sua heteros- sexualidade como “defesa” contra sua homossexuatidade. Tentarei mos- trar que as mulheres que desejam a masculinidade podem colocar uma mascara de feminilidade para evitar a angiistia, ¢ a temida represalia dos homens. (35) Nao fica claro qual é a forma “exagerada” de heterossexualidade que o homem homossexual pretensamente exibiria, mas o fendmeno sob escrutinio aqui pode apenas ser que os homens gays simplesmente podem nao parecer muito diferentes de seus equivalentes heterosse- xuais. Essa falta de um estilo ou aparéncia abertamente diferenciadores 86 pode ser diagnosticada como “defesa” sintomatica porque o homem Say em questao n&o corresponde a idéia de homossexual que o analista formou e nutriu a partir de esteredtipos culturais, Uma andlise lacaniana argumentaria que 0 suposto “exagero” do homem homossexual de quaisquer atributos que figurem como uma heterossexualidade aparente representaria uma tentativa de “ter” o Falo, uma posigao de sujeito que prcerra um desejo ativo e heterossexualizado. De maneira semelhante, a “mascara” das “mulheres que desejam a masculinidade” pode ser in- terpretada como um esforco para renunciar a “ter” o Falo, de modo a 83 PROIBIGAO, PSICANALISE E A PRODUGAO DA MATRIZ HETEROSSEXUAL evitar a retaliagao daqueles de quem o Falo tera sido obtido mediante castragio. Riviere explica 0 medo da retaliagéo como conseqiiéncia da fantasia da mulher de tomar o lugar do homem, mais precisamente, do pai. No caso que ela propria examina, ¢ que alguns consideram ser au- tobiografico, a rivalidade com o pai nao se di em torno do desejo da mie, como se poderia esperar, mas do lugar do pai no discurso ptiblico, como orador, conferencista ou escritor — isto €, como usudrio de signos ao invés de um signo-objeto ou elemento de troca. Esse desejo castrador pode ser compreendido como o desejo de abandonar o status de mu- Iher-como-signo, para aparecer como sujeito no interior da Jinguagem. Ora, a analogia que Riviere traga entre o homem homossexual e a , mulher mascarada nao 6, na opinido dela, uma analogia entre a homos- ' fsexualidade masculina e feminina. A feminilidade é assumida pela mu- ‘her que “deseja a masculinidade”, mas que teme as conseqiiéncias reta~ \ | liadoras de assumir publicamente a aparéncia de masculinidade. A | masculinidade € assumida pelo homossexual masculino que, presumi- velmente, busca esconder — nao dos outros, mas de si mesmo — uma feminilidade ostensiva. A mulher assume a mascara deliberadamente, para ocultar sua masculinidade da platéia masculina que ela quer castrar. Mas diz-se que 0 homem homossexual exagera sua “heterossexualida- de” (significando aqui uma masculinidade que lhe permite passar por heterossexual?) como “defesa”, inconsciente, porque nao pode reconhe- cer sua prépria homossexualidade (ou ser4 0 analista que nao a reco- nheceria, caso fosse sua?). Em outras palavras, o homossexual masculino chama a sia retaliagdo inconsciente, desejando e temendo as conseqiién- cias da castracao. O homossexual masculino nao “conhece” sua homos- sexualidade, ainda que Ferenczi e Riviere aparentemente a conhecam. Porém, conhece Riviere a homossexualidade da mulher na mas- carada que ela descreve? Quando se trata da contrapartida da analogia que ela mesma estabelece, a mulher que “deseja a masculinidade” sé € homossexual por sustentar uma identificagéo masculina, mas nao nos termos de uma orientag4o ou desejo sexual. Invocando mais uma) vez a tipologia de Jones, como se fosse um escudo falico, ela formula uma “defesa” que designa como assexual uma classe de homossexuai: 84 PROBLEMAS DE GéNERO femininas compreendida como do tipo mascarado: “Seu primeiro po [é] de mulheres homossexuais que, embora nao se interessem por outras mulheres, desejam o ‘reconhecimento’ da sua masculinidede pelos homens e afirmam ser iguais aos homens ou, em outras palavn . homens elas proprias.” (37) Como em Lacan, a lésbica é represented aqui como uma posicao assexual, uma Posigao que, a rigor, recusa a sexualidade. Para completara analogia anterior com Ferenczi, dir-se-i que essa descrigdo apresenta a “defesa” contra a homossexualid de feminina como sexualidade, todavia compreendida como a estrui fra reflexa do “homem homossexual”. Contudo, nao hd maneira clara de ler essa descricao de uma homossexualidade feminina que nao concer, ne ao desejo sexual por mulheres. Riviere queria que acreditassemos que €ssa curiosa anomalia tipolégica nao pode ser reduzida a wi homossexualidade ou heterossexualidade feminina recalcada. O ine se oculta nao é a sexualidade, mas 0 ddio. one Uma mlerpretacao possivel é que a mulher na mascarada dese: masculinidade para entrar no discurso publico com homens e. come homem, como parte de uma troca masculina homoerética, E exatamente Porque essa troca masculina homoerética significaria a castracao, ela teme a mesma retaliacdo que motiva as “defesas” do homem hom 3 xual. Ora, talvez a feminilidade como mascarada deva desviar-se Wa ho. mossexualidade masculina — sendo esta a pressuposicao erética do dis curso hegeménico, a “homo-sexualidade” que nos sugere Irigaray. Em qualquer caso, Riviere nos faria considerar que tais mulheres mmanté uma identificag3o masculina nao para ocupar uma posigdo na imvera “to a mas a0 invés disso, para dar continuidade auma tivalidade wwe ae objeto sexual ou, pelo menos, que nao tem nenhum que ela 7 texto de Riviere oferece uma maneira de reconsiderar a ques- (0: 0 que é mascarado pela mascarada? Numa passagem-chave ue Marca seu afastamento da andlise restrita demarcada pelo sistema ls sificatdrio de Jones, ela Sugere que a “mascarada” é mais do que oma caracteristica do “tipo intermedidrio” ira edidrio”, que é central pa “ _ minilidade”; 4 Para toda “fe 85 A A PROIBIGAO, PSICANALISE E A PRODUCAO DA MATRIZ HETEROSSEXUAL O leitor pode agora perguntar como defino a feminilidade, ou ae nd i i “4 7 inha beleco a fronteira entre a feminilidade genuina e a imascarada’ ne sugestao, contudo, é que nao ha tal diferenga; radicais ou superficiais, elas sdo a mesma coisa. (38) Essa recusa a postular uma feminilidade anterior ao nee s a mascara € retomada por Stephen Heath no artigo “Joan Riviere - the Mascarade”, como comprovagao da nog4o de que a “feminilida de an téntica € este mimetismo, é a mascarada”. Abragando a postulagao d ‘A libido como masculina, Heath conclui que a feminilidade éa ty dessa libido, a “dissimulagio de uma masculinidade fundamenta 7 A feminilidade torna-se uma mAscara que domina/resolve umai i tificagéo masculina, pois a identificagao masculina produz, na a matriz heterossexual do desejo, um desejo pelo objeto ewes ° ai conseqiientemente, portar a femini dade como miscara pode re’ a uma recusa da homossexualidade feminina; €, aO mesmo. rae I corporagao hiperbélica desse Outro feminino que é ne lo aa a peculiar de preservar e proteger esse amor no circulo le narc 4 melancélico e negativo que resulta da inculca psiquica da heterossexu: i Is6ria. j ees possivel de Riviere € que ela tem medo de seu ss falicismo*5 — isto é, da identidade falica que se arrisca a revelar ao longo de seu texto, de sua escrita, a rigor, da escrita do falicismo que sev prdprio ensaio oculta e expressa. Contudo, o que ela busca negar e expressa a0 om nar-se © objeto que ela mesma se profbe de amar pode ser menos = pre f pria identidade masculina do que o desejo masculino heterossexua ne sua assinatura. Essa é a condigéo produzida por uma matriz que exp! i” todo desejo de mulheres, por parte de sujeitos de qualquer ee género, como origindrio de uma posigao masculina, heterosexual. A lil eae masculino é a fonte de que brota, presumivelmente, toda sexualidade po: i 26 Sa a tipologia do género e da sexualidade precisa dar oe , plicagdo discursiva da produgao cultural do género. Se o anal isan Riviere € um homossexual sem homossexualidade, talvez seja porq 86 €Mm suas partes componentes. Num sentido, cultura coloca-se como a bissexualidade pré. familiaridade heterosexual por via de seu ad 9 comego, contudo, PROBLEMAS DE GENERO €ssa opcao jd € recusada a ela; a existéncia cultural dessa Proibigao esta no espaco da conferéncia, determinando e diferenciando sua Posigéo de oradora € sua platéia Principalmente masculina, Embora tema que seu desejo castrador Possa ser percebido, ela nega a existéncia de uma com- petic¢ao em torno de um objeto comum de desejo, sem 0 qual faltarja confirmacio e signo essencial 3 identificagao masculina gue ela reconhe- ce. Ora, sua explicagao Pressup6e a primazia da agressio sobre a sexua- lidade, 0 desejo de castrar e tomar o lugar do sujeito masculino, um desejo admitidamente enraizado numa rivalidade, mas que, para ela, se exaure no ato de deslocamento. Mas seria util formular a questio: a que fantasia sexual serve essa agressao, € que sexualidade autoriza ela? Ainda que 0 direito de ocupar a Posicdo de usuario da linguagem sejao objetivo aparente da agressao do analisando, podemos Perguntar se nao hd um reptidio do feminino, que Prepara essa posicéo no interior do discurso € ressurge invariavelmente como 0 Outro-Félico que confirmara fanta- sisticamente a autoridade do sujeito falante. Podemos entao repensar as proprias nogoes de masculinidade e fe- minilidade, entendidas aqui como enraizadas em investimentos homos- sexuais nao resolvidos. A recusa/dominagio melancélica da homosse- xualidade culmina na incorporacao do objeto do desejo do mesmo sexo € ressurge na construgao de “naturezas” sexuais distintas, as que exigem ¢ instituem seus opostos por exclusio. Ainda assim, presumir a Primazia da bissexualidade ou a caracteriza¢ao priméria da libido como masculina no explica a construgdo dessas varias “primazias”. Algumas explicagdes psicanaliticas argumentam que a feminilidade baseia-se na exclusao do masculino, sendo o masculino uma “parte” da composicao Psiquica bis- sexual. Supée-se a coexisténcia desse binario, e entdo intercedem 0 re- calcamento ea exclusio, para fabricar, a partir dele, identidades de ge- nero distintas, com 0 resultado de que a identidade é sempre jé inerente auma disposigao bissexual que, por meio do recalcamento, é separada a restrigao bindria sobre a -cultural que se divide na vento na “cultura”. Desde a restrigao binaria a sexualidade mostra claramente 87 PROIBIGAO, PSICANALISE E A PRODUGAO DA MATRIZ HETEROSSEXUAL que a cultura nao é de modo algum posterior & bissexualidade que ela supostamente reprime: ela constitui a matriz de inteligibilidade pela qual a prpria bissexualidade priméria se torna pensdvel. A “bissexualidade” postulada como fundagao psiquica, ¢ que se diz ser recalcada numa data posterior, € uma produgdo discursiva que afirma ser anterior a todo discurso, levada a efeito mediante praticas excludentes compulsérias € geradoras de uma heterossexualidade normativa. “© centro do discurso lacaniano € a nogéo de “cisao”, uma cisao pri- méaria ow fundamental que torna 0 sujeito internamente dividido e esta- belece a dualidade dos sexos. Mas por que este foco exclusivo na divisao em dois? Em termos lacanianos, a cis4o sempre aparenta ser 0 efeito da lei, e nao uma condigio preexistente sobre a quala lei atuaria. Jacqueline Rose escreve que, “em ambos os sexos, a sexualidade diré necessaria~ mente respeito a duplicidade que mina sua cis’o fundamental””’, suge- rindo que a diviséo sexual, efetuada através do recalcamento, € invaria- velmente minada pelo proprio ardil da identidade. Mas n4o se trataria af de uma duplicidade pré-discursiva a minar a postura univoca de cada posicgio no campo da diferenga sexual? Rose escreve convincentemente que, “para Lacan, como vimos, nao ha realidade pré-discursiva (‘Como voltar a uma realidade pré-discursiva senao através de um discurso es- pecial?” SXX, p. 33), nao ha lugar anterior A lei que esteja disponivel € possa ser recuperado”. Numa critica indireta aos esforgos de Irigaray de marcar um lugar para a escrita feminina fora da economia falica, Rose ~ acrescenta: “E n3o hé feminino fora da linguagem.”?8 Se a proibigao cria a “cisao fundamental” da sexualidade, e se essa “cisio” mostra-se dubia exatamente por causa do artificialismo dessa divisio, entao deve haver uma divisao que resista & divisio, uma duplicidade psfquica ou uma» bissexualidade intrinseca que mina todo e qualquer esforgo de separa- cao. Considerar essa duplicidade psiquica como o efeito da Lei € 0 ob- jetivo declarado de Lacan, mas € igualmente o ponto de resisténcia em _ sua teoria. : Sem divida, Rose est certa ao afirmar que toda identificagao, pr cisamente por ter uma fantasia como ideal, esta fadada ao fracasso. Qualquer teoria psicanalitica que preceitue um processo de desenvolvi- 88 PROBLEMAS DE GENERO mento que pressuponha a realizagao de uma dada identificagao pai-filho ou mae-filha funde erroneamente o Simb6lico com o real, e perde de vista o ponto critico de incomensurabilidade que expGe a “identificacao” eo drama de “ser” ¢ de “ter” o Falo como invariavelmente fantasistico.?” Contudo, o que determina o dominio do fantasfstico, as regras que re- gulam a incomensurabilidade do Simb6lico com 0 real? Claro, nao basta afirmar que esse drama diz respeito aos habitantes dos lares do capita- lismo ocidental recente e que, talvez, em uma €poca ainda a ser definida, algum outro regime simbélico ira governas a linguagem da ontologia sexual. Ao instituir o simbélico como invariavelmente fantasistico, a “invariabilidade” acaba se modificando em “inevitabilidade”, gerando uma descricdo da sexualidade cujos termos promovem um resultado de estase cultural. A interpretacao de Lacan, que compreende o pré-discursivo como uma impossibilidade, indica uma critica que conceitua a Lei como proi- bitiva e generativa ao mesmo tempo. O fato de a linguagem da fisiologia ou de predisposigao nao se manifestar aqui € alvissareiro, mas h4 que notar que as restrigdes bindrias continuam a operar no sentido de estru- rar € formular a sexualidade, e delimitar de antemAo as formas de sua resisténcia ao “real”. Ao demarcar o préprio dominio do que estd sujeito ao recalcamento, a exclusao opera antes do recalcamento — isto é, na delimitagdo da Lei ¢ de seus objetos de subordinacao. Embora seja pos- sivel argumentar que, para Lacan, o recalcamento cria 0 recalcado me- diante a lei proibitiva e paterna, este argumento nao explica a nostalgia da plenitude perdida do gozo que permeia seu trabalho. Ora, a perda nao poderia ser compreendida como perda, a menos que a propria irre- cuperabilidade do prazer em quest4o nao designasse um passado barra- do do presente pela lei interditora. O fato de que nao possamos conhecer esse passado a partir da posigdo do sujeito fundado nao quer dizer que ele nfo ressurja no discurso deste sujeito como félure, descontinuidade ou deslizamento metonimico. Assim como a realidade numenal mais verdadeira de Kant, o passado pré-juridico do gozo € incognoscivel a partir do interior da lingua falada; isso nao quer dizer, todavia, que esse passado nao tenha realidade. A propria inacessibilidade do passado, in- 89 PROIBIGAO, PSICANALISE E A PRODUGAO DA MATRIZ HETEROSSEXUAL PROBLEMAS DE GENERO dicada pelo deslizamento metonimico no discurso contemporaneo, con- firma essa plenitude original como realidade ultima. Emerge uma outra questdo: que credibilidade pode ser dada a uma explicago do Simbélico que exige conformidade a uma lei que se mostra impossivel de cumprir € que nao abre, para si mesma, nenhum espago de flexibilidade, para sua reformulagdo cultural em formas de maior plasticidade? A injuncao de tornar-se sexuado nos modos prescritos pelo Simbélico leva sempre ao fracasso e, em alguns casos, 4 revelagao da natureza fantasistica da propria identidade sexual. A afirmagao do Sim- bélico como inteligibilidade cultural em sua forma presente e hegem6- nica consolida efetivamente 0 poder dessas fantasias, bem como dos va- rios dramas dos fracassos da identificagao. A alternativa nao € sugerir que a identificagao deva tornar-se uma realizagéo vidvel. Mas o que parece realmente acontecer € uma romantizagéo ou mesmo uma ideali- zacdo religiosa do “fracasso”, uma humildade e limitagao diante da Lei, © que torna a narrativa de Lacan ideologicamente suspeita. A dialética entre 0 imperativo jurfdico que nao pode ser cumprido e o fracasso inevitavel “diante da lei” evoca a relagdo torturada entre 0 Deus do Velho Testamento e seus humildes servos, que lhe oferecem obediéncia sem pedir recompensa. Essa sexualidade incorpora hoje esse impulso religioso, sob a forma de uma demanda de amor (considerada “absolu~ ta”) que se diferencia tanto da necessidade como do desejo (numa espé- cie de transcendéncia extatica que eclipsa a sexualidade de modo geral) € que empresta credibilidade ao Simbélico, como aquilo que funciona, para os sujeitos humanos, como uma divindade inacessivel mas deter- minante. 1 Essa estrutura de tragédia religiosa na teoria lacaniana mina efeti- vamente qualquer estratégia de politica cultural para configurar uma alternativa imagindria para 0 jogo dos desejos. Se o Simbélico garante o fracasso das tarefas que ele ordena, talvez seus propésitos, como os do Deus do Velho Testamento, sejam inteiramente nao teleolégicos — nao a realizacao de algum objetivo, mas obediéncia e sofrimento, para impor ao “sujeito” o sentido de sua limitagao “diante da lei”. Ha, é claro. o lado cémico desse drama, 0 qual é revelado pela descoberta da impos- sibilidade permanente da realizacao da identidade. Mas até essa comédia € a expressao inversa de uma escravizagao ao Deus que ela afirma ser incapaz de superar, A teoria lacaniana deve ser compreendida como uma espécie de “moral do escravo”. Mas como seria reformulada apés a apropriagao do insight de Nietzsche, em Sobre a genealogia da moral, de que Deus, 0 Simbélico inacessivel, é tornado inacessivel por um poder (a vonrade de poder) que institui regularmente sua propria impoténcia?3° Essa repre- sentagao da lei paterna como autoridade inevitavel e incognoscive] dian- te da qual o sujeito sexuado estd fadado a fracassar 6 na verdade o im- Pulso teoldgico que a motiva, bem comoa critica da teologia que aponta para além desse marco. A construgao da lei que garante o fracasso € sintomatica de uma moral do escravo, que renega os préprios poderes Senerativos que usa para construir a “Lei” como impossibilidade perma- nente. Que poder cria essa ficgdo que reflete a sujeigéo inevitavel? Qual © interesse cultural de conservar o poder nesse circulo de abnegacao, e como resgatar esse poder das armadilhas de uma lei proibitiva que é esse poder em sua dissimulagao e auto-sujeic¢ao? 3. FREUD E A MELANCOLIA DO GENERO Ainda que Irigaray mantenha que a estrutura da feminilidade e da me- Jancolia “se reiterem mutuamente”3!, e que, em “Motherhood Accor- ding to Bellini” e em Soleil noir: Dépression et mélancolie??, Kristeva identifique a maternidade com a melancolia, poucos foram os esforgos compreender a negacdo/preservagao melancélica da homossexua- idade na produgao do género no interior da estrurura heterossexual, ‘reud isola o mecanismo da melancolia, caracterizando-o como essen- 1 “formacao do ego” e do “cardter”, mas s6 faz mengao indireta a ntralidade da melancolia no género. Em O ego € 0 id (1923), ele dis- re sobre o luto como estrutura incipiente da formacao do ego, tese JOS rastos podem ser encontrados no ensaio de 1917 “Luto-e melan- 90 A OSSEXUAL PROIBIGAO, PSICANALISE & & pRODUCAO DA MATRIZ HETER ve colia”.33 Na experiéncia de perder um outro ser humane naan menta Freud, 0 ego incorpora esse outro em sua prope 8 cok sumindo atributos do outro € “preservando-© Per mei ean de imitagao. A perda do outro desejado e ama es s era & men specifico de identificagao, ato este que busca : na wor on rrutura do ew: “Assim, refugiando-se no ego, © amor escap i. ool fo” (178) Essa identificagao nao € meramente Ore saocasi . |, mas se torna uma nova estrutura da identidade; com efen y Sain arte do ego através da internalizagao permanente le ‘ eau boat Nos casos em que uma relagao ambivalente € interrom- q ide aera essa ambivaléncia € internalizada como uma predispo: . ‘i se atoeritica ou autodepreciativa, em que ° Papel ée our me me ser ocupado ¢ dirigido pelo proprio ego: “A idence 3 scion scan oooecar do ct ote wo 2 adn nto € preciso abrir mao da do conflito com a Pp! , 40 ‘ aecke amare.” (170) Freud esclarece, posteriorment’z ae 0 de internalizagao € preservagao dos amores pert i ; formagao do ego e de sua “escolba de objeto”. eso Em O ego ¢ 0 id, Freud refere-se a esse proc descrito em “Luto € Melancolia” e observas de internalizaca (...) conseguimos explicar 0 doloroso distirbio we melensoli ee * “7 0 sii por wa ei isto é investimento no 0 uma Sana epoca, conta nao apreciamos plenamente “ sonic a rocesso € no soubemos 0 quanto era comum e tipico. Des scat vreendemos que esse tipo de substituigao tem grande peso na da forma assumida pelo ego, ¢ que dé uma cone construcao daquilo a que se chama seu “carater”. (18) igo essencial para | “ ego (ideal | Na seqiiéncia deste capitulo sobre “O ego € © super Bi 7 “a go)”, contudo, vemos que nao € meramente O cara ane ane descr ‘ isiga identidade do g¢ . ima 1 i igualmente a aquisigao de v! lad ner me ficagdo seja a inica condicao $ descrito, afirmar que “€ possive | que essa iden 92 PROBLEMAS DE GENERO a qual o id pode abrir mao de seus objetos”, Freud sugere que a estratégia de internalizacio da melancolia nao se opde ao trabalho do luto, mas pode ser 0 tinico carinho em que o ego pode sobreviver a perda de seus Jagos afetivos essenci is com o outro. Freud afirma entéo que “o carater do ego é um precipitado de investimentos objetais abandonados e con- tém a histéria dessas escolhas de objeto”. (19) Esse processo de interna- lizagio de amores perdidos se torna pertinente a formagao do género quando compreendemos que o tabu do incesto, entre outras fungées, inicia, para 0 ego, a perda de um objeto de amor, e que esse ego se re- cupera dessa perda mediante a internalizacao do objeto tabu do desejo. No caso de uma unido heterossexual proibida, é 0 objeto que é negado, mas nao a modalidade de desejo, de modo que o desejo € desviado desse objeto para outros objetos do sexo oposto. Mas no caso de uma uniao homossexual proibida, é claro que tanto 0 desejo como o objeto reque- rem uma renuncia e, assim, se tornam sujeitos as estratégias de interna- lizagio da melancolia. Conseqiientemente, “o menino lida com seu pai identificando-se com ele”. (21) Na formagao inicial da identificagio menino-pai, Freud especula que a identificag4o ocorre sem 0 investimentio objetal anterior, (21) 0 que significa que a identificagéo em quest4o nao é a conseqiiéncia de um amor perdido ou proibido do filho pelo pai. Posteriormente, contu- do, Freud postula a bissexualidade primaria como fator complicador do processo de formagao do carater e do género. Com a postulagao de um conjunto de disposigdes bissexuais da libido, nao hd razao para negar 0 amor sexual original do filho pelo pai, mas Freud implicitamente o faz. O menino mantém, todavia, um investimento primario na m4e, e Freud observa que a bissexualidade manifesta-se no comportamento masculino ¢ feminino com que o menino tenta seduzir a mae. Embora Freud introduza 0 complexo de Edipo para explicar porque menino precisa repudiar a mée ¢ adotar uma atitude ambivalente em ‘lagdo ao pai, observa logo a seguir que “é até possivel que a ambivaléncia relages com os pais deva ser inteiramente atribuida a bissexualidade, “que nao se desenvolva, como indiquei acima, a partir da identificagao conseqiiéncia da rivalidade”. (23, n.1) Mas 0 que condicionaria a am- 33

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