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EDUARDO PRADO DE MENDONGA O MUNDO PRECISA DE FILOSOFIA 10! EDIGAO (bas, Cao: t0 on Shatin dx Stas de irs Mencnga, Edo Po cy HO-ETE rod ‘Oruncopeceade ars Sire PadodeMndrs,— as “Ded” — Rede era gh “on Isana5220 0c 1. Fs. Til, 00-10 vane cou: I — AS IDEIAS MOVEM O MUNDO. Conta Aristételes em uma de suas obras, & Retériea (L. Il, ¢. 16), que certa vez a es- posa de Hieron, rei de Siracusa, perguntou a0 poeta Simdnides o que valia mais: ser rico, ou ser sibio? “Rico”, responden o poeta; “pois vejo 0s sabios estarem sempre batendo & porta dos ricos”, ‘Nao faltam os que julgam ser a riqueza 0 poder por exceléncia, E porque os ricos silo em geral poderosos, grande parte da humani dade luta por possuir maiores bens de for- tuna, porque através destes bens espera vir a ter iis poderes. A aspiracio do poder aparece para o homem, de um modo goral, como o meio adequado de conquistar 0 exer- cicio da liberdade. Aquele que manda e 6 obe- decido tem a impressio de estar no exereicio pleno da liberdade, O poder, que se exterio- riza, parece ser o sinal capaz de tostemunhar uma experiéneia que é mais diffeil de reali- zar-se na intimidade do sujelto, quando ele esté a s6s, ficando diante apenas de si mesmo. Nesta passagem aqui referida, Aristételes analisa 0 que seja a psicologia do rico. Vivem 10 EDUARDO PRADO DE MENDONGA 08 ricos cereados desta idéia de poder, pois ccupam a muitos outros homens no cumpri- mento da sua vontade; e isto ocorre natural- ‘mente, pois sio muitos os que t8m necessidade daqueles que tém posses. Por isso, 08 ricos se acham no direito de comandar, pois tém aquilo por que vale a pena comandar, desde que co- Joquemos o problema da vida em termos de uma troca de interesses praticos. Se viver se resume a conquistar bens materiais, os que tem maiotes bens deveriam ter o direito de di- rigir os demais homens. Como a vida, no entanto, nfo se reduz a isto, diz Aristételes que a figura do homem rico pode exprimirse assim: tem. todas as caracteristieas de um homem feliz, a quem falta, no entanto, 0 bom senso. Conta-se que certa ver relataram a um fil6sofo a resposta dada por SimOnides 2 es- posa de Hieron, ¢ ele acrescentou: “Bem, & vverdade que os sébios em geral batem & porta dos rieos, e que os ricos nfo batem a porta dos sabios; mas, isto é porque os stbios sa- bom o de que precisam, e se os rieos mio pro- euram os s&bios 6 porque nflo conhecem quais so as suas necessidades” (atribuido a An- tistenes). Para bom entendedor nfo estamos aqui enfrentando 0 problema social da distributcio das riquezas; nfo estamos abordando 0 pro- Dlema do rico e do pobre; do rieo hom e do 0 MUNDO PRECISA DE FILOSOFIA 11 ‘mau rico, mas estamos apenas focalizando um problema de valores nesta antinomia: riqueza, material e saber. Nem sempre temos a nitida nogio do poder que possuem as idéias, Eo nosso objetivo € refletir sobre a forca das idéias. B tempo de refletir sobre isto, pois esta- mos no alvorecer da era da Filosofia no mundo, Nao os convido a um Curso por diletan- tismo. Convido-os a tomar posieao e Iutar por uma vida humana, tendo a consciéneia clara de que 0 dominio sobre as préprias idéias & tao necessério como o ar que respiramos, como © alimento do nosso corpo, para a saiide do posso espirito. As doutrinas dos filésofos jé no vives nas Aeademias: elas estio nas ruas. Nés as adquirimos sem o saber, Nés as ad- quirimos num sistema singularissimo de ere diario: ném sabemos como as adquirimos, e munca sabemos por quanto tempo e nem o quanto pagaremos por elas, Estamos no alvorecer da era da Filoso- fia. Ao afirmarmos isto nao usamos de uma expresso literiiria, mas apontamos um fato histérico. 0 mundo esta hoje dividido pelas ideologias, que so as formas pelas quais as idéias assumem corpo e exercem sua agio eficaz na existéncia, As ideologias silo 08 eon- juntos de fatores afetivos voluntérios que, envolvendo uma idéia, a transformam em uma poderosa energia dinamica. 12 EDUARDO PRADO DE MENDONCA Nos primérdios da Histéria dos povos, encontramos a valorizagio da forga: ¢ 0 po- der militar que domina o mundo; os chefes podem comandar segundo os eaprichos de seu arbitrio, ¢ todo um eonceito de nobreza se constréi em torno do poderio absolutista dos governantes, Durante a Idade Média, o pensamento religioso pOde exereer uma influéneia capaz de submeter governos, ¢ estruturas de organi- zaco social. Assistimos, depois, a uma ascen- si da burguesia: & 0 valor econdmico a ex- primir o dominio dos poderosos do mundo; mas a marcha para a riqueza criou graves problemas sociais, que passaram a obrigar a mudanga da face do mundo, Vemos, entio, a ascensio do poderio politico: a lideranca polt- tiea passa a ser a grande expresso do pode- rio moderno. £ certo que néo desaparecem nem 0 poderio militar, nem o poderio’ econd- mico; mas estes j nfo bastam, e passam a sor submetidos, como instrumento do poderio politico, A verdade 6 que 0 mundo nos apre- senta hoje, como sua caracteristica geral por exceléneia, uma luta de ideologias, S80 con- cepedes em movimento, so as idéias no campo de batatha. A sorte da humanidade est’ sendo decidida pelo debate das idéias, Hoje nds sa- bemos disto, em nostos dias nés podemos ter conseiéneia disto, © jf nfo 6 mais possivel 0 MUNDO PRECISA DE FILOSOFIA 18 adiar 0 encontro programado pela histéria do mundo. A era de predominio militarista da anti guidade, sucedeu uma era de predominio re- ligioso; a esta sucedeu uma era de predomi- nio econémico e, depois, uma era de predo- minio politico, Houve quem dissesse que a guerra era assunto muito sério para ser re- solvido por militares; pois, do mesmo modo, diremos que a vida humana é assunto muito sério para ser resolvido por politicos. Chegou © momento em que a presenca do filésofo apa- rece como inadiavel, a Filosofia 6 roclamada por sua irrefutdvel necessidade. . Bis porque dizemos trangtillamente que estamos no alvo- recer de uma era da Filosofi Achamos da maior oportunidade repro- duzir aqui uma pagina de conhecido historia dor da filosofia moderna, I. M, Bochenski: “Surge de inicio a questéo da justa apre- ciagdo da totalidade do esforgo filosétieo no curso da historia, Subestimamos-Ihe muito fre- iientemente o aleanee: a filosofia, diz-se, & um conjunto de especulacdes abstratas sem in- teresse para a existéncia; 6 as cidncias priti- eas que nos devemos devotar, pois elas eondi- cionam a técnica de todas as atividades (nfo somente a do engenheiro, mas também a do pedagoo), como o faz a Sociologia, a Econo- mia Politica © a Politiea, Pois, primum vivere, deinde philosophari, e 0 philosophari niio tem 14 EDUARDO PRADO DE MENDONGA importancia na vida”, Para o autor, “esta con- cepeio tao espalhiada hoje é radicalmente falsa, © tratase de uma perigosa aberragio intelec- tual, Limitar 0 saber a seus aspectos téenico- -praticos € supor que é sempre suficiente sa- ber apenas como isto ou aquilo se faz, Mas, antes da questio do como, 6 necessirio colocar a do porgué. E somente a Religiao e a Filoso- fia podem dar uma resposta ao iltime por- qué. Que no se diga que o senso comum 6 suficiente para isto: o que se chama 0 senso comum nio passa, no mais das vezes, na his- toria, do simples residuo de idéias filoséticas anteriormente difundidas. O homem 6 um ani- mal racional, ele nao pode agir sem usar sua azo, e, quando ele nao o faz de uma forma consciente ¢ filoséfica, ele o faz irrefletida- mente e como diletante, Isto vale para todo ‘mundo, mesmo para aqueles que se acreditam desligados de qualquer dilosofia: eles sfio pre- cisamente fil6sofos diletantes, que, manifes- tando um desprezo pelos trabalhos de homens do uma capacidade intelectual infinitamente superior, constroem suas préprias filosofias, imfiteis e medioeres. Pode-se fazer constatacho semelhante no que se refere & Religiéo. Por natureza ela nio depende da Filosofia. Mas também ela deve ser tornada clara e inteligi- vel, deve ser sempre explicada, pois o homem. 6 um ser pensante. De fato, se para esta ex- plicagio necessria nfio nos servimos de uma © MUNDO PRECISA DE FILOSOFIA 15 filosofia racional, acabamos aqui como antes vor sermos vitima dos preconceitos, “De outra parte, nada mais falso que ne- sar a importineia da Filosofia para a vida, Certamente, 0 fildsofo nem sempre tem um lugar destacado na realidade eotidiana, Seu destino é no mais das vezes, 0 de 86 set com- preendido depois da morte. Sem diivida, houve fildsofos que puderam ainda provar sua glé- tia durante a vida — chamem-se Plotino, To mas de Aquino, Hegel, Bergson, Mas, ainda assim, trata-se mais de uma simples moda que de uma plend compreensio, 0 filésofo néo leva, em. conta as exigéncias da hora e das modas do dia. E reprovavel? Nao é proprio do homem ultrapassar a pura existéncia do instante? Fa- zendo do momento presente 0 tinico objeto do saber no corremos o risco de rebaixar 0 ho- mem a besta? Quem vive sem cessar a vida do espirito, segundo suas convicgées filoséfi- cas, sabe que o que se passa 6 diferente: por- ue ela nfo se prende ao jie et mune do ins-* tante € que ela nio pretende agir diretamente sobre a vida, a filosofia 6 justamente uma das maiores forgas espirituais que nos impedem de sogobrar na barbaria e nos ajudam a per- manecer homem e a vir a s@-lo cada vez mais, “Mas, isto néo 6 tudo. Por mais fatil que ossa parecer, a Filosofia 6 contudo uma po- derosa forea histérica, B necessério convir com Whitehead, quando compara os sueessos de um 16 EDUARDO PRADO DE MENDONCA Alexandre, de um César e de Napoleto aos re- sultados, infrutiferos em aparéncia, que obtém © fildsofo: é 0 pensamento que transforma a face da humanidade, N&o é absolutamente ne- cessdrio, para dar-se conta disto, remontar, como 0 metafisico inglés, até os pitagéricos. Que se considere unicamente sobre 0 prodi- ‘gioso destino de Hegel, este fildsofo tio dificil de compreender, Ble abriu o caminho tanto a0 fascismo e a0 nacional-socialismo quanto ao comunismo: é uma das forcas que estio em vias de transformar 0 mundo. O fil6sof0, posto ‘em ridieulo pelo povo, vivendo entre seus pen- samentos inofensivos, é na realidade uma po- téneia terrifica, Seu pensamento tem o efeito da dinamite. Ble segue seu caminho, ganha hhomem, por homem ¢ toca as massas. Chega 0 momento em que triunfa de todos os obsté- culos e regula a marcha da humanidade — ‘ou estende um Iengol sobre suas ruinas, Bis porque os que desejam saber em que diregio esté a rota fazem melhor prestar atengio néo 208 politicos, mas aos fildsofos: 0 que 0s fi Waofos anuneiam hoje sera a crenga de ama- nha” (La Philosophie Contemporaine en Bu- rope, Paris, Payot, 1951, pp. 6-8). ‘Achamos natural que um atleta recue € tome distancia para apanhar impulso e saltar um obstiiculo; e no entanto, é comum estra- nhar que se proponha um recuo reflexivo, & procura de maior apoio e fundamento para 0 MUNDO PRECISA DE FILOSOFIA 17 sobrepujar os problemas, que so os obstéculos da existéncia humana, Vivemos presos ao ime- diato, A medida em que 0 homem niais desco- nhece a razio de ser de sua vida, tanto mais ele se agarra as pequeninas coisas do eotidiano, ‘Tanto menos ele conhece o sentido de sua vida, © mais 6 tomado de uma angistia e paixio, que deixam a impresséo de uma pressa de chegar sem que ele saiba aonde, E quanto me- nos ele se conhece a si mesmo tanto mais se empenha em transformar o mundo. Revolver no € revolucionar, evolver no 6 evoluir, nem processamento € necessariamente progredir. © homem moderno, de tanto se servir da méquina, passou a refletir o humano pelo me- cdnico. E assim se erlou uma certe mentali- dade mecanicista, pragmética, ativista, que colocou de quarentena o contemplative, Pode- mes mesmo dizer que ele perdeu o sentido da contemplagao. De tal modo se deixou empol- gar pelo ‘fazer, que perdeu a perspectiva do ser. E de'tal forma deixou-se apaixonar pela idéia da produgo, que perdeu o senso da per- feigio, Na perspectiva do mais, esqueceu a perspectiva do melhor. Nao sabe mesmo 0 que possa vir a significar vida contemplativa, A idéia comum de vida contemplativa é a de um afastamento da realidade, a de uma vida de abstracdo, ou, para usar uma palavra ao ‘dda gpoca, a de uma alienacao. E, no en- tanto, a contemplagao nao se opGe radiealmente 18 EDUARDO PRADO DB MENDONCA A agilo: ela se prova mesmo na agio, e pode- ‘mos dizer que a vida contemplativa esté inten cionada & acto: contemplata aliis tradere, di- ria Sio Tomis de Aquino (“‘transmitir aos outros a contemplago”). A vida contemplativa, se ope A vida operativa na medida em que a vida operativa esta dirigida 2 um fim externo, a uma realizagio de produgio, a uma agio transeendente ou transitiva, que se termina na obra realizada fora do sujeito que a realiza, A vida contemplativa tem por fim a propria perfeigio do sujeito da aco, e por isso se diz propriamente da ago imanente, do ato consi derado no proprio sujeito, como expressio da- quilo que ele é daquilo que ele quer ser, da- quilo que ele pode ser, daquilo que ele deve ser. Como entender, portanto, que a vida contem- plativa € um alheamento da realidade? Pode fhaver maior senso de realidade do que este que se ceupa com a integridade do seu proprio ser? A vida contemplativa 6 esta que se dirige & tomada de posse de si mesmo, & clareza de eonsciéncia, a0 dominio da vontade, ao diseer- nimento intelectual, # a que cuida da formagao de uma conseiéneia justa, afastando de si os residuos vieiosos dos proconceitos; é a que cenida da firmeza da yontade, defendendo-a de um envolvimento imaginativo, pois o excessivo exerefeio da funcio fabuladora, o pensamento que se arrasta nos vOos da imaginagio despo- liciada a sacrifica e entibia; é a que cuida da © MUNDO PRECISA DE FILOSOFIA 19 Justiga intelectual, pelo conhecimento © uso adequado de suas funcdes intelectuais, deten- dendo a razio das inclinagdes ufetivas e senti- ‘mentais, que impedem a inteligéneia de atingir as conclusdes verdadeiras © nio comprometic das @ priori pelas preferéneias arbitrérias ¢ inrefletidas. Este € 0 terreno da Filosofia, que, & or- dem do fazer, — preocupada apenas com o como fazer, — acrescenta as dimensdes m: Jargas da vida humana, quando 0 homem passa, @ preocupar-se com 0 porque fazer e 0 para ue fazer, além de vir a poder julgar conve- nientemente 0 que fazer diante dos pélos da vontade e do dever. Nesta linha da vida con- templativa, que nio se afasta da realidade, mas, ao contrério, nela procura mergulhar pro- fundamente, para atingir-lhe as raizes mais intimas, é que se coloca a Filosofia, O drama, por exceléncia da vida humana, nés 0 eneontramos focalizado no Fausto de Goethe, no qual nés vemos o Dr. Fausto, mo- vido pela ambigéio de possuir todos os bens do mundo, entregar a sua alma ao Diabo, Que significa possuir tudo, se a criatura humana se perde a si mesma? O tragico da ambigéo que se transforma em valor absoluto est exata- mente nisto: a ambiglo que se satistaz com a Dura ambicéo, em lugar de levar a eriatura & possuir, leva-a a ser possufda; ela nfio do- mina as coisas, mas 6 dominada por elas; nfo ee, 20 EDUARDO PRADO DE MENDONGA ditige, & dirigida. A ambigdo, que se elege eri tério universal, 6 insatisfacko insandvel, & permanente angistia. O proprio bom senso ensina pela prudéneia que é preciso saber © que devemos querer, porque os bens parti- culares podem esconder 0 que verdadeiramente € 0 bem. Nesta linha da vida contemplativa, na consideragio de todos estes problemas, que armam os alierees da vida humana, a Filoso- fia representa um convite para a vida do ho- mem em plenitude, eomo ser racional. 0 eonvi- te da Filosofia no é 0 de um afastamento da vida; muito ao contrério, no diseernimento das idéias que povoam a vida humana, e so 0 cixo do mundo dos seres dotados de razto, 0 es- tudo da Filosofia realiza um alargamento da visto e das dimensées da existéncia, em ex- tensio ¢ profundidade e neste sentido pode- mos dizer que filosofar é viver mais Passemos a algumas consideragies especi- fieas sobre as relagées entre as idéias ¢ a vida do homem. 1. Idéia e sentimento, Diz um adgio popular: “O que 08 olhos niio véem o coragio nfo sente”. E diz com ra- io, Nao existe sentimento sem idéia. Quando expresso popular diz “o que os olhos nio vem’, esti dizendo exatamente “o que nao se sabe", “o que nao se conhecs", “o de que ndo temos idéia”, Devemos lembrar, alls, que, no grego, a palavra (Sé« significa primar © MUNDO PRECISA DE FILOSOFIA 21 “visao”, “o que 6 visto”, “a forma”, a “figura”, aquilo que objeto da visio. Quando hoje di- zemos “idéia”, dizemos a “visio intelectual”, a “representagio mental”, o “eoneeito” ou “no- gio", a apreensto simples realizada pela inte- ligéncia. “O que os olhos néo vee 0 coragio nfo sente”. Os nossos sentimentos variam de acordo com as idéias que os acompanham. A forca dos estéicos para resistir ao s0- frimento esta exatamente na sua concepcio do mundo e da vida, Um estéico pagao, julgando que todos os prazeres do mundo so apenas uma face externa de padecimentos e insatis- fagdes e que o bem 6 apenas nfo sofrer, vé com alegria a morte. Um estéico eristio re- cebe a morte com resignacio ou paciéneia por- que tem a idéia da vida eterna. E quantas ve- ves na vida sentimos mais prazer em pensar nunt acontecimento do que propriamente na sua experiéncia? E quantas vezes deixamos de gozar uma experiéneia realizada em nossa vida porque néo tinhamos a idéia nitida do seu valor? Um concerto a que assistimos, uma pega de teatro, um espeticulo, e até mesmo um encontro, so tanto mais apreciados por 6s quanto mais nos tivermos podido prepa- rar para éles, levando conosco uma idéia an- tecipada do que ost por acontecer. © teatro grego exploron este fato, utili- zando no terreno estétieo um recurso de gran- de efeito, com a identifieagio, em que um per- 22 EDUARDO PRADO DE MENDONCA sonagem aparece em cena com a sua verda- deira identidade, apés ter aparecido velada- mente, O espectador jf sabe que é ele, mas 0 outro ou os outros personagens nfo sabem, Em Electra, de Eurfpedes, o irmio de Electra, apés longos anos de separagio, a encontra; mas antes de identifiear-se, com ela conversa longamente; 0 momento de identificagio pro- duz na platéia um forte impacto emocional a assisténcia j4 sabia quem era o personage, mas a realizagio prética clara da idéia pro- duzin esta emocio, 0 mesmo ocorre com Ulis- ses, na Odiseéia de Homero: Ulisses € espe- rado no lar, de volta da guerra, embora mui- tos 0 julgassem morto; de volta, priméiro identifiea-se ao filha; ele vem disfarcado em mendigo; depois, identifica-se diante de todos: a emogio estética é produzida por esta expe- rigncia de ver esclarecido na ordem da acio Prética 0 que j4 era pensado e conheeido, © pr6prio sentimento religioso apresenta caracteristicas diferentes, segundo a idéia que © acompanha: & acompanhado de terror e in- quietacdo, se temos um culto fetichista, euja divindade se encontra nas forcas da natureza; acompanhado de um pessimismo, se a divin- dade 6 penseda como existindo difusamente no universo, como € 0 caso do Bramanismo; 6 acompanhado de medo, se # divindade se apre- senta sob a forma dos preceitos e da Lei, co- mo €0 caso do Judafsmo; 6 acompanhado de 0 MUNDO PRECISA DE FILOSOFIA 23 esperanca, se a idéia de Deus o identifica com © amor e a graca, como é 0 caso do Cristia- nismo, E se as idéias dio 0 tom dos nossos sen- timentos, podemos dizer que as idéias dao a cor da propria existéncia, Os mesmos fatos produzem em nés impresses e sentimentos que variam de acordo com a idéia que a res- peito deles somos capazes de estabolocor. 2. Idéia e vontade, As palavras, que tém como uma de suas fungdes exprimir 0 pensamento, por vezes 0 escondem, E, por vezes, nos enganam, pare- cendo exprimir alguma coisa, quando em ver- dade nada exprimem e nio passam de rufdos, como o diria Critilo, pensador grego. Se, na geometria de Euclides, falarmos em circulo- quadrado, af esté uma palavra que ndo tem correspondéneia com um objeto, e nem expri- me uma idéia, porque na geometria euclidiana nao € possivel pensar em circulo-quadrado, pois nio hi composi¢io possivel dos dois con- ceitos tomados isoladamente, sendo um exclu- sivo do outro, Na Histéria da Filosofia, as vezes encontramos coisas assim, pois os ho- mens de génio também erram. A diferenca entre o erro de um homem comum,e o do ho mem de-génfo que aquele erra tolamente sem qualquer razio de ser, enquanto o génio or vezes erra, mas.com bons argumentos, com 24 EDUARDO PRADO DE MENDONCA boas razdes, erra — poderiamos dizer — ge- nialmente. Houve assim um fildzofo alemao, Bmanuel Kant, que defenden a idéia de uma vontade que fosse apenas vontade, uma vonta- de que nao fosse vontade de coisa alguma, mas fosse apenas forte, o que ele entendia por “vohtade pura”. Nao vamos entrar aqui nas razdes que explicam os caminhos’ que 0 con- duziram a tal vontade. & sempre transitiva, é sempre vontade de alguma coisa. Dizemos com raziio que um homem de forca de vontade € aquele que persegue com firmeza alguma coisa. Um homem de vontade firme € aquele que sabe 0 que quer, e sabe 0 que quer exatamente porque quer 0 que sabe. Ba vontade que nos leva a aio, A firmeza de vontade se exprime pola firmeza dos atos, © conduz necessariamente & acho. Mas, se os atos dependem da vontade, e a vontade & de- terminada pela idéia, que dé o modelo do seu exerefeio, podemos ver desde logo qual o pa- pel das idéias na configuracio da atividade do homem, e saber .a significacio vital das idéias, Elas, realmente, estio intencfonadas ao real, e elas nfo 6 representam 0 real, como também constroem a realidade, na medida em que determinam a vontade, e dirigem a acéo da vontade, que, por sua vez, se transforma nos atos da vida prética que configuram a existéncia particular e social do homem, © MUNDO PRECISA DE FILOSOFIA 25 Neste sentido, podemos acrescentar que as idéias decidem a propria ordem moral da vida humana. Se é verdade que o homem tem uma natureza moral, que 0 faz aspirar ao bem. € rejeitar 0 mal, é também verdade que, para © exereicio da vida moral, ele necessita distin- guir com clareza 0 que 60 bem e o que 6 0 mal; € niio pode, por isso mesmo, satisfazer-se com esta disposicio manifestada espontaneamente na sua natureza de aspirar necessariamente a0 bem. & preciso lembrar aqui que os préprios eriminosos, até na prética dos seus delitos, es- ‘tio movidos por uma aspiracdo do maior be © que Ihes falta 6 0 discernimento do que seja efetivamente 0 bem e uma educagio da von- tade para ser décil ao que a inteligéncia pode compreender verdadeiramente como sendo 0 dem. Aquele que rouba, no ato mesmo de rou- bar, julga ser este um meio melhor do que conseguir o que pretende aleancar através do préprio trabalho, que o obrigaria a um malor forgo, e maiores padectmentos. © eaminho que The parece mais facil, parece-The o melhor. A obrigaeio do homem é de tal ordem no sentido de possuir uma noeéo clara e distinta do que seja o bem, que S40 Tomfs de Aquino nos fala mesmo de um pecado de ignorfncia. Ha uma ignoréneia invenefvel, que & a des Toucos, como @ a dos que*jamais tiveram a oportunidade dos estudos, Mas, hé também: uma ignordneia eulposa, uma ignorfneia que 26 EDUARDO PRADO DE MENDONCA implica em omissio indesculpével, um desinte- esse pelo conhecimento dos valores e dos prin- efpios de que dependem os destinos da huma- nidade. Diz um aforismo jurfdieo: Ignorantia, juris neminem excusat (A ignorfincia da lei no eseusa ninguém). © conhecimento da lei & um sinal de respeito pela vida em sociedade. Nao somos apenas nds que estamos em jogo nas nossas agées; clas tém conseqiléncias & produzem seus efeitos sobre aqueles com quem convivemos. F mesmo que isto nfio provocasse as reagGes devidas % delimitacio dos direitos, 6 necessirio lembrar a responsabilidade que temos de nés mesmos, em face do dom da vida que, afinal, nfo é criacdo nossa, mas, evi- dentemente, nos foi dada. A idéia do bem nfo exclui totalmente o ato mau. Video metiora proboque deteriora se- quor (Vejo 0 que é melhor, mas sigo o pior), diria 0 eélebre poeta latino Ovidio, Mas, se- gundo Tomés de Aquino, a idéia do bem é sem- pre um obstéeulo & prética do mal, Poderia- mos dizer que com a idéia nitida do bem, o ato mau j4 nfo é tio mau, E isto porque ha- veré sempre uma contradigo interna no su- Jeito, pois a sua conseiéneia estaré inquicta, ¢ © havera de porseguir. A angtistia crescente, derivada do divércio entre a idéia e 0 compor- tamento, pedird uma soluedo. Ainda ai a idéia Thanifesta a sua forga determinante, © MUNDO PRECISA DE FILOSOFIA 27 4, Idéia e agio. Winalmente, 6 necessério deixar bem ela- j © com toda a énfase, a intima relagdo exis- ite entre as idéias e os atos. Diz Karl Marx, em sua undécima tese Feuerbach, em sua obra A ideologia alema, frase, que bem merece ser pensada e co- ilada: “At6 hoje, os filésofos 86 fizeram in- yretar o mundo; devemos, agora, transfor- Mnilelo”. Nao so poucos os homens, sejam mar- ‘xlstas, ou pragmatistas, ou livres-pensadores, ‘ou existencialistas, ou que rétulo tenham, ou venham a ter, que esto prontos a aceitar co- mo verdadeiras estas palavras, Nao so pou- 05 os que manifestam o seu desamor pelas teorias, preconizando o exereieio pratico, a ex- eeléncia da acdo, como a tinica solugéo a ser procurada, e a nica verdadeiramente eficaz, Podemos aceitar que uma idéia sem apli- cago na realidade seja como uma semente que ndo tenha sido plantada. Mas, devemos acei- tar também que, para ser fecunda, a semente deve ser convenientemente tratada. Em geral, seeamos as sementes, para podermos depois planta-las com sucesso, Assim, quando ela pa- rece seca, e sem vida, é que ela é fonte de vida, Quando tratamos as idéias, examinando- as em si mesmas, parece que as retiramos da vida. A verdade, no entanto, é que a sua cla- reza inteligivel e abstrata é que Ihe garante toda a forca vital. 28 EDUARDO PRADO DE MENDONCA © homem tem radicado no seu ser 0 senso da liberdade. Ble quer naturalmente ser livre. B ele se sente livre quando tem o dominio dos seus atos, pois £6 assim pode agir com equili- brio e seguranca, Mas ndo pode haver acto firme de sua parte, se nilo possni idéias claras sobre 0 que quer fazer. Ignoranti quem portum petat, nullus snus ventus (Nao hi vento favoravel para quem nfo sabe a que porto se dirige), afirmava S&- nneea, 0 famoso estéieo latino. Nao dizemos no- vidade afirmando que a maioria das pessoas € infeliz exatamente porque procura ser feliz, € nflo sabe 0 que possa ser a felicidade, ‘As idéias obscuras, vagas, imprecisas, nfo podem garantir a firmeza das agées. E isto é tanto verdade que, para prové-lo, pode- mos recorrer a um fato, que, embora sendo uma contrafacio da verdadeira e justa fir- meza das ages, 0 demonstra: a firmeza dos loucos, garantida pelo seu monoideismo, ou idéia fixa, Os teimosos, cuja fixagao de idéias 6 fruto do capricho, nos dio uma outra con. firmacio. Nao queremos a firmeza das acées na or- dem da firmeza dos loueos, ou dos que fazem do capricho 0 critério de selecio de suas pre- feréneias, Queremos a firmeza sadia dos que sabem 0 que significa a forga das idéias, e 0 respeito ¢ 0 cuidado com que elas merecem ser. tratadas, ec Mei he 0 MUNDO PRECISA DE FILOSOFIA 29 E, enfim, 6 necessdrio refletir bem sobre esia verdade de fato: na vida humana, ou vi- vemos de acordo com o que pensamos, ou aca- amos pensando de acordo com o nosso modo de viver. Eis 0 que devemos considerar muito cuidadosamente, para nfo nos enganarmos a nos mesmos, Seria bom que cada, um pudesse saber nitidamente, para ter conseiéncia do pa- pel que esté cumprindo na existéncia, se as idéins que dirigem a sua vida sio fruto de uma reflexio critiea, ou sto apenas a formu- lacdo tedriea justificativa de um modo impen- sado de viver. Bsta reflexiio, que considers ‘mos fundamental para os que realmente dese jam ser homens livres, segundo a dignidade de sua natureza, exprime ainda uma vez 0 poderio das idéias: elas tém tanta forga que podem chegar até a enganar, ao proprio ho- mem a respeito de si mesmo, quando verifica- mos que, por vezes, as idéias que parecem di- rigir a sua vida so apenas a expressio de tum tipo de comportamento formado pelos hé- bitos adquiridos no decorrer da vida, porque ele se deixou levar pela onda das circunstin- clas, omitindo-se quanto A obrigac&o que teria de decidir racionalmente a sua propria vida. Na vida humana, ou vivemos de acordo com 0 ‘que pensamos, ou acabamos pensando de acor- do com o nosso modo de viver. E, por isso mesmo, € preciso nfo menosprezar a forca das idéias, A civilizacdo grega floresce até os nos. 30 EDUARDO PRADO DE MENDONCA sos dias, e 0 mundo ocidental esté mareado por ela exatamente porque aquilo que Renan denominou “o milagre grego” consistiu no cule to do “logos”, na descoberta da razio, e por isso mesmo a, Grécia antiga foi o bergo gene- ros dos filésofos por exceloneia, de eujas don- trinas ainda se alimenta a humanidade. Deve- ‘mos ser dignos da nossa civilizagio © das nos- sas origens, $6 por isso a Filosofia tem garantida a sua presenga no mundo, & procura do escla- recimento das idéias, como 0 nico e efetivo caminho para a solucdo dos problemas da vida humana, na sua esséneia, cumprindo esta mis- sho de ajudar ao homem, em primeiro lugar, f tomar conseiéncia do que seja a.forga das deine, As idéias caracterizam os sentimentos} as idéias determinam a vontade; da clareza das idéias depende, enfim, a firmeza das ages, As idéias néio estdo apartadas da vida: mas estéo na existéncia como o eixo em torno de que 0 mundo humano efetivamente gira, Esta & de fato, a forca das idéias, e assim é que as idéias movem 0 mundo. |

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