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AHISTORIA NOVA JACQUES LE GOFF Assiste-se, nos tiltimos vinte anos, a uma profunda re- novagio do dominio cientifico. Nao s6 a maioria das cién- sias manifesta aquela aceleragao da hist6ria que se tomou de letras e ciéncias humanas), 0% segun- o 0 uso anglo-saxio.Trés fendmenos assinalam essa emer gencia de um novo campo do saber La afitmacao de ciéncias, seja francamente novas, seja surgidas ha varias décadas, mas que atravessam en miar d x JACQUES LE GOFF (0) tagio essa que se manifesta, em geral, pela adjuncéo do epi- teto “novo” ou “modern”: lingiistica moderna, new econo ic history, sendo que 0 exemplo mais relevante, o da ma- temética moderna, situa-se fora do dominio das ciéncias humanas; inaridade, que se traduz no surgimento fas ciéncias num subs- tantivo e num epiteto: histéria sociolégica, demografia hists- rica, antropologia hist6rica; ou criam um neologismo hibri~ do: psicolin; , etno-hist6ria, etc. Essa interdisciplinari dade chegou a dar nascimento ac ue transgridem as fronteiras entre ciéncias humanas e ciéncias da natureza ou s: matemética social, psicofisiologia, etno-psiquia ogia, ete tria, soci O LUGAR ORIGINAL DA HISTORIA Nesse campo renovado, uma ciéncia ocupa uma posi- sao originalya historia. Hé uma histéria nova, e um de seus pioneiros, Henri Bert, jd empregava o termo em 1930. A historia deve esse lugar original a duas caracteristicas es senciais: sua renovacao integral e o arraigamento de sua mu- tagdo em tradiges antigas e sélidas, Muitas ciéncias mo- dernizaram-se num setor particular de seu dominio, sem que Por isso todo 0 seu campo fosse modificado, Assim, a geografia foi uma das primeiras ciéncias humanas a se re- avar gracas ao desenvolvimento da geografia humana. De- pois de Vidal de la Blache, Jean Brunhes (1869-1930), Albert Demangeon (1872-1940) e Jules Sion (1878-1940) foram os promotores de uma geografia ciéneia humana, ciéncia dos p19, om que o ade dda New Histo, langada em 1912 cos fos, esobretuda.aH.E, Barnes, que publcou em 1919 Psychology resentou 0 movimento em The New Histo Soca ‘A tISTORUA NOVA m homens, tal como a histéria nova se alirm. cio. A influéncia desses gedgrafos sobre t6ria nova, Lucien Eebvre, Mare Bloch (cuja “direcdo de estud Hautes Etudes “histdria geografica”), va ser citado aqui. Lik essa alianca ci exemplo na Albert Demangeon’, onde gindo que 0 gedgrafo “saiba 0 oficio de historiador” ¢ afi mando que “ele precisa pensar como historiador tanto quanto como gedgrafo”, ou na comemoragao de Marc Bl a propésito de quem declara: “... como muitos dentre nés, coetineos seus ou mais velhos, ele sofrera fortemente a in fluéncia dessa geografia que um mestre poderoso e enpe- nhoso..., Vidal de la Blache, acabava de promover a disc na nutriz”. Lucien Febyre que, em A Terra e a cvolucao hu ‘mana, introducio geogréfica a hist6ria, abre & historia nova a busca simultanea do espaco e do tempo, que um Maurice Lombard, por exemplo, initoduzira na historia do mundo mugulmano’ Daf a importincia da cartografia par a histéria novi grande produtora e consumidora de mapas, nao cl ples mapas de orientagdo ou de ilustragao, mas de de pesqutisa e de explicacao, just longa duracdo inscrita no espag nada nas localizagies) ¢ de hip 1940), 1948 (op M das pelas correlagdes entre fendmenos nas reas confun. didas ou discordantes. Mas trata-se de um questionamen- to pela historia de uma geogratia despojada de tado e qual quer determinismo, Em As caracteristicas originais da hi ria rural francesa’, Marc Bloch sempre mostrou a histéria em agao na modelagem das paisagens e dos sistemas de cultura. © hocage* ndo € produto do solo, mas criagao dos homens. ‘Toda forma de hist6ria nova é uma tentativa de histéria total ia no se contentow com abrir aqui novos setores para si, Claro, um re Goubert abre para a histéria nova 0 campo da de~ mografia histérica, o enfoque, desde o nascimento até a morte, de todos os individuos, de todas as familias de uma regio durante um século’, gragas a investigacao dos regis tros paroquiais. Claro, um Natan Wachtel, com A vise dos vencidos', modelo ¢ obra-prima da histéria nova, dilata ‘essa historia as dimensdes sem fronteiras da etno-histéria. Contudo, a histéria nova nao se contenta com esses avan. (gos! Ela se aficma como histéria global, total, ¢ reivindica a Tenovagio de todo o campo da historia, Aliés, de uma ma- neira ou de outta, as obras pioneiras num setor da histéria nova afirmam sua ambigao para além de toda e qualquer froncase (Paes A, ygem do Oeste da Franga,em que os campos de cultura eo nt arvoredas eas agendas, dsperss. (N.dOT.) 11730 (Pais, SEVPEN, 1980), eet ren XVI stele is, Fara marian, 1968), HN Wchtl La wr des Astonia Nov 120388 e Wachtel co Hom qu de é estudada e apresentada, Desse ponto taillow, aldeia da Occitinia, de 1294 a 1324, de Emmanuel Roy Laduric’, obra-prima da antropologia histérica, mani festa patentemente o desejo totalizador da histéria nova, que 0 termo de antropologia histérica, substitute dilatado da historia, sem diivida exprime melhor. Toda forma de t6ria nova ~ ou que se faz passar por nova ~ @ que se colo- ca sob a bandeira de uma etiqueta aparentemente parcial ou setorial, quer se trate da histéria socioldgica de Paul Vey- ne", quer da histéria psicanalitica de Alain Besancon’ é, na verdade, uma tentativa de historia total, hipétese global de explicagao das sociedades grega e romana da Antiguidade, ou da Rtissia do século XIX e mesmo do século XX. Ja a propésito do titulo dos Annales éeonomni~ que et sociale [Anais de histéria econdmica e social], fund: dos om 1929, Lucien Febvre deveria dizer que os dois epi- tetos, notadamente o de “social”, tinham sido escolhidos por Mare Bloch e por ele proprio em razao de seu caréter vvago que englobava toda a histéria: “Sabemos muito bem que ‘social’, em particular, & um desses adjetivos a que se fi- zeram dizer muitas coisas no decorrer do tempo, a tal pon- to que por fim ja nao quer dizer quase nada [...]. Concorda- ‘vamos em pensar que, precisamente, uma palavra t80 vage ‘quanto ‘social’ parecia ter sido criada e posta no mundo por um decreto nominativo da Providéncia histérica para servir de emblema a uma revista que pretendia nao se rodear de muralhas... Nao ha hist6ria econdmica ¢ social. Hé a h 36 JACQUES LE GOFF (Ong) es em sua unidade. A historia que é toda so- ria puraesi cial, por definicéo. A hist6ria nova ampliou 0 campo do documento histérico ‘A segunda originalidade da histéria nova est4, de fato, em se basear numa longa e sélida tradicio. A histéria nova nasceu em grande parte de uma revolta contra a historia positivista do século XIX, tal como havia sido definida pe algumas obras metodolgicas por volta de 1900. No ‘uma parte das conquistas técnicas do método positi dria permanece valida, Foi Marc Bloch quem do sem algumn exagero, a propésito de Don Ma- que ia triunfar no século XIX le des chartes [Escola de paleografia}, durante um bastido, no século XX, da histéria tradicio- nal: “Naquele ano ~ 1681, ano da publicagio do De Re Di plomatica, na verdade uma grande data na histéria do espi rito humano a critica dos documentos de arquivos foi de- finitivamente fundada.”* A histéria nova ampliou 0 campo do documento histérico; ela substituiu a histéria de Lan- glois e Seignobos, fundada essencialmente nos textos, no documento escrito, por uma histéria baseada numa mul plicidade de documentos: escritos de todos 0s tipos, docu- mentos figurados, produtos de escavagdes arquealigicas, documentos orais, etc. Uma estatistica, uma curva de pre- “Vive Phistose, conterincia para os alunos da Bsale Normale Supérieure em 1941, publcada em mand Colin, 1953), pp. 19-20. 1. er sobeetudo as obras de C. Seino A HISTORIA NOVA ” ‘¢05, uma fotografia, um filme, ou, para um passado mais dis- tante, um polen féssil) uma ferramenta, um ex-voto so, para a histéria nova, documentos de primeira ordem'. En- tretanto, 05 métodos de critica desses dacumentos novos calcaram-se mais ou menos nos métodos aperfeigoados pela erudigao dos séculos XVII, XVIII e XIX. Recenternente, uma obra Sobre A hist6ria e seus métodos, dirigida por um. dos mestres formados pela Ecole des chartes, Charles Sa- maran”, justapunha sem contlitos exposigdes sobre os mé- todos tradicionais da histéria ¢ ensaios sobre algumas orien- tages novas da histéria”, A hist6ria vive hoje uma “revolugdo documental” que mantém com a historia nova relagdes ambiguas, de que tor- narei a falar. Uma nova concepcao do documento e da cri- fica que dele deve ser feita ser apenas esbogada, como tentei fazer na Enciclopedia Einaudi. ‘A histéria desfruta tanto dessa conquista metodolégi- ca como de sua base universitaria, Melhor que as outras ciéncias humanas — entre as humanidades que no conse- guem se renovar e as ciéncias novas que encontram di mente a sua identidade -, a histéria, cujos profissionais dis- poem de uma bagagem sélida e de uma formacio que, muito embora seja pouco penetrada pelo espirito da hist6 ia nova e nao favoreca o exercicio da inteligéncia (por exemplo, 0 concurso pata professor do secundario), pro- porciona uma base institucional firme e pode, apoiando-se ler Lien bats por M ‘em sua longa tradigéo, voltar-se para navos horizontes, ten- do, se ouso dizer, sua retaguarda bem protegida Em sua célebre conferéncia de Manchester em 1961, 0 grande etnélogo inglés Evans-Pritchard pedia aos antropé- Jogos que aprendessem com os historiadores, em particular por causa da experiéncia destes na etitica dos documentos © na percepgao do tempo e da mudanga” NASCIMENTO DA HISTORIA NOVA: “ESCOLA DOS ANNALES” Sobretudo, a histéria nova ji tem uma tradigao pré- pria, ack ram om Estrasburgo, em 1929, uma revista que retomava, modificado, um velho projeto de Lucien Febvre de uma re. nacional de histéria econdmica que abortara, suas motivagdes eram de vérias ordens. Antes de tudo, tirar a historia do marasmo da rotina, em primeiro lugar de seu confinamento em barreiras estri tamente disciplinares, era o que Lucien Febvre chamava, em 11932, de “derrubar as vethas paredes antiquadas, os amon- toads babilbnicos de preconceitos, rotinas, erros de con, cepgao e de compreensao Depois, o desejo de afirmar duas disegGes inovadoras, expressas pelos dois epitetos do titulo da revista: historia a I". Com 0 econdmico, tratava-se de “ecandimica” & “so. promover um dor pela historia tradicional, em que ingleses e alemaes haviam passado & frente dos franceses e cuja importancia na vida 19. Evans-Prtchard, Aniropolog » das nagdes e dos povos se acentuava cada dia mais. Nao ¢ por -acaso que os Annales tascem em 1929, 0 ano da grande cri se. O historiador vivo que Lucien Febvre e Marc Bloch sem diivida mais admiravam era Henri Buenng, a quem Lucien Febvre pensara confiat a diregao da revista internacional ¢ a cuja meméria Marc Bloch dedicara, em 1940, um projeto logo abandonado de “Histéria da sociedade francesa no Ambito da civilizacéo curopéia”. Assim agindo, é verdade, Mare Bloch movia-se tanto pelas circunstancias quanto pela admiragio que tinha por Pirenne. De fato, este havia com- posto na prisio, durante a guerra de 1914-1918, uma Histé- ria da Europa", enquanto, durante a dréle de guerre, Mare Bloch se entediava. Como nao pensar em Fernand Braudel que ia elaborar, entre 1940 e 1924, num campo de p neiros alemao, O Mediterraneo e 0 mundo mediterrineo na ‘p0ea de Filipe I1*? Na revista alema Vierteljahreschrift fir So- ial und Wirtschafisgeschichte [Revista trimestral de historia social e econdmical, 0s fundadores dos Annales encontra vam nao apenas o acento posto no econdmico, como tam- bem no social, aquele social que os seduzira por seu card- ter vago que permitia falar de tudo. Porque se tratava de saltar os muros, derrubar as divis6es que separavam a his t6ria das ciéncias vizinhas, especialmente da sociologia. Sob a etiqueta de social, Lucien Febvre e Marc Bloch encon- travam a inspiracao sem fronteiras da Reoue de synthese his orique ¢ do diretor desta, seu amigo Henri Ber, que blicara em 1921 A histéria iradicional e a sfntese histérica”, bem como a perspectiva comparatista, admirando a ma- neira como Henri Pirenne dela falara, em sua comunica sao sobre “O métode comparativo em histéria”, apresen 40 JACQUES LE GOFE Ong ‘tada na seco de abertura doV Congreso Internacional de Ciéncias Histéricas, em 9 de abril de 1923. Como esereverd Marc Bloch em sua Apologia da histéria ou Ofici de historia- dor: “A tinica historia verdadeira, que s6 pode ser feita por ajuda mitua, é a histéria universal.”* Uma luta contra a histéria politica De 1924 a 1939, qual foi o combate dos Annales*? Primeiro, a luta contra a histdria politica, a pedra no sapato de Lucien Febvre e Marc Bloch, sobretudo sob sua modelo magante era, para eles, 0 ngeira, de Emile Bourgeois (1892). Essa histria politica que é, por um lado, uma historia-nar- rativa e, por outro, uma hi historia fatual, teatro de aparéncias que mascara o verda- deiro jogo da histéria, que se desenrola nos bastidores nas estruturas ocultas em que & preciso ir detecta-lo, anal sé-lo, explicd-lo, Em 1931, na Reoue de synthese, para a qual continua colaborando paralelamente aos Annales, Lucien Febvre, interrogando-se sob 0 titulo “Hist6ria ou politica?” sobre 0 valor de uma Histéria diplomatica da Europa recen- temente publicada, recusa a busca dos “motivos reais, pro- fundos e miiltiplos” dos “grandes movimentos de massa” ino humor, na psicologia e nos caprichos individuais dos “grandes” ou no “jogo contraditério de diplomacias tiv. Os verdadeiros motives, “ha motivos geogréficos; hé mot vos econdmicos, sociais também, ¢ intelectuais, religiosos ¢ psicolégicos”™. 4 Quinze anos mais tardo, Lucien Eebvre, retomando © mesmo combate, resenha nos Annales outra obra, A piz ar- mada (1871-1914) e pesca esta frase: “Os pattidatios do materialismo historico sempre procuram aumentar 0 papel dos fatores econdmicos nos contftos internacionais em de- trimento dos fatores politicos e morais.” Ele comenta, com sua pugnacidade habitual: “Deus do céu! Que vem fazer aqui o ‘materialismo hist6rico’? [..] O mundo é mundo. Di- zem-nos: antes da guerra de 1914, ele jd ndo era exatamen- te 0 que se tornou de 1920 a 1940, Mas de 1871 a 1914 ele jd nao era 0 que fora de 1848 a 1870. Por qué? Por razdes po- cas? Ou morais? Absolutamente! Por razdes econdmi- No mesmo estuido, fazendo alusao ao livro péstumo de Mare Bloch, A estranha derrota, ele faz este diagndstico: “A derrota da Franca foi, antes de mais nada, uma derrota da inteligéncia e do carter.” ‘A posigdo e a acdo dos Annales, com sua fecundidade e seus limites, pode ser apreendida nessas citagdes. Recusar a historia superficial e simplista que se detém na superficie dos acontecimentos ¢ investe tudo num fator. E também, pa- rece-me, a fraqueza de uma anélise demasiado eclética, que pode se perder na “multiplicidade dos motives”, que nao distingue entre motivo e causa. O essencial, no entanto, é ‘esse apelo a uma histstia profunda e total. Primeiro quebrar essa historia pobre, solidificada, com a aparéncia engana- dora de pseudo-histéria Uma critica da nogio de fato histérico E tambérn momento em que os Am 2 JACQUES LE GOFE (Og) riador. Como todo homem d pressio de Marc Bl cia, este, conforme a ex ante da imensa e confusa realidade”, fazer a “sua opgao” — 0 que, evidentemente, nao significa nem arbitrariedade, nem simples coleta, mas sim construgdo cientifica do documento cuja andlise deve tar a reconstituicdo ou a explicacao do pasado. Lucien Febvre, em sua aula inaugural no College de Fran, ce (1933), da um exemplo: “... porque onde pegariamos 0 ato em si, este pretenso dtomo da histéria? O assassinato de Henrique IV por Ravaillac, um fato? Se o analisarmos, se ‘o decompusermos em seus eleme: ias particulares de tempo e lugar, enfim, de citcunstin proprias a cada in idos ou ignorados, que representam um papel na tragédia, quao répido vere- ., decompor-se, dissociat-se um complexo ‘emaranhado... Algo dado? Nao, algo criado pelo historia- dor, quantas vezes? Algo inventado e construido, com aju- da de hipsteses e conjeturas, por um trabalho delicado ¢ apaixonante.”* Os Anais. Economnias. Socie ides. Civilizagdes Depois da Segunda Guerra Mundial, os Anuales ¢ os historiadores que gravitam em torno deles continuam, de- pois reavivam ¢ fazem a histéria nova progredir de novo. A revista, que precisou mudar vérias vezes de nome pot causa das condigdes da guerra e da ocupagao alemé, tem 8 partir de 1946 um novo titulo, que assinala a ampliacio de seus horizontes. £, desde entdo, Annales. Economies. So- iets. Civilisations (Anais. Economias. Sociedades. Civil zagbes]. Primeizo, o plural: “os homens, nao o Home” = ‘essa abstracdo, sempre repetiram, Lucien Febvre e Marc 24.1 eben Combats pur, revop-ct, p 7 Blach. Depois, ao lado das economias ¢ das sociedades que recordam os epitetos dos antigos Annal do termo “civilizagoes", tial ao espiritual, Lucien Febvre e Marc Bloch (que morrew em 1944, fuzilado pelos alemaes, mas continua presente em espirito) sempre apreciaram. E Marc Blach em seu tes- tamento metodol6gico, recordando Guizot, justifica de an- temo esse emprego — no plural - de civilizagdes: “Reco. Nhecemos que, numa sociedade, qualquer que seja, tudo se liga e se comanda mutuamente: a estrutura po a economia, as crencas, as manifestagdes mais clementares e mais sutis da mentalidade.”* A escola dos Annales e a concepcao de Toynbee Permitam-me, a propésito de civilizagio, uma suma- ria preciso sobre o emprego deste termo pelos mestres dos Anmales. A palavra lhes agrada, como acabamos de ver. Contudo, eles nao dissimulam os perigos que ela contém. Fazem questao, em particular, de demarca-la da concepgao de Arnold Taynbee*, que distingue desde o inicio da huma- nidade 21 eivlizagées, vé todas elas passarem por trés fa- ses sucessivas, de génese, maturidade e declinio, de acordo com uma lei de challenge and response, capacidade de res ponder aos estimulos externos e internos. Vocabulério e pen- samento vagos que assimilam abusivamente “sociedade” (nem todas, é clato, pois Toynbee conta 650 sociedades pri mitivas que nao atingiram 0 nivel de “eivilizagéo”) a “civi- a 4 JACQUES LE GOFF Omg) lizagéo", emprego sem discernimento de um método com- Parativo grosseiro, baseado em intimeros anacronismos, re. cursos a metéforas e a um pensamento “vitalista”, que data “de ontem, sendo de anteontem’, arbitrariedade de uma di- izagdes “em ntimero definido” e, por fim, duas as maiores: de um lado, uma hist6ria ilusionista, de pres tidigitador, que faz as civilizagdes desfilarem “como os qua- dros de um melodrama’; de outro, uma filosofia da ria, nao uma histéria cientifica. Lucien Febvre conclu, um pouco maivadamente, que a historia, de acordo com Toynbee, pode ser resumida pela {6rmula do velho bibliotecério que responde a um xa agoni- zante que queria conhecer toda a hist6ria no titimo minuto “Meu principe”, diz-Ihe o sabio anciao, “meu os homens nascem, amam e morrem.”" ¢ me estendi um pouco demoradamente sobre essa © porque ela me permite situar cortas posigdes is da histéria nova. Todos os historiadores que pre- conizam-na parecem-me estar de acordo, com mais ou menos nuangas, com Lucien Febvre. A histéria & Toynbee, apesar de suas seducdes, sua vista larga, seu desejo de to- talidade, essa historia confuse, feita - obrigatoriamente ~ de terceira mo em grande parte e que filosofa barato nao 62 nossa. Uma histéria problematica, e ndo automatica Eis, pois, os Annales com um novo titulo, sob a diregao nica de Lucien Febvre. Mais do que nunca, os Annales querem fazer entender. Colocar os problemas da histéria: “proporcionar uma His ey Cams ou HISTORIA Now a8 téria ndo automatica, mas nunca, os problemas d te para nos pi estado de instal onal, mas que fo sabretude ocidenta, « inclusive eure amplamente, fora e contra qualquer eurocentrisma, para o mundo inteito, em particu- lar para 0 que vai ser chamado de terceiro mundo. No limiar dessa nova fase, aparecem duas obras “pro- gramaticas” dos fundadores, que publicaram no inicio d guerra suas obras-primas: A saciedade feudal, de Marc Bloch” modelo de uma historia-problema, sintética e comparatis. ta sem extravagancia, aberta para “as maneitas de ver e de pensar”, ultrapassando a hist6ria juridica das instituigdes, Ro sentido de uma histéria social das classes e de uma his- toria do poder e dos poderes; e O problema da descrenca no séeulo XVI: @ religiéo de Rabelais, em que Lucien Febvre* reencontra a hist6ria profunda “no amago religioso do sé- culo XVI", a longa duracao das idéias, dos sentimentos € las crengas, ¢ destréi o mito anacronico de um Rabelais li vre-pensador. De Mare Bloch, um livro péstumo, inacaba- do, ndo revisto, mas que vai divulgar a historia nova fora da Franga, desde a sua traducdo, rapidissima, para o inglés (Manchester e Nova York, 1954), até as recentes tradugses nas linguas dos paises da Europa do Leste, especialmente em russo (Moseou, 1973): Apologia da histéria ou Oficio de historiador*, que, segundo Lucien Febvre, néo é nem “um método da historia”, nem “consideragées pseudofiloséticas sacet UES LE GOFF (Org) "mas “uma revista critica das mas mani ras de pensar e praticar a histéria”. Recordarei dete apenas dluas preocupacies, bastante caracteristicas da histéria nova. De um lado, recusa das origens”, porque, de acordo com um provérbio érabe, “os homens se parecem mais com seu tempo do que com seus pais”. De outro, estar tre presente © passado, isto é “com- pelo pasado”, mas também “compreen- der o passado pelo presente” ~ donde a necessidade de um metodo “prudentemente regressivo” (p. 15) Combates por uma nova histéria Febyre reunia uma pat- igicos em “Combates pela historia”. Encontram-se ai "profissdes de fé inici de que forneci varios extratos significativos, os artigos de combate contra a histéria politica e diplomatica, a histéria- 0 que ele ria fatual, , sem problemas, encerrada na ru na a hist6ria feita a partir de enquetes coletiv ia” de que os Annales desde o inicio deram o exemplo, langando enquetes sobre o cadastro, os planos parcelares, a técnica agricola e suas repercussdes sobre a entabular por si 6 0 dialogo com os hi ‘vem “proporcionar aos psicélogos uma psicologia histérica valida” (p. 219) e, depois, esse conjunto de horizontes fe- chados em si pri especialistas sem hori~ onge da fome dos historiadores da histéria nova campos essenciais: a literatu- 12, a filosofia, a arte, as cigncias. AVI secio da Ecole Pratique des Hautes Etudes Entretai Ecole Pratique des Hautes Etudes, de outro, a renovacao, do grupo dirigente dos Anna- lidade para ter aparecido antes. Quando fundou, fora da velha Sorbonne e mais ou menos contra seu ensino magis~ tral, um ensino baseado na pesquisa, na pr 48 JACQUES LE GOFF Ore) experimental, no sistema germanico do semindrio, a ser ministrado no ambito da Ecole Pratique des Hautes Etudes (1868), ele previu uma VI segao, a das ciéncias econdmicas ;, Caja ctiagdo Lucien Febvre arrancou dos gover- stagao. O programa dessa V1 secao — interdisc plinar, aberto para o mundo inteiro, baseado na pesquisa e has enquetes coletivas ~ 6 0 dos Avnales, e nele a historia” desempenha um papel de inspiracao e lideranca. Aconte- para a hist6ria nova que, a partir de entao, se transmite pelo ensino, pela pesquisa, pela discusséo — a0 lado das disciplinas irmas ~ e desemboca numa insti- tuigdo. Uma penetracdo mais profunda nas estruturas e nas priticas universitarias se chocard com numerosas resistén- cias. Quando, de 1950 a 1955, Fernand Braudel preside 0 jtiri do exame de histéria do concurso para professor se~ ndario, ele no pode impregné-lo de todo o espirito da historia nova, Rumo a uma outra histéria... com Fernand Braudel Por outro lado, convocado por Lucien Febvre, Georges Friedmann ~ que vai se tomar 0 pai da sociologia nova na Frartga, uma sociologia repleta de historia e que situa o tay- lorismo na evolugio do trabalho industrial ~ apreende o presente em sua densidade de tradigo e mudanga®, em seus mitos ideal6gicos jovens historiadores, Fer nand Braudel e Charles Morazé, voltam a proporcionar aos Annales 0 impulso rumo a essa histéria em que pasado e presente se iluminam mutuamente. Logo Fernand Braudel proporciona & histori obra-prima, O Mediterrineo e 0 mundo mediterr jova sua na épo- ima, La ers di prog (Pt A HISTORIA NoVA ” ca de Filipe 1°. Li Braudel, assim apres: nificativo: “Rumo a um ‘mundo mediten de grandeza d © segundo que sobrepuja 0 sma grande novidade) - ontem, a tese nos trazia um plano totalmente novo e, em certo sentido, revolucionério, Decidido a recolocar os grandes projetos da politica espanhola, no sentido mai: amplo da palavta ‘politica’, em seu contexto histérico ¢ geografico natural, ele estuda em primeiro lugar as forcas Permanentes que atuam sobre as vontades humanas, que pesam sobre elas sem que elas disso se apercebam, que as vergam nesta ou naquela direcdo; e é toda uma andl nunca antes tentada, do que o Mediterraneo ~ como 0 cha~ ‘mamos, com uma palavra negligentemente pronunciada representa como forca que conduz, canaliza, contraria tam- bem e freia, ou, a0 contrério, exalta e acelera o jogo das for- gas humanas. Depois disso, numa segunda parte, cle arro- la as forcas particulares, mas animadas de certa constante, forcas impessoais e coletivas, mas, desta vez, datadas e, por assim dizer, assinaladas como sendo estritamente aquelas gue atuam no século XVI, na segunda metade do século » espago de tempo que preenche a vida rei- rante de Filipe Il da Espanha, Terceira parte: os acontecimen- © fluxo tumultuoso, agitado e confuso dos fatos. Mag- freqiiéncia pelas forcas permanentes que 0 influer . JACQUES LE GOFF On) Lucien Febvre more em 1956. Fernand Braudel}secun- dado a princfpio por Robert Mandrou, depois por Marc Fer ro, toma-se o principal inspirador dos Annales. Em 1958, ele publica ai o artigo que vai marcar profundamente a etapa tual da historia nova: “Historia e ciéncias sociais: a longa duracao"*. Em 1969, Fernand Braudel, Charles Morazé e Georges Friedmann confiam os Annales a uma nova equi pe: André Burguigre, Marc Ferro, Jacques Le Goff, Emma- uel Le Roy Ladurie e facques Revel. No entanto, antes de tentar definir a histéria nova hoje, convém recordar a longa ¢ ilustre linhagem de que ela descende. OS PAIS DA HISTORIA NOVA De fato, além da “escola dos Annales”, a histéria nova pode reivindicar alguns dos maiores nomes da histéria des de o século XVID. Voltaire j4 definira o projeto da hist6ria nova E Voltaire, escrevendo em suas “Novas consideragoes sobre a histéria” (1744): “Talvez acontega em breve, na ma: neira de escrever a hist6ria, o que jd aconteceu na fisica. As novas descobertas levaram & proscrigio dos antigos siste- mas. Vai-se querer conhecer o género humano naquele de talhe interessante que constitui, hoje, a base da filosofia na- tural [.... E bom que existam arquivos de tudo, para que se possa consultar, se necessério; € atualmente encaro todos 108 livros volumosos como dicionarios. Contudo, depois de ter lido trés ou quatro mil descrigies de batalhas, e 0 teor de algumas centenas de tratados, percebi que, no fundo, is ESC, 1958, pp. 725-53 A HISTORIA NOVA 31 quase nao estava mais instruido, $6 aprendia acont tos. Nao conheso os franceses ¢ os sarracenos Pe de Charles Martel, do mesmo modo que na tértaros e 05 turcos pela vitdria que Tamerlao logrou sobre Bajazet, Eu gostaria de saber quais eram as forgas de um pais antes de uma guerra, ¢ se essa guerra aumentou-as ou diminuiu-as. A Espanha foi mais rica antes da conquista do nove mundo do que hoje? Quantos habitantes tinha na Epoca de CarlosV a mais do que sob Filipe II? Por que Ams- terdam continha apenas 20 mil almas ha duzentos anos? Por que conta hoje 240 mil habitantes? E como se sabe isso positivamente? Quantos habitantes a Inglaterra tem a mais do que na época de Henrique VIII? Seria verdade o que se diz nas Cartas persas, que faltam homens na terra e que cla ‘esté despovoadla em comparagao com o que era ha dois mil anos? [..] Eis af, j, um dos objetos da curiosidade de quem quer que queita ler a histéria como cidadao e filésofo. Ele no se limitard a esse conhecimento; procurara saber qual foi o vicio radical e a virtude dominante de urna nagao; por que ela foi poderosa ou fraca no mar; como e até que pon to cla se enriqueceu no iiltimo século; os registros das ex portagées podem inform-lo. Ele vai querer saber como as artes, as manufaturas se estabeleceram: seguiré a sua pas- sagem e a sua volta de um pafs a outro, As mudangas nos costumes e nas leis serdo, enfim, seu grande objeto, Saber- se-ia, assim, a historia dos homens, em vez de saber-se ‘uma pequena parte da hist6ria dos reis e das cortes. Em vido, Jeio os Annates da Franca: nossos historiadores se ca~ Nenhum teve como divisa 2 JACQUES LE GOFF (Ore) matica, Historia dos homens, de todos os homens, nao uni- camente dos reis e dos grandes. Historia das estruturas, ndo apenas dos acontecimentos. Hist6ria em movimento, his- toria das evolugées e das transformacoes, nao historia esta- tica, histéria quadro. Historia explicativa, néo histéria pura- mente narrativa, deseritiva ~ ou dogmatica, Histéria total, enfim... Esse programa da histéria nova, que tem mais de dois séculos, vai ser retomado por Chateaubriand e Guizot, na primeira metade do século XIX. Um verdadeiro manifesto em Chateaubriand, dos Estudos histéricos erdadeiro manifesto da bis ciedades antigas perecem; de suas ruinas surgem socieda- des novas: eis, habitos, usos, costumes, opinides, prin« até, tudo é mudado, Uma grande revolugao se realiza, uma le revolucao se prepara: a Franga deve recompor seus , a fim de relaci progressos da inteli- gencia... Os analistas da Antiguidade nao introduziam em suas narrativas 0 quadco dos diferentes ramos da adminis~ trasdo: as ciéncias, as artes, a educagao publica eram rejeita- das do dominio da historia. Clio caminhava com leveza, de- sembaracada da pesada bagagem que hoje arrasta consigo. Com freqiiéncia, o historiador era apenas um viajante que

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