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PROBLEMATICAS I A ANGUSTIA J. Laplanche Tradugto Auvano Casta, Martins Fontes S60 Paulo 1998 “ds orignal PROMLENATIQUES 1 ANCOISE apg Pres Unsorted Proce 180 ‘Coin ivr ni oss "Ss Pa 0p cn oi. ass adi Revi dato “Wen Se Prati ies “crs Aer Co Darter Cd Psa CP) ‘Gann Baca LS Br) Tope bles: mii) Lae tas Aas Co-ed Sa0 Pa: Mani Proc 86 (Bi | Angin 3 Pci Tl HS Taz pr nt a |e Tenn Pola DISS Teo its pana gprs eserves 3 "rr Mone Portes tor Le Fa Coeli Ramall, 03) 107325000 San Pano SP Bra i 01) 239-5677 Ba (11) 308-8857 ‘nal infmartbomessom nino nartngoiescom q Indice ‘A “Angst” na_neurose — 18 de novembro de 1970 A objecio de principio a um ensino da psicandlise . . A psicanélise como saber constituido © recurso a Freud ......, 5 Historicidade especifica da descoberta © retorno sobre Freud Por um ensino psicanalitico da psicandlise Fungo essencial dos afetos negativos — 2 de dezembro de 1970 Primeira teoria da angistia: a propésito: das neuroses atuais 2... : a Da neurastenia. a neurose de angistia . ceeeeeeees A angistia futuante © sua fixagio 2... Origem sexual da angistia .... : ‘A angiistia: psicolégica ou fisiolégica? Insuficiéncia da teotia de W. Reich Aparecimento da “libido psiquica’” — 16 de dezembro de 1970 A nogio de elaboragio psfguica .. Diferentes niveis da “Tigacto” Neuroses atuais e psiconeuroses: uma classificago no- soldgica ..... Neuroses atuais © psiconeuroses: dade estrutural A somatizagao psicossomética uma complementari- 6 de janeiro de 1971 De uma teoria da angtstia @ outra Conferéncias Introdutdrias sobre Psicandlise . A Realangst ou “‘angistia-real” A angistia-real... nfo é realista . ‘A “Angst”: entre medo e angiistia © par angtstie-susto © susto, inibidor da elaboracéo psiquica ........... susto ¢ 0 transbordamento do ego susto da neurose traumética 20 de janeiro de 1971 par angistia-temor S . ‘A “Angst”: ao mesmo tempo medo e angistia . ‘A angiistia infantil: uma anélise freudiana essencial SituagGes fobogénicas : © protétipo do nascimento . A angistia-teal inexiste na crianga 17 de fevereiro de 1971 © mado std impregnado de angistas« angtstia Kase a0 medo 5 ‘A fobia desintegra 0 par afeto © representagéo O recalque € 0 afeto inconsciente A angéstia, “unidade de conta” A propésito do “pequeno Hans” Origem e destino da representagio Uma terapia muito centrada no sintoma Estabelecimento das vias associativas A visita a0 “professor” Freud, Hans ¢ “a estrutura” 34. 37 39 42 43 44 45 47 48 49 51 34 56 58 59 60 61 63 64 65 66 67 69 na n B 16 1 — 3 de margo de 1971 Medo do pai e? ou? medo pelo pai? Novas vias associativas Se 0 pai ndo é temfvel, faz8-lo parecer como tal . Pegar um sintoma, pegar uma crianca Wegen-Waigen, simples ponte verbal? Sobredeterminagéo e ambivaléncia implantadas na lin- guagem Origem e destino do afeto 17 de margo de 1971 Por que procurar além das representagées? A associacio sustentada pelo afeto .. © sintoma é 0 desfecho de uma circulacio orientada A angistia como destino da libido A angistia antes da fobia ce Sonho de angistia ¢ realizacdo de desejo sonho “minha mie querida” © sonho “o homem com o machado” 31 de margo de 1971 A angiistia “‘soldada”” Deslocamento ¢ transformagao do afeio .... Diferenga essencial entre sonho e sintoma . © ego na periferia do sonho © périplo histérico © nosogréfico das fobias Da obsessio. “psiquica’ pasando pela angtistia “neurética”. até a de angGstia, que nao substitui um medo por outro 21 de abril de 1971 1915: metapsicologia da histeria de angistia Uina primeira teoria do “sinal” Tentativa de aplicaglo ao caso “Hans” Dificuldades Nem pura angistia econémica, nem medo substituida Pressentimento do ataque interno . 80 80 86 88 89 ot 92 93 94 96 97 99 101 103 - 105 106 107 +. 109 . 110 - 110 m1 114 7 120 121 123, 125 . 127 — 5 de maio de 1971 Introdugo & leitura de Inibicdes, Sintomas e Ansie- dade Byebaous0 . 129 — 19 de maio de 1971 Genealogia das situagdes de angiistia ...........4.. 131 Motivos para uma revisio 2.0... eccccecseeeee 133 Recentralizagio na_castragéo. weve 135 «mas redugdes ameacadores cece 158 A angistia nfo € um meio de adestramento . 141 ‘mas 0 restante inconeilidvel do desejo .. 142 2. A angiistia na t6pica ..... 5 cece 143 — 14 de dezembro de 1971 Falar de andlise a “nfio-analistas” ..... 143 Estamos todos “em anélise” Babee . 144 Levar em conta a anélise. .. ot “contabilizé-la”? .... 145 Pulsdo, angistia, sociedade: onde situé-las? ....... 147 — 11 de janeiro de 1972 Primeiras transformacies da t6pica freudiana ...... 149 Modelo t6pico de A Interpretacio de Sonhos 154 156 ‘Uma construglo progressiva ... fob “Lugares”” heterogéneos cece - 158 ‘Um percurso em ziguezague 9900005 — 18 de janeiro de 1972 © que implica uma t6pica : 162 Niveis de realidade . 5 164 Tépicas reais do neurdtico ......66.-++ 165 Que corpo na t6pica? .. . 166 enrolamento do “‘tangue” : 2 168 169 Tangéncia de dois circuitos Além do Principio de Prazer. e seu modelo t6pico . — 8 de fevereiro de 1972 Significagéo econémica do limite: a consténcia 177 A dor, que néo desprazer 179 ‘A dor na t6pica . 180 . 171 172 A dor, pseudopulsio ‘Treumatismo © neurose traumética 22 de fevereiro de 1972 Susto, angistia e medo © traumatismo na t6pica © transbordamento A angéstia: mobilizasicimobilizagao. Comparagio dos dois modelos t6picos Niveis do modelo de Além do Principio de Prazer Complexidades de uma “‘derivagio” 14 de margo de 1972 Derivagéo metéforo-metonimica: movimento do ser Nem empitismo do significado, nem formalismo do significante Uma signifieago aquém da linguagem Situagio do traumatismo em relagdo a uma periferia Nociio do ego, a propésito das neuroses trauméticas 11 de abril de 1972 Duas t6picas e sua charneira: a vesicula ... ‘Tangéncia © encaixe .... Dor e traumatismo: efracio, mas de que invélucro? Concentracio do ego . Dilatacdo do ego Arteulagho do ego © do corpo no ponte de impacto la pulsio ; 25 de abril de 1972 A angistia na t6pica Desconhecimento por Freud, historiador, de su pri- meira teoria da angistis A angiistia; 0 menos 9 de maio de 1972 iquico” dos afetos Dois cixos da “primeira teoria” No caso de Hans: angtstia mantém-se irredutivel a qualquer medo, ainda que seja o da castragio 182 184 187 188 189 191 192 195 196 198 200 203 204 205 207 208 210 212 213 213 215 217 218 219 220 + 222 — 30 de maio de 1972 Toda tépica € do ego ........ 228 O ego, lugar da angistia » 224 Situagéo, em relac&o & barreira do secalque,, da angts- tia, da castraglio e do Edipo . . ween 226 oO toma, substituto do reealeante? » 228 Redistribuigéo das cartas na “nova teoria” . 229 A castragao: realidade ou estrutura a posteriori? 231 Edipo e castracfio nfio poderiam estar separados 233 Fobia de castraco e agorafobia: expor o ego & puni- sao ou & sexualidade? anes 234 As duas teorias: alternativa ou dialética?™ wee 235 3. A angistia moral . 237 — 14 de novembro de 1972 A metapsicologia: quem a reporé “em pé’ . 238 Banalidade da autopercepgao da t6pica . 239 A tépica, lugar do conflito e da angiistia 241 — 28 de novembro de 1972 Natureza ¢ cultura: uma reparticfo t6pica que pare- ce evidente : ee Id = naturezs, ego = cultura, ..: equagbes @ ques- tionar : : 246 Duas manciras de a natureza se fazer “representar” . 248, A anélise 86 se ocupa da sexualidede coos 250 — 12 de dezembro de 1972 © impacto t6pico das normas coves 252, superego: uma evidéncia... ¢ uma facilidade .... 254 Clinica da neurose obsessiva: as autocensuras 256 A evolucdo da sintomatologia ...... , 257 © Homem dos Ratos - 259 © crime do pensamento ceeeeeeee 259 Isolamento do contetido representative 260 © que esté em jogo numa discussio: 0 desejo incons- ciente : ceeeese es 262 © desejo: vniea “modalidade” do pensamento incons- ciente : 264 — 9 de janeiro de 1973 © testemunho da Tinguagem Nio ha inocéncia no inconsciente Surgimento do sadomasoguismo A divida: seu circuito no sintoma circuito do tratamento suito dos ratos Circuito familiar da divida A divida nfo se transmite diretamente. mas por sua desqualifieagdo em circuito dos ratos ° ° ° — 25 de janeiro de 1973 ‘A nogio de sadomasoquismo: para os sexélogos. € para Freud: da perversio, a0 destino pulsional Instauragdo da cena interior sadomasoquista D. Lagache ¢ 0 “‘conflito de demanda” G, Deleuze ataca os pontos fracos. .. ‘mas no quer ouvir falar de método analitico Verdade do sadomasoquismo: © neurético, maquinista e supliciado © homem dos ratos como rato Palavras © pensamentos: ratos excrementicios A “ei”: altemente simbélica e eltamente séptica — 15 de fevereiro de 1975 ‘A melancolia: introdugdo as instdncias ideais © que é 0 narcisismo originério? Nercisismo ¢ ideal : © superego: olho & voz Melancolia e campo de depressoes © luto no € um afeto simples © trabalho do luto A melancotia: no sentido préprio ‘Trabalho ligado a uma perda © vineulo nareisico Uma identificegao acusadore Debate com o objeto, debate com 0 ego Identificagdo e identificacao priméria . 265 . 267 - 267 268 270 . 270 an 213 273 274 276 277 278 279 280 281 282 ~ 283 286 287 288 - 289 290 291 293 294 - 295 297 298 299 300 301 302 icacdo narcisica ........... 304 narcisismo é a identi A escolha narcisica: totalitéria © frégil o 305 Ambivaléncia e desuniGo. pulsional weceees 307 Luto, luto patoldgico, melancolia: trés constelacies .. 308 ‘A sombra do objeto perdido: o mau introjetado .... 309 13 de margo de 1973 Quem persegue quem, na tépica depressiva? 312 O “self” correlative e alibi do “‘ego auténomo” .... 313 superego, herdeiro do Edipo: O Ego ¢ 0 Id 314 As identificacSes estruturantes do ego . 316 Ideal do ego e “‘identificagio priméria com o pai” .. 317 O Eedipo . co 320 8 de maio de 1973 10 do Edipo: rentincia © identificagdo . 322 Paradoxo fundamental da identificaco: nfo hé iden- tificago com o rival . 323 © Edipo bissexual . 325 © Edipo néo ¢ um condicionamento nem uma homo- tetia : . 327 Situagio ‘pica da assungio do sexo + 328 Ego ideal e ideal do ego feeeeee 329 22 de maio de 1973 sistema das instancias ideais: D. Lagache - 332 © superego, instincia contraditéria ........ - 335 Origens do superego: 0 problema t6pico 336 Melanie Klein questiona a concepeao freudiana exces- sivamente simples ....... 337 E a pulsto que alimenta a severidade do superego... 339 Cestrago e perda de amor : : + 40 Superego e “‘pulsio de morte” - 342 (© superego arcaico e feroz: um rato 344 Adverténcia Desde 1962 na Ecole Normale ¢ desde 1969 na UER* des Sciences Humaines Cliniques na Sorbonne (Université Paris VII), venho buscando ¢ expondo, num curso pilblico, um método inter pretativo e de levantamento de problemas, ao longo de cerios eixos principais da teoria psicanalitica. Sob o titulo geral de Probléma tiques (Probleméticas), 0s cursos a partir dos anos 70-71! estio aqui reunidos. O texto oral sojreu apenas as modificagées neces- sdrias & sua publicagiio em tivro, Os temas dos anos sucessivos encadeiam-se segundo uma I6- ica que nada tem de deliberada: 0 percurso rege-se ao mesmo tempo pelo contetido e por minha evolugéo pessoal. Sé depois descortinei a possibilidade de, sem excessivos artificios, reagrupar esses temas num certo niimero de volumes. © ciclo de um curso anual & iniciado, na maioria das vezes, por uma introducao metodoldgica mais ou menos extensa. Impres. sas em itdlico, essas introducées dispensam-me de retomar aqui suas idéias, Sao o relato de uma reflexio posterior sobre as moda- lidades de minha abordagem ¢ sobre a legitimidade de desenvol- véla “na universidade’ E evidente que 0 leitor, segundo suas disposicées e sua dis- ponibilidade, poderd reagir a esta publicagao de duas maneiras. © classicismo das wogdes upresentadas, o fregilente recurso ao comentario critico. os retornos ¢ as repeticées (exigidos pelo Unité d'Enseigment et Rech IN. do 7 1. Foram inicialmente publicados no Bulletin de psychologie, depois, « partir de 1974-1975, na revista Psvchanalyse & Universi Unidade de Ensino © Pesquisa jaro de me dirigir, a cada ano, a um auditério em grande parte novo) poderdo fazer com que estes textos sejam considerados ‘um exemplo da muito desacreditada “exegese freudiana’’. Ou entdio, creditando-me uma certa paciéncia e benevoléncia para acertar 0 asso comigo, talvez o leitor seja receptivo a certos aprofunda- ‘mentos ou a certas sondagens, na tentativa de abordar a propria teoria levando em conta o método analitico, de modo a fazer ranger determinadas articulagées e a derivar certos conceitos. Através deste modo de tornar problemética a doutrina, mas também a his- t6ria e a clinica, esboga-se a configuragdo de uma outra temitica. A “Angst” na neurose — 18 de novembro de 1970 Este curso toma seu lugar dentro da UER A OBIECAO des Sciences Humaines Clinigues, 0 que DE PRINCIPIO nao deixa de suscitar algumas questées, ‘A UM ENSINO até mesmo paradoxos, que eu gostaria de DA PSICANALISE examinar em primeiro lugar. AUER des SHC esié orientada para uma determinada meta de formacio. Procura tornar mais flexivel as Jronteiras entre ensino e formacdo ou ainda entre ensino, prética € pesyuisa, Disso é testemunho, por exemplo, a sua politica de estigios ¢ 0 Jato de que a quase tolalidade dos docentes so pessoas que exercem a clinica ou a pesquisa; ¢, no corrente ano, a fun- dagao de um “Instituio de Formagao” apés a maitrise. Em oposigao aparente a esse objetivo, sao propostos “grupos” de psicandlise, que sio seminérios tedricos (nao se fard neles and- lise “de grupo") e até mesmo um curso denominado “magistral” que é este. Aparentemente, estamos, pois, em psicandlise, na retaguarda em relacao a concepeao geral dessa UER ¢ as aspiragdes de muitos de vocés. Vocés nao ignoram a existéncia, fora do ambito université- rio, de uma formagio psicanalitica que, sejam quais forem as dife- rencas entre as escolas que a Jornecem, tem por pedra angular a 2 AANGUSTIA andlise individual e como método complementar os tratamentos controlados. Isso no se constituiv de um dia para o outro, mas, tateando, no decorrer da jd longa hisiéria da psicandlise, desde os anos 1900. Nao recapitularei essa histéria nem me estenderei sobre as diferentes interpretagbes dadas & chamada psicandlise “de forma- ¢io”. £ certo, em todo caso, que a andlise pessoal é 0 caminho real para se ter acesso a alguma parte da verdade psicanalitica, Freud retoma com fregiiéncia esta formula de Goethe: “Aquilo que her- daste, adquire-o para que 0 possuas.” Isso nao € uma {6rmula empirista, néo é a aquisicao de um savoir-faire. “A psicandlise nio se ensina, transmite-se”, diz-se com fregiiéncia. E mumerosos psica- nalistas insistem: “Mas ndo se transmite como uma receita.” Jd estd tudo af, cumpre apenas adquiri-lo, apropriar-se dese conhe- cimento. Jd estd tudo no préprio inconsciente de vocés, como jd estava no inconsciente de Freud. Mas esse inconsciente, intemporal, deve ser readquirido, reassumido no tempo. Visto do angulo da experiéncia do iratamento pessoal, o ensi- no tem mé reputagdo entre os psicanalistas. O ensino, diz-se com freqiténcia, s6 serve para aumentar a confuséo do chamado saber constituido. E essa critica entra no quadro daquela oposicio que valtou & moda, mas cujos termos conviria ponderar cuidadosamen- te quando seu uso for além do polémico: a oposigdo entre o scber € a verdade. O saber seria 0 que é depositado, constituldo, sistema tizado; precisamente aguilo que 0 individuo deve superar, por exemplo, em sua anélise, rumo a sua prépria verdade, para além desse pretenso saber sobre si mesmo. Tal como o individuo em sua andlise, também a propria psicandlise, em seu movimento, deveria poder ultrapassar sua doutrina constituida, Mas em que diregtio? Outra eritica: os psicanalistas pensam que, afinal, tecria e ensino da teoria psicanalitica apenas aumentam a confusio jé con: siderdvel das linguas, essa espécie de malabarismo de conceites que pode existir atualmente na literatura psicanalttica, e reforgam a defesa dos psicanalistas — ¢, simplesmente, dos homens contem- portneos — em relacao a seu préprio inconsciente. Essa fungao defensiva do saber e da teoria foi sempre assina- lada (desde o nascimento da psicandlise), principalmente peles ter- mos, bem conhecidos, intelectualizago e racionalizarao — intelec- tualizagao e racionalizagio sendo modos de recusa do afeto ow, A“ANGST" NA NEUROSE A ‘numa linguagem mais recente, do desefo. Contudo, Freud nto se absteve de ensinar, Foi professor em Viena durante longos anos e, embora tenhamos muito poucos relatos de seus cursos, conhecemos 40 menos um que é central: Conferéncias Introdutérias sobre Psi canélise, que constitui o relato de suas aulas de 1916-1917 ¢ é apenas um curso entre outros, visto que de 1900 a 1917 Freud ensinow psicandlise. Além disso, recorreu freqiientemente & forma didética para redigir alguns de seus artigos, como se, na verdade, @ forma de ensino como didlogo the parecesse especialmente inte- ressante. Um fato, talvez ainda mais caractertstico, € que nesse ano de 1917 ocorre em Budapeste a revoluedo bolchevique. Bela Kun toma o poder e, com ele, 0 principal discfpulo de Freud, Sandor Ferenczi, é imediatamente nomeado para o cargo de pro- fessor de psicandlise na Universidade de Budapeste, f nessas cir- cunsténcias que uma espécie de questiondrio serd enviado a um certo mimero de médicos e personalidades, a fim de indagar como concebem um ensino renovado de suas respectivas disciplinas, no seio dessa universidade “‘revoluciondria”. Freud responde, mum artigo intitulado “Devese ensinar psicandlise na Universidade?”, € sua resposta 6, no todo, extremamente positiva, Mas, objetar-sed, tudo isso era muito bonito num periodo em que o ensino da psica- ndlise ainda tinha um impacto de subversto; hoje, porém, ele esta- ria mais vinculado ao establishment. Nessa época, a psicandlise descobria ensinando-se 0 seu préprio caminho rumo & verdade, rumo i sua verdade, a qual, aliés, coincidia simplesmente com a verdade de Freud. Com efeito, a verdade do inconsciente € uma 86, e ela ali estava, descoberta na prdpria exploragto que Freud Jazia do sew inconsciente. Mas repetir a verdade de Freud serd ainda repetir a verdade? Assim, 0 préprio Freud passaria para 0 lado da defesa ou daquilo que se chama de “repressio”. A “repress”, como sabemos, pode adotar diferentes aspec- tos, sendo um dos mais evidentes nos nossos dias aquele a que se dé0 nome de difusto, vulgarizacéo, “‘recuperaciio”. Por esse lado, no que se refere & psicandlise, estamos — se me permitem dizer — muito bem servidos: neste século, a psicandlise esté por toda a parte, banhamo-nos nela. Ela ai esti, no piiblico, do qual ela molda amplamente certas reagdes, como um fendmeno de psicolo- gia social, Um livro, jd wm pouco antigo, La psychanalyse, son 4 AANGUSTIA image et son public, de Serge Moscovici, fez, num determinado momento, 0 balango dessa influéncia. Essa “imagem” implicita, vulgarizada, serd tao errénea quanto se poderia esperar? Néo estou certo disso. Mas a psicandlise também estd presente para o “leitor de cultura média”, vocés e eu, aquele que, por exemplo, iré “fazer uma demanda de andlise”. Escrevem-se ‘A PSICANALISE tratados de psicandlise; a psicardlise 6 COMO SABER até mesmo apresentada como ciéncia CONsTITUIDO constituida. Tratar-sed de uma ciéncia constituida no mesmo sentido en que esse termo & empregado com respeito as ciéncias “exatas”? Para demonstré-lo, seria necessério que ela jose cumulativa, ou seja, que os conhecimentos que proporciona se somassem a um certo fesouro acumulado e que, por outro lado, ela ultrapassasse suas hipoteses precedentes, incluindo-as. Pensemos no que aconteceu com a passagem da fisica newtoniana para a fisica einsteiniana: os\ fatos jd descobertos nao foram anulados, mas reiomades num sistema explicativo mais amplo. Enfim, seria necessdrio mdstrar que ela pode esquecerse de sua prépria histéria. Creio estar af 0 ponto mais importante: em que medida uma ciéncia esquece sua historia? Até que ponto ela pode se apresentar de imediato como tum sistema? O préprio Freud, afinal, escrevew tratados de psica- ndlise, “resumos”, em que tenta, precisamente, esquecer a hist6ria de sua propria descoberta. Que situagdo encontra nosso “leitor de cultura média” no campo do saber psicanalitico? — Em primeiro lugar, @ avalanche de publicagées, de que um compéndio conto The Index of Psychoanalytic Writings (O Indice de Escritos Psicanaliticos) nos dé uma idéia ainda incompleta. Nenhum tema de trabalho, proposto por um pesquisador, pode ter @ pretensio de avangar num terreno relativamente virgem. — Em seguida, 0 particularismo da linguagem, através das diferentes escolas, ou mesmo diferentes seitas, podendo chegar, em certos casos, ao esoterismo. 4, Paris, PUF, 1961, © 2 ed. intelraments refundide, 1976, [Edigfo brasileira: A Representactio Social da Psicandlite, Zahar Editores, 1978.) A “ANGST” NA NEUROSE 5 — Como conseqiiéncia dos dois pontos precedentes, a difi- culdade, para cada leitor, em ligar, em concatenar as coisas, em formular ele proprio a sua perspectiva. Aquele que entra na lite- ratura psicanalitica, no importa por que entrada desse imenso edificio, é levado, quase necessariamente, a jormar para si uma espécie de sistema de pontos de vista pessoal, jorcosamente fal- seado, onde esti lado a lado nocdes pertencentes a diversas esco- las e a diferentes épocas. Verd misturarem-se nogdes como, por exemplo, a de “ego autdnomo”, que veio da psicandlise americana; ade “traumatismo”, que, pelo contrdrio, esté ligada aos primérdios da psicanélise; ou ainda a de “objeto bom”, que foi proposta por uma escola muito particular: a escola inglesa de Melanie Klein — Outra caracteristica ainda é que 0 nosso “‘leitor de cultura média” perceberd imediatamente (e talvez se escandalize com isso) @ onipresenca de um personagem central. Quero dizer que, em psicandlise, incessantemente recorremos a © RECURSO Freud, aos textos freudianos, que se apre- ‘A FREUD sentam como uma sacrossanta biblia, Afinal, essa referéncia a um texto nao constitu algo original. Na Idade Média houve a referéncia a Aris- t6teles; em toda uma corrente do pensamento sécio-econémico con- temporineo hd a referéncia a Marx. Alids, seria interessante realizar um estudo comparado sobre as diversas maneiras de jazer referén- cia a um texto bésico, considerado o corpus que se cita e se discute. Talvez pudéssemos perceber, apesar dessa aparente semelhanca, que a escoldstica é muito diferente conforme os trés personagens em questao: Aristéieles, Marx e Freud. Em todo caso, em psicandlise, ainda que se faca referéncia a Freud, € certamente de um modo muito cauteloso. Nao se chega, no entanto, a invocar Freud como argumento de autoridade; 0 que ‘nos importa é, talvez, menos 0 recurso a Freud do que o retorno a Freud, Freud como iniciador da psicandlise, por si s6, jd constitui um problema, A necessidade de retornar as origens é suficiente para suscitar um problema epistemoldgico quanto ao estatuto dessa ciéncia, desse modo de conhecimento que a psicandlise pretende, ser. Para dar 0 exemplo da fisica, retorna-se a Galileu? Retorna-se a Newton? Retcrna-se até mesmo a Einstein? Certamente nao, salvo no caso do historiador da jisica, 0 que é uma especialidade muito | particular. O fisico utiliza as descobertas de um ou outro de seus 6 AANGUSTIA grandes precursores, mas sem retornar explicitamente a eles; dio hd uma volta constante a uma reflexto sobre 0 modo de surgi- mento da descoberta. Entdo, dirdo vocés, isso acontece porque a psicanélise ndo € uma ciéncia, e porque ela é apenas o tliimo avatar da filosofie. E vocés sabem que a filosofia tornou-se cada ver mais a histéria da filosofia. A filosofia é verdadeiramente inse- ardvel de uma reflexiio e de um retorno incessantes sobre si mes- ma e sobre os sistemas que descobriu, sobretudo depois de Hegel € ainda mais no momento atual. A histéria da filosofia é (disse Marx), ao mesmo tempo, a morte da filosofia. Mas a filosojia con- tinua muito saudével, fazendo sua prépria hist6ria. .. A psicandlise nao 6, porém, a historia da psicandlise; é uma ciéncia na acepeao ‘mais ampla ou, pelo menos, visa constantemente ser uma ciéncia; isso, precisamente, na medida em que visa formular verdades acerca de um objeto, que é 0 inconsciente, Mas a particularidade dessa ciéneia é, em sew préprio surgimento, estar vinculada & hist ria de seu proprio objeto. Quero dizer que a descoberta freudiana estd necessariamente ligada a descoberta, por Freud, do seu préprio inconsciente e de certas dimensées que se encontram 0 incons- ciente de todos e de cada um. A psicandlise tampouco & historia, pelo menos no sentido mais banal do termo, ou seja, ela ndo apresenta um desenvolvimento cronoldgico com um antes e um depois, de modo que se possa dizer simplesmente ¢ sem outra ressalva: antes de Freud, em Freud @ depois de Freud. Quero dizer que a cronologia, dimensio impor. tante na historia das idéias, talvez ndo HISTORICIDADE tenka na psicandlise exatamente 0 mesmo ESPECIFICA lugar que tem em outras partes. Mas DA DESCOBERTA neste ponto, entretanio, quero caminhar or alguns instantes no sentido ‘nverso do que estou afirmando. E certo que, para aguele que estava na hhistéria da descoberta analttica, quero dizer, para Freud, havia um problema de cronologia; cada uma de suas descobertas, pe- guenas ou grandes, ou até pseudodescobertas, eva assinalada, em seu inicio, por uma espécie de exclamacéio, por um “eureka!” “Descobri, e isso merece ser datado.” Para que voces percebam essa dimensio ¢ também essa iluséo cronoldgica de Freud, reme- to-0s & correspondéncia com Fliess. Nela, Freud escreve, tomado de entusiasmo (por vezes também de depressio): “Jd te revelei um A ANGST" NA NEUROSE 7 grande segredo como: a histeria é isto, a neurose obsessiva é aquilo...?” ou ainda esia passagem famosa: ‘‘Crés verdadeira- mente que um dia haverd sobre a porta de casa uma placa de mdrmore onde se poderd ler: Foi nesta casa que a 24 de julho de 1895 0 mistério do sonko foi revelado ao Dr. Sigmund Freud?” Em reveréncia a essa iluséio cronolégica, a placa foi efetivamente colocada mais tarde por seus discipulos. Mas 0 monumento escrito é mais complexo: permite pressentir 0 que é a “histéria” da psica- nilise, como se avanga, por certo, de descoberta em descoberta, mas, sobretudo, como as descobertas jamais so tao descobertas quanto se acredita, quanto o préprio Freud acreditava que fossem. As descobertas senipre sao identificadas posteriormente. No entanto, para Freud, "nessa espécie de movimento em espiral que the fez descobrir coisas que, no fundo, ele id tinka pensado, impoese a necessidade de, a cada espira, “marcar a data”, na acepetio mais Jorte que essa expressdo possa ter. Eis uma outra passagem onde © humor da apresentagao apenas acentua a violéncia da exigéncia: “Carissimo Wilhelm, isso aconteceu a 12 de novembro de 1897; © Sol encontravase no dngulo oriental, Merctirio e Venus estavam em conjungao. Nao, as participacoes de nascimento nfo so mais redigidas desse modo. Isso passow-se a 12 de novembro, um dia dominado por uma enxaqueca unilateral esquerda; depois do almo- 0, Martin instalowse para escrever um novo poema; a tardinha, Oli perdew seu segundo dente e, apds os terriveis tormentos destas tiltimas semanas, eu trouxe a luz mais algumas nodes. Na verdade, elas ndo sdo inteiramente novas, tendo jd aparecido e desaparecido sucessivas vezes, mas agora estabilizaram-se e viram a luz do dia.”® Ao mesmo tempo que “marca data”, Freud é obrigado a reco: nhecer 0 aspecto de retorno ciclico, ¢ a comparagio com 0 movi: ‘mento astral fem suas razdes profundas. A descoberta da psicandlise, e esta afirmacdo nada tem de ori ginal, é, nessas cartas a Fliess, a auto-andlise de Freud. O movimen- to da descoberta, em psicandlise, nao é cronoldgico; tudo pode ser questionado de novo e, inversamente, o assim chamado “ignorado” 0 que é “o sempre sabido”. Para situar as caracteristicas da 2. Em La naissance de la psychanalyse, Paris, PUR, 1973, p. 286. [ESB — em Bxiratos dos Docurtentos Dirigidos a Fliess; vol. 1.1 3. Ibid, pp. 205-204 8 AANGUSTIA hist6ria psicanalitica em relagio a outras concepedes da historia, talvez fosse interessante uma referéncia ao que Althusser chamou de “corte epistemolégico”. Estudando a obra de Marx, pensou ter descoberto nela, precisamente, um momento em que, apesar de todas as aparéncias ¢ de todos os retornos ulteriores as antigas terminologias, 08 conceitos subitamente “dao uma virada’” ¢ assu- mem um valor cientifico que nao possuiam antes. Qualquer que seja o valor desse conceito para a historia do marxismo — ¢ con- 4ess0 minha total incompeténcia no assunto — eu oporia de bom gradé a essa nogo de “corte epistemoldgico”, que considera a hhistOria das ciéncias como progresso (descontinuo, mas progresso), um conceito que é central na historicidade freudiana: 0 ccnceito de posterioridade. O que significa posterioridade? Significa que, tanto no desen- volvimento do individuo como na sua andlise, nio se pode, na verdade, utilizar 0 conceito de causalidade puramente lineur, ou seja, que 0 antes nunca determina o depois de maneira puramente mecdnica, nem, inversamente, de um modo simétrico, um conceito que seria pura ¢ simplesmente o da reinterpretagao a posteriori, ou mesmo da ilusao retroativa, ou da ilusto retrospectiva, Tam pouco —e é agui que nos separamos do “corte epistemolégico” — uma ruptura dialética, definitivamente consumada, com 0 pas- sado. Se realmente existe em psicandlise uma espécie de didlética, ela é sempre precdria em sua trajet6ria, é a dialétiea de um “‘cedo demais”: acontecimentos que surgem cedo demais para serem com- preendidos, para assumirem verdadeiramente sua importiincia, ¢ de um “tarde demais”, com todas as jalhas, todos os re'ornos (preferimos empregar o termo regressio) possiveis. Uma historia, portanio, que nunca € téo nova quanto se poderia esperar, mas que também nao é to mondtona quanto se poderia supor. Falei de recurso a Freud, de retorno a Freud; pois bem, formularei agora o programa de um retorno sobre Freud e sobre © movimento psicanalitico. Retorno sobre Freud: 0 proprio Freud o fez imimeras vezes. £ impressionante ver quantas passagens ele dedicou em seus escritos & histéria do sew préprio pensa- mento, como reescreveu sua propria his- 16ria, Além dos textos explicitamente hist6ricos, como Um Estudo Autobiogréfico ¢ A Histéria do Movimento Psicanalitico, em quase © RETORNO SOBRE FREUD A “ANGST” NA NEUROSE 9 todos os escritos se encontra uma retrospectiva histérica, um re- torno sobre Freud por ele mesmo, nesse movimento de espiral Freud reescreveu sua histéria segundo uma éptica muito particular, onde a verdade de certas reinterpretagdes estd intimamente mistu- rada a dejormagio de certos elementos jatuais. Retorno sobre ele mesmo, num movimento de espiral, em que Freud acredita, por vezes, descobrir coisas que jd postulara hd muito tentpo. Em 1920, por exemplo, pensa anunciar uma grande descoberta com a nogio de “ego”, quando esta jd se encontra, na integra, nos primeiros escritos, Redescobre coisas como a “defesa”; e, mesmo no caso da introducdo de um conceito tao particular e tao estranho como 0 de “pulsio de morte”, pode-se perceber que, na realidade, 0 que houve joi antes uma nova redistribuigao do que uma verdadeira descoberta, Isto porque existe apenas uma grande ¢ nica desco- berta que engloba todas as outras: a descoberia, evidentemente, do seu préprio inconsciente. Descoberta do seu préprio inconsciente. Para voltarmos a esta UER e ao setor bem delimitado onde a psicandlise esté explicita- mente “‘programada”', quisemos manter 0, compromisso desse de- enn safio, mas “como analistas”, &. possivel paced ensinat a teoria psicanalitica como ans Berce listas? E possivel transmit, no ensino ¢ no estudo, algo da exigéncia que presidiu 4G descoberta? Quanto a mim, estar aqui significa que nao renuncio @ aproximar:me deste objetivo: um ensino psicanalitico da psica- niélise, Creio que um certo ntimero de condigdes minimas poderiam ser enunciadas, Mencionarei duas delas: Por um lado, esse ensino deve respeitar uma certa dimensio histovica, Uma hist6ria que consiga — e é nisso que o préprio ensino da andlise seria analitico — levar em conta as categorias temporais elucidadas pelo freudismo: a nogdo de repetigio, a nogao de ocultagao ou de recalque, a nogao de retorno do recalcado e, talvez ainda mais, a nogio de posterioridade. Para uma tal abor- dagem, as historias propriamente cronolégicas (Jones, ow Marthe Robert, por exemplo) sé nos podem servir de pontos de referéncia extrinsecos, esquemas ou esbogos. Um ensino psicanalitico da psicandlise também deve tentar ser interpretativo. Interpretar é algo que sempre foi feito; mas Freud 10 AANGUSTIA forneceu um método de interpretagto muito preciso, basealo em determinadas regras: “livre associagto” no analisando e “ctengio livremente fluuante” no analista, Essas regras resultam numa esp6- cie de desestruturagio dos contetidos: tudo 0 que é ouvide, tudo © que é associado, deve ser colocado mum mesmo plano, numa verdadeira aplainagdo. Tratese de um método de interpretactio inteiramente original, que se opde tanto aos antigos métodos a que Freud, no entanto, se refere, quanto aos que constatames com excessiva fregiiéncia em nossos dias: a utilizacdo de conceitos ana liticos como chaves de uma nova hermenéutica. Interpretar Freud, sim, mas interpretar Freud com o método de Freud. O que poderd sobrar para interpretar textos mortos, uma literatura, até mesmo piara interpretar 0 movimento psicanalitico? Em todo 0 caso, nao é — ou nio é essencialmente — recorrendo ao anedético, a viven- cia individual, isto é, @ vivencia de Freud, as transjormagses de sua existéncia pessoal, aos seus “complexos”, que se deve proce- der, Creio que se deve chegar, por um lado, a encontrar uma transposigao desse método de aplainagéo para o nivel da leitura dos textos e, por outro lado, a situar-se num campo intermediario onde funcionaria a interpretacio. Nao se trata de fazer uma psica- ndlise de Freud, de Melanie Klein ou de Ferenczi, mas de visar esse campo intermedidrio que, por vezes, designo com o termo “oxigencia”, Exigencia tedrica que, para nds, é apesar de ‘udo a refrac, no nivel da descoberta (quando esta se exprime ainda em sua fonte), € como a sombra ou 0 embaixador de um desejo que, este, certamente nao pretendemos interpretar. Desejo, prazer, aspiracdo... todos esses termos nos remete- tiam a uma filosofia do futuro, e até do “projeto”. Ora, a psica- nélise € censurada, com certeza, e com fundamento, por tet a pretensio de. ser a desmistificago desta dimensio do projeto. E mesmo esse famoso “‘desejo”, tio exaltado em nossos dias por certos psicanalistas, com acentos quase mfsticos, ndo esté, acima de tudo, matcado pelos primeitos achados que 0 moldaram? Vocés conhecem a famosa f6rmula de Freud: “Encontrar 0 objeto 6, de fato, reencontré:lo.” Toda a psicandlise se constréi sobre uma des- confianga em relago Aqueles que entoam 0 hino ao desejo, A“ANGST" NA NEUROSE n Teré sido para marcar essa nota pessimista, antidionisface, que centralizei este curso no que podemos chamar de afetos nege- tivos: desprazer, dor, angtistia?* Gostaria de tentar, este ano, situar a fuunedo deles: por um lado, no desen- cadeamento do proceso psiquico (em que sentido, por exemplo, Freud atribuiu mais a0 desprazer do que ao prazer a dintmi- ca do processo pulsional?), e, por outro lado, na formaco dos sintomas, uma vez que, aqui, a angistia é central. Mas gostatia também de definir com precisio suas relagdes reciprocas, que estéo longe de ser simples: desprazer ¢ dor, em particular, absolutamente no sio sindnimos, apesar de certas Iei- turas um tanto apressades. Existe em Freud no apenas uma teoria do desprazet, relativamente simples, mas também uma teoria da dor, considerada, em sua relagdo com 0 corpo, como eftagao. Bssas relagdes do desprazer, da dor e da angistia podem até nos ensinar algo acerca da relagao do psiquismo com 0 corpo — no no sen- tido das velhas relagdes da alma e do corpo, mas quanto aos modos de transposicio, de derivagio ou de metéfora segundo os quais, estes dois domfnios se comunicam: 0 da estrutura psfquica (nota damente 0 do ego) & © do corpo. Esta reflexdo talvez consiga esclarecer-nos um pouco acerca da teoria ¢ da fungo geral dos afetos,e acerca daquilo que os psicanalistas denominam registro Cecondmico” Para Freud, esse é uum dos aspectos da teoria psicanalitica Em Seu nivel mais abstrato, que ele denomina “‘metspsicologia”. E, na metapsicologia, ele dis- tingue 0 ponto de vista‘ s6pico,’ também denominado atualmente ponto de vista estrutural, ou seja, 2, consideracio dos diferentes lugares psiquicos e sua interagio; por exemplo, inconsciente ¢ pré- consciente, ou 0 ego € 0 superego. Aqui o psiquismo é considera- do um aparelho constituido de partes extra partes que atuam umas sobre_as_outres. Ao lado desse aspecto t6pico, temos 0 aspecto indmico, que leva em conta a teoria do conflito. Sdo aspectos Gue 86 Se distinguem por abstraco ¢, evidentemente, 0 ponto de FUNCKO, ESSENCIAL DOS AFETOS NEGATIVOS 4. © titulo snunciado para este curso era: “Angoisse, douleur, déplsisic” (Angistia, dor, desprazer") 12 AANGOSTIA vista dinfmico, 0 do conflito, s6 se concebe em relacio_com 0 ponto de vista t6pico. Por fim, hé © ponto de vista éconSmic que leva em consideracdo a quantidade. Essa nogio de quintid de, mantida ao longo de toda a reflexdo psicanalitica, néo apenas em Freud, pode ser considerada, por certo, um remanesceate de certo cientificismo do fim do século XIX. Mas, de fato, adepta-se de maneira privilegiada a um certo campo clinico que Freud des- cobre justamente nesse final do século XIX. Tanto no estudo das “neuroses atuais” — neurose de angtistia, neurastenia (logo tere- mos ocasiio de falar delas) — como, sobretudo, na anélise das histerias, Freud percebe a necessidade de distinguir dois elementos nos fenémenos psiquicos: afeto, por um lado — reago emocional ou sentimental —, e, por outro, representagao — contetido idzativo. ‘A distinggo poderia parecer abstrata, mas a descoberta concreta de Freud € de que temos o direito de distinguir entre afeto © repre- sentagio, pois 0 que se observa € que esses dois elementos podem ser independentes um do outro; que so suscetfveis de se deslocar um em relagéo ao outro; que um afeto pode reproduzirse sem representagio € que a psicandlise pode permitir reencontrar a representagiio ausente; que um afeto pode estar ligado 2 uma certa representagéo que no o justifica de maneira nerhuma, ‘Assim, em Estudos sobre a Hisieria, vemos uma paciente tet uma crise de angtstia ligada ao aparecimento da imagem quase alucina- téria de um certo rosto que, em si, nada tem de assustador. # isso que Freud denomina “falsa conexao”, ¢ todo o trabalho psicana- ico nessa época (e também uma parte desse trabalho em nossos dias) consiste em deslindar essa felsa conexio, em encontrar a representagao que ésté verdadeiramente vinculada a esse afeto © 0 justifica historicamente, em reconstituir as cadeias de representa- ges que ligam essa primeira representacio — que justilica o afeto — a iiltima — esse rosto —, que ndo o justifiea mas que, no entanto, esté associado a ele no sintoma. Assim, nfo foi unicamente em fungdo de pressupostos tebricos que Freud enunciou, no final de um de seus primeiros artigos, 0 principio que rege 0 ponto de vista econémico: “Para terminar, gostaria de mencionar em poucas palavras a represeniagdo auxiliar de que me servi para essa apresentagio das A "ANGST" NA NEUROSE 13 neuroses de defesa. Nas fungdes psiquicas ¢ @ representagéo que se deve distinguir, algo (quantum de afeto, soma de excitagao) que possui todas as caracteristicas de uma quantidade — embora nio disponhamos de qualquer meio para medita —, algo que pode ter aumento, diminuicao, deslocamento e descarga, e que se estende| sobre os vestigios mnésicos das representagdes um pouco como uma) carga elétrica na superficie dos corpos.””* Trata-se, evidentemente, de um modelo fisicalista, mas que esté diretamente fundamentado na experiéncia, De fato, é na clinica que se pode constatar a capacidade de um afeto para aumentar, diminuir, mas, sobretudo, para ser deslocado ou descarregado. A idéia de descarga sugere um dos aspects da terapéutica de Freud nessa época, aquele que consiste em fevorecer uma certa explosio emocional: 0 aspecto “catértico”. “Pode-se utilizar essa hipétese, que, alids, jd se encontra na base de nossa teoria de ‘ab-reacio’ [ab-reacio € o mecanismo do método catértico, 0 fato de uma descarga emocional ser favorecida no decorrer da cura}, no mesmo sentido em que os fisicos postu- lam a existéncia de uma corrente de fluido elétrico, Essa hipstese justifica-se, provisoriamente, por sua utilidade para conceber © ex- plicar uma grande variedade de estados psfquicos.”" Nessa linguagem econdmicd, a oposi¢zo quantidade-represen- taco, ou quantidade-neurénios, é, portanto, a mesma coisa que a oposig&o clinica afeto-representacao, Em nossos dias, dew-se a essa oposi¢ao ainda uma outra interpretagdo, esta de tipo lingiistico: significado-significante, correspondendo o significado ao afeto, ou A quantidade, no pensamento freudiano, e o significante, evidente- mente, & representagao. & possivel, alids, que essas duas concepgdes ni sejam incompativeis. Mas 0 que importa, seja qual for 0 mo- délo, econ6mico ou lingiiistico, € que o afeto, quantidade ou signi- ficado, possa, em certos casos, tornar-se significante, tornarse uma certa representagio. Na teoria freudiana, é toda a evolugio que leva de uma concepoao puramente econémica da angistia, como 5, S, Freud, “Les psychonévroses de défense”, em Névrose, psychose et perversion, op. cit, p. 14. [ESB — As neuropsicoses de defesa; vol. 111.) 6, Ibid. Entre coleheres: comentérios de J. L. 14 AANGUSTIA simples descarga quantitativa, i angistia considerada como um sinal”’. Logo, 0 préprio afeto pode, por fim, assumir 0 valor de representagio. Acabo de evocar essa evolugio da teoria freudiana da angis- tia e isso me leva a indicar rapidamente, para este curso, algumas referéncias em textos freudianos. 12 La naissance de la psychanalyse: obra que retoma a cot- respondéncia de Freud com seu amigo Fliess nos anos 90 e, muito especialmente, duas passagens; por um lado, 0 Manuscrito E, “Comment nait l'angoisse” e, por outro, o “Projet de psychologic scientifique”, que se encontra no fim de volume, um capitulo inti tulado “Llexpérience de Ia douleur” * 28 8 textos sobre aquilo que, a partir de Freud, chanamos de “neuroses atuais” — entre eles o artigo intitulado “Quill est justifié de séparer de Ia neurasthénie un certain complexe sympto- ‘matique sous le nom de névrose d’angoisse” *. 32 Os textos da Métapsychologie: particularmente “Refoule- ment”, € também “Deuil et mélancolie” *, 4° Au-dela du principe de plaisir (mal traduzido mas aces- sivel) ®, 52 Inhibition, sympt6me et angoisse *: texto fundamental para © nosso tema, especialmente um dos apéndices desse trabalhc, que se intitula “Douleur et angoisse”. 62 Abrégé de psychanalyse: texto tardio de Freud. 7. Pads PUR, 3° elie, 1973. [ESB — "Como se oiina » amistad" sim Estraton don Bacomerios Dinles@ Fest Vols 1 Proje past Prcoog Coates ae 13 3. Em Névase, pace of perversion, Pars, PUR, 3* elo, 1878 a LCLrr—~—t—“—™ts—Ss—SsSSsSOesSOSSSO Aro portular ita “nourese de angato’s yl It) 9, Pas, Galinad, 968: [E88 "Repreio', “Tuto ¢ mele em Artie bre Mesa vel, XIV Em fsa de peyohanaie, Dn Payot, 1965, pp, 781. (ESB — Alin: do Principio de Prazer; vol, XVL} a UsPany PUP, 6 cgi, ISTE. (ESB — ibis, Siomas e Ane dade il} invari, PUR, 8 ed vol XT 1995. [ESB — Esboro de Psicandlise: A “ANGST” NA NEUROSE 15 — 2 de dezembro de 1970 Esta teoria nos permitité entrar diteta- mente no tema, isto €, na telaggo entre angiistia ¢ sexualidade. periodo a que me refiro, na evolu- Go do pensamento de Freud, € 0 de 1892-1895, periodo que se desenrola em dois planos relativamente diferentes. Pode-se distinguir 0 plano das publicagdes, em que Freud esté capitalizando uma experiéncia an- terior, suas primeiras psicoterapias das histerias, na obra que pu- blica com Breuer: Estudos sobre a Histeria. Mas, a0 mesmo tempo, ao se ler, por exemplo, @ correspondéncia com Fliess desse perfodo, chama 2 atengao o fato de Freud verse freado por essa colabore: fo, que o obriga a elaborar uma teoria que seja, em éltima ins- tancia, uma espécie de compromisso. Com efeito, ele tem que levar em conta os pontos de vista e as reticéncias de Breuer, tanto no que se refere & teorizago geral quanto em relaglo & descoberta da sexualidade — seu lugar na etiologia das neuroses ¢ da histeria, 2 0 fato de que ¢ sempre necessério retroceder mais e mais na his- téris sexual do individuo, ou seja, chegar & suposicio da existén- ia de uma sexualidade infantil. Portanto, neste plano da publica- Gio, os Estudos sobre a Histeria correspondem a um compromisso © marcam uma certa pause. © outro plano € 0 da atividade terapéutica de Freud, em que ocorre ento um certo deslocamento de interesse: sem divide, ele continua realizando psicoterapies e psicandlises, mas volta-se igual- mente para um outro campo que Ihe parece poder demonstrar, de modo muito mais evidente ¢ mais répido, a etiologia sexual das neuroses. E um dominio em que essa etiologia sexual j4 era admi- tida por outros, em que sua presenga era mais convincente, mani festando-se com freqtiéncia desde as primeiras entrevistes: uma presenca “atual” de dificuldades ou disfungoes sexuais, S20 deter- minadas anomatias da vida sexual atual que af se revelam facil- mente desde as primeiras entrevistas elfnicas, Freud explora esse campo das neuroses de maneira “ndo-psicanalitica” (ou, em todo 0 caso, sem praticar uma psicandlise) num németo considerével de casos de consulta PRIMEIRA TEORIA DA ANGUSTIA: A PROPOSITO DAS NEUROSES ATUAIS fe AANGUSTIA ““A titulo de trabalho preliminar, comecei a reunir uma cen- tena de casos de neurose de angistia; desejaria reunir iguilmente uma quantidade equivalente de casos de neurastenia nos dois sexos © de depressio periddica, estes mais raros. A guisa de comple- mento necessério [trata-se de uma espécie de contraprova, de grupo de controle], eu deveria estudar ainda uma centena de nervo- sos." " Ha, portanto, um plano de pesquisa clinica nfo quantita- tivo nem estatistico, € certo, mas relativamente superficial. Encon- tramos os resultados dessa investigaco nos seguintes textos: — “‘Qu'il est justifié de séporer de Ia neurasthénie un certain com- plexe symptomatique sous le nom de névrose d’angoisse”” (ar- tigo de 1895)"; — Dois manuscritos que correspondem 20 mesmo conteiido, mais breves © menos elaborados mas suficientemente explicitos (ma- nuscritos B ¢ E na correspondéncia com Fliess)#®, + © problema que se apresentou no artigo, como se vé pelo préprio titulo, € aparentemente nosoligico, classificatério: pode-se isolar uma certa sindrome de uma outra sindrome que, até agora, era considerada como fazendo parte de uma certa entidade mér- Dida, @ neurastenia? De fato, para Freud, tratase certamente de um problema nosolégico (Freud nunca fot hostil & -classificacto nosogréfica; pelo contrério, manteve-a ao longo de toda a sua obra); pata ele, a "s{ndrome” (para falar de algo mais préximo da obser- vaco que a doenga) s6 pode ser sepatada se os sintomas apresen- tam entre si uma ligaciio mais forte, mais freqtiente do que com 0 conjunto de sintomas do quit os destacamos ¢, sobretudo, se apre- sentam uma espécie de Tigacdo fiiterna, ou seje,-uma etiologia um mecanismo especifico. Partimos, portanto, da neurastenia, enti- dade isolada antes de Freud e de que muito se falava na época. Ela foi desc ta primeiro pelo ameticano G. M. Beard,-notadamente em dois artigos, de 1881 ¢ 1884. O primeiro intitulase “American ner- DA NEURASTENIA. 13. 8. Freud, La naissance de la psychanalyse, op. cit, p. Of. Entre colehetes: comentérios de JL. 14. Em Névrose, psychose et perversion, op. cit, pp. 15538, 15. Em La naissance de la psychanalyse, op. cit, pp. 61-67 © 8086. A ANGST" NA NEUROSE 7 vousness” (“‘Nervosismo americano”) e 0 outro “La neurasthénie sexuelle (épuisement nerveux)” [“Neurastenia sexual (esgotamento nervoso)'"]. Trata-se de uma sindrome de tipo depressivo, erGnico, com predominio de perturbagdes corporais difusas, perturbagSes de somatizagio, por assim dizer, com um certo néimero de distarbios funcionais mas, sobretudo, dores. Eis como a sindrome neurasténica passou a ser caracterizada em nossos dias, uma vez que ainda € considerada possuidora de um valor descritivo: frontier — por um lado, evidentemente, uma astenia intelectual, mas sobre- tudo fisica (é, na verdade, uma afeccio somética ou psicosso- mética), que se assemetha & fadiga mas se distingue desta por um trago muito particular e paradoxal, ou seja, o seu ritmo invertido durante 0 dia: 0 individuo esta mais fatigado ao des- pertar do que & noite, ou mais fatigado quando no realiza esforgo algum do que apés um esforgos — sintomas dolorosos, notadamente dores de cabega e dores raqui- dianas, igualmente vages; — um certo mimero de distiirbios juncionais das chamadas fun- ‘ges neurovegetativas, perturbagées digestivas, eventualmente cardiovasculates; — e um estado de depressao, de tristeza, de indiferenga. Evidentemente, nessa época foram descrites de mancira pare- cida outras sindromes de tipo asténico. Menciono o que Pierre Janet, mais ou menos na mesma época ou um pouco mais tarde, descreveu como psicastenia, Num caso trata-se de neurastenia, no outro de psicastenia, mas, evidentemente, nfo € nessa diferenca entre astenia nervosa ou astenia psiquica que se deve insistir, ainda que, apesar de tudo, 0 termo neurastenia pretenda descrever ‘0 aspecto fisico dessa sindrome, sua projecZo fisica, por exemplo 0 fato de as dores se projetarem ao longo do eixo “neurol6gico”, tanto da cabega como da coluna vertebral. Fago alusio & sindrome de Janet apenas para indicar que se trata de algo muito diferente. Em Janet, o termo “psicastenia” tem um propésito pelo menos tio explicativo quanto descritivo. A idéia de psicastenia é relacio- nada com a nogdo de que as neuroses estio ligadas a uma baixa de tenséo psiquica. A psicastenia de Janet, em relagao & nosologia 18 AANGUSTIA freudiana, situase grosso mado do lado da neurose obsessiva ou, em todo 0 caso, do caréter obsessive Isso € relativamente pouco importante, mas 0 que € muito mais importante para o nosso tema é 0 fato de que a relagio entre neurastenia ¢ sexualidade foi bem observada pelos psiquistras ou médicos que a estudaram antes de Freud. O proprio titulo do art g0 de Beard o mostrou, mas também em Preyer tense a mesma indicagio. O artigo de Preyer intitule-se: “Les rapports sexuels incomplets, coit interrompu ou onanisme conjugal et leurs consé- quences chez "homme; étude tirée de Ia clinique (“As relagées se- xuais incompletas, coito interrompido ou onanismo conjugal e suas conseqiifncias no homem; estudo baseado na observacio c'inica”), Bis 0 que Preyer escreve propésito da etiologia da neutastenia: “As perversées sexuais..., as diversas espécies de masturbagGes psiquicas podem ter uma aco etiolégica. Mesmo no casamento, € quando existem relagées normais, 0 coito interrompido € capaz de Provocar o surgimento de fenémenos neurasténicos. ..” Assim, 0 Coito interrompido nfo é, de modo algum, algo indiferente; esta na origem, de wm modo permanente ¢ sem que se suspeite disso, dos nervosismos intensos ¢ das fraquezas nervosas, em suas intime ras manifestagSes™®, Podese afirmar que Freud (no entrarei na sua teoria da neu- rastenia, alids menos clara do que a da neurose de angistia) retoma 2 idéia de que » neurastenia € 0 sinal de um esgotamento da ener- | gia sexual, ligado a uma atividede sexual anormal. A neucastenia jeorresponderia a um fendmeno sexual de desvio, ao passo que a | neurose de angiistia teria, em iiltima instineia, um mecanisno mais \quantitativo, Sobre este ponto, remeto voces ao Manuscrite A. Passo por cima da questio da neurastenia. Ela s6 fo. citada @ fim de situer este artigo que nos introduz ao problema da angiistia, Aqui, a contribuigdo nosolégica de Freud consiste, pois, em definir algo que é a neurose de an- A NEUROSE Blstia. E, j@ que estamos nos conceitos DE ANGUSTIA classificat6rios, uma outra distingio a ser lembrada — indispensével para ler qual- quer artigo psicanalitico — ¢ aquela entre neurose de angdstia aquilo que ngo tardaré em ser designado por Freud e pelos psica- 16, Cf, 8. Freud, La naissance de la psychanalyse, op. cit, p. 61, nota 3, A “ANGST” NA NEUROSE 19 nalistas como histeria de angistia. A histeria de angistia (vooés Poderio situé-la melhor lendo a introdugio ao caso do “Pequeno Hans”) é, em linhas gerais, a fobia ou, em todo caso, a fobia na medida em que nio se liga & histeria, Preud caracteriza @ neurose de angistia por toda uma série, uma espécie de eatdlogo de sintomas, cujo interesse seré, evidente- mente, o de verificar qual é sua comunicagéo interna, Eis, em todo 0 caso, como esses sintomas so enumerados, (Vou esquem- tizar um pouco, pois Freud € mais complexo, multiplicando as distingSes em obediéneia aos hébitos da sua época.) Em primeiro 1° lugar, um fundo de excilabilidade geral que Freud considera um. sintoma evidentemente banal mas constante na neurose de angis: tia, e que tem para ele importéncia tedrica j6 que se opse & idéia de uma perturbagdo “em escassez”, em déficit. Pelo contrétio, na neurose de angiistia, longe de haver “escassez” de alguma coisa, ha tum “excesso" (vocts verdo, apesar de tudo, que ha “escassez"” de outra coisa). Tratase verdadeiramente de uma perturbagdo cco- nomiea, pois pOe em jogo as categorias quantitativas “excess0” “escassez", Portanto, esta excitabilidade geral traduz um actmulo de excitagdo que 0 individuo revela-se incapaz de suportar (0 segundo termo que, por assim dizer, serve de fundo ao sin- toma € a expectativa ansiosa. & um estado de ansiedade perma- nente, sempre propenso a se fixar, na menor oportunidade © 20 menor pretexto. Esse (ermo, pretexto, que nfo figura explicitamen- te em Freud, permite compreender do que se trata, O que ecorre primeiro é a ansiedade, e 0 modo como ela se concretiza nada mais €-do que uma circunstincia ocasional, uma maneira de vir a fixar see, em altima anélise, ela poderia fixar-se em qualquer coisa Segundo Freud, trata-se da acentuacGo de um fenémeno normal que se chama correntemente de “ansiedade, tendéncia a uma concep- cio pessimista das coisas"; mas, neste caso, ela se tora compul- va Essa expesativa ansiosa € o sintoma nuclear dessa neurose) » ‘angistia e, de um ponto de vista teérico, podese dizer que “existe aqui presente um quantum de angtstia lvremente fiu-| tuante” coved! a] 17, S. Freud, “Quit est justifié de séparer de la ncurasthénie un certain complexe symptomatique sous le nom de névrose d'angoisse”, em Névrose, psychose et perversion. op. cit, p. 18. 20 AANGUSTIA A angistia € considerada, portanto, quantitativamente mensu- ravel. Teremos que discutir longamente os termos “livre” o “livre- mente flutuante”; a idéia de uma energia livre ou néo-livre & abso- lutamente central no pensamento freudiano, onde angistia é energia re que, na expectativa ansiosa, “domina a escolha das re>resen- tages ¢ esté pronta, # cada vez, para ligarse a qualquer conteddo representative que convenha”"*, A expectativa ansiosa € indeter- minada, pode pegar no pulo, por assim dizer, qualquer evento para transformarse, por exemplo, em acesso de angi — 0 terceiro tipo de sintoma, sobre esse fundo de expectativa ansiosa, € formado, portanto, pelos acessos de angistia”®. Alguns podem ser desprovides de contetido representativo imediato: 0 su- jeito esta ansioso sem saber por qué; ot entio esto ligados a uma representagéo: uma idéia ou uma sensacio somética. O acesso ou 6 desprovido de contetido representative ou tem contetido yago (sentimento de aniquilagdo da vida, de ecabrunhamento, de amea- a de loucura); ou entio esté ligado a algum distirbio sensivel ou a um distirbio de uma funcio corporal (respiragao, fungio cardia- ca, fungéo vasomotora, fung&o glandular, etc.). Por vezes, 6 esse aspecto somético que s¢ situa no primeiro plano, apresentando-se © sentimento de angéstia como simples mal-estar. Assim, a angés- tia, como afeto, pode passar inteiramente para segundo plano; ela estd, na verdade, “ligada” a uma sensagdo somética, Vé-se faci mente gue essa descricdo ¢ essa interpretacdo esto muito proximas do plano que hoje se designa como psicossomitico. — Além desses acessos de angiistia, Freud menciona, segundo 4a terminologia médica, os eguivalentes, isto é, sintomas em que a angistia como afeto ainda est4 mais ausente; € 0 caso, em pa cular, da vertigem. Os acessos de vertigem podem ser totalmente desprovidos de angtistia, apresentando-se verdadeiramente como sintoma somatico. Os neurologistas so capazes — pelo menos idealmente — de distinguir um acesso de vertigem genuinamente determinado por distiirbios neurolégicos — lesdes labirinticas, por exemplo — das vertigens de origem psiquica. 18. Ibid, 19, Ibid. | | A ‘ANG "NA NEUROSE 21 Em toda sa enumeragfo de “acessos” ou de “‘equivalentes Freud no parece, aparentemente, escapar a um desmembramento dos sintomes. De fato, a idéia-mestra € que uma angtistia livre- mente flutuante, presente como fundo, ‘A ANGUSTIA pode fixarse de maneira puramente oca- FLUTUANTE E sional, seja em sintomas sométicos, seja SUA FIXAGAO em representagGes; 0 que € a fixagdo nas representacSes? E exatamente a fobi Ne neurose de angiistia, podem-se ter fobies que tém por mecanis- mmo precisamente essa fixacio, por assim dizer arbitrdria, da angis- tia livre em tal ou tal representacdo inteiramente banal que possa prestar-se a isso. Nas fobias que esto em relago com a expecta ‘a ansiosa, esta pode fixarse em tipos comuns de perigo (ser- pente, tempestade, escuridéo). Sem divida, pode-se encontrar uma certa relacao com um evento histérico, mas sem que este, seja ver- dadeiramente determinante; fnéo_se trata imatismo, “persisténcia de impressdes fortes”. Em primeiro lugar, seria ne- cessario que houvesse expectativa ansiosa e, depois, que pelo me- nos qualquer coisa muito comum, no importa o que, fosse tomada como pretexto. Do ponto de vista do mecanismo, Freud definiu com muita precisio a diferenca entre essas fobies das neuroses atuais, da neurose de angistia, e as fobias das ““psiconeuroses de defesa”, ou seje, as neuroses que admitem uma etiologia pura- mente psiquica e histérica?®. Nos dois casos, “uma representacio torna-se obsedante por sua conexio com um afeto dispontvel. O mecanismo da transposicdo de afeto 6, portanto, valioso para as duas espécies de fobias’”**. Com essa nogio de transposi¢ao, esta- mos diante da dimensio econdmica: o afeto e a representagio sfo | dois elementos separéveis, cada um deslocavel em relago a0 outro. | Portanto, nos dois casos, existe um afeto disponivel que é trans- posto para uma representacio, “Mas nas fobias da neurose dét" angtistia, em primeiro lugar esse afeto € mondtono, sempre o de) angistia; em segundo lugar, nfo provém de uma representacio reprimida, mas a anélise psicoldgica mostra que ele nao é redutivel 20. £ importante assinalar que, nessa época, 0 segundo tipo de fobias {oi ligado por Freud A psiconcurose obsessiva, no i histérica, 21. S. Freud, “Qui est justfié..", em Névrose, psychose et perversion. yp. el p24 22 AANGOSTIA mais adiante, ¢ tampouco é atacado pela psicoterapia.”"* Assim, as neuroses atuais ndo sdo suscetiveis de tratamento psicoterapéutico (pelo menos no sentido da psicanslise), isto, nio podem ser redu- jas por uma anélise que mostraria que originalmente esse afeto estava ligado a uma representacio “X” e foi deslocado para uma representacio “Y". O afeto ndo provém de uma representagdio re- caleada; portanto, a angtistia ndo foi desligada de uma represen- tacio que jé nfo est presente no espftito, de um evento cue foi esquecido. “O mecanismo da substituigito nao se aplica, portanto, as fobias da neurose de angtstia”: isso quer dizer que, teorica- mente, uo se analisar uma fobie da neurose de angéstia, verifica-se ‘que uma certa angtstia esté vinculada a uma certa representagao mas, por trés dessa representagio, nfo se encontra uma outra de que a primeira seria o simbolo, o substituto. Passo agora ao problema, nfo do mecanismo espectfico da sgénese dos sintomas na neurose de angtstia (parece-me estar agora bastante claro, pelo menos quanto & sua diferenga em relagio & fobia das psiconeuroses de defesa), mas, agora, & sua origem. Qual € a origem dessa angtistia? Remeto-os 40 ORIGEM SEXUAL — —p Manuscrito E, que se intitula “Comment DA ANGUSTIA nait Vangoisse””", O fundamento da res- posta é evidente para Freud, orientado a0 mesmo tempo por suas pesquisas sobre a histeria, pela con- cepeao da neurastenia que ele ja encontrou relativamente elabo- rada, e por suas investigagSes clinicas: essa etiologia € sexual. Freud empreende, com base nessas centenas de consultas, de casos ‘elinicos, uma investigagio sistemética sobre a vida sexual dos pa- cientes, sobre suas relacSes sexuais — mais sobre 0 seu modo de vida sexual atual do que sobre a histéria de sua sexuilidade, Essa investigagao (que surpreende ¢ alivia muito os pacientes: “Nunca tinha pensado nisso”, dizem eles) levou a0 agrupamento, do ponto de vista de uma certa tipologia sexual (8s vezes um pouco divertida), das diferentes circunstincias em que pode nascer a an- giistia. Os mais impressionantes, para nés, so os seguintes casos: 22. Ibid. 25. S. Freud, La naissance de la psychanalyse, ap. cit. pp. 8086. A“ANGST” NA NEUROSE 2B — © que Freud denomina # angistia dos individuos virgens, ‘que tém um primeiro contato com os problemas sexuais. "Angdstia dos virgens: neste caso, o campo de representagdes em que deve desembocar a tensio fisica ainda no existe ou é insuficiente.”™* A idéia de Freud, capital quanto co que ela prefigura, por exemplo para a teoria psicossomstica, 6, portanto, que a tensdo fisica sexual néo encontra fiador numa imaginagdo sexual suficientemente de- senvolvida — Angtstia dos individuos continentes: a idéia teOrica que reteremos neste caso é o entrelacamento entre psiconeurose © neu- rose atual ou, mais exatamente, o fato de que a psiconeurose de- semboca numa neurose atual. Esses individuos, com efeito, sio fregiientemente neuréticos, cuja neurose traduz-se pela abstengéo sexual. E o conflito psfquico que leva & continéncia. Mas, a partir da “estase” que daf resulta, a angtistia desbloqueia-se de maneira puramente mecanica. — Ainda uma outra possibilidade: a da angiistia das relagoes sexuais incompletas, quer porque a excitagdo sexual é cou seja, nfo redunda numa relaedo sexual, quer porque o individuo pratica o coito interrompido on reservado. ‘Trata-se realmente de uma etiologia semelhante & que tinha sido evocada a propésito da neurastenia, ou seja, um “‘incémodo”, uma anomalia do ato sexual, ¢ no uma auséncia de realizagio sexual. De sorte que Freud deve estruturar hipéteses bastante complexas para explicar o fato de que anomalias muito semelhantes possam, conforme o caso, redundar ou na neurastenia, ou na angiistia, ou — o que é mais freqiiente — em formas mistas dessas duas neuroses”. Abandonemos essas tentativas de classificagao, que Freud pre- tende ligar, até no detalhe, a particularidades etiolégicas, a fim de abordarmos a questao gerel, metapsicoldgica, da angistia: desde essa época, € ao longo de todo © pensamento freudiano, oferecem- se duas explicagdes para a angiistia. E, se elas vao entrar const femente nao s6 em conflito mas também em dialética, no infcio opdem-se numa interrogacdo muito clara que Freud formula jé em 1892; "Nas neuroses de angtstia, a angtistia emana de uma inibi- 24. Ibid. p. 8. 25. Ihid., pp. 85-84 | oe AANGOSTIA fo da fungéo sexual ou de uma angistia vinculada & sua stiolo- gia?”* Quer dizer: pode a angistia ser explicada, pura e simples- mente, por uma espécie de transformagao de uma energia nio-em- pregeda (portanto de maneiza puramente mectinica)? Ou ento, a angistia, que apesar de tudo apresenta caracteristicas especificas, que nao é um sentimento qualquer, que se traduz por crises que tém uma cetta configuragio — certos distérbios respiratérios, por exemplo — poderé ser reduzida a um evento hist6rico? Portanto, so duas concepgdes possiveis que oponho, de momento, (Freud tentard, mais tarde, apresenté-las numa complementaridade, mas sem chegar a superar a oposigéo entre elas.) — Uma teoria puramente psicoldgica & a “angistia xememo- rada”: a angistia como crise, como estado ou como expectativa seria apenas a reprodugao de um vivido: seja de um acontecimento da vida adulta, seja, & medida que Freud retrocede na exploracio, de um evento infantil; # angistia sobreviria, portanto, num certo momento e depois estender-se-ia fora de sew contexto. No quadro desses distirbios da vida sexual atual que ele estuda entio, Freud pergunta-se, primeiro, se a angéstia, o tomor da mulher de ter tum filho (levando, durante o coito, a todos os tipos de precaugBes), nfo 6 0 que em seguida se encontra como que deslocado, esten- dido ao resto da vida, isto é, a outros momentos, fora das relagbes sexuais, Ora, essa teoria do deslocamento, essa deduptio psiquica da ansiedade, & logo afastada resolutamente por Froud: “Percebi rapidamente que a angtistia dos meus neuréticos era, em grande parte, imputivel & sexualidade, e observei, em particular, de que modo 0 coito interrompido acarretava inevitavelmente na mulher a angistia neuxotica. No comeco, enveredei por caminhos errados. Pareciame que a angtistia de que softiam os pacientes nada mais era do que a continuagao da angistia experienciada durante 0 ato sexual e, portanto, de fato, um sintoma histérico [uma angistia motivada por uma representagio, desligada dessa representaco, transposta para uma outra, esse 6 0 mecanismo da neurose psi- quica ou psiconeurose). verdade que os vinculos entre a neurose |/A_ANGUSTIA | PSICOLOGICA OU | FISIOLOGICA? 26, Ibid., Manuscrito A, p. 59, any ATANGST” NA NEUROSE 25 de angtistia © a histeria sio suficientemente evidentes. Pode haver no coito interrompide dois motivos de angdstia: na mulher, um temor da gravidez, no homem, o medo de falhar em seu desem- \yPenho. Mas a experigncia ensinou-me que a neurose de angistia (~\também aparece onde esses dois fatores esto ausentes e onde os j 4 lindividuos nao tinham qualquer razdo para temer a vinda de uma lcrianca. Portanto, a neurose de angtistia néo podia ser o prolonga- )¥ mento de uma angtistia rememorada de ordem histérica.”*" . — Eis, portanto, momentaneamente abandonada uma teoria puramente psicolégica da angistia como rememoragio, por uma teoria puramente fisiolégica assim enunciada: a angtstia seria a descarga, por outras vias sométicas, de uma excitacio sexual insa- tisfeita, E evidente que na angistia ha fendmenos de descarga so- mética: cardfacos, respiratérios e em outras esferas sométicas. Ora, em todos os casos de neurose atual de que nos ocupamos, verifica-se um actimulo de tensio sexual, ¢ uma incapacidade de descarga des- sa tenso pelas vias normais, “especificas”. O importante aqui é a oposigio entre descargas “‘especificas” e ‘‘nao-especificas”. A sexua- lidade implica, para sua satisfagio, certas acSes ditas “espectficas”. Existe uma certa especificidade e mesmo uma certa estereotipia da descarga sexual, do orgasmo. Ora, quando essa via espectfica néo - pode ser tomada, produzir-se-is uma espécie de descarga anirquica, por vies que nfo estéo organizadas em vista de um ato: € nisso precisamente que consiste a angiistia, ou todos os scus equivalentes possiveis: “Mas por que razio se produz justamente a angiistia? Esta consiste muma sensagio de acimulo de um outro estimulo endégeno — o estimulo que nos impele a respirar e que ignora qualquer outra elaboracao psiquica; assim, a angdstia pode con responder a uma tensfo fisica acumulada qualquer. Além disso, se j considerarmos mais detidamente os sintomas de uma neurose’ de angistia, descobriremos neles os fragmentos dispersos do grande ataque de angistia, simples dispnéia, simples palpitacdes, simples sensacao de angistia e a combinagao de todas essas manifestagées. Uma observacdo mais precisa mostra que se trata das vias de inervacdo normalmente empreendidas por uma tensio fisico-sexual, mesmo quando ela softeu uma elaboracio psiquica. A dispnéia, as 27. Ibid. p. 80. Enire colehetes: comentirios de |. L 26 A ANGOSTIA palpitagdes, acompanham o coito e, se bem que elas sejam geral- mente usadas apenas como meios acessdrios de descarga, consti- tuem aqui, por assim dizer, a tnica safda para a excitagio.””* Assim, @ crise de angiistia assumiria somente 0 acessério no coito, , os fenémenos acompanhantes, essencialmente zardfa cos € respiratérios, e faria deles como que a totalidade de sua manifestacéo. Falei de uma oposicao entre uma teoria puramente psicolégica e uma teoria puramente fisiolégica. Mas percebe-se logo {de inicio que a teoria puramente fisioldgica esté matcada pelo psicoldgico, uma vez que mesmo na crise de angdstia existem ele- Imentos simbélicos, reconhecidos por Freud, Mas, de fato, isso vai muito mais longe. Essa primeira teoria INSUFICIENCIA ndo € exatamente a teoria de Freud (que- DA TEORIA DE ro dizer, simplesmenie, a idéia de que W. REICH 14 repressio da sexualidade, portanto da atividade sexual, ¢ de que a energia se- xual iré procurar sua descarga em outra parte), ov, em :odo 0 es falte-the um elo capital. O elo intermediétio consiste na idéia de que hé uma inadequagao entre a excitagao sexual a9 nivel jsomético ¢ a possibilidade de elaborar essa excitagio ac nivel psiquico. J& encontramos uma ou duas vezes, de passagem, as palavras “elaboracao psiquica”. Essa noglo é to importante que toda a teoria fisiolégica da angtstia é incompreensivel sem ela E 0 paradoxo # se assinalar desde jé consiste em que, nessa época, de. {esau designa por libido, nfo a excitacdo fisica nem 0 desejo t sexual somético, mas justamente' o elemento psfquico, ou seja, as { fantasias ligadas a atividade sexual. Assim, embora a neurose atual ‘se apresente como nao-psfquica, estranha ao conflito psfquico, exis- te, apesar de tudo, um conflito em sua raiz. Mas desta vez € um conflito entre o nivel de excitagio somética e o desejo psfquico — 0 qual € designado por libido, Talvez nao haja exatamente conflito mas, em todo © caso, uma clivagem. Insistamos em que @ | teoria da neurose de angistia no € uma teoria puramente fisiol6. ©" Tica: nfo é a excitaciio somética que, simplesmente, nfo encontra um coito adequado, uma descarga adequada; ¢, isso sim, 2 exci- taco somética que nao encontra seu fiador ao nivel psiquico (0 28. Ibid, pp. 8485, 4 “ANGST” NA NEUROSE 27 que, evidentemente, traduzse pelo fato de o coito nfo ser adequa- do), € € ao nivel de uma auséncia de elaboracdo que se produz a derivagéo sob a forma de angtstia © que, pera Freud, parece provar essa teoria? I o fato de que os individuos portadores de neurose de angéstia, longe de se queixarem de um aciimulo de desejos insatisfeitos, acusam um declinio de desejos sexuais. Curiosamente, portanto, essa neurose “por actmulo" traduz-se, ao nivel psiquico, por uma baiva de libido. Nao hd excesso de libido, no sentido preciso em que 0 | termo é empregado aqui, mas escassez de libido, escassez de fiador | psfquico. Estévamos primeiramente, numa abordagem iniciel, ne pre- senga de uma explicagao que s¢ assemelha muito a um certo nd- mero de concepsdes populares acerca da psicanélise. Por concep- es populares também entendo uma perspectiva como a de Wilhelm Reich, que relaciona a maior parte das neuroses a um elemento atval, isto é, @ uma insetisfacdo sexual vinculada a uma repressio. Para Reich, o essencial da terapéutica das neuroses nfo € uma terapéutica histérica, mas atual, Trata-se, no presente © em pri- meiro lugar, de separar, de eliminar, um certo némero de fatores que impedem a satisfacdo sexual. Nao digo que essa idéia esteja ausente em Freud, mas ela € apenas uma etapa na reflexdo freu- diana e é inteiramente insuficiente. Como testermunho de que essa idéia ndo esté ausente em Freud, menciono, por exemplo, a se- guinte passagem: “Do que precede, decorre que as neuroses so perfeitamente evitaveis mas.totalmente incurdveis [isto é, incur veis « partir do interior, pela anélise; elas sfo suscetiveis de uma higiene ou de uma profilaxia, mas n8o de uma anélise]. A tarefa do médico & inteiramente de natureza profilética. [Trata-se eviden- temente, para Freud, das neuroses atuais, mas € uma teoria que se verd finalmente transposta para o conjunto das neuroses, com Reich, Esse manuscrito, recorde-se, data de 1893!] A primeira parte dessa tarefa, aquela que consiste em prevenir os distirbios sexuais do primeiro periodo [isto é, do perfodo adolescente], con- funde-se com a profilaxia da sifilis e da blenorragia, perigos que ameacam todos aqueles que renunciam & masturbagéo, [Portanto, facilitar as relagdes sexuais, eliminando os riscos somaticos das doencas venéreas.] © outro Gnico sistema seria autorizar as rela- Ges livres entre jovens de ambos os sexos, de boas families, mas wa ea Piacoa A ANGST" NA NEUROSE i 29 mico, suscetivel de troca, de equivaléncia, de/transformagio. Mas ainda mais, aqui, o termo essencial 6 a(estase) conceito médico — estase de um humor, estase do Ifquido cefalorraquidiano, estase do sangue, etc. — quantitativo, pois a quantidade e até a pressio do liquido estagnado podem ser avaliadas, comparadas, medidas. A libido é, portanto, um conceito econémico, jé que € suscetivel | | de ser “excessiva” ou “‘escassa”, e passivel de estase. Mas, a0| | mesmo tempo, € um conceito qualitativo, ¢ esta € sua face psiqui-] ca, uma yez que, em iltima instaficia, s6 existe em relaggo com representagGes. E, por essa face psiquica, ela nada mais é, desta ver do que denjo,vncalndo a repravtstesparedlaes, isso s6 poderia ocorrer se se dispusesse de métodos anticoncepcio- nais inofensivos, Com esse texto do periodo freudiano arcaico, vemos até que : ponto nos acercamos de certas afirmacGes contemporineas; mas isso é apenas uma etapa do pensamento freudiano, pois falta aqui, _» assim como na teoria de Reich, a mediacio da representacic. Esta necesséria, pois sem ela serd impossivel explicar o fato ce que certos individuos que tém uma vida sexual pouco ativa, ¢ até de completa contingncia, nem por isso tenham angtstia — talvez, precisamente, porque tm uma vida fantasmética sexual sufisiente- mente desenvolvida — nem, inversamente, ovfalo de que, nos casos de neurose de angtistia, esbarra-se com muita freqiéncia é wm pwc nesta objecdo por parte do proprio sujeito: “mas eu nfo tenho ete eee aka @ desejos sexuais” ou “tenho menos desejos sexuais” ou “‘longe de gradidak ter desejos sexuais insatisfeitos, eu tenho muito poucos desejos sexuais”. Na teoria freudiena, 0 acdmulo de excitagao somética Em “‘elaboragio” existe a ate labor, 7 — © qual 6, efetivamente, considerado causal na angisiia — A NOGKO DE “trabalho” (em alemdo, bearbellens tne jamais € explicado diretamente pele auséncia de descarga ou de ELABORAGAO balhar). A idéia constante de Freud é orgasmo, Ndo besta, de maneira nenhuma, reinvestir 0 orgasmo PStQuICA de suas prerrogativas, nem de facilitar “as relagées sexuais entre jovens de boas familias”. O que falta, em primeiro lugar, € a auséncia de psiquisagao ou, como se diria num vocabulério mais modemo, a auséncia de “simbolizagao” da excitagio somética, O problema, na neurose atuel, é um problema de simbolizagio ou | mesmo de fantasmatizagio. O que € patogénico é a austnsia de | libido psiquica ou a austncia de elaboracéo psiquica da excitacio. estabelecer um modelo de um aparelho Psiquico, espécie de méquina que efetue um certo trabalho. E existem até esquemas precisos dessa méquina, Citarei dois: por um lado, 0 de Projeto para uma Psicologia Cien tifica, de 1895, onde se apresenta um sistema de neurénios que go é somente uma metéfora neurolégica mas jf representa, no essencial, 0 que vird a ser @ concepeao freudiana de um aparelho 1 A libido: mencionarei rapidamente 0 psiquico. Por outro lado, o modelo apresentado no capitulo VII de APARECIMENTO DA aparecimento deste termo no pensamen- A Interpreiagao de Sonhos, criado exatamente para descrever um “LIBIDO PSIQUICA” to de Freud®, Ela converter-se-d na ener- “trabalho” que af se efetua, o “trabalho do sonho”, Ainda mais gia das pulsdes sexunis, portanto, um tarde, encontraremos @ nogdo, de suma importéncia, de que tam- conceito quantitativo na fronteira do psfquico e do somético, como bbém 0 processo do luto —e ainda, em certa medida, a melancolia sempre se situou a pulsio em Freud. Mas aqui € 0 seu aspecto — deve ser concebido como um certo trabalho; isso, evidente- psiquico que se sublinha. & a insuficiéncia da libido psiquica que mente, vai muito mais longe do que um conceito banal de Iuto acarreta ume derivacéo imediata da tensfo no plano somético. : como simples tristeza, simples estado afetivo indecomponivel em Essa libido é, por conseguinte, um conceito quantitative, zcond- eae acronis fey idueiac tac Minot fale gucise came ve ete festagdes patentes do luto sfo apenas a traducio, em diferentes planos, desse trabalho, por exemplo o empobrecimento que ele Tod, pp. 66, Bre colchetes:comentiri de I. L ° Be ween d acarreta em outras atividades 30. Ja 0 encontramos em Meynert 30 AANGOSTIA Freud sempre se mantém muito vago quanto a'o que'sofre a elaboragao nesse aparelho e, por definigao, nfo se pode dizer grande coisa a respeito, E a quantidade de excitagdo, um “X", ou é ainda © que, em outros momentos, ele designa por “libido”. Em contra- partida, pode-se dizer mais a respeito do tipo de trabalho efetuado; podemos explicité-lo por um outro termo: “ligagio”. O trabalho consiste em ligar essa energia ndo-diferenciada, esse “X”, de modo que justamente ela deixe de fluir livremente, de maneira meeinica, mas fique ligada a certos contetidos. A “ligagdo” (Bindung) tem, como cortelativa um processo inverso, que se pode traduzir por “desligamento” ou “descarga” (Entbindung), que consiste pre- ccisamente numa liberacio stibita de energia. Neste sentido, pode-se = dizer, por exemplo, que a angtistia é um desligamento. A ligagio C € frei da energia psiquica, da libido, freio estabelecido por meio % de representagdes, ¢ também talvez, em nivel menos elatorado, pela ligago com certas reactes sométicas que assumem assim um valor significante, A um outro nivel ainda, a Bindung no consiste apenas no fato de a energia encontrar-se ligada — de a pulsio encontrar-se atada a tal ou tal representacfo, a tal ou tal lem>ranga de um acontecimento — mas no fato de que também entre essas representagdes,,a8 quais j4 so por si mesmas ligagSes, estabeleceu- se toda umalrede)de significagdes. Portanto, deve-se conceber dife- rentes niveis dessa ligacdo e dessa elaboragio; © nivel mais baixo & precisamente aquele onde se coloca 0 problema da angiistia e do afefo, Eis 0 que diz Freud em um de seus primeiros enurciados {bre © angista: “A tensio sexual transforme-se em angistia em todos os casos em que, embora produzindo-se com forga, ela no fsofre a elaboracdo psiquica que. a transformaria em afeto." Por- tanto, 0 préprio afeto j4 € apresentado como um nivel de elabo- Jracdo, um primeiro nivel de ligacio; a angdstia seria, nesse caso, a desorgenizacéo do afeto, ou ainda o afeto mais elemertar, o mais primordial, o mais proximo de uma excitagio que se des- carrega de maneira néo-especifica. B um esquema muito fregiiente em Freud o da derivacdo energética: quando uma via esté fechada, toma-se uma outra via. Se a energia X, que se especifica ou se elabora sob a forma de afeto, encontra a via obstrufda, hi ¢ alter- 31. Tid, p. 84, A “ANGST” NA NEUROSE 31 nativa de uma outra via para a descarga; a energia deve necessa-} riamente escoar por algum lugar, mas ela o faré sob a forma de angiistia, isto € do afeto menos ligado. ay Esquema 1 © ajeto ja é, portanto, uma certa estru- DIFERENTES ‘ura significante, o que nem por isso quer NIVEIS DA dizer que tenha necessidade de represen- IGACAO" tacdes para ser qualificado, O afeto, para a Freud, ¢ concebido de maneira extrem mente (proxima_do somatié3} cle € constitufdo por um conjunts) , organizado (e € af, por certo, que esté a ligac8o) de descargas mo-) 'S toras que se somam a uma certa sensagio de prazer ou desprazer. | Mas, além disso, existe também no afeto um aspecto histérico, 0 qual explica 0 fato de tal afeto ter assumido tal ou tal forma: Em certos estados afetivos, acredita-se poder remontar além desses elementos [dessa pluralidade de reagSes que especificam 0 afeto) © reconhecer que 0 micleo em toro do qual todo 0 con- junto se cristaliza (trats-se realmente de um conjunto significante] é constituido pela repetico de um certo evento importante e signi- ficativo, vivido pelo sujeito [o afeio remete-nos a hist6ria; mas no apenas & histéria individual]. Esse evento pode nio ser mais do que uma impresséo muito_remote, de cardter muito geral, impressao que faz parte da(pré-histéria indo do individuo mas da espécie. Para me fazer entendér-methoF, direi que o estado afetivo aprescnta a mesma estrutura que a crise de histeria, e que, como esta, € constitufdo por uma reminiscéneia armazeneda, A crise de 32 AANGUSTIA histeria pode, portanto, ser comparada a um estado afetivo indi- vidual recentemente formado [a crise de histeria, como repetigao de um evento histérico, contendo os sinais mnésicos, os simbolos, de um certo evento, & para a histéria do individuo 0 que 0 afeto € para a histéria da espécie], € 0 estado afetivo normal pode ser considerado como a expresso de uma histeria genética que se tornou hereditéria.”"? ‘A angiistia € © afeto menos elaborado e mais prétimo da descarga energética pura, mas também é, todavia, suscetivel de tuma certa elaborago. A angiistia nao é algo a cujo respeito nada possa ser dito e, particularmente, ela pode ser transformeda num elemento eminentemente significante: “em sinal”; a angéstia, neste momento, € teduzida a seus rudimentos, a alguns elementos que subsistem simplesmente para indicar que alguma coisa vai acontecer. Podemos, pois, numa primeira abordagem, distingurr niveis/ de elaboragai u — A elaboragdo sob a forma do afeto que nfo implica a ligagdo @ representacdes mas, simplesmente, uma ligagio signifi cante a reagdes sométicas. — Depois, a ligacio a representacdes, sendo estas mais ou menos suscetiveis, por sua vez, de ser objeto de um certo trabalho psiquico. Tomemos o exemplo da fixagdo da angistia em objetos fobicos. Vimos a teoria de Freud segundo 2 qual, na neurose de angtstia, hd uma angéstia flutuante que escolhe, um pouco pelas necessidades da causa, tal ou tal objeto de medo. Ora, taiver. seja interessante classificar esses objetos fdbicos de acordo com uma série, desde aqueles que so muito banais e dio pouca margem ao” uma elaboragio psiquica — a tempestade, por exemplo, como abjeto fébico “genérico” — até aqueles que, no outro =xtremo, sio inseridos numa verdadeira histéria, numa concatenagio, mum mito, seja um mito pessoal ou um mito cultural: este ou aquele animal real mas transfigurado pela sua lenda, ou até inteiramente Iendétio. — 0 problema da ligagio de grupos de representagdes uns 40s outros. Aqui no abordo diretamente © problema, por exemplo, 32. S, Freud, Introduction & la psychanalyses, Paris, Payot, 1970, p. 373. Entre colchetes: comentéios de J. L. [ESB — Conferdncias Introdutérias sobre Psicandlise; vol. XV, XVI A“ANGST" NA NEUROSE 33 da histeria, mas a idéia de Freud é de que a histeria, tal como o recalque, € concomitante de um certo grupo de representacées, “um grupo psiquico separado” que se encontra isolado do resto do contetido do pensamento e, por isso mesmo, subtrafdo ao consciente a uma elaboragao ulterior. Assim, mesmo ao nivel das neuroses designadas como “psiconeuroses”, reencontramos a questéo de uma elaboragdo maior ou menor, que pode explicar o fato de um certo nticleo significante encontrar-se isolado, pronto a formar 0 ponto de partida de uma sintomatologia. Verifica-se o interesse dessa nogao de elaboracao psiquica, em todos os niveis da teoria psicanalitica das neuroses, das psicoses ¢ igualmente do tratamento. Com efeito, se se deve conceber que} ‘as neuroses, segundo as modalidades mais diversas, correspondem | © | uma falha ow uma recusa de elaboracio, pode-se pensar inversa-/ ¢” mente que um dos modos de funcionar do processo da cura 6é,] precisamente, a reativagdo da elaboragao. Sobre ponto, Freud) e os analistas no variario, mesmo que tenham de aprofundar a nogdo de “elaborac&o interpretativa” ou de “perlaboracdo” através do tratamento. De imediato, 0 tratamento consiste, para Freud, em] restabelecer os lacos, a8 conexdes, entre sistemas ou grupos de |i" representagées que se encontram separados, em restabelecer as comunicagdes no interior da vida psiquica. Com a angtistia, estamos no nivel mais elementar do problema” da elaboracio. E isto levarme a propor, de um modo um tanto didético, » grande oposicso entre neuroses atuais e psiconeuroses™: neuroses atuais narcisicas corer psicases) yocwsie de transferéncia (histeria ¢ — teat neuroses obsessivas) 33. Estas péginas desenvolvem o artigo “Névrose actuelle” do Vocabu- laire de la psychanalyse (J, Laplanche ¢ J-B. Pontalis), Paris, PUR, 1967 (Edicdo brasileira: Vocabuldrio da Psicandlise, Livraria Martins Fontes Edi fora, 1978.1 34. AANGOSTIA Orgenizemos primeiro as coisas esquematicamente, para em seguida as reexaminarmos de um modo critic. Como élids disse Freud, que é muito favordvel as classificagdes nosolégicas (ele 0 explica, por exemplo, em Conferéncias NEUROSES ATUAIS ——_Jnirodutdrias sobre Psicandlise), por que E PSICONEUROSES: —_nio comegar a isolar os elementos? Do UMA CLASSIFICACAO — mesmo modo que, na natureza, podem-se NOSOLOGICA ‘solar corpos puros, embora adritindo que aqueles que se encontram na reali- dade so sempre mistos, também em psiquiatria e em psicendlise podem-se isolar estruturas diferentes, até mesmo opostas, sem dei- xar de mostrar em seguida que elas vém a se combinar. Em primeiro lugar, do ponto de vista etioldgico: — Nas neuroses atuais, a causa é atual, no duplo sentido de “presente” no tempo e de “em ato”, atualizade, E um conflito presente, um impasse presente. Pode-se aproximar essa idéa da quela que Freud, em Estudos sobre a Histeria, tinha chamado “histeria de retengao”: um certo impasse.na_vida do sujeito, mum certo trajeto, provoca uma retenggo,(uma estase): uma estagnacéo, € € preciso que o que esté represado por"tras da barreira enzontre uma outra via — Nas psiconeuroses, pelo contrério, a causa deve ser pro- curada no passado ou, pelo menos, em eventos passados reativados pelo presente, Mas esse presente & em si mesmo, mais ou menos contingente © mais ou. menos anédino; ou, em todo caso, ele tem um modo de ago muito mais simbélico do que real. Na neurose atual, é uma dificuldade real, concreta, por vezes insuperdvel; na psiconeurose, o impacto da realidade presente €, antes de tudo, Fungo de sua repercussdo, de sua tessondncia simbélica em relagao @ eventos passados. Nos dois casos, sem diivida, é a sexualidade que esté em causa, mas isso é muito mais evidente na neurose atual, precisemente porque ai o conflito situa-se num nfvel muito menos elaborado. Do ponto de vista da patogenie, do mecanismo geral — Nas neuroses atuais, existe uma fonte de excitago somé. tica incapaz de encontrar sua expressdo simbdlica. O conflito obstrui o caminho de uma descarga real, Hé realmente um conflito causal, mas supi se que seja/exterior 3 neurose.O conflito existe. 4 “ANGST” NA NEUROSE 35 esté em alguma parte, deflagrando a neurose, mas nio é parte interessada no seu mecanismo, © mecanismo néo reflete o contlito — Nas psiconeuroses, pelo contrétio, o conflito situa-se a nivel psiquico, E um conflito essencialmente interiorizado, muito mais do que um conflito externo. E um conflito ao nivel de ele- mentos jé altamente simbolizados, implicando portanto uma vida fantasmatica rica No que se refere & formacao de sintomas: — Nas neuroses atuais, a formacao dos sintomas & somética Trata-se ou de uma transformacio direta da excitagao em angistia, ou de uma detivagio da excitagdo para certos aparelhos corporais: Essa transformacao direta, a néo-intervencdo do conflito no inte- rior do mecanismo, leva @ que a significacdo dos sintomas néo possa ser completamente elucidada pela psicandlise; pensese na banelidade dos sintomes da neurastenia, em seu carter vago, pouco especifico © pouco simbélico (dores da coluna, dores de cabega, fediga, etc.). E, quando se descobre uma certa “‘psiquizagio” nos sintomas (pense-se nas fobias da neurose de angtstia), esse aspecto psfquico é igualmente muito banal: o sujeito tem medo de tudo, potencialmente; pode tomar qualquer coisa como objeto de med. Portanto, sem ir ao extremo de certas formulagdes de Freud, se gundo as quais, na neurose atual, 03 sintomas “nao t8m sentido algum", pode-se dizer que nenhum sentido, nas neuroses atuai esgote a configuracio concreta dos sintomas. Nas. psiconeuroses, pelo contrério, e em particular nas neuroses de transferéncia, a formagao dos sintomas faz-se por: mediagéo simbélica, Os sintomas tém um sentido preciso, refle- tindo, em seu préprio ser. o conflito que traduzem sob a forma de um compromisso. S40 uma verdadeira linguagem, uma “neo- Tinguagem" original crinda por cada neurético; donde resulta igual- mente uma individuagio muito maior, uma especificagio muito maior do sinioma Freud sempre manteve essa categoria de neuroses atuais e, no capitulo de Conferéncias Introdutdrias sobre Psicandlise que se intitula “'Le nervosité-commune” ¢ que precede capitulo sobre a sngiistia, ele chega mesmo a formular a hipétese de uma teoria io somente somética em geral, mas de uma teoria “téxica”” das neuroses atuais. Seria preciso conceber esse represamento de que falamos a propésito da "estase" como uma barreira real que entrava 36 AANGISTIA a circulagao de certas substincias hormonais. Em ultima instancia, os sintomas da neurose atual, seja_a_angistia ou outros, seriam | [ compardveis a uma verdadeira @iu(GintoxiceciO; por uma espécie / + de obstrucéo causada pelo acimulo de substincies sexuais. Nada) permite seguilo até af, e penso que ninguém jamais o fez. Freud toma o exemplo da moléstia de Basedow, portanto de uma into- xicagio hormonal, intoxicacao que nunca se verificou no caso das neuroses aluais. Entre esses dois grandes grupos, Freud foi levado a postular a existéncia de correspondéncias € entrelagamentos. Em. primeizo Juger, cada uma das entidades nas neuroses atuais encontraria sua contrapartida nas psiconeuroses. © quedro, de um modo mais geral, é o seguinte: — A neurose de angdstia seria a contrapartida, no plano de lum mecanismo somético, da histeria de angéstia, ov seja, de neu- rose f6bica. Percebe-se como as sintomatologias so vizinhas ¢ pode-se imaginar toda a sorte de passagens entre as duas. Entre | as fobias muito gerais da neurose de angiistia e as fobias muito mais especifieas da histeria de angistia, todas as intermedidrias siio possiveis. Quanto & neurastenia, Freud hesita, e segundo os momen- tos vé nela a contrapartida ora da neurose obsessiva, ora da his- teria de conversdo. Apesar de tudo, € do lado da historia de converso que o paralelismo é mais interessante, visto que nos dois casos temos sintomas de somatizacéo. — Finalmente, Freud, depois de 1914, postula uma corres- pondéncia da hipocondria, como terceira forma da neurose atual, © das psicoses, mais particularmente da esquizofrenia, Tais correspondéncias assumem todo o seu sentido com a possibilidade de uma intrincago privilegiada de tal psiconeurose com a neurose atual que The é aparentada, Para apreendé-lo me- Ihor, podese recorrer a qualquer dos esquemes de Freud, princi- palmente o de A Interpretacdo de Sonhos. O aparelho psiquico af estd representado como uma espécie de compartimento que com- preende como que arquivos, a que chama sistemas mnésicos, e que podemos considerar como sendo niveis de elaboragao psiquica sucessiva (EY, EY. .), de “simbolizaggo”. Proponho um esquema que Ihes pego para considerarem um modelo inteframente pro- vis6rio. 4 "ANGST" NA NEUROSE a7 |] coveura Esquema 2 Enquanto que num individuo que tem “aval” fantasmético suficiente é possivel, ¢ partir de uma frustra¢o externa, imaginar utras vias (sublimagio, por exemplo), nos casos em que a elabo- ragao psiquica em seus diferentes niveis € insuficiente assiste-se a uma recusa ou a um fracasso da elaboragio psiconeurética, levando fa que @ excitagéo tenha de encontrar vias muito pouco elaboradas (angastia, sintomas psicossométicos) Em relacgo a esse esquema, actescentarei NEUROSES ATUAIS ainda algumas reflexdes: E PSICONEUROSES: 1° Hé sempre na neurose, quer seja UMA COMPLEMENTA: uma neutose atual ot uma psiconeurose, RIDADE ESTRUTURAL um elemento atual em sta deflagragéo ma nifesta, No artigo “Sur les types d'entrée dans la névrose"", vé-se que, para Freud, essa deflagragéo sobre- vém a partir de algo que se situa muito perto da extremidade do real. Mas o impacto desse evento atual € muito diferente segundo | encontre sua ressonéncia imediata no nfvel simbolizado, no nivel | vy, Fantasmético, ou segundo 0 sujeito quelra ou no queirs “‘suportar ‘05 Gnus psiquicos” de uma neurose, tenha ou néo o capital fanta matico suficiente para assumir uma neurose, ou uma sublimacéo, | fou ainds a busca de uma outra via 2° Mas, inversamente, se existe, de fato, um elemento atual ‘em todo © desencadeamento neurdtico, € muito dificil falar de um 54, Em Névrose. psyvhose et perversion, op. cit, 1978, pp. 175-182. LESB — Tipos de desencadeamentg da neurose; vol. XTT.) 38 AANGOSTIA conflito puramente atual, de uma frustragio puramente real, Neste sentido, © esquema I € mesmo este tém que ser inteiramente re- vistos, pois impoem que 0 conflito proviria puramente do exterior. Com efeito, mesmo no caso da deflagracio de uma neurose atual, tuma frustragio s6 fem impacto quando se encontra em ressonfincia com uma problemética pessoal, em definitivo uma problenética infantil. Ts50 quer dizer que o termo frustrago somente s+ con- cebe numa certa dialética que o coloca em relagéo com ums atito- frustragio. Se o sujcito pode ser frustrado, 6 porque ele proprio tem a possibilidade de se frustiar, a possibilidade de “frustragéo interna”, como disse Freud, Podemos recordar os exemplos dados por Freud, @ propésito da neurastenia e da neurose de angistia: 0s escrupulosos, os que tém medo da sifilis, etc. E evidente que, esse pono, Freud recusavase a procurar mais longe, quaxdo o que se deve indagar € por que tal individuo, por exemplo, sente um medo absolutamente pinico da sifilis. Neste exemplo, 120 se pode considerer @ sifilis como um elemento puramente exterior, a partir do qual se desencadearia todo um processo neurético © proprio medo da sifilis deve ser levado em conta numa estrutura neurética. 3.° Por esse desvio, temse tendéncia para apagar a distingao entre neuroses atuais € psiconeuroses, visto que, afinal, aquilo de que Freud dizia: “Isso nfio se analisa,..” € que ele néo se dera 20 trabalho de o fazer. Entretanto, se essa distincio pode se: con- testada no plano nosogréfico (nfo se pode dizer: trata-se neste caso de uma neurose puramente atual, naquele caso de uma psico- neurose pura), ela conserva seu valor na medida em que introduz dois elementos estruturais que geralmente se verifica agirem de maneira conplementar. 1880 aparece de um modo particularmente evidente em certos casos — Um problema atual agudo, mesmo que encontre explicagio na histéria do sujeito, pode ter assumido sua independéncia ¢ funcionar como obstéculo. E 0 caso, por exemplo, de um sujeito que se defronta com um evento que ele préprio péde provocar — digamos, um grave acidente — que transformou, por suas seqiielas psiquicas ou sométicas, sua vida ou a de pessoas de suas relacées. Hé af um elemento que deve set retomado numa andlise, ¢ deve-se tentar compreender como esse acidente pOde ocorrer. Mas, a0 mesmo tempo, hé af um fato consumado que doravante desem- A "ANGST" NA NEUROSE 39 penha uma fungao atusl, uma fungao de obstéculo ¢ igualmente uma fungdo de élibi em relaglo a toda a possibilidade de repor no circuito aquilo que se encontra agora imobilizado no real. Um problema concreto da terapia analitica € ter, por vezes, de fazer face a esse tipo de obstéculo; e, mesmo que o individuo tenha manifestamente criado esse obsticulo, este, uma vez constituido, € irreversivel. Finalmente, aquilo que se chama passagem a0 ato (acting ou), numa terapia, ndo € justamente a intengo, mais ou menos bem-sucedida, de criar o irreversivel? Ainda que o acting out possa ser interpretado, nem por isso deixa de ser algo que assumiu um valor de obstéculo, freqiientemente definitivo. — Num outro extremo, pade-se também dizer que, em toda © qualquer neurose, em toda e qualquer psiconeurose, além dos sintomas espeeificos, que encontram precisamente sua explicagao simbélica na histéria do individuo, observa-se com muita fregiién- cia um desfile de sintomas vagos, nao-especificos (fadigas, dores indefinfveis, certa tristeza) que talvez nfo merecam a atengao do intérprete, ou que s6 podem ser interpretados de um modo muito geral, porquanto representam uma ressonancia secundétia, atual, de_psiconeurose — Um terceiro ponto, enfim, leva-nos a aludir ao problema da psicossomética. Freud estabeleceu um quadro de referéncia pre- liminar ao colocar em paraieio 8 neurastenia, por um lado, € a histeria de conversfo, por outro, como sendo dois mecanismos de somatizagao, mas em niveis muito diferentes. Na converséo, por exemplo, 0 que primeiro impressionou Freud, ¢ continua sendo evidente para os analistas, € 0 valor simbélico dos sin- tomas. A tal ponto que Freud pode mos- trar muito cedo, aliés na esteira de Charcot, que os sintomas somé- ticos na histeria de conversio (as paralisias, por exemplo) seguiam ‘uma enatomia puramente fantasmética’®. O recorte do corpo que € afetado por uma paralisia ou por um sintoma somético qualquer, na histerie de converséo, nao coincide em nada com os trajetos da ‘A SOMATIZACAO PSICOSSOMATICA 35. S. Freud, “Algumas consideragses para um estudo comparativo das paralisias motoras, organicas ¢ histéricas”, em GW, 1, Londres, Imago Pu- blishing, 1952, pp. 37-56. [ESB — Alguns pontos para o estudo comparativo das paralisias motores, oreénieas ¢ histérieas: vol. 1.] 40 AANGUSTIA anatomia nervosa ou da anatomia em geral: uma mfio pode estar paralisada ao nivel do pulso, embora os nervos ¢ os mésculos que @ comandam o fagam por territétios muito mais complexos. Inver- samente, poder-se-ia dizer que, em relagio & conversio, a somati- zagao psicossomatica faz-se por vias muito mais jisiolégicas, envolve certos aparelhos que constituem uma unidade funcionsl ¢ ao vai Procurar est¢ ou aguele pequeno ponto, eleito por seu valor de simbolo. Pense-se, por exemplo, nos sintomas digestivos no caso da iilcera géstrica, ou também na asma, que sio doengas de aparelho. Encontramos, portanto, no proceso de “‘somatizagio” da psicosso- mitica, a anatomia ¢ a fisiologia objetivas; os sintomas so fixos © enumeriveis, relativamente estereotipados. Pelo contrério, na conversio histérica, os sintomas assumem, a cada vez, um valor inteiramente individual. Reportemo-nos aos trabalhos dessa “escola” de_psicossomé. tica encabegada por Matty, Fain, David e de M'Uzan — por exemplo, um artigo de Marty, bastante simples, por certo, numa obra jé antiga, La psychanalyse daujourd’hui (A Psicandlise de Hoje), © que sc intitula “Clinique et pratique psychosomattiques, (“Clinica ¢ prética psicossométicas”)**. Marty, nesse artigo, indica que prefere ao termo “psicossomético” — que afinal evocaria a idéia de histeria mais do que qualquer outra coisa — uma expres- so como “‘somato-conflitual”. Creio que se deve entender isso nfo como o fato de que o conflito se traduzitia no somético mas, muito pelo contrério, que existe uma separago, que o conflito esté no limite do campo da,neurose, da afeigio, e que sua ressonfincia no se traduz simbolicamente, O conflito € exterior, esté nos limi- tes do sintoma, e € sempre — ou ne grande maioria dos casos — facilmente decifrével, atual,,enraizado na existéncia do individuo: facilmente esclarecido desde as primeiras entrevistas clinicas, Even- tualmente, voots poderao consultar os casos desctitos por Marty, especialmente 0 primeiro caso, inteiramente claro e esquersético, de uma jovem que foi consulté-lo por causa de uma ciética, © jé na entrevista evidenciou imediatamente a existéncia de elementos de conflito, digamos simplesmente dificuldades reais e consideréveis, Outro ponto em que esses autores insistem, retomando (creio que 36. Em La psychanalyse d'attourd’hui, sob a dirego de S. Nacht, Pas, PUF, 1956, tomo II, pp. 582.574, A “ANGST” NA NEUROSE 4“ sem quererem explicitamente) 0 que Freud disse respeito das neuroses atuais: € a idéia da pobreza da elaboracdo mental incons- ciente. Nesses pacientes, seria dificil desvendar uma vida fantas- mética um pouco tica, € mesmo afetos um pouco sutis, um pouco diferenciados. Entretanto, se, embora nfo tendo os recursos necessérios pare fazer uma psiconeurose, esses sujeitos no produzem contudo uma pura e simples neurose de angistia, mas investem « energia néo- claborada no corpo, o problema ¢ saber por que tal ou tal drgio, tal ou tal funcao, tal ou tal sistema, foi o escolhido, Mas os autores recusam precisamente 0 termo escolha, que & correntemente empre- gado em teoria psicanalitica para designar a atitude do individuo em relaco & sua neurose. Nes psiconeuroses, o termo escolha conserva seu valor, pelo fato de significar essa eleigfo ‘nica, indi- vidual, singular, extremamente determinada em seus préprios de- talhes, deste ou daquele modo de sintoma. Ora, em psicossomética, mesmo no sentido muito preciso de escolha inconsciente, é pouco adequado falar em escolha de drgéo. “Os mecanismos em questo so freqiientemente pouco conhecidos ¢ nfo cabe, neste capitulo essencialmente clinico © prético, insistirmos mais neles; mas nfo poderiamos, em nenhum caso, falar de uma escolha, mesmo incons- ciente. Trate-se mais de um detetminismo profundo, instalado no perfodo pré-natel, no nascimento € nos primeiros anos de vida, determinismo que, fregitentemente confundido com a nogio de hereditariedade e, aliés, freqtientemente muito préximo dela; entre. tanto, distingue-se dela, pelo menos de maneira tedrica.®™” Por conseguinte, nfo hd absolutamente uma escolha de érgéo, mas sim- plesmente uma espécie de “cama” da somatizagio que seria prepa: rada de antemao, eventuaimente na fisiologia, sendo na heredita- riedade do sujeito Para terminar aqui as nossas consideracdes sobre as neuroses atuais e a psicossomdtica, gostarfamos de repetir que néo se deve ser seduzido, apesar de tudo, pela hipétese de que existiriam afec- Ges sem simbolizagdo. Excluir do determinismo simbélico seus dois extremos — por um lado o conflito, como se ele fosse dors- vante real e nada pudesse ser feito, por outro ledo © sintoma, WT. Thi, 9. 542, 42 AANGUSTIA como se estivesse inscrito no corpo e como se bastesse, por exemplo, operé-lo — nao € apenas formuler uma certa teoria, é entrar numa certa teoria e num certo jogo do proprio paciente ¢ de sua dene. gaco, A invocagdo do conflito real num extremo, a somatizagao NO outro extremo, constituem objetivagdes em que igualmente se ) tefugia o paciente, E pode-se dizer (creio ser também isso o que € preconizado por autores como Marty) que o esforgo teraxéutico \\consiste freqiientemente em neurotizar, ou seja, em tentar “repsi- |auizar” o conflito e 0 sintoma, utilizando para isso, evidentemente, Jos elementos de simbolizagZo que no faltam em cada um (nfo existe ninguém sem fantasia); por conseguinte, em retomar 0 con- lito e © sintoma pela extremidade em que se prestam a uma simbolizagio ¢ a uma fantasmatizaco. E nesse sentido que a psico- terapia dos pacientes psicossométicos desemboca freqtientemente numa verdadeira psicandlise, necessitando as vezes de um feriodo prévio que comece 2 mobilizar e a ressimbolizar aquilo que 0 \PrOprio paciente exchufra de sua vide psiquica 6 de janeiro de 1971 Segundo um ponto de vista cléssico DE UMA TEORIA esquematicamente exato, hd em Freud DA ANGUSTIA duas teorias da angiistia: A OUTRA — A primeira, estruturada nos anos 1895-1900, € uma teoria econdmica. Jé tivemos ocssiéo de falar dele, que assim se resume: a angistia é a energia sexual ndo-elaborada & qual foi recusada a via de uma certa elaboragéo, e que se descarrega de maneira mais ou menos andrquica; foi o que vimos particularmente a propésito da teoria das neuroses aluais, Ou ainda: é uma libido, desta vez ndo mais “ngo-laborada”, mas desligada de suas representagdes, especial- mente pelo proceso de recelque, liberada e que novamente se descarrege sob a forma de angtstia; 0 segundo processo seria, grosso modo, aquele que se verifica nas neuroses de transferéncia, — A segunda teoria é apresentads no estudo de 1924 int lado Inibicées, Sintomas e Ansiedade. E muito mais complexa e dificil de definir numa palavra, Suas coordenadas essenciais si, A ANGST" NA NEUROSE 43 por um lado, 2 nogdo de perigo: a angtstia ¢ colocada na perspec- tiva da reagdo ou da preparagio para o perigo; pot outro lado, a nogio de ego, reenfatizada pot Freud com o que se convencionou chamar a sua segunde teoria do aparelho psiquico ou sua segunda tépica. Nessa segunda teoria, a énfase recai sobre o ego, muito mais do que na primeira. O ego € indicado nao s6 como Tugar da angistia mas como podendo ser até causa da anglstia, como po- dendo repetir a angiistia por sua propria conta, pelo menos como sinal. E, nessa medida, a teoria econdmica, por assim dizer meca- nica, de uma transformacdo da libido em angdstia foi parcialmente abandonada. Por conseguinte, se a primeira é uma teoria econdmica, a segunda seré uma feoria mais funcional, porquanto Freud vai de- dicar-se muito mais @ descobrir uma certa funcio para a angiisti a encontrar-Ihe, podemos até dizer, uma utilidade, Também é uma teoria mais historica, j& que a angistia como sinal, ou como sim- bolo, deverd ser relacionada com outras experiéncias angustiantes gue ela repete, sem deixar de constituir uma espécie de vacinacio contra 0 retorno (€ a idéia do sinal); portanto, uma teoria que dé facesso a uma concepeio muito mais simbélica da angéstia, Mas também pode ser uma teoria que abre a porta a uma concepcéo de angistia muito mais objetivista, a qual faria da angéstia neuré- tica a repetigo de um perigo ou de uma reagéo ao perigo objetivo. Tento indicar assim ao mesmo tempo os aspectos positivos © nega tivos dessa segunda teoria da angtistie, considerando pessoalmente negativo pretender vincular toda a angiistia, ainda que fosse apenas em iiltima anélise, a um perigo externo. Em todo caso, essa se- gunda teoria néo aboliu a primefra; veio apenas limité-la e & rela- tivamente coneilifvel com ela Hoje, deter-me-ei num ponto do percurso entre as duas teorias da angtistia: 0 capitulo 25 de Conferéneias Introduérias sobre Psicandlise (1917). E um dos desenyolvimentos mais compleios do pensamento de Freud sobre a angistia e forma um todo. Nao é uma teoria inter- medidria entre a primeira ¢ a segunda teoria; esse capitulo liga-se inteiramente & teoria econdmica; a mudanga dé dire- edo ocorreré em 1924, Nao obstante, e af est o seu interesse em relagio & primeira teoria da angiistia, essa teoria de 1917 é muito CONFERENCIAS INTRODUTORIAS SOBRE PSICANALISE 44 AANGUSTIA mais claboreda do que a de 1895 e confere um lugar importante a experigncia das psiconeuroses em relagdo ao campo das neuroses atuais. Por outro lado, jé encontramos af a maior parte das dis- tingGes que serdo desenvolyidas em Inibicdes, Sintomas e Ansiedade, E 0 que eu indicava como sendo os pivés da segunda teoria, a nogiio de perigo © a noedo de ego, jé figuram plenamente nesse capitulo, Aliés, a nogéo de ego, no sentido psicanalitico do temo, no € uma invencdo de Freud com data de 1920; ela estd presente de inicio, desde muito cedo, ¢ a teoria da angéstia é um dos pontos principais em que essa presenca se confirma, Conjeréncias Introdutérias sobre Psicandlise € de Ioiturs facil. Mas essa facilidade do texto (¢ da traduefo fluente, elegante, mas nem sempre fiel no francés de Jankélévitch) nao deve levar a crer que se trata de uma vulgatizago, no mais do que qualquer outro texto freudiano: cada frase, cada palavra, 6 cuidadosamente pesada, embora se tratesse de conferéncias, Esse capitulo 25 esté sob o signo das A “REALANGST" OU istingSes terminol6gicas. A primeira, “ANGUSTIA-REAL" Realangst-neurotische Angst, & apresen- tada da seguinte maneira: a angistia niio 6 um fenémeno que existe somente nas pessoas nervosas ou nas neuréticas, mas um fenémeno corrente; portanto, talvex nos caiba distinguir entre uma angiistia neurética e uma Realangst (traduzide aqui por angtistia “real” — voltarei a ocuparme deste termo): (“Em primeiro lugar, podese falar muito. de angéstia sem |, Pensar no nervosismo em geral. Vocés me compreenderao sem mais } explicagées se eu designar essa angiistia sob o nome de argistia real, em oposicéo & angtistia neurdtica, Ore, a angistia real apre- senta-se como algo muito racional e compreensivel. Diremes que cla € uma reagio A pervepgio de um perigo exterior, isto é, de | uma lesio esperada, prevista, que esté associada ao reflexo de fuga, € que, por conseguinte, devemos consideré-la uma manifes taco do instinto de conservagéo.”** Parece, pois, que essa distingdo seria perfeitamente compreen- sivel, mas vamos ver que ela se reveste de dificuldades, fara o 38.8. Freud, Introduction @ la psychanalyse, op. cit, p. 374 A“ ANGST" NA NEUROSE 45 proprio Freud, Detenhamo-nos primeiro no termo Realangst para assinalar que Real, aqui, nfo € adjetivo, mas substantive. Supri- mamos, portanto, uma primeira possibilidade de tradugio: nao é uma angtistia “real”, a angiistia “neurdtica”’ é to real, como fen6- meno psiquico, quanto a Realangst. Poder-se-é traduzir por angtistia “do real” ou “diante do real”? Também néo € uma soluggo muito oa, porque ndo é o real que esté em causa mas tal ou tal reali- dade. Pode-se parafrasear e traduzir por um comentério: “angtstia perante um perigo real”; & aproximadamente 0 que o termo signi- fica, em relaclo @ angiistia ‘“neurética”, que & angiistia “perante tum perigo fantasmético ou interno”; ou, num neologismo (como © préprio termo alemao), pode-se propor “‘angistia-real”, 0 que torna necessério o comentério da primeira tradugdo, Pronuncié- loi, portanto, desse modo, mas € preciso escrevé-lo com “real” substantivado. Os ingleses traduziram como realistic, angtstia “realista”, 0 que quer dizer mais ou menos a mesma coisa: ndo se trata da angistia como fendmeno que é mais real do que um outro, mas de angistia que se situa perante um fenmeno efetivo da realidade exterior. Como interpretar essa angtstia-real? — Num primeiro tempo, Freud caminha no sentido dessa aparente evidéncia: a angiistiareal no oferece qualquer dificul- dade, € compreensivel, uma vez perfeitamente racional. B reacio ao perigo e, ao mesmo tempo, é preparacio para o perigo na me- dida em que acarreta um reflexo adaptado, a saber, 0 reflexo de fuga. — Mas, num segundo tempo, éssa angtistia-real ndo se apre- senta t80 “realista” quanto parecia ser. Afinal, s6 a reagto adap- tada, ou a fuga, seria verdadeiramente realista. Sem divida, 6 necessirio, evidentemente, um elemento A ANGUSTIA-REAL subjetivo para deflagrar a fuga, portanto, NAO & REALISTA um afeto. Mas bastaria uma angistia re- duzida ao minimo, ao seu aspecto de sinal, para provocar a reagio salutar, Por outro lado, a partir do momento em que a angiistia se desenvolve, em que ela jé nfo é somente sinal mas acesso de angtstia, ainda que seja “angistie- real”, ela ultrapassa 0 seu objetivo. 46 AANGUSTIA Esta simples reflexdo (podese falar de anilise? Freud limita- se a reflexdes de bom senso, o que nfo afeta a sua velidade) ‘mostra que @ angtistia-real pode ser decomposta em dois aepecto: um aspecio de preparaciio para o perigo — sinal dil; e tanto mais til porque a angistia esté justamente reduzida a um sinal — e um aspecto irracional que € desenvolvimento da angtstia. Angstbe- reitschaft © Angstentwicklung so 0s dois tetmos constantes no pensamento de Freud, os quais conotam esses dois aspectos da angistia. — Angstentwicklung & a angistia como desenvolv-mento, como processo que leva a algo incontrolado, indomado: € 0 acesso de angéstia, ou a angéstia desenyolvendo-se em acesso. — Em contrapartida, Angstbereitschajt € a prepara; da angistia, a angtistia como eslado reduzido, miniaturizado, que permite ao individuo prever e preparar-se para o per Esta primeira reflexio faz, portanto, com que a angtstie-real perca logo de saida o seu privilégio: como toda angiistis, a angi tiaceal tem um aspecto patolégico, sob a forma de ‘“desenvolvi mento”. E, nesse aspecto “‘pénico”, cla necessita da pesquisa de causas além de sua funcio. Diante de uma angtstia, seja qual for) sua motivacdo, que se desenvolve em panico, temos todas us razbes | para procurar no inconsciente algo que tenha feito eco a esse| Panico € que o motive; ele transborda a reago @ um perigo bem | ® definido. Assim, toda a angiistie-real, desde que se desenvolva, t como suporte uma angtstia neurdtica ta, Pergunia: Em tudo 0 que estou expondo, seré que néo falo mais do medo do que da angtistit?” Em francés temos distingSes, por exemplo a distingao muito banal entre medo e angtstia, com a idéia, talvez bastante superficial, de que a angistia é um medo sem objeto; isso sem entrarmos nas nuances que os autores quise ram assinalar introduzindo, ainda, 0 termo ansiedade, E interes- sante, por outro lado, entrar nas distingdes freudianas. Com efeito, em alemio, isso € ainda mais complexo; © ereio que, sem nos 539. Em certas passagens, Angstberstschaft assume um sentido um poueo diferente, © que pode confundir as coisas: 0 de uma disposisio, de uma propensio para © angistia™ A "ANGST" Na NEUROSE 41 encerrarmos na terminologia — visto que, afinal, no se pode dizer que © aparelho psfquico seja mais verdadeiro em slemao do que em francés —, exisie um certo génio da lingua que nos permite realizar descobertas, Em alemfo, temos A “ANGST pelo menos trés termos: Schreck, Angst ENTRE MEDO © Furcht, que Freud distingue explicita- E ANGDSTIA mente em diferentes passagens, especial- mente em Conjeréncias Introdutérias s0- bre Psicandlise, ¢ também em Além do Principio de Prazer. Bis os equivalentes franceses: — Schreck: effroi (susto). Nao hé ambigtidade, Também se pode traduzir por terreur (terror); a vezes € traduzido pot panique (pinico), mas todos estes termos nfo constituem um contra-senso fundamental — Angst: angoisse (angistia), mas ao mesmo tempo peur (medo). Com efeito, em alemao podese dizer: Ich habe Angst vor, ou seja, literalmente, “‘eu tenho angiistia de”, o que faz com que 0s tradutores se sintam obrigados, em certos momentos, a verter ‘Angst por "medo”: “Eu tenho medo de”. Vejamos o caso de uma fobia como # do “‘pequeno Hans”, Af se fala de “animal de angés- tia", mas, evidentemente, a expresso francesa (animal d’angoisse) presta-se mal a traduzir essa idéia do pequeno Hans, por exemplo: “Pai Vangoisse du cheval” (Fico com angéstia do cavalo) Furcht, que € mais freqtientemente traduzido por peur (medo) ou entéo por crainte (temor); 0 verbo “redouter” (recear) seria adequado mas, em francés, nao existe substantivo correspondente. [Em portugués, sim: 0 substantivo “receio”.] as duas passagens em que Freud introduz essa disti A primeira é em Conferéncias Introdutérias sobre Psicandlise “Pareceme que a Angst referese ao estado e se abstrai do objeto, ao paso que em Furcht a atengio encontra-se precisamente concentrada no objeto. [Nao se diz que a angistia nao tem objeto, » mas que se abstrai dele, 0 que € muito mais nuangado do que a teoria francesa da angdstia como medo sem objeto.) A pelavra Schreck parece-me, em contrapartida, ter uma significagao muito especial, a0 designar enfaticamente 2 acio de win perigo para 0 qual nio se estava preparado por um estado prévio de angistia. 48 AANGOSTIA Podese dizer que 0 homem se defende contra o Schreck pela Angst. ‘Vejamos agora um trecho muito semelhante em Além do Prin- cipio de Prazer: “Susto, medo, angistia [Schreck, Furcht, Angst] so termos que é errado utilizar como sinénimos; suas relagdes com o perigo permite perfeitamente diferengé-los. O termo angds- tia designa um estado caracterizado pela expectative do perigo ¢ a preparagao para este, mesmo que seja desconhecido [hé, pois, a idéia de uma intencionalidade da expectativa, uma Bereitichaft, uma preparagao, ou ainda uma Envartung]; 0 termo medo supoe um objeto definido de que se tem medo; quanto ao termo susto, designa o estado que sobrevém quando se cai numa situacio peri- gosa sem estar preparado para ela; dé Enfase ao fator surpresa, Nao creio que a angistia possa engendrar uma neurose traumética [é 0 capitulo em que Freud fala da neurose traumética, na acepgio de neurose de acidente]}; hé na angtistia algo que protege contra © susto e, portanto, também contra a neurose de susto.” ‘A angistia decompSe-se conceptualmente segundo os dois pares ‘que forma, de um lado com o susto, do outro com o temor, Come: cemos pelo par angistiasusto. O susto © PAR comporta dois elementos conjuntes que ANGUSTIASUSTO sio a ndo-preparacdo (ou o fator surpre- sa, 0 que vem a dar no mesmo, visto que a falta de preparago & a causa da surpresa) e a idéia de déborde- ment (transbordamento), termo que, em francés e um pouco em ale- mio (Oberwaltigung), subentende 0 duplo sentido conjunto, Ser debordé (tansbordado) é ser submergido e € ser transtomado*; e 6 ser submergido, eventualmente, porque se é transtornado por ser pego do lado que nao se esperava. E uma nocao de postura estraté- gica, pois numa certa estratégia da neurose ¢ do conflito é natural que se empreguem termos de ressondncia militar. O susto € o triunfo do econémico, da forca, do fator quantitativo, Freud disse, « esse respeito, que, na neurose, a vitéria sempre cabe, como na guerra, 40. 8, Freud, Introduction & la psychanal ccolchetes: comentérios de J. L. 41. Bm Essais de psychanalyse, op. cit, p. 14. Entee colehetes: comen- de JL * No francés tourne op. cit, p. 372. Entre ATANGST" NA NEUROSE 49 aos batalhdes mais fortes. 1380 nfo significa que seja sempre o mais poderoso quem ganha, mas aquele que sabe ter os batalhdes mais fortes no momento oportuno, contra um inimigo mais fraco nesse ponto. Por conseguinte, o susto, espécie de derrota subjetiva, assinala a vitdria desse fator econdmico porque nada preparou o sujeito para esse transbordamento, nada pOde ser simbolizado por ele, ou “pré-simbolizado” por ele, prevenido, nem que fosse apenas por um sinal. Por menos simbdlica que seja a angistia como sinal, pelo menos ela marca alguma coisa, um limite, Mas quando nent ‘mesmo hd angiistia entao € 0 reino do econémico puro. Essa nogdo de susio encontra-se no pensamento de Freud desde 1895, com Estudos sobre @ Histeria ¢ as cartas a Fliess (particular mente 0 Manuscrito K e 0 Projeto para uma Psicologia Cientifica). Se essa nogo de Schreck esté presente logo de inicio, € porque ela € consubstancial com uma nogfo igualmente fecunda desde 0 inicio, a de traumatismo, Traumatismo € susto esto estreitamente solidérios. Para situar esse conceito de susto, proporei trés contextos. Em primeiro lugar, 0 de Estudos sobre a Histeria, onde a nogdo é utilizada por Freud ¢ Breuer. E um dos pontos em que eles esto inteiramente de acordo: a fungéo do susto como ndo-preparagio na génese do traumatismo. Na “Comunicacéo preliminar”, texto escrito em comum por Breuer e Freud, o problema ¢ o seguinte: quais no seja ab-reagido, isto é, nfio produza com ele a descarga emo- cional mas fique separado do seu afeto? Ou ainda: quais sio as jo as circunstincias que fazem com que um acontecimento circunsténcias que fazem com que um acontecimento néo seja ela borado, isto é, nao esteja vinculado ao contexto psiquico mas, pelo contrério, permaneca isolado? Perguntar por que um evento nfo € ab-reagido, ou ndo € elaborado, € 2 © susto. mesma coisa que perguntar: como é que INIBIDOR DA um acontecimento pode converterse em ELABORACAO trauma? Sobre esse ponto, Breuer ¢ Freud PSIQUICA divergem de inicio, e divergirao cada vez mais. Para Breuer, se um evento se torna traumatismo, € porque sobrevém em um determinado estado do sujeito, estado dito “‘hipndide", que jé ¢ um estado de divisdo, de Gespedacamento, do seu contesdo psiquico; para Freud, € a nogio 50 AANGUSTIA de defesa que se colocard rapidamente em primeiro plano: se um acontecimento esta isolado, € porque o individuo tem em si mesmo Outras representagdes ou outros grupos de representagdes que fa- zem com que ele no possa, ou nfo queira, integré-lo; portanto, ele 0 reprime. A questio nao é, neste caso, apurar se no haveria, para além dessa oposicio, uma certa convergéncia. Mas, em todo caso, na “Comunicago preliminar”, onde Freud, em parte, adere a0 estado hipndide, vemos intervir 0 susto: “Na segunda série de condicdes necessérias, a doenca € deter- minada pelo esiado psfquico do sujeito no momento em que se produz 0 evento em questio [portanto, hi um traumatismo quando © evento, ainda que seja em si mesmo relativamente anédino, so- brevém num estado psiquico particular, que ¢ justamente esse estado hipndide]. A hipnose mosira, com efeito, que o sintoma histérico € devido a representagdes que, sem importéncia propria, devem sua manutencio ao fato de terem coincidido com fortes emo- odes paralisentes como, por exemplo, um sobressalto de susto, ov a0 fato de se terem produzido diretamente durante certos estados psiquicos anormais, de eutohipnose etc. Também parece que, em ‘numerosas pessoas, o traumatismo psiquico provoca um desses esta- dos anormais que tornam impossivel qualquer reagio."** As duas eventualidades evocadas resolvem-se, portanto, nume tinica etiolo- gia, por intermédio do susto, Verificase, de fato, uma espScie de circulo, Breuer diz. gue hé traumatismo se 0 evento sobrevém num estado hipndide, mas Freud ferescenta que © proprio susta pode Provocar essa espécie de estado hipndide, de deslocamentc A partir dai, duas orientaedes, complementares e divergentes 40 mesmo tempo, vio aparecer na clinica ¢ na teoria psicaralitica Por um lado, a que leva 8 teoria da neurase traumdtiea na ecepeio clinica do termo (a neurose de acidente, a dos grandes trasmati mos, a de guerra ou dos acidentes de estrada de ferro ou, enfim, dos cataclismos), em que o susto agirla diretamente por sideracio das defesas. E, por outro lado, orientago muito mais elaborada 42, S, Freud © J. Breuer, Etudes sur Uhystérie, PUR, 64 ed., 1918, p. 7 Entre colchetes: comentérios de J. L. [ESB — Estudos sobre a Histeria: vol, 11] 51 por Freud, @ teoria traumdtica da neurose (teoria traumética de todas as neuroses, ou teoria do traumatismo em todas as neuroses). Por sua vez, retroativamente, essa teoria traumética da neu- rose repereutird sobre a teoria da neurose traumética, permitindo discernir que esta ultima néo € to simples quanto parecia nem esti to univocamente ligada 20 traumatismo externo. E que, com feito, o estudo do elemento traumético de todas as neuroses iré evidenciar um fator de origem interna, aufotraumético, ele préprio suscetivel de provocar o susto, Como se sabe, é essa a teoria do traumatismo em dois tempos, que agrupamos comodamente sob a denominagao de “teoria da seducio”. Ora, nessa teoria, a nogio de Schreck continua sendo essencial. Mesmo que haja vatios tem- pos, eles niio chegam a prepararse um ao outro. Pelo contrério, 4 ndo-preparagdo redobra, apesar de haver tempos sucessivos. Temos ai um verdadeiro paradoxo: o susto continua a produzir-se, embora, por ter passado por um certo ntimero de experiéncias, se pudesse supor que o individuo estivesse preparado. S6 posso fazer aqui uma alusfo muito répide a essa teoria da sedugio, na medida em que ele se relaciona com a andlise da angéstia e do susto* ‘A nossa segunda referéncia a respeito do susto é, portanto, esse segundo capitulo de Projeio para uma Psicologia Cientifica, inteiramente centrado no problema do transbordamento e da reagéo cateclfsmica. A questo que se poe é, © SUSTO EO com efeito, a seguinte: por que, na neu- TRANSBORDAMENTO rose — quando conhecemos os processos bo EGO de defesn normal ¢ sabemos justamente que a repeticao de um evento permite ao individu elaborar uma defesa melhor adaptada —, por que em certos casos hi, apesar da repeticio ou talvez por causa dela, de- fesa anormal, produzindo-se segundo 0 processo primério? Por que © ego, que € 0 lugar da dominagao, da inibicfio e do processo se- cundério, deixa-se arrastar para um modo de defesa cataclismico? Como 0 ego se pde a funcionar como 0 desejo? A resposta resume- se ao seguinte: hé um duplo transbordamento (Wberwaltigung) 45, Cf, para uma anélise pormenorizada: J, Laplanche. Vie et mort en psychanalyse, Paris, Flasmation, 1970, eap. 1 52 AANGUSTIA porque hé uma dupla cena. O sujeito é enganado justamente pelo jogo do simbolismo entre duas cenas, sendo que apenas a conjun- cdo de ambas produz o traumatismo, Nesse momento da elaboragio do pensamento freudiano em que ele descobre, pouco @ pcuco, a sexualidade infantil, o que se apresenta como essencial para Freud € 0 fato de essas duas cenas estarem separadas pelo momento da puberdade. Com efeito, a puberdade é a aquisi¢ao de novos meios de. elabotacao, de dominio, de novas representagdes e igualmente de novas possibilidades de reagdes fisiolégicas e de afetos, A puber- dade introduz um novo estégio, uma possibilidade nova de com- preensao. Hé ai um aspecto arcaico do pensamento de Freud, mas insisto no fato de que esse esquema é villido para outras berreiras outros estégios além do estégio da puberdade. E um esquema estrutural que continua sendo vélido em toda a teoria freudiana dos estégios: cada estégio acontece pelo fato de trazer com ele uma nova linguagem, um novo modo de elaboragao, uma nova “‘bateria de significantes”, mas também novas reagbes fisiolSgicas; e é justamente na passagem e na traducao de um estdgio para outro, que pode estabelecer-se a defesa neurdtica. Assim, pode-se Jer esse capitulo, “Psicopatologia”, de Projeto para uma Psicologia Cienti- fica, dizendo-se que tudo isso esté ultrapassado e que nfo cabe sequer pensar que nao haja sexualidade antes da puberdade. Ou, pelo contrério, pode ser lido como um modelo, como algo que é uuma antecipagio de ume teoria perfeitamente transferivel para um outro esquema de anélise: aquele a que, em psicandlise, se dé o nome de “estégios”. Nao se entenda com isso uma noo essencial- mente genética: nfo se trata de dizer que cada estégio vem comQt" pletar 0 seguinte, remati-lo, ov até que vem dialeticamente sup milo e realizé-lo. A teoria freudiana dos estégios néo 6 nem fran-|) camente genética, nem dialética: € uma espécie de trama sobre || cujo fundo o traumatismo pode agir. Dois eventos estio separados ' por um momento de fase, uma virada na capacidade de simboli zagio, e isso € que é essencial em nossa investigagio acerca do susto. O jogo entre duas “‘cenas”, a nogdo de “‘sexual-pré-sexual”, 6 se entendem em relacto a essa mutecfio na capacidade de. sim bolizar. O sexual que irrompe numa etapa “présexual”, ou seja, num estado de néo-preparagdo para simbolizar, é o que define & aie A “ANGST” NA NEUROSE 33 primeira “cena”. Ele ai se implanta, do exterior, na nfo-preparagio do sujeito, em seu ego. Pense-se, por exemplo, na implantagio de um eletrodo no hipotélamo de um gato, eletrodo que, depois de encerrado, serd telecomandado nao sei por que meio de dispositivos de radio. £ a implantacéo de uma cena chamada “corpo estranho interno” © que vai tornar-se no sujeito, como espinha irritante no?” ego, fonte futura de pulsdes. E talvez seja essa, em tiltima andlise, “ a concepedo jreudiana da pulsdo. Depois vem a segunda cena, desta vez apés 0 momento de fase, pds a puberdade, a qual evoca a primeira por alguma circunstincia associativa eventualmente ex- trfaseca, por algum vinculo de contigiiidade ou de semelhanga (um acordo de "‘comprimento de onda”) e que vai (a imagem do ele trodo no hipotélamo € evocativa) ativar a primeira; ¢ isso ocorre Porque, nesse meio tempo, a sexualidade sofreu uma evolugéo: © sujeito adquiriu uma nova possibilidade de compreensio psico- logica © fisiologica da sexualidade, de tal maneira que a primeira cena pode recuperar seu sentido sexual. Mas agora, implantada no interior, ela ataca 0 individuo nao de fora, mas de dentro, como pulsio. Se quisermos, poderemos consideré-la uma espécie de emissor interno, ou ainda uma quinta coluna. A partir desse? texto sobre a “proton pseudos”, o papel do ego € indicado de maneira inteiramente clara: 0 ego esté presente para ser revisado (tourné). Houve justamente dois tempos e, no entanto, um dos dois nao pode atwar como sinal para o outro. Nao houve consti- tuigfo de uma montagem defensiva mais ou menos racional, mais fou menos conttolada; o que houve foi uma tomada do ego pelas costas, submersio, susto, “tomada de pinico”. E isso o que exprime ainda um outro termo, essencial tanto para a teoria da angéstia como para a pulso em geral: 0 de Enibindung, traduzido erronea- ‘mente por “descarga”, pois trata-se, exatamente, do processo inverso da Bindung, logo, desligamento, desencadeamento e deflegracio. Ha Sexualentbindung, “desligamento da sexualidede”, “desenca- deamento da sextalidade”, € pode-se até pensar nas ressonéncias que o termo deflagrador pode encontrar numa teoria como a eto- logia, a propésito da deflagraco dos mecanismos instintivos Nossa terceira referencia para a nogdo de susto seré, enfim, a neurose traumética — no sentido préprio do termo — tal como € objeto dos capitulos II © IV de Além do Principio de Prazer, 34 A ANGOSTIA onde a férmula essencial € essa: “Hé na angtistia algo que prepara contra 0 susto.” Nesse texto, a neurose traumdtica é compreendida com referéncia a um modelo (de momen- © SUSTO DA to, apenas o mencionarei, pois certemente NEUROSE teremos ocasio de volter a ele): 0 da TRAUMATICA vesicula viva, de uma bola protoplésmica com um interior, um exterior e um limite. No interior desse limite encontra-se preservado um nfvel n de energia, diferente do nivel N da energia externa; vesfcula que tem por tezdo de ser a manutengao de seu nivel constante contra os ataques externos, que so de uma ordem de grandeza muito mais consideravel. E, portanto, ao mesmo tempo uma certa concepsfo da célula viva € um certo modelo do organismo humano, de seu agarelho psiquico e talvez de seu ego. Deixemos de momento na indeter- minacdo o nivel em que ele se situa, para descrever o que se passa no traumatismo, A neurose treumatica é apresentada como uma efragio, uma brecha ampliada, provocada por uma considerével energia “externa”, atacando uma vesicula néo-preparada, Com efeito, poderseia conceber que, se tivesse havido angistia, teria havido mobilizacdo de energia na fronteira, de sorte que, ro mo- mento em que surgisse 0 ataque, produzirseia uma espérie de contra-investimento, permitindo limitar a brecha. Pelo contrétio, se no houve mobilizacdo prévia, no houve angiistia, no houve Preparacio, € ento 0 susto, penetrago por uma energia, que poe em perigo a vesicula em sua propria existéncia; ainda hé reagio, certamente, mas muito mais andrquica, uma tentativa, no panico, de reconstituir alguma coisa, uma espécie de préligacio nio-sim bolica ou pré-simbélica, Assim como antes de filosofar é preciso viver, antes de simbolizar o evento jé € preciso tentar, por todos os meios, apartélo, limité-lo. A "ANGST" NA NEUROSE 55 Em conclusio, © nosso primeiro par, susto-angéstia, permite descrever com preciso um dos aspectos da Angst. Em relagao 20 susto, que é desestruturagio, € 0 aspecto mais estruturado e 0 mais estruturador da angistia que se apresenta aqui. Enguanto que © temor seré mais estruturado do que a angistia, aqui € a angéstia que se apresenta como simbélica, jd defesa ¢ preparagio contra 0 susto. & esse o aspecio da Angst que faz com que se possa juste- mente dizer Ich habe Angsi vor...: eu tenho angistia de... Di rentemente das ressonéncias do termo “‘angiistia”, hé em Angst um aspecto intencional, pelo menos implicito. Ha uma preparagao, no, por certo, para o objeto isso seré medo, a Angst no sentido mais £6bico do termo) mas para o perigo. Subseqiientemente, o termo susto, que é, apesar de tudo, constante no pensemento freu- diano desde 0 comego, talvez se apague um pouco em proveito dda nova oposi¢ao: Angstbereitschajt e Angsientwicklung. Esquema- ticamente, poderiamos dividi-los assim: Susto (Schreck) Angiistia (Angst) Angstbereitschaft Angstentwicklung 00°)» sinal que permite processo defender-se contra niio-controlado — 20 de janeiro de 1971 Nests primeira oposicao, a de angistia e susto, esté na angés- tia, portanto, o aspecto sinal que foi sublinhado; 0 seu aspecto proceso, na medida em que é, pelo contrério, desenvolvimento © nao mais sinal de angistia, tendia a aproximar-se do susto, Entre- tanto, essa distincdo entre “‘angistia-sinal” e “desenvolvimento de angistia” ndo deve ser interpretada como algo absolutamente fixo. © sinal ameaca sempre transformar-se em desenvolvimento ¢ 0 desenvolvimento, por sua vez, corre sempre o risco de chegar a0 transbordamento, ¢ isso por consideragdes que poderemos chamar de t6picas, isto €, consideracbes de lugar. Todo o problema da angistia, na medida em que esta pode tornar-se transbordamento, € saber de onde a angtstia ataca, E, no aspecto mais original da 56 AANGUSTIA concepgio freudiana, a angistia ataca de dentro, ela provém dessa espécie de fonte interna implantada no sujeito. E por isso que todo © problema da angstia vai girar em torno dessa questiio interna- externa ¢, com os problemas topolégicos complexos que isso im- plica, gravitar em torno do problema do limite, Hoje, nés nos deteremos no segundo par: Furcht-Angst, que apresenta 0 problema da relacao da angistia com o objeto. Essa distingéo terminol6gica evoca, evidente- © PAR mente, a diferenga que se faz corrente- ANGUSTIA-TEMOR mente em psicologia e em psiquiatria entre medo € angistia. A distincZo, hoje banal, foi assim formulada por Janet: “A angtstia é um medo sem objeto.” Para uma boa exposicéo da questo, remeto vooés a algumas péginas do livro da sra, Favez-Boutonier sobre a angistiat ‘Medo implica relag#o com 0 objeto e com os perigos que ele faz correr: temse medo de assaltantes, de um homem brutal. Daf & idéia de ume relaco Iégica, proporcional, adaptada, ao perigo, vai apenas um passo que muito depressa se é tentado a transpor, talvez irrefletidamente, Angiistia, pelo contrério, implica indeter- ‘minagéo do perigo. E creio que € por intermédio dessa indetermi nagio do perigo que se pode ja abordar o que vai ser uma das teses freudianas, ou seja, que a angtistia esté intimamente ligada ao problema do recalque, e que é na medida em que as represen- tages perigoses séo recalcadas que elas suscitam angtstia. © problema, para ir além de uma distingfio puramente termi- nolégica, consiste precisamente em saber se existe ou néo uma continuidade ou uma contaminacao, que espécie de relagées reais podem existir entre a angistia e 0 medo. Um medo que no acar- eta apenas reagdes adaptades, mas também um certo grau de enlouguecimento (e no é esse 0 caso de todo o medo?), seré que 6 6 angistia? E, neste caso, sera que o que ocorre é simplesmente que 0 méximo de medo seria a angisstia? continuidade? ou serd antes 4 contaminagao do medo por um outro processo, simbolica- mente evocado? Quero dizer que, por detrés do medo do assal- tante ou do homem brutal, se desenha, se desenharia neczssaria- 44. J. Savez-Boutonier, Llangoisse, Paris, PUS, 1965, cap. 1: “Angoisse ct anxigeé” A “ANGST” NA NEUROSE 57 mente, uma angistia mais arcaica, inconsciente, ligada a represen- tages inconscientes. por isso que a psicandlise, ¢ talvez s6 ela, pode permitirnos enxergar mais claro, para além de distingdes um pouco formai Tomemos, apesar de tudo, a distingio da lingua alema, aquele em que Freud se apdia e que, certamente, no & exatamente a distingao francesa, Em primeiro lugar, essa distingéo puxa a Furcht para 0 lado do temor ou do “receio”, portanto para o lado de uma reago adaptada ao seu objeto, ainda que este transcenda todo o perigo empfrico. Um dos exemplos mais correntes para o mprego da palavra Furcht € a Furcht Gottes — o temor de Deus: Nés, alemdes, tememos a Deus e @ mais ninguém no mundo”, dizia Bismarck; e também nas Escrituras: “O temor ao Senhor é © comego da sabedoria.” Com o temor, estamos portanto, apesar de tudo, no dominio de uma certa racionalidade. A nuanga que Freud the confere ndo é exatamente essa. Ele nos diz: “No temor (Furcht), a atengio recai sobre 0 objeto, na engistia (Angst) ela relaciona-se com 0 estado e abstrai o objeto.” Na realidade, como se ver, na teoria psicanalitica @ angiistia nao abstrai simplesmente © objet Eis mais algumes nuangas, sempre ligadas ao uso da lingua. E certo que jiirchten (temer) € transitivo em alemfo, visa um objeto; recear, temer 0 objeto. Mas Angst também admite uma intencionalidade; e & ai que o uso de Angst pode ser mais fecundo para nés do que o uso da palayra angéstia, “Tenho angtstia de. ..", Essa alianga de palavras soa como um paradoxo, mas talvez permite dar conta de que, na angistia f6bica, hd simultaneamente objeto € auséncia de objeto, ou que o objeto visado néo é aquele que, na realidade, esté subjacente a toda a questo, “Tenho angis- tia dos cavalos", diz 0 pequeno Hans, na “‘anélise de uma fobia num menino de 5 anos”, a qual inaugura a teoria freudiana da histeria de angtstia. Encontra-se também o termo “animal de an- gustia”, Angsitier, que mostra ainda essa ligagao possivel mas talvez contingente, talvez secundéria, da angdstia por um objeto, Em resumo, mais que as distingdes francesas, 0 uso alemao de Furcht € Angst tende a esvaziar do lado da Furcht o elemento adaptativo ¢ racional. E € absolutamente notavel, aliés, que Freud, se adota ssa distinedo terminol6gica, emprega muito pouco o termo temor. © temor no o interessa, a nfo ser para estabelecer um certo 58 AANGUSTIA niimero de distingSes, mas tudo se desenvolve antes de mais nada do lado da Angst. Portanto, evacuagaio A “ANGST: em Furcht do elemento propriamente AO MESMO TEMPO ——recional, ou de tendéncia racionals em MEDO E ANGUSTIA Angst, simultaneamente medo © angiis- tie, podemos verificar a contaminacao do medo pela angéstia, de um medo aparentemente motivado ou, inversamente, a fixagao da angistia num sintome que se assemelha ‘a0 medo, que pode passar por medo e, portanto, fazer crer em seu caréter racional. Todo medo aparentemente motivado teria, na realidade, um fundo de angiistia, e toda angistia se revestiria, a prazo mais ou menos curto, com a méscara do medo. Enfim, Angst vor — “‘angtistia de” — remete-nos, por certo, a uma intencionalidade, a uma transitividade, mas que pode ser dupla: intencionalidade em relagéo 20 objeto e intencionalidade em relacdo ao perigo. Ora, Freud, em todos os seus desenvolvi mentos sobre a engistia (tanto em Conferéncias Introdutorias sobre Psicandlise quanto em Inibigdes, Sintomas e Ansiedade), sablinha a segunda, ou seja, @ intencionalidade em relucio ao ‘perigo; @ angistia é, sobretudo, expectativa — seja ela vaga ou, pelo con- trério, precisa © preparatdria — de um perigo. Mas o problema serd saber que perigo € esse, ¢ se cle ¢ objetivavel fora da angtstia, ‘© que nos levaré a indagar se a angtstia, em tiltima instincia, no ser apreensio desse perigo... que € a prépria angistie como desenvolvimento. A angtistia-preparat6ria seria preparacdo pre- vvengao contra a angiistia-desenvolvimento-e-transbordamento, aquela que, finalmente, se une ao pavor. Ai temos ainda um outro aspecto dessa distingdo entre, por um lado, “angtstia-sinal” e, por outro, “desenvolvimento de angistia” (ou “angiistia automética”). E é de , {se perguntar se haveré ainda alguma outra coisa a procusar por |, [tras da angiistia automética, ou se ela nfo serd o auge, o “émega” de todo o perigo, pelo menos daquele com que temos de lidar na [anatise. Retomo agora o capitulo 25 de Conferéncias Introdutérias sobre Psicandlise, onde encontramos, em primeiro lugar, slgumas paginas especialmente dedicadas ao problema da angtistia infantil. Especialmente dedicadas, se € verdade que esse problema é de ATAN 'S1" NA NEUROSE 59 importéncie capital para a teoria psica- A ANGUSTIA nalitica, se € verdade que o medo ou INFANTIL: angéstia infantil € um fendmeno de obser- UMA ANALISE vacdo cotidiana, universal, por assim di- FREUDIANA, zer; se € verdade, também, que talvez ESSENCIAL esses medos infantis, freqiientemente jé fixados em fobias, estejam em continui- dade, aparente ou real, com as fobias tal como as vemos desen- volverem-se nas neuroses, Continuidade tanto na forma do vivido, quando se trata, com eleito, mais de angistia do que de temor, como na sintomatologia, se € verdade que o medo infantil tem tendéncia a fixarse justamente em tal ou tal objeto privilegiado ¢, portanto, por assim dizer, a “fobizar-se”. Freud se pergunta se é possivel aplicar & angiistia infantil (chamemo-la simplesmente an- mistia) @ distingao entre angiistia-real e angistia neurética. A pri- meira vista, numa observacao superficial, @ angéstia infantil pa- rece ser antes de tudo uma engiistia,real, uma angtistia motivada por circunstancias exteriores freqiientemente leves ¢ fitteis, mas sempre decifraveis; angéstia, diz-se, diante de tudo 0 que € novo. E Freud expée primeiramente uma teoria, que seria um pouco a do senso comum, segundo a qual esse angistia estaria mais do que justificada, em virtude de impoténcia fisiolégica e psicolégica da crianga em relaco aos imensos perigos que a cercam: “A crian- a, assim, nada mais faria do que reproduzir a atitude do homem primitivo e do selvagem dos nossos dias que, em razio de sua ignordncia e falta de meios de defesa, sentem angiistia diante de tudo 0 que € novo, diante das coisas com que estamos hoje fami- farizados e que j4 ndo nos inspiram a menor angistia.”"® Ao mesmo tempo, entretanto, a angtistia infantil parece preparar 0 terreno para a angistia “neurdtica”” adulta. E certo que as criancas particularmente ansiosas tornam-se, com freqiiéncia, neurdticas, mesmo fébices. Daf uma teoria aparentemente simples (que Freud expée citando Adler) que vincula a angistia a inferioridade © & impoténcia. A angtistia-real seria o fenmeno inicial, perfeitamente justificado em razdo das circunstincias; e, sobre esse fundo geral, desenvolverse-iam todos os medos da crianga, depois a angiistia 45. S. Freud, Introduction @ ta psychanalyse, op. cit, p. 383, 60 AANGUSTIA adulta que seria o prolongamento daqueles, ou a sua compensagio. Vemos que a teoria adieriana, tal como nos é aqui apresentada de maneira simplista por Freud (mas acontece que o adlerismo é simplista), vé 0 problema como sendo o da relagio do egc com 0 mundo e com as forcas exteriores, e elimina completamente a teoria libidinal e a presenca das pulsdes. Numa teoria como essa, fa excitagao sexual (que sabemos poder ser ansiogénica para @ crianga) 6 provocaria angistia pela mesma rezo que qualquer outra entrada de excitagéo, visto que, muito simplesmente, “a crianga tem medo de tudo”®. Entretanto, se retomarmos clinicamente a observaglo da an- gistia infantil, veremos que as coisas absolutamente néo se passam assim. E preciso distinguir, numa ordem genética e I6gica, 2 angistia da crianga em face das pessoas, a angistia da crian- ga em certas situagdes e a angéstia em face de objetos (objetos fobogtnicos): “A crianga pequena experiencia, em primeiro lugar, a angtistia na presenga de pessoas estranhas; as situagdes, a esse respeito, 86 desempenham um papel através das pessoas que clas implicam; e, quanto aos objetos, somente aparecem, como geradores de an- gistia, em éltimo luger.”*7 — Angiistia diante de pessoas. E 0 problema da angtstia diante de um rosto estranho, de uma presenge estranha, Freud elimina completamente a idéia de que se trata de uma espécie de compreensio do perigo representado pela hostilidade eventual desse estranho, A angtistia diante do rosto estranho nada mais € do que a angiistia pela perda do rosto amado, ou seja, a perda da mac. Numa perspectiva kleiniana, em que a mie ndo é somente a mae boa mas uma personagem ambivalente, ao mesmo tempo bea e md, poder-sesa dizer que a angistia diante do rosto estranko & 0 des- SITUACOES FOROGBNICAS mascaramento, por trds da mae boa, do rosto da mie md. 46. A tradugio francesa is veres mascara a opcsigfo muito clara de Froud a essa teotia da crianga que se ve em confronto com un mundo exterior host 147, 8. Freud, Introduction @ la psychanalyse, op. cil, p. 384, A ANGST” NA NEUROSE 61 — Angiistia em certas situagdes: ““As primeiras fobias de situaco que se observam na crianga so as que se relacionam com a escuridao ¢ a solidéo. [Também aqui no se trata da escuridéo como tal; a auséncia da pessoa amada € que é determinante]; @ primeira persiste freqtentemente durante a vida toda e as duas [angéstia diante da escurido © diante da sofidio] tem em comum a cuséncia da pessoa amada, aquela que dispensa cuidados, ou seja, a mae. Uma crianga, ansiosa porque esté no escuro, dirigese & sua tia, que se encontra num quarto vizinho: “Titia, fale comigo. Tenho medo.’ ‘O que isso adiantaria, jé que voc® nfo me pode ver?’, diz a tia, Ao que a crianca responde: ‘Quando alguém fala, fica mais claro.’ A ansia de uma presenga [Sehnsucht] que se experiencia na escuridéo transforma-se assim em angistia diante da escuridao.”"* — Angiistia diante dos objetos. & 0 problema das fobias, que Freud retomaré mais adiante, Indico simplesmente que 0 objeto, neste caso, € muito secundério; apresenta-se como substituto de outra coisa, como ponto de fixagéo e como elemento de ligagaio de uma angdstia que, sem a presenga do objeto, se encontraria desligada, desvinculada |Entbunden} Essa teoria da angustia infantil € simples, caminha direta- mente no sentido da teoria das neuroses atuais (da primeira teoria \ da angistie em Freud): a angdstia infantil nada mais é do que a libido néo-empregada; provocada pela perda do objeto amado, € a repetigio de uma descarga andrquica de libido que jé nao encontra seu objeto nem os atos precisos a serem efetuados em relago a esse objeto; a privacéo do objeto acarreta acémulo da libido, depois descarga por um verdadeiro fendmeno de transbor- damento, no sentido em que uma panela extravasa. O sujeito trans- borda de libido e é isso que se apresenta a nés, ¢ que & por ele percebido, como angistia. Por trés dessas experiéncias da angustia infantil, é 0 nascimento que se apresenta como situacao primeira, como “protétipo € como causa”, i, de todas as situacdes ulteriores de angistia (© PROTOTIPO DO NASCIMENTO het 62 A ANGDSTIA “Tratase de uma libido que se tornou inutilizével e que, no podendo entio ser mantida em suspensio, encontra sua derivacio na angistia, E ndo é certamente por acaso que nessa situagio carac- terfstica da angistia infantil encontra-se reproduzida a condigio que é a do primeiro estado de angiistia que acompanha 0 nasci- mento, a saber, a separagdo da mde.“ Numa outra passegem do mesmo capitulo, a angiistia do nascimento é ainda evocada mais extensamente, logo, muito antes da teoria de Rank sobre o “trauma de nascimento” e da discussio em Inibigdes, Sintomas e Ansiedade, © nascimento seria, portanto, 0 primeiro modelo, a primeira oca- siéo para esse aparecimento da angiistia, O nascimento é, sem duvida, origem respiratéria; ele é, sem diivida, prova penosa da mudanga de meio ambiente, temperatura e outras condigées consi deraveis; ele é, eventualmente, treumatismo, no proprio sentido obstétrico do termo, segundo os avatares do nascimento. Mas, para Freud, nada disso é 0 essencial; 0 que conta no nascimente, e que faz dele 0 protétipo da angiistia, € 0 fato de o nascimento ser autorintoxicacdo. Quer dizer, a crianca € privada de suas fontes de alimentagio ¢, sobretudo, de oxigénio, separada da mac, sem estar ainda adaptada @ um outro meio ambiente; portanto, jé se produz esse momento, exatamente, o fenémeno da estase energética, de transbordamento, esse ataque interno que se reencontraré em toda angtistia. E certo que existe separaco da mie, mas essa separago nao € evidentemente percebida como tal pela crianca; s6 as suas conseqiiéncias se objetivam, e hé um desenvolvimento automético de reagdes anérquicas, catastréfices, que slic precisamente as que serdio reproduzidas em seguida na angiistia infantil ou nestdtica: “Foi o aumento enorme da excitacdo consecutiva a interrupeo da renovagio do sangue (respitagdo interna) que causou, pois, a sensacao de angistia: a primeira angistia foi, portanto, de ratureza t6xica.” Vese a coeréncia, nessa época, da teoria freudiana da angistia @ angistia infantil, por suas condigdes de deflagragio, por seu mecanismo, também por sua fenomenologia, “aproxima.se muito da angistia neurética dos adultos; ela nasce, como esta, de uma 49. Ibid. 50. Ibid. p. 374, ATANGST” NA NEUROSE 63 libido ndo empregada... ela substitui o objeto de amor ausente por um objeto exterior ou uma situacdo”, Eventualmente, por- (anto, ele “fobiza-se” mas, no comeco, & simplesmente actmulo descarga de libido nao empregada. Essa angtstia infantil, que se quis, numa teoria um tanto superficial, legitimar por seus aspectos “realistas” (a crianga é tao frégil...), aparece-nos como muito diferente de toda « angustia-real e, com mais forte razlo, de todo © temor. E a contraprova & a quase auséncia do temor ¢ da angistia- real na crianca. A intrepidez da crianea em face dos petigos reais € um fato de observacao corrente: ela sobe em tudo, manipula facas ¢ tesouras, engole seja 0 que for, em suma, tudo demonstra a falta, no pe- queno ser humano, de montagens instin- tivas compardveis as que podem existir em certas espécies animais, por exemplo, aquelas que fazem @ galinha e os pintinhos pressentirem o perigo do gavido. No homem (¢ Freud nao insiste nesse ponto, mas € um tema constante em sta obra), os instintos de autoconservagio sfo fracos; na crianga hé poucos (ou nenhum) medos salutares inatos (aqueles que deveriam ser ““o comeco da sabedoria”), O que nos levaria, aliés, a indagar qual € @ génese, no homem, dos medos salutares, ¢ se 05 medos chamados racionais nao sero mais ou menos necessariamente inculeados por intermédio do processo de angistia, se nao estaro impregnados de angiistia. Temos, portanto, uma desqualificagao da funcdo adaptativa de angistie, de Angst, ainda que seja angtistia-diante-de-um-perigo-real A ANGUSTIA-REAL INEXISTE NA CRIANCA “Vocés nao acreditam seriamente, espero, que se foge porque se sente angtistia? Nao, sentese angiistia e foge-se pelo mesmo motivo, que € fornecido pela percepefo do perigo, Homens que treram grandes perigos contam que nfo experiencieram a minima angistia | Angst: angistia ou medo], mas simplesmente agiram, dirigindo, por exemplo, suas armas contra o animal feroz. Eis certa- mente uma reagio que n@o pode ser mais racional.#* 31. Ibid, p. 386. 52. Ibid. p. 407. Entre colchetes: comentarios do J, Li . 64 A ANGOSTIA — I7 de fevereiro de 1971 Acompanhando diferentes textos de Freud e, em partictlar, as Conferéncias Introdutérias sobre Psicandlise, seguimos as duas ver- tentes segundo as quais se reparte a nogio — talvez ambigua mas certamente fecunda — da Angst: a vertente do susto e a vertente do medo, O medo coloca o problema do objeto (medo de alguma coisa ou medo do perigo), evocando assim, pelo menos superficiakente, ‘uma fungo aparentemente realista, preparatéria; 0 medo de slguma coisa seria um meio de se preservar desse perigo. Mas logo se constatou que a distingo mantida na © MEDO ESTA Franca (a angtistia 6 sem objeto, c medo IMPREGNADO DE vise 0 objeto) é insuficiente. Quase nio ANGUSTIA; A hd medo que néo esteja contaminaco, que ANGUSTIA LIGASE no seja mais pesado do que a mera AO MEDO tuagdo real implica, Detivemo-nos na des- crigéo © na anélise que Freud faz do medo infantil. Este ¢ simplesmente medo de alguma coisa ou de alguém (um rosto inquietante, hostil)? Nao seré antes explosio, 6, de angéstia, exploséo na quel 0 objeto (esse rosto) € apenas 0 sinal deflagrador? Mas se todo o medo, aparentemente real, rea. lista, remete & angistia, inversamente quase ndo existe angistia que ndo procure fixar-se, limitar-se e controlarse, enquanto medo. Aiesté toda a verdade de expresso alema Ich habe Angst vor a nho angistia de...”), ou ainda da expresso “animal de an- istia” (Angsttien) Com essa eleigao, essa verdadeira escolha de um objeto de angtstia, eis-nos introduzidos, pois, no dominio das fobias. As dis- tingdes inttoduzidas e freqiientemente recordadas por Freud con- servam aqui todo o seu valor de referéncia: as fobias (no plural) so, em primeiro lugar, sintomas que podem ser encontrados nas mais variadas afeccSes psiquicas, neuroses ou psicoses, sem que sejam necessariamente patognoménicas. Mesmo na “neurcse de angistia”, percebemos que nada mais séo do que uma das milti- plas modalidades, mais ou menos contingentes, segundo as quais se “liga” a ongistia de base. Mas é s6 com essa forma particular de neurose, que Freud designa pelo nome de “histeria de angistia”, que o sintoma, em virtude de seu cardter tinico, isolado, reivindica AANGS “NA ROSE 65 somente para si a solicitude do terapeuta e mobiliza toda a atengao do te6rico. A fobia, como sintoma, define-se evidentemente por uma certa modalidade de vinculacdo, de conexdo entre 2 Angst e um objeto privilegiado: animal, objeto perigoso ou nfo, situagdo... Fazse intervir numa definiggo das fobias — em relagio as angistias-real — seu caréter injustificado, irracional; mas até que ponto esse critério € ambiguo, se pensarmos que todo o esforgo da neurose € precisamente no sentido de encontrar uma racionalidade ou, em todo 0 caso, uma limitacdo 20 processo de angiistia. O transborda-) mento — fregiientemente macigo — do imotivado, em relacdo as | justificagSes que o sujeito pode dar aos outros ou a si mesmo, nada mais é, sem diivida, do que o testemunho do fracasso da neurose. | Mas é um fracasso revelador na medida em que pée « descoberto a discordincia, a inadaptagdo, os deslizamentos € os transborda- mentos entre os elementos da curta proposigéo desta seqiiéncia aparentemente indiscutivel: medo-do-cio-mau... Que o cio se converta em “au-au"” ou cio em imagem, que o medo degenere logo em pénico, que sejam armados os dispositivos mais complexos para tornar impossivel o encontro; sem que por isso o medo seja suprimido, explode, no entanto, como que experimentalmente, a verdade da “maguinaria” metapsicoldgica freudiana, da qual todas as pecas se apdiam na distinedo, no jogo recfproco e no destino independente do ajeto ¢ da representagdo. Destino independente que Freud ngo tardou em assinglar na A FOBIA cliniea das neuroses — histeria ou obses- DESINTEGRA O sto — e de inicio relacionou com 0 mais PAR AFETO E importante dos processos de defese: 0 REPRESENTACAO recalque. O problema é, pois, o seguinte: © que acontece no recalque? ou ainda: 0 que existe no inconsciente? 0 que ¢ recaleado? 0 que se tornou inacessivel no recalque? Evidentemente, o modelo de recalque é 0 reculque histérico, notedamente « histeria de conversio. Pedese 4 afirmar, sem divida, que 0 que € recalcado é @ pulsio, € 0 desejo sexual. Mas justamente a pulsdo continua sendo, para Freud, um conceito limite ¢ que sé pode ser apreendido a partir do momento em que jé foi refratada para um nivel mais acessivel, para um nivel psiquico. S6 poderemos apreender a pulso no nivel psfquico em nosso acesso psicoterépico através do que Freud denominou ) 66 AANGUSTIA 08 “representantes psfquicos” da pulsdo, seus dois delegados: “re- presentante-representacdo” e “‘representante-afeto”. O representante- representagao € 0 contetido ideativo do desejo — as fantasias, as ccenas, as recordagies de cenas, as imagens privilegiadas que esti vinculadas de maneira hist6rica (talvez mesmo pré-histérica) a0 desejo. O represeitiante-afeto esté, num certo sentido, mais pré- ximo da famosa férmula da energia pulsional: um “X” translerivel de equagio para equagao: & menos qualificado, menos especificado que a representaclo, Seria um erro, entretanto, contentarmo-nos com tal f6rmula geral: acontece que o préprio afeto ja € qualifi- cado; pode ser amor e também pode ser aversfo, cblera, em suma, tode # gama dos afetos possiveis. Esse répido lembrete, provisério, figura apenas a titulo de introduc #0 problema do recalque, cujo enigma (e cuja eficdcia) depende totaimente do destino do afeto. A representagao, no recalque, é relativamente simples imaginar que, se a representagao fosse uma esp: hrieroglifica ou outra, ela poderia continuar existindo sem ser lida (pense-se nos hieréglifos abandonados durante milénios no deserto, antes que alguém os encontrasse ¢ decifrasse). Uma representagiio pode ser consciente ou inconsciente, isso nao a impede de ser — € de poder ser — decifrada. Mas quando hé recalque, passagem para 0 inconsciente, 0 que acontece a0 afeto? Qual é o seu destino? A “re-apresentagéo”, a Vorstelfung, admitimos — nao sem slgum esforgo — que possa jd nfo estar presente para ninguém, para qualquer sujeito. Mas 0 afeto, que sentido tem dizer que ele possa nao mais me afetar em nada? Dai a © RECALQUE questo: 0 que é que o recalque jaz ao E 0 AFETO afeto? Ou: 0 que pode ser um afeto in- INCONSCIENTE consciente? Freud preocupe-se mais do que pode parecer admissivel com essa questo de ser, dir-se-ia ontol6gica ¢ até escoléstica, se pensirmos ‘na seguranca soberana que ele demonstra ao eliminar como pura- ‘mente verbais ¢ formais as objecées renovadas & hipétese ce um psiquismo inconsciente, E de se notar que em quase nenburra cir- cunstncia ele evoca o paradigmatico “sentimento inconsciente de culpabilidade” sem se desculpar (!) por essa “contradi¢@io nos termos”. O problema metapsicoldgico do afeto inconsciente se ve, de fato, ante a proposigao de um certo ntimero de “solu;des", das quais reteremos duas A ANGST” NA NEUROSE 67 1) O afeto néo seria verdadeiramente recalcado, no sentido dessa mudanca de lugar, desse deslocamento t6pico de um sistema para outro, que € 0 destino da “representagao”, Quanto ao afeto, nao se deveria falar verdadeiramente de recalque, mas de repressiio (Unterdritkung, termo que, por outro lado, foi adotado em outro nivel, 0 da repressGo “‘social”. Em todo o caso, o termo “‘repres- so” em Freud remete-nos sempre ao que € mais exterior € a0 que menos implica uma distingio ‘pica). O afeto, reprimido, seria reduzido a seu minimo, “‘comprimido”, reduzido a rudimen- tos, a germes. Tal hipétese coloca mais problemas do que resolve, sobretudo se quisermos continuar levando a sério a hip6tese eco- némica, segundo @ qual “nada se perde” na energia psfquica 2) O outro tipo de solugio € mais propriamente econdmica, no sentido de que néo postula uma modificagéo da quantidade total da energia psiquica, do “quantum de afeto”. A solucio seria a seguinie: 0 proceso de recalque tem A ANGUSTIA, sobre 0 afeto a conseqiiéncia de reduzi- “UNIDADE DE CONTA* Jo ao seu aspecto energético menos es- pecificado, aspecto em que ele se apre- senta como energia pura, espécie de moeda circulante que ora se apresenta por ums, ora por outra de suas duas faces indissolu- libido angistia, Essa teoria econémica pode justific nsideragées tedricas € clinicas. velmente solidérias: se simultaneamente por — Teoricamente, deve-se admitir que aquilo que especifica qualitativamente © afeto, que o torna isto ou aquilo (alegria, re- ceio, citime etc.), s8o represemtagdes, cenas, montagens (equilo que se di o nome de “fantasias”) em que a energia est4 compro: metida e gue Ihe confere justamente essa tonalidade particular. Ora, © recalque tem precisamente o efeito de desligar as represen- tagdes do afeto, conferir-ihes uma espécie de independéncia, pois sabe-se que elas podem deslocar-se para conexées completamente diferentes, €, &% vezes, encontrat-se isoladas, sem nenhum contexto afetivo. Seria entdo inteiramente pensivel que 0 afeto fosse redu- 68 AANGUSTIA zido, no decorrer do processo de desconexio, ao seu aspecto menos especifico, 0 de um afeto puro, precisamente esta espécie de moeda enigmética libido angiistia, — Clinicamente, em apoio dessa explicagio tedrica, veri ca-se freqiientemente no neurético, em conseqiiéncia de um recal- ue, uma irrupedo de angistia ndo-especificada. De modo comple- mentar, no histérico, onde se esperaria um afeto diferenciado diante de tal ou tal situacdo, percebe-se que essa situacéo -esulta apenas em um aumento puro e simples da angistia flutuante, como Se ocorresse uma espécie de troca que faria com que qualquer nova entrada de afeto viesse simplesmente aumentar o fundo geral de angistia. Essa idéia de uma espécie de moeda de base dos afetos exprimese precisamente no capitulo de Conferéncias Intro- dut6rias sobre Psicandlise que comentamos; mas com a obse-vacio complementar de que essa moeda nem sempre & reconversivel. Com efeito, se a converso em angistia (0 termo conversa nfo deve ser aqui tomado no sentido técnico psicanalitico), a troca de afetos pela angistia, se faz com relativa facilidade, inversemente, uma vez que essa troca se tenha realizado e que se tenha obtido uma certa quantidade de angistia, a reconverséo deste em afetos mais especificos é sempre dificil de operar. Seja como for, essa teoria acabou por dar, ma génese da angistia, um papel importante ao recalque™. E é precisamente 0 recalque, como mecanismo central, que vamos encontrar, por um lado na histeria (onde ele foi descoberto ¢ descrito em primeiro lugar) e, por outro, em certas fobias. E por isso que Freud delimi- tard uma parte da classe geral dos sintomas f6bicos para ligé-los & histeria. E por essa razao que ele introduziu um novo conceito nosol6gico 2 que deu o nome de “histeria de angiistia”, por referén- 53. Nao-reconversibilidade da angtstia em afeto diferenciado, dificul dade, até impossibilidade, de “desfazer" 9 recalque, seriam estreitamente correlativas. A“ANGST* NA NEUROSE 69 cia & histeria cléssica, que passou a ser chamada “histeria de con- versio”. A partir de hoje, abordaremos, pata ilustrar essa questio, © caso do “pequeno Hans”, “Andlise de uma fobia de um menino de cinco anos", Descreverei esse caso de ‘A PROPOSITO DO um modo muito diagonal ¢ segundo uma “PEQUENO HANS" linha particular, em fungo do nosso propésito atual. Os pais de Hans tém estreita relagio com Freud ¢ com 0 meio psicanalitico, A mae de Hans foi tratada por Freud alguns anos antes, O pai esté explicitamente ligado a teoria psicanalttica, € um discipulo, e vai agir simultaneamente como educador “es- clarecido” (no sentido em que se possa pensar que existam educa- dores esclarecidos pela psicanélise, 0 que nao é absolutamente certo. E um problema que Freud colocou em toda a sua genera- lidade, justamente 2 propésito do “esclarecimento” que a psica- nélise pode propiciar as criangas") e como observador, atento © instruido, um observador também prevenido, porquanto tem algu- ma idéia daquilo que deve observar desde antes do aparecimento da fobia (@ observaco do pequeno Hans j4 é anotada pelo pai, antes da fobia). Finalmente, como ferapeuta, #4 que se trata de um pai a quem coube o destino de fazer essa primeira psicoterapia psicanelitica de crianca O texto é de grande interesse, pois segue a génese, a evolugio © 0 desaparecimento do sintoma fébico (evolugao que é, ao mesmo tempo, a do préprio tratamento). Mas coloce-nos também em dificuldade, visto que, sendo inseparéveis neurose e tratamento, nfo Tidamos com uma observagio pura. Mas & ume dificuldade que. 80 mesmo tempo, cria um importante problema te6rico ¢ 54. S. Freud, “Analyse d'une phobic d'un petit enfant de $ ans", em Cing psyehanalyses, Paris, PUF, 7" edicdo, 1975, pp. 93-198. [ESB — Andlise de uma jobia em un menino de cixtco anos; vel. XJ . 55, 5. Sreud, “Les explications sexuelles données aux enfants", em Le vie sexuelle, Paris, PUF, 5° edigéo, 1977, pp. 7-13. (ESB — 0 esclarceimenio sexual das eriangas: vol. 1X.1 70 AANGUSTIA absolutamente fundamental, talvez valioso para toda neurose, mas especialmente para uma fobia e uma fobia infantil — ou seja: qual € @ relagio entre a elaboragie do sintoma, ou (na terminclogia freudiana) © “trabalho” do sintoma, sua funcdo estruturente (0 sintoma, com efeito, no € simplesmente algo incOmodo; por mais aberrante que seja de um certo ponto de vista, ele tem uma fungso Positiva) e a elaboragio psiquica, operada na cura, também ela levando @ uma certa estruturagdo em que se inscreve @ ‘ibido? Percebe-se que ai se abre uma série de problemas que nade per- deram de sua atualidade: podese dizer, em tiltime andlise, que uma fobia, especialmente uma fobia infantil, é respeitivel? Cabe até indager se elaborar, no decorrer da terapia, nfo seré caminhat primeiro no sentido da elaboracdo espontinea que o sintona re- presenta, correndo-se 0 risco de ir mais longe do que ele. Um resumo do caso, pelo préprio Freud, na parte de ‘“comen- tario", facilita a compreensio geral"®. Nao tenho absolutamente a intengo de retomé-lo aqui, mas gostaria apenas de seguir uma certa linha: a questio da relagio entre 0 objeto {ébico e a angiistia ou, ainda, a relagao entre o afeio e a representagéo, que pode ser esquematizada como o deslocamento de um certo “quantum” 20 longo de certas vias, de uma certa rede. Sumariamente, com efeito, @ fobia caracteriza-se por um objeto (em primeira anilises é 0 cavalo, “animal de angéstia") e pelo ajeto (precisamente angtistia) que 0 cavalo desencadeia. A andlise descobre, levando sé a0 objeto, toda uma rede de vias que tenteremos reconstruir. Recons- tituidos esses caminhos — e € esse, precisamente, o trabalho do pai de Hans e da andlise — poderse-d, por isso, reconstituir 0 Proceso econémico em questio? Poder-se- compreender de ma- neira unfvoca © que se passa ao longo dessas vias, o que cizcula © como circula? Temos, pois, um duplo problema (é certo que eles convergem mas podemos tomé-los metodologicamente como sepa- rados): por um lado, @ problema da origem e do destino da repre- sentagao ¢, por outro, 0 problema da origem e do destino do ajeto Se & verdade que Freud péde dar, a respeito do segundo ponto. 56. Em Cing psychanalyses. op. cit. pp. 177 € ss 4 “ANGST” NA NEUROSE n interpretagdes muito diferentes, sem quase nenhuma variago quan- to a rede das representagdes em questio; com efeito, ulteriormen- fe, em outros textos, a questo de saber qual era, em diltima ins- tincia, origem da angtistia no caso do pequeno Hans sera retomada em diregBes que esto longe de concordat Tomemos primeiro o sintoma e as vias ORIGEM E DESTINO — de associagdo, a rede que Ihe esté vin- DA REPRESENTACAO —culada, Exatamente como tomamos 0 tex- to de um sonho (TS) ¢, a pertir de seus diferentes elementos, seguimos as cadeias de associagio para tentar encontrar uma espécie de linha inconsciente (LI) (ou vérias, eventualmente), tomamos aqui o sintoma, Néo obstante, convém estarmos prevenidos desde 0 comeco: na cura psicanalitica, jé néio se analisam os sonhos por si mesmos. Freud, em A Interpretagao de Sonhos, ainda o fazia, isto é, analisava sonhos deixando de ido muitos clementos que o teriam levado muito além; tratava-se, com freqiiéncia, de sonhos que Ihe eram dados fora de toda ¢ qualquer anélise. Do mesmo modo, a partir de 1905, época em que se desenrole esse tratemento do pequeno Hans, Freud jé nio intoma. Mesmo assim, ainda se discer- do no fato de a terapia estar muito centrada no sintoma (muito mais do que enalisava diretamente um nia um vestigio desse UMA TERAPIA vird a ser subseqtientemente) e de o pai MUITO CENTRADA de Hans, com muita curiosidade, inte No sINToMA ressarse verdadeiramente por compreen- der, elemento por elemento, o porqué de 2 AANCUSTIA tal sintoma™. Portanto, apesar dessa situacio um pouco ambigua (anélise jé mais vasta do que 4 andlise do sintoma e, nio okstante, ‘um intetesse certo por este), destaco, do conjunto de assoriacSes ‘que nos so fornecides por esse texto, aquilo que pode set mais diretamente ligado ao sintoma, A observaglio que nos é proposta © permite, pois € um relato quase estenografico das sessdes (isto &, das conversas entre 0 pai ¢ o filho), com os comentérios, de tempos em tempos, de Freud. A observa¢do comega, pois, antes do aparecimento do sintoma f6bico, no periodo que se estende dos 3 anos aos 4 anos e 9 meses idade em que surge o sintoma (a fobia do cavalo), precedido de alguns meses pelo nascimento de uma irmizinha, Anna. A obser- vas8io antes do sintoma mostra essencialmente dois fatos: por um lado, @ preocupagio de Hans em torno de seu pénis (que ele shama de “faz-pipi”), preocupacao que ¢ feita, como é normal, 20 mesmo tempo de interesse libidinal, ligado & masturbagio, de curiosi- dade sexual (qual ¢ 0 tipo de generalidede ou de universalidade do penis? Todo mundo tem um pénis, e como?); e, por outro lado, uma escolha edipiana muito nitida, favorecida pela ternura enor- ‘me, sendo excessiva, da mie pelo seu pequeno Hans, Eis, agora, 0 que se releciona com o inicio da fobia. A hist6- via da doenga comega com uma carta enderecada a Freuc pelo pai de Hans: “Caro Doutor, enviothe ainda algo referente 2 Hans — infe- lizmente, desta vez é uma contribuico para a histéria de um caso. Como veré, manifestaram-se nele, estes iiltimos dias, distirbios ervosos que muito nos preocupam, a minha mulher ¢ a mim Sem dévida, o terreno foi preparada por uma excessiva excitagao sexual, em virtude da ternura de sua mae (evidentemente, encon- tramos aqui — 0 que € muito interessante — 0 eco da teoria da sedugdo], mas 2 causa imediata desses disttirbios eu nio a saberia indicar, O medo de ser mordido na rua por um cavalo parece 57. A anélise ¢ a interpretagio centradas no sintome sio a resultante dé varios faiores: momento histérico na histéria da téeniea, interesse de Freud € de seus discipulos pela investigacio de "terrenos desconheridos”, ‘mas também particularidade da fobia, a quel epresenta um espléndido iso. lamento, em meio a um contexto perfeitamente “sio", © seu sintoma 8 ser examinado pelo terapeuts, 4A “ANGST” NA NEUROSE B estar relacionado, de algum modo, com o fato de ser aterrorizado por um pénis grande — desde cedo, como sabemos por uma obser- vagGo anterior, ele comentou a respeito do pénis grande dos cava- los, chegando entéo & conclusio de que sua mae, porque era to grande, devia ter um faz-pipi como o de tim cavalo, Nao sei que uso fazer desses dados. Teré ele visto um exibicionista em algum lugar? . "88 Eis, pois, 0 sintoma, tal como se apresenta no comeco: © objeto vai tornar-se mais preciso, ow enriquecerse (eis um ponto sobre 0 qual nao podemos absolutamente decidir-nos, no movimento paralelo do sintoma ¢ da claboragao do tratamento), & medida que avanca o didlogo entre ESTABELECIMENTO Hans € seu pai, Em todo 0 caso, foi DAS VIAS assim que o sintoma aparece, de modo ASSOCIATIVAS manifesto. (Digo de um modo ““manifes- to” porque Freud e 0 pai ligem o apare- cimento da fobia a um curto periodo pré-fobico que se poderia chamar de “incubacfo”, e que tem valor teérico muito grande para Freud: perfodo durante o qual haveria apenas angiistia, sem fixa- cio fébica.) “AT de janeiro, ele vai com a babé, como de hébito, ao Stadtpark, comega a chorar na rua ¢ pede para voltar para casa: quer fazer carinho com a mamée. Quando Ihe perguntam, em casa, por que no quis continuar seu passeio © comecou a chorar, Hans nada quer dizer... A 8 de janeiro, minha mulher, para yer o que esta acontecendo, decide Ievi-lo para passear, agora a Schénbrunn, onde geralmenie ele vai de bom grado. Hens recomeca a chorar, nfo quer sair, tem medo. Acaba indo, mas ¢ visivel sew medo na tua, 58. Em Cing psychanalyses, op. cit, p. 105. Entre colehetes: comenté- Flos de J. L. 59. Situsmos pouco a pouca os elementos, tal como se completario ‘num quadro tecapituletive das cadeias associativas que apresentaremos mais adiante (ver p. 90) 74 AANCUSTIA Voltando de Schnbrunn, ele diz & mie, apés uma grande lute interior: eu tinha medo de que um cavalo me mordesse (com efeito, = Schonbrunn, Hans manifestara inquietacio ao ver um cava. lo). A primeira relaco, pereebida pelo pai e avalisada por Freud, entre essas duas cenas (igualmente em relagfo com os sonhos que precederam esse periodo de angistia) & portanto: me a mae mn lsmodsh Por outro lado, Freud © 0 pai de Hans néo tiveram que ir longe (pois que @ observagio jé 0 mostrara antes da fobia) para encontrar nessa escolha do cavalo o indicio da investigagéo sexual de Hans antes da fobia: 4 escolha do cavalo, como sabemes por uma observacdo anterior, esté relacionada com as suas perguntas @ respeito do pénis grande dos cavalos. E, acrescentou c pai: sabemos que cle extraira def uma concluséo quanto & sua mie"?, Daf esta cutra Tinha de associagao: ee Nao é somente « mie amada, mas a mde que tem ou que no tem faz-pipi: félica ou castrada, Fis, agora, um fragmento de conversa alguns dias mais tard 60. Em Cinq psychanalyses, op. ct, pp. 106-107. 1. Ci. ibid, pe 109, 4 “ANGST” NA NEUROSE 5 “No domingo, 1.* de margo, desenrolou-se a seguinte conversa durante 0 nosso trajeto para a estacdo, Tento novamente persuadir Hens de que os cavalos no mordem, Ele: ‘Mas 0s cavalos brancos mordem. Em Gmunden [o lugar onde véo passar as férias) hé um cavalo branco que morde. Quando estendemos os dedos para ele, ele morde.’ (Chama-me a atencio que ele diga os dedos, em vez de mao). Portanto, deve-se acrescentar, do lado do cavalo-sintoma, 0 branco, ¢ sobretudo tudo 0 que se liga & mordedura, © que esté vinculado & masturbacdo. Esté vinculado especialmente pelo fato de Hans empregar praticamente as mesmas expresses para “pdr 2 mo na dentadura do cavalo”, “tocar no cavalo”, “por a mao ne boca do cavalo” e “por 2 mao no faz-pipi”. Além disso, em alemao, beissen, 0 fato de morder, de comer, quer dizer, a0 mesmo tempo, “ter comichéo”. De modo que, ter comichées no pénis © masturbar-se, ter uma excitaco sexual © 0 fato de morder e ser mordido, utilizam a mesma palavra, Teremos casio de voltar a este ponto: a mordedura (0 beissen) é, no sin- toma, 80 mesmo tempo a excitagdo e a puniggo da excitacao; ela simbotiza as dues complex rmastrbsct0 ee a canvagse oom er comeno! .tevoracao Vamos dar, agora, mais um paso: & 0 problema de saber se esse “'faz-pipi estd firme, se esté bem “enraizado”, £ a conversa entre Hans ¢ seu pai, no zoo de Schénbrunn, sobre o “faz-pipi” dos animais grandes, 0 cavalo ¢ também a girafa®*, O problema para Hans 6, talvez, a diferenga entre os maiores e.os menores, mas € sobretudo saber se 0 seu ‘‘faz-pipi esté bem firme, se esté bem enraizado. Vamos encontrar ai diretamente o complexo de eastragio, no qual se observam diferentes dimensdes: a compara- eo entre os grandes e os pequenos, e mesmo com aqueles que néo © tém: depois o despertar de antigas ameacas: a mde ameacou 62, Ibid., p. 111. Entre colchetes: comentérios de J. L. 83. Ibid, p. 114. 76 AANGUSTIA Hans de castragao se ele continuasse a masturbar-se, mas no mo- mento isso néo criou um susto tio grande assim; ¢, finalmente, uum infeio de aceitagiio da diferenca sexual, assim como a diferenga de geracdes. Passo rapidamente pelo que se apresenta nas péginas 116 a 119 — Por um lado, 0 material das girafas: nfo apenas as que so vistas no jardim zoolégico, mes as que Hans desenhs, uma sirafa grande ¢ uma pequens, e justamente esse comeco de aceita- Gio de uma diferenga ou, pelo menos, de uma certa pradecéo, na posse do pénis — Por outro lado, a situagdo do Edipo a propésito da cena que se renova quase todos os dias: ir pela manhi para caria dos pais. Seré permitido, seré proibido? Conseguiré dobrar 0 pai? A. mde geralmente consegue fazer aceitar que o pequeno Hans fique na cama, Cito agora a famosa cena da visita a Freud. Com efeito, Freud praticamente nfo intervém de um modo direto no tratamento, mas através dos relatérios que recebe do pai e dos conselhos que Ihe 4, como supervisor. Mas, diferentemente de uma supervisio co- mum, por um lado Hans conhece perfeitamente a existéncia de Freud, que € professor, personagem de referencia altamenie res- peitada pelo pai, aquele que verdadeiramente sabe do que se trata; or exemplo, Hans sabe que seu pai escreve relaidrios a Freud e, or vezes, eles escrevem juntos, Por ou- A VISITA AO fro lado, num certo momento, temos a PROFESSOR® visita do pai e do filho a Freud, Nessa visita, destaco pelo menos trés pontos importantes. Em primeiro lugar, Freud tem uma certa idéia a res- peito do sintoma ou um ponto particular do. sintoma. Depois, ele intervém como uma espécie de deus (alguém que sabe ¢ que sabia até o que aconteceria a Hans antes que este nascesse) © o faz voluntariamente num nfvel mftico, que pretende ser trangiiiizador, estruturedor “Reveleithe que ele tinha medo do pai justemente porque amava muito sua mae, Com efeito, ele devia pensar que seu pai The queria mal por isso, mas nao era verdade, seu pai amava-o mesmo assim, ele podia confessar-the tudo sem temor. Muito antes que ele viesse ao mundo, eu jé sabia que nasceria um pequeno 4 ANGST" NA NEUROSE 7 Hans, que amatie tanto a mle que seria forgado, por conseqiiéncia, a ter medo do pai, eeu o anunciara entao a seu pai.™ Freud desempenha de propésito o papel de oréculo que anun- cia toda a histéria do Edipo, antes que este tenha partido para cumprir seu destino. Voltando a0 primeiro ponto, que aqui nos interessa mais diretamente (pois nos ocupamos menos do tratamento do que da significagdo do sintoma), trate-se de algo que Freud acredita ter descoberto, € que era um detalhe enigmatico no objeto fébico: 0 cavalo que metia medo tinha qualquer coisa preta sobre a boca. O pai jé interrogara Hans, perguntando-the se nfo seria o freio ou uma peca de couro que os cavalos que puxam carros tém sobre 0 nariz, etc., €, de repente, Freud, ‘olhando para o pai, reflete que este talver nao tivesse pensado nisso mas que use éculos, prove- velmente pretos, e, sobretudo, que tem bigode. Subseqiientemente, essa parte do sintoma continuaré completamente enigmética, pois Hans nao fica satisfeito com essa explicacdo, a qual, por certo, 56 € parcialmente verdadeira. Em todo caso, somos levados de volta a0 pai, com suas dimensées afetivas ambivalentes: Passemos agora 2 nossa terceira observagdo: o final dessa visita, que € extremamente interessante do ponto de vista das relacoes entre o pai eo filho. Talvez seja um dos momentos onde melhor se percebe a especificidade desse complexo de Edipo que, de outro modo, tem um ar bastante cléssico. Freud, com efeito, tal como © oréculo, revelou um complexo de Edipo inteiramente tipico, direto e cléssico a Hans, anun- FREUD. HANS E ciandoJhe que era algo previsto de ante- ‘A ESTRUTURA™ mao, sendo que a ctianga s6 fez ingres sar num esquema que a ultrapassa (0 que deveria, de cera maneira, trangiilizé-la): ela seria forcada a 64. Ibid. p. 120. 78. AANGUSTIA ter medo do pai porque amava a mie, Mas eis que o pai de Hans interrompe Freud em sew vaticinio, para se divigir assim ao filho: “— Ento por que é que vocé ach que eu Ihe quero mal? Alguma vex ralhei com vocé ou bati em voce? [o pai retsma a pergunta no plano do real; & ele que se recusa completamente a entrar no esquema apresentado por Freud] — Ah, sim! Vocé me bateu —, corrigin Hans. — Isso no € verdade, Quando foi isso? — Hoje de manha —, respondew 0 garoto E © pai lembrouse de que Hans, de um mode totalmente imprevisto, he dera uma cabegada na barriga, a que ele respon- dera, como num reflexo, com um tapa. [Eis como Freud corclui.] Era curioso que néo tivesse registrado esse pormenor no conjunto a_neurose; mas compreendia-o agora como expressio da dispo- sigdo hostil da crianga contra ele, talvez também como manifes taglio da necessidade de ser punida."* Certamente podemos acrescentar @ esta conchusio excessive: mente répida de Freud: temos, no real, um pai inteiramente insu- ficiente em relago ao personagem assustador que o mito apresenta, em relagio ao pai terrivel do complexo de Edipo. Mas, a partir dai, as intervengdes de Freud ¢ as do pai (que € simultaneamente pai e terapeuta!) caminham em sentido oposto: Freud insiste em fundamentar na verdade, para além das contin- Béncias, a preemingneia da estrutura (da “fantasia origingria”), O pai, pelo contrério, tenta reconduzir Hans & “‘realidade”, uma rea lidade muito menos barbara do que a descrita ou preserita pelo “professor”, E quanto a Hans? Bem, ele caminharia mais no sentido de Freud, pelo menos por seus atos; ele exprime a neces- sidade de ser punido, isto é, de ajustarse a0 mito ¢, se 0 pai nfo € bastante terrivel, se nfo bate suficientemente, 6 preciso forgéelo, inventé-lo; dai essa cena que ele recorda e que foi certamente muito anédina (ou tomada como tal pelo pai), em que Hans investe de cabega contra o pai para tentar suscitar neste seu papel de pai punitivo e cumpridor de sua fungéo. 65. Ibid, Entre colchetes: comentirios de J. L. A “ANGST” NA NEUROSE 79 — 3 de margo de 1971 Ficamos, no percurso da andlise do pequeno Hans, naguela visita a Freud, quando Hans tenta suscitar a hostilidade do pai, suseiter um pai temivel, um pai que desempenhe seu papel. Ora, no dia seguinte esse visita, reenconttamos esse mesmo tema da relacdo com o pai. E este quem relata: “A 3 de abril, ele chega cedinho & minha cama, ao passo que nos dias precedentes deixara de vir e parecia até orgulhoso dessa contencdo. Perguntei-lhe: Entiio por que voc8 veio hoje? HANS: — Quando ew nfo tiver mais medo, nao virei mais. © PAL: — Entdo voc vem me procurar porque tem medo? HANS: — Quando nao estou com vocé, tenho medo; quando nao estou. na cama com vocé, entao sinto medo. Quando eu nao tiver mais medo. néo virei mais © PAI: — Entéo voce me ama, tem medo quando est sozi ho na cama de menha, e € por isso que vocé vem me procurar? HANS: — Sim. Por que vocé me disse que eu amo a mamae © que & por isso que tenho medo, se é voc® que eu amo?" Freud comenta logo essa passagem ¢ destaca com razio @ ambivaléncia dos sentimentos de Hans a respeito de seu pai: seu amor, que ele afirma aqui de um modo extremamente claro, ho- mossexual (no é a mamae que eu amo, € voce, meu pai), mas Freud no sublinha apenas esse aspecto de Edipo invertido, mas também a hostilidade latente da cena. Esta elucidase, alis, um pouco mais adiante, pois 0 pequeno Hans vai até a cama do pai pora verificar que este nto foi embora, e iss0 porque ele teme té-10 expulso de junto da mie; vai, portanto, apaziguar « sua angistie por ter, por sua culpa. perdido 0 pai, O que leve Freud a conchuit assim esta fase concernente ao pai: Esta parte da angiistia ligads ao pai tem dois componentes: © medo do pai e 0 medo pelo pai. O primeito deriva de sua hosti- lidade contra © pai | portanto, como medo de vingenca, derivando da agressio conira 0 pail; 0 segundo, do conflito da ternura — qui exagerada por reacio — com a hostilidade. 66, fbd.. p. 121 67. hid. p. 122. Entre colehetes: comentétios de |. L. 80 AANGUSTIA © medo do pai ver da hostilidade em relacio ao pai; 0 medo pelo pai vem da ambivaléncia, isto é, do fato de o pai ser nao 66 odiado mas também amado, Que seja! E uma conclusio que esta de acordo com 0 esquema do complexo de Edipo; mas, em uma leitura atenta da anélise de Hans, somente a primeira parte, 0 conflito de ambivaléncia, portanto 0 medo pelo pai, aparece, en- quanto © medo do pai, ligado @ uma hostilidade deste, absoluta- mente no esté claro. Bo caso de se MEDO DO PAL perguntar se 0 medo do cavalo nao se £2 OU? MEDO desenvolye unicamente sobre o fundo (e PELO PAI? por contraste com) de um pai insuficien- temente temivel. A opcio, para simplifi- car, seria a seguinte: ou a angtistia (do cavalo) sobrevém por deslocamento de um medo-teal (do pai), ou entiio a angtstia (do caval) tira sua energia do amor (pelo pai), isso na auséncia de um medo-real (do pai). Do ponto de vista das vias que ligam tal elemento represen- tativo do sintoma a tal elemento do complexo — e se seguitmos # idéia de que 0 medo do cavalo talvez esteja ligedo a um medo insuficiente do pai — percebe-se a ambigitidade das vias que ligam © cavalo ao pai. Esses caminhos veiculam semelhancas, por certo: © cavalo, tal como ©. pai, possui um certo ndimero de atributos que 0 aptoximam dele; mes, fundamentalmente, essas vias talver, veiculem uma diferenca, isto é, mais do que um “igual a ele”, um “diferentemente dele”, um complemento ou um suplemente, uma supléncia, Se 0 pai, em seu lugar, no desempenha a fungéo que Ihe attibui a estrutura do complexo de Edipo, 0 sintoma vem suprir isso. E entio que aparece um novo cfrculo associativo, to¢o um enriguecimento do sintoma e de sua significago. O pequeno Hans observa, pela janela de seu apartamento, um atmazém do outro Jado da rua, onde cartogas puxadas por cavalos vém buscar carga © parle em seguids, desaparecendo NOVAS VIAS numa curva em frente da casa, Freud ASSOCIATIVAS reproduz 0 esquema®®, Eo préprio pai apresenta um certo nimero de novos 68, bid. p. 125 ANGST” NA NEUROSE 81 pontos. De um modo inteiramente clissico, ele divide o sintoma, tal como se divide um sonho, em diferentes elementos. Interro- gando Hans, percebe que pelo menos quatro elementos novos foram adicionados (destacarei trés). Eis a resposta de Hans: “‘Tenho medo de que os cavalos caiam quando a earroca faz a curva’ (A) [é0 pai quem faz esta classificagdo]. Ele também tem medo de que fas carrogas estacionadas diante da rampa de carga de repente se ponham em movimento e vio embora (B). Além disso, ele teme mais (C) os grandes cavalos de carga do que os cavalos pequenos, mais 0s cavalos de lavoura do que os cavalos de formas elegan- tes..." e igualmente (logo © veremos) os cavalos que puxam grandes carros. Retino. entao, estes elementos do lado do sintoma: plem-ce em momento ‘ranges © pessees Vejamos rapidamente esses trés temas 1) Os cavalos que se pdem em movimento séo facilmente ligados pelo pai de Hans, através do diélogo, ao fato de partir 05 preparativos de viagem, circuitos de trem (visitas & avé ou saida de férias) ou ainda o interesse de Hans pela carga e descarga de viaturas. Tudo isso nos remete, a0 nivel do complexo, para vérias idéias — partida dos pais, em conjunto, perda dos pais: — 0 fato, talvez mais importante, de deixar um dos genitores pelo outro, com a ressonancia edipiana, mas também, provavel- mente, com @ passagem de ume relacdo pré-edipiana (com @ mie) para uma relagéo edipiana onde a figura estruturadora € 0 pai: portant, abandonar 0 cireulo da mie em favor do efreulo do Edipo (0 circulo do pai); — ¢, finalmente, deixar o pai e a mde, ter acesso a uma rela- Ho com outro, e isso jé temos desde antes da ecloséo da fobia, huma passagem muito engragada em que o pequeno Hans, queren- do que uma menininha (Maried!) venha dormir junto dele e, 69, Tid 82 AANGUSTIA diante de recusa dos pais, ameaca ir embora, O dilogo é entre Hans ¢ sua mie, e termina assim: “A mie: ‘Se voce quer mesmo deixar o papai c a mamie, pegue 0 seu casaco e as suas calcas e... adous!" Hans pega as roupas e comega a descer a escada, a fim de ir dormir com Mariedl, mas, 6 claro, € trazido de volta.” 2) Cair numa curva, Essa idéia de “‘cair” encontraré vérios is de associagdo e de clucidacao, E, na incerteza total a res- peito do nascimento do sintoma, Hans pode, com igual boa fé, atribuir a dois acontecimentos esse temor de ver os cavales caftem, Freud vése obrigado, numa nota, a escolher entre eles, mas parece que na verdade no cabe fazer aqui tal opeiio, se aceita-mos ple- namente a idéia de uma elaboragio posteriormente, Os dois acon- tecimentos sio quedas: — A queda de um cavalo de bonde, a que Hans teria assis- tido e quando ele diz ter pego aquela “besteira” (€ assim que cle se refere & sua fobia): “Foi entéo que eu a peguei. Quando © cavalo do bonde caiu, tive tanto medo, de verdade! Foi naquele momento que eu a peguei.’"" O pai interpreta rapidemente esse in- cidente, assimilando essa queda a uma queda de sua prépria pessoa; Hans concorda, mas de um modo pouco entusiasmado (enquanto que, em outros momentos, nés 0 vemos confirmar verdadeitamente quendo a interpretagdo € correta, desta vez cle apenas aprova com um pequeno movimento dos ldbios) — Uma brincadeira de cavalinho em que ocorreu uma queda. Essa brincadeira teve ugar durante as férias, com seus amigui- nhos, ¢ notadamente com Fritz, Bis o didlogo entre Hans e seu pai: “Na escada, enquanto sublemos, pergunto quase sem refletir: Vové brincou de cavalinho em Gmunden com as outras criancas? HANS: — Sim (meditando), Parece-me que foi af que pegu a besteira, [Hans diz que “pegou a besteira” tanto a propésito dessa cena quanto @ propésito da cena do cavalo que puxava o bonde, ¢ € ¢ mesmo termo: kriegen (pegar, contrait).) © PAI: — Quem era 0 cavalo? 70, (bid, p. 102 71, Thid. p. 126. 4 "ANGST" NA NEUROSE 83 HANS: — Eu. E Berta era 0 cocheiro, © PAL: — Talvez vocé tenha caido quando era o cavalo? HANS: — No! Quando Berta dizia: Bial eu corrie depressa, corria até 0 mais que podia! © PAI: — Vocés nunca brincaram de bondinho? HANS: — Nao, sé de carros comuns e de cavalo sem carro, © PAL: — Brincaram muito de cavalo? HANS: — Sim, muitas vezes. Uma vez Fritz (um dos meni- nos que viviam em nossa propriedade) foi o cavalo e Franz 0 cocheivo, € Fritz correu tanto que, de repente, deu uma topada numa pedra, se machucou e sangrou [é esse, evidentemente, o ponto importente: o ferimento}. © PAI: — Ele caiu? HANS: — Nao, ele meteu o pé na gua ¢ entolou num pano. [Freud assinala que se pode pensar que Fritz cafte e que, mais adiante, perceber-se- que, de fato, Fritz néo s6 se ferira mas realmente cafra.) © PAI: — Voc8 era muitas vezes 0 cavalo? HANS: — Ah, sim! O PAL: — E foi af que pegou a besteira? HANS: — Porque eles diziam o tempo todo: ‘por causa do cavalo? [abordaremos daqui a pouco esse por causa do ca- valo)."7* Essas duas cenas serdo sintetizadas mais tarde numa nova entrevista €, entéo, a queda do cavalo ¢ @ de Fritz serao relacio- nadas explicitamente por Hans com o seu desejo de que o pai seja ferido € que ele, Hans, possa “estar um pouco 36 com ma- mie", Reproduzo aqui esquematicamente essa via associativa: ° oN wets a 72. Ibid, pp. 132153, Entre colchetes: comentiries de J. L. 75. Ch. Ibid. pp. 150-151. 84 A ANGUSTIA mas no sem insistir no final do dilogo: “O PAT: — Por que € que no fundo eu te repreendia? HANS: — Nao sei (#1). © PAL: — Por qué? HANS: — Porque voc fica furicso. © PAL: — Mas isso no ¢ verdade! HANS: — Sim, € verdade, voc fica furioso, eu sei. Iss0 deve ser yerdade.”"4 esse ponto, o pai insiste, portanto, num sentido que Ihe interesse vivamente, sentido exatamente contrério ao da insisténcia de Hans: ele quer provar que no é SE 0 PAI NAO E. realmente um pei temivel, a0 passo que TEMIVEL, FAZELO todo 0 esfargo de Hans € de fazé-lo pa- PARECER COMO TAL rece como tal. Verifice-se exatamente que @ ameaca paterna desenhase, por assim dizer, “no vazio” na realidade da situacdo e que, num certo sentido, o sintoma fébico vem preencher esse vazio. 3) O tema dos cavalos grandes ¢ pesados completa-se rapida- menie™: 30 cavalos néo sé grandes e pesados, mas também que puxam carros grandes, com carges pesadas, e cavalos que fazem muito “rebuligo” com os pés, sobretudo quando caem. Portanto, deve'se acrescentar: cats arenes segs Percebe-se logo (Hans aqui conduz realmente o jogo) que os dois temas inconscientes estéo ligedos a0 fato de os carras & os préprios cavalos serem grandes, pesados cairem fazendo muito bartilho — 0 tema da gravider; os cartos ¢ os cavalos esto carre- gados de criangas e podem dar luz, tal como a mae dera & luz, pouco tempo antes, @ pequena Anna, Hans retoma o mito popular da cegonha (que The foi contado para explicar o nascimento da 74. Ibid p. 151 75. Cf. Ibid, pp. 125-126. A “ANGST” NA NEUROSE 85 pequena Anna), mas o faz de um modo inteiramente cOmico, Ele fabula, cagoando desse mito, e cria um outro em que mistura © real e 0 irreal: @ pequena Anna transportada num carro, em malas, j& presente embora nfo tenha ainda nascido. Em suma, Hans mostra perfeitamente a sua compreensio do fato de que sua mie estava gravida e do parto — 0 tema do excremento, isto 6, que os carros e, sobretudo, os cavalos, pesadamente carregados, estéo igualmente carregados de excrementos, que Hens chama de “‘loumf”. Nascimento e defecagao, crianiga e excrementos, so incessan- temente aproximados por ele, segundo equagdes simbélicas cor- rentes, as quais Freud nos habituou, e que fazem com que a compreenséo do nascimento passe, para a crianca, quase necessa- riamente, por uma teoria anal, excrementicia. Temos, pois, mais ou -menos © seguinte a onto pesto loumt” — dlecsqio SS carts grands earoptos eranca — hascinento == tice A este respeito, esclarece-se também um enigma que perma- necera relativamente meal resolvido, ou resolvido de maneira insa- tisfat6ria: 0 enigma do preto sobre a boca dos cavalos, que Freud, num momento de intuicio, aproximara dos bigodes e dos éculos do pai. Ora, a0 mesmo tempo (é um exemplo flagrante da con- densacdo do sintoma), esse preto sobre o nariz do cavalo é apro- ximado (e, desta vez, de maneira muito satisfatdria para Hans, jé que ele cria essa interpretagdo ¢ a aprova) do “loumf” e de uma calcinha preta da mée, uma calcinha preta que esté ligada 8 defecagio, como simbolo desta tltima, Indmeros outros vinculos esto ainda presentes; mencionarei apenas dois, pela particularidade do tipo de associacdo: — A polissemia que se liga & acao de cair e as palavras que a traduzem: 0 “cair” & 0 do cavalo-pai que pode ferir-se, ou da pequena Anna que a mae poderia “deixar cair” no banho. Mas é também o fato de nascer ou de dar & luz, de parir: niederkommen. 86 AANGUSTIA — © verbo kriegen significa receber, PEGAR UM obter, peger. Eo verbo empregaco por SINTOMA, Hans para: pegar um sintoma, pegar a PEGAR UMA “besteira”. Neste caso, é a totalidede do CRIANGA sintoma que Hans recebe, como um ob- jeto. Mas, ao mesmo tempo, kriegen é uma das expresses empregadas por uma mulher que vai ter uma crianga: “pegar uma crianga” (ein Kind kriegen). Nesse simbo- Jismo bastante particular, nao é, portanto, um elemento do sintoma que cortesponde a wm elemento do complexo inconsciente: € 0 conjunto do sintoma que € tomado como elemento significante, evidentemente por meio de uma identificagéo de Hans com sua mie: Hans foi “engravidado” pelo sintoma, pela “‘besteira”, tal como sua mie tinha “pego” uma crianga. Sublinho esse 2onto, io apenas por sua importéncia no caso de Hans, mas também por seu interesse tedrico, o qual se teencontra, por exempio, na interpretagio de sonhos: quando se diz que um sonho deve ser analisado, isto é, dissociado elemento por elemento, néo se deve esquecer que 0 sonho, em sew conjunto, pode ser tomado el: pré- prio como um elemento. Hé uma colocacéo no mesmo plano dos elementos ¢ do todo, © qual nao € essencialmente um “todo” mas um elemento como qualquer outro. Neste caso, é 0 sintoma em sua totalidade, a ““besteira”, que esté simultaneamente ligado, em especial, & mie € aos problemas do parto e da crianga. Pegar a besteira e pegar uma crianga ¢ tudo uma coisa s6, no nivel incons- ciente. Tanto assim que, curiosamente, a pesquisa das origens do sintoma, por Freud, e a busca das origens da crianca, por Hans, conjugam-se, € até coincide’, Eis, enfim, um outro exemplo caracterfstico do modo de funcionamento do inconsciente © da simboliza¢io no sintoma. O ponto de partida é a cena da brincadeira de cavalo com Fritz, quando o pai pergunta se foi ai que Hans “pegou a besteira”, a0 que a crianca responde: “Porque eles diziam o tempo todo: por causa do cavalo (ele acentua por causa). E entio talver seja 76. A propésito da teoria sexual infantil da eastragGo, assinalei a mes- ‘ma conjungao, 0 que faz com que se posta designé:la, numa nomenclatura sientifiea, como “teoria de Hans e Sigmund’, “ANGST NA NEUROSE a7 porque eles falaram assim: por causa do cavalo, que eu peguel 2 besteira.”"" Deve-se insistir, com Hans e Freud, no “por causa”, que se diz em alemio: wegen. Ocorre ai um jogo de palavras, porque wegen pronuncia-se Wagen (“veiculo”, “carro”, quando Wagen € pronunciado maneira vienense). £, evidentemente, in- traduzivel em francés, embora os tradutores tenham tentado pro- por uma espécie de equivalente, com o jogo de palavras: vois-u le cheval = voiture de cheval (vé voce o cavalo = carro a cavalo). © equivalente nao foi, aliés, muito mal escolhido, visto que em “‘yois-tu” como em “a cause”, vamos encontrar 0 componente de curiosidade — pulsio de ver e pulsio de saber, que leva & inves- tigagdo sexual. Em todo 0 caso, tratase de uma espécie de leit- metiv curioso, estribilho ou frase quase mégica que os pequenos companheiros de Hans repetiam, manifestamente para cobrir o enigma do nascimento © da procriagéo: “Hans recorda-se apenas de que varias criangas se encontra- vam, certa manha, diante do portéo e diziam: por causa do ca- valo? por causa do cavalo? Hans estava entre elas. Como eu 0 pressionasse ainda mais, ele declarou que os seus companheiros nfo tinham dito absolutamente ‘por causa do cavalo? Sua lem- branga era false | vé-se como & confuso e como Hans se contradiz]) © PAI: — Mas certamente vocés estiveram muitas vezes na estrebaria, onde com certeza falaram de cavalos. HANS: — Nao falamos. © PAI: — Entao de que falaram? HANS: — De nada. © PAI: — Eram tantas criangas reunidas ¢ nao falavam de nada? HANS: — Falévamos de muitas coisas, mas no de cavalos. © PAI: — Entio de qué? HANS: — Nao sei mais. Deixei morrer 0 assunto, pois as resisténcias eram evidente- mente muito grandes.’"* Ora, eis 0 que assinala Freud a propésito da obstinago do pai em compreender esse wegen: “De fato, s6 havia a descobrir 77. Em Cing psychunalyses, op. cil, p. 133 78. Ibid., pp. 135-134. Entre colchetes: comentitios de J. L 88. AANGUSTIA fa associagio verbal, que escapa ao pai de Hans. Af estd um exce- Tente exemplo das condigées em que os esforgos de um analista so malogrados.""” Quanto a mim, penso que a atitude de Freud © do pai se completam: & certo que tudo passa pela ponte verbal, ‘a homonimia weger-Waigen, mas seguramente nao era indiferente averiguar, para além dela, o que poderia WEGEN.WAGEN, querer dizer esse “por causa do cavalo”, SIMPLES PONTE captado (peo, dirfamos nés, gekriegt) VERBAL? num pequeno circulo infantil, e por que motivo essa expresso de repente se vira convertida numa espécie de senha entre eles. O pai assinala com Fazio que as resisténcias eram grandes demais Percebe-se isso no diglogo, Hans dizendo que se recorda disso, depois que “sua lembranga era falsa” e que “‘falévamos de alguma coisa mas no de cavalos”, ¢ que “néo sabe mais”. Em suma, tudo isso € a marca de um recalque nitido © profundo; e pode-se emitir a hipétese de que, simplesmente, “por causa do cavalo” remete-nos evidentemen- te para s causalidade do cavalo, para a causalidade patera, ou seja, para a fungao do pai no nascimento, na procriagio. Se admi- tirmos essa interpretacio — em cujo caminho estava o pai e que Freud, ndo sti por que, aqui recusa, ainda que, por outro lado, esteja conectado com esse tema — veremos que essa representa- Go, ou essa simbolizagdo, pode ser escrita assim: wegen __—evvsaidae pate Ce —— —— snaravisemento a8 mia Na ordem de ume ambivaléncia quase absoluta de certas re- prosentagées ou de certas palayras, tinhamos visto anteriormente a do verbo beissen: “comer”, e a0 mesmo tempo “senti: comi- chao”, significando portanto, 20 mesmo tempo, a excitagio mastur- batéria ea sua punicao pela castragéo (ou seu equivalente regres- sivo “ser mordido”). Do mesmo modo, ha pouco, no verbo “‘cair”, com seu duplo sentido oposto de nascer € morrer. Aqui, em wegen, conjugam-se definitivamente as fungdes paterna e materna na pro- criago, 79, Ibid, p. 134, nota 1 ACANGST" NA NEUROSE 89. Voltemos ao nosso propésito, que era examiner separadamen- le, numa primeira etapa, a origem e 0 destino da representagao. Vamos registrar algumas das associagdes num quadro de conjun- to que ilustra bem certas caracteristicas dessa origem da repre- sentagdo, em especial a sua sobredeterminagdo: a multiplicidade das vias pelas quais tal elemento do complexo sintomético se acha ligado a elementos mais ou menos in- SOBREDETERMINACAO conscientes, 0 entrelagamento dessas E AMBIVALENCIA vies; ¢ ainda outras particularidades IMPLANTADAS NA dessa sobredeterminagao, como 0 fato LINGUAGEM de que a totalidade do sintoma pode ser tomada como elemento. Af encontramos vias de associagéo segundo os tipos inteiramente cléssicos. Ai Freud nada inventou: as associagSes fazem-se ora por semelhanga, ora por contigiiidade ou, como se diz, por metéfora ou por meto. nimia. Mas essas ussociacdes fazem-se também segundo duas es- pécies de vias, conforme sejam associagSes de coisas ou associa- {gGes que passam por pontes verbais, por palavras. Sublinharemos ainda uma outra caracterfstica: a ambivaléncia certas vias. Neste caso, a ambivaléncia necessita de um comen- Lério, visto que, habitualmente, 0 que & considerado ambivalente € o afeto ou, mais exatamente, € a coexisténcia de dois afetos con- (rérios ou contradit6rios numa mesma expresso. Mas, aqui, o interessante — trago verdadeiramente universal no sintoma — é que essa ambivaléncis encontra seu ponto de apoio, senfo a sua origem, na ambivaléncia de certas tepresentacées — representacies de coisas ou representacdes de palavras —; como se cettes pala- vyras na linguagem corrente jé comportassem uma espécie de estra- tificagao dessa ambivaléncia, como se na linguagem se encontrasse implantada uma ambivaléncia radical que ja se encontra também em certos pestos ou alos fundamentais, como o fato de cair ou de morder, Saindo um pouco da vie temética retilinea de uma investi- gacdo sobre a angistia, demorei-me lembrando como um sintoma, mas também um sonho, um simbolo, mas também tudo o que se pode chamar de formacio do inconsciente, s6 se mantém, s6 0, Ver p sequin, SINTOMA cavalo {arp rondo comPLexo A SANGST" NA NEUROSE a” existe © s6 se sustenta em virtude dessas miiltiplas cadeias que se interligam e que & amarram de todos os lados a representacbes a desejos inconscientes. A anélise de Hans restituiu de maneira muito completa essas vias (salvo, talvez, o iiltimo tema, apenas aflorado, da cena primitiva). Em todo o caso, 0 resultado terapéu- tico esti & altura desse esforgo, desse percurso ou dessa reconsti- tuigdo das vias associativas: o desaparecimento da fobia, pelo qual se felicitam iguelmente os pais e Freud. Lembremos as primeiras idéias de Breuer e Freud sobre o recalque, em Estudos sobre a Histeria: © recalque produz-se por constituigéo de um grupo pst quico separado, isolado, ¢ uma das tarefas, e até o trabalho essen- cial da andlise, € 0 restabelecimento das conexdes entre esse grupo psiquico separado e 0 conjunto do psiquismo, & a elaboracdo psiquica. Nesse ponto, o trabalho da anélise fez-se essencielmente ao nivel das representagdes, pela restauragio, por assim dizer, da rede de circulecdo. Podese supor que 0 que foi recolocado em wulagdo pelo trabalho de associagées € um afeto, so afetos. Ea teoria de Freud desde o inicio: em Estudo sobre a Histeria, correspondendo a essa nogéo de “grupo psfquico separado”, j6 tinhamos a idgia concomitante de um “afeto bloqueado”; bloquea- do, precisamente, na medida em que, na rede de representagdes fem que © afeto deveria circular, alguma parte das conexGes foram suprimidas. No pequeno Hans, o efeito produzit-se precisamente a0 nivel do afeto (ja que ocorre o desaparecimento da angtstia ébica, 2 angtistia do cavalo) mas, no caso, nfo se trata da via de ab-reagio maci¢a, que era a de Estudos sobre a Histeria, Os afetos séo mencionados ¢ evidenciados no transcurso do diélogo (amor, hostilidade, temor), mas a anélise quase nfo se dedica @ desvendar a é 5 8 é i parse arn movimento ‘cavios pessdamentecarensdos orandes e pesados i @ z 3 rt sr i i a lavendonar ~ ser abandoned trocar um pelo uta! 38 © seu modo de circulacao ¢ de transformacao; ela parece sé tra- ey balhar verdadeiramente ao nivel da rede representativa, 3 Introduzimos agora a segunda parte de ORIGEM E nossa questo acerca do pequeno Hans: 8 DESTINO DO 4 origem e 0 destino do afeto. O que € é AFETO que circula? (Supondo-se que haja algu- | ma coisa que circula e que essa rede seja feita para fazer circular alguma coisa.) De onde vem isso? Como € que circula? Em que sentido e com que transformagies? Trata-se, { evidentemente. de um problema bem te6rico, no ponto de se loom — daleesedo do term? vou 92 AANGDSTIA poder perguntar se vale a pena formulé-lo, visto que, aparente- mente, néo tem influéncia sobre o resultado terapéutico. No de- correr dos anos € das sucessives fases de sua reflexdo, Freud voltaré por diversas vezes a esse exemplo de Hans para dar, a cada vez, interpretacées diferentes a esse problema da origem e do destino do afeto. E, em Inibigées, Sintomas e Ansiedade, chegaré mesmo a enunciar algo como isto: & verdadeiramente vergonhoso que, depois de tanto tempo, estejamos ainda em divida respeito de um problema tfo fundamental. Contudo, 0 problema conserva sua insisténcia em Freud ¢ oreio que ele o reservou para nés, apesar de tudo, Assim, vamos enuncié-lo, Em primeiro luger, como um problema geral: todo sintoma, na acepcao mais ampla, tem necessidade de uma energia que o mantenha, Todo sintoma deve r um certo “beneficio”; deve poder, portanto, ser incluido num certo balango pessoal. Depois, como um problema de natu- reza mais particular, a propésito da fobia: com muito mais razio quando o sintoma apresenta em sua prépria forma, em sua feno- menologia, um aspecto energético, quendo ele representa uma espécie de fuga de energia, um gasto constante de energia mani- festa: a ansiedade da fobia. Para Freud, essa origem da angistia na fobia € apenas um caso particular da origem de todo sintoma, € de safda cle s6 admite uma inica origem energética rossfvel para toda formacéo do inconsciente: a libido ou o desejo. — 17 de marco de 1971 Origem e destino da representagao, origem e destino de afeto. Estabelecemos a distingdo a propésito do pequeno Hans. Por que manté-la atualmente, em face dessa andlise que percorremos rapi- damente? O trabalho de “perlaboragao” que acom- PORQUE PROCURAR — panhamos efetua-se inteiramente ao nivel ‘ALEM DAS das representacoes. E uma rede de repre- REPRESENTAGOES? —_sentacdes que descrevi das tiltimas vezes e é unicamente uma rede de representa: ges 0 que Freud © 0 pai de Hans estabeleceram. Por que supor, entéo, que algo circula ao longo dessa rede? Por que néo abolir A “ANGST” NA NEUROSE 93 essa distingdo entre representago ¢ afeto? O préprio Freud cami- nha, por vezes, no sentido de tal aboliefo, quando se atém unic mente & rede dos significantes ou das representagGes. Principal- mente @ propésito da ponte verbal — wegen (por causa de) € Wagen (veiculo) —, irritava-se pelo fato de pai procurar algo além disso — uma significagao para o “por causa do cavalo” — afirmando ele, Freud, que toda a anélise se sittava unicamente a0 nivel do jogo: de palavras, que nada mais havia a procurar, enum significado a ser achado por trés disso. Quanto a mim, tentei indicar a vocs que aqui seu pai talvez tivesse razio em interestar-se por esse “por causa do cavalo”. Afelo e representagio: € dificil, apés dezenas e dezenas de anos de freudismo ¢ como se a psicanélise nfo estivesse marcada por postulados freudianos formulados desde 0 comego, retomar essa questio com novos olhos. O que é que nos coage ainda a procurar para além dessa rede de representacdes? que argumentos ou que motivos? — Em primeiro lugar, a questio é esta: por que é escolhida tal rede? Por que tal associagdo, entre tantas outras, foi retida? Percebe-se, a cada vez, que as associacdes mantidas so aquelas que remetem a cenas carregadas de afeto: prazer ou desprazer (mais freqiientemente, aliés, prazer; por exemplo, o jogo do cavalo ‘com Fritz, ou ainda as cenas do prazer encontrado nos banheiros). Cada associacio seria mantida por qualquer coisa que parega for- necer-Ihe © suporte energético e que, 20 mesmo tempo, parega circular ali, sendo um mesmo afeto reencontrado nas dife- rentes extremidades, ou mesmo nas dife- rentes etapas, da cadeia; por exemplo: “Bu temo ou eu desejo (duplo afeto) que o cavalo caia (na rua), que Fritz caia e se fira (ao nivel da situacao edipiena).” O “‘mes- mo” afeto talvez seja dizer demais, pois apresento esse afeto de modo duplo, ambivalente (eu temo ¢ eu desejo). Mas, com Freud, somos levados a supor quase sempre, de inicio, nfo um “eu temo” ‘mas, antes, um “eu desejo” (um voto); a fantasia, a representagio, a cena, s6 figurando af para cumprir esse voto, como “realizagio de desejo” (segundo a expressio consagrada) Gostaria de fazer aqui uma observacdo lingiistica importante. Jue © cavalo caia”, “que meu pai morra”: o que (ou, em aleméo, A ASSOCIACAO. SUSTENTADA PELO AFETO 94 AANGOSTIA © dass) marca indissoluvelmente a forma infinitiva — cu seja, que ao enunciar “que meu pai morra” pronunciase um simples enunciado — mas, 20 mesmo tempo, a forma optativa, a qual encontra a mesma expresso que 2 forma infinitive. Quero dizer que, se em resposta a uma petgunta, no importa qual, vacés re- cebem a resposta telegrdfica: “que ele mora”, vocés sabem que no se trata do temor de que ele morra, nem 0 voto de que no morta, mas a ordem ou o destjo de que morra, E, a0 mesmo tempo, “que ele morra”” € a forma segundo a qual enunciamos, de modo infinitive, a mesma coisa. Dai a culpabilidade de un inc viduo que simplesmente pensa esta frase: “que meu pai morra”; simplesmente pensar, porque pensar: “que meu pai morra’ 6, 0 mesmo tempo, desejar que ele morra. Encontramos clatamente isso numa outra anise de Freud, a do “homem dos rates", Ha uma discusséo capital sobre esse ponto entre o analisando ¢ Freud, analisando que fica exasperado com 2 idéia, no entanto aparente- mente neutta”, de poder pensar: “meu pai morrer” ou: “que meu pai motra”, Creio termos ai o sinal de que a fantasia ndo pode ser figurada de um modo neutro mas que € necessatiamente, desde que esteja interiorizada ou incorporada, fantasia de desejo: Wun- schphantasie. Ao nivel agora nfo mais de tal ou tal representacio, de tal ou tal cadeia associativa, mas ao nivel do sintoma em seu con- junto, 0 que nos autoriza a falar de uma © SINTOMA E circulacio de algo que seria 0 afeto? £, © DESFECHO DE sem diivida, que dificilmente se pode UMA CIRCULACAO ——conceber 0 seu surgimento, sua manu- ORIENTADA tenefo e, inversamente, a sua resolugio, sem se supor que ele tenha uma funcéo, que sirva para algo; e, talvez, mais explicitamente numa perspec- tiva de andlise, que esteja ali por outra coisa, ne posicéo de outra coisa — outra coisa, portanto, que ele simboliza. Na anilise com © pai de Hans, com 0 préprio Hans € com Freud, supomos neces- sariamente essa outra coisa que simbolizada no sintoma ¢ mais 81. Proposicéo sparentemente neutra, na medida em que nio ¢ ufotada por qualquer "proposicio principal” que especificaria sua “modaliéade”, a ‘qualificagio subjetive ou, como se diz ainda, “a enunciaglo": eu desejo que, eu receio que, eu prevejo que... etc 1 "ANGST" NA NEUROSE 95 verdadeira do que ele. Supomos ser mais verdadeiro que Hans tenhe tal ou tal sentimento em relagdo a seus pais (sentimento que chegamos suspeitar, € mesmo a fazer ressurgit), a0 invés de ter medo de cavalos. O préprio Hans chama ao seu sintoma uma “besteire”, indicando com isso que s6 se mantém por € para outra coisa; e refere-se 0 tempo todo seja a seu pai, seja a Freud, como aiquele que € capaz de dar o verdadeiro sentido, de reen- contrar a verdadeira conexdo daquele medo. Esse medo esta ligado 20 cavalo, mas, na realidade, ele deve estar ligado ¢ outra coisa que nao o cavalo, Af esté também uma velha idéia de Freud: a idéia de “falsa conexfo”, @ propésito sobretudo do sintoma obses- sivo, mas também do sintoma fébico: 0 sintoma nasce de uma “unio desigual” entre um certo afeto uma representagdo que se situa lateralmente em relagao & verdadeira representagdo ou 8 verdadeira conexao, Isso significa ainda gue as vias que esbocamos esse modelo no so indiferentes, que tém uma polaridade ¢ uma orientagio, que # circulagio no se faz nelas de um modo qual- juer, num sentido qualquer; ou ainda, para retomar o temo mbolo”, que-nio indiferente dizer: o carro simboliza a mae grivida ou a mae gravida simboliza o carro. Af temos algo que € mantido na teoria psicanalftica do simbolismo: o simbolismo caminha num certo sentido e seu sentido natural &, por exemplo. © de interpretar 0 guarda-chuva como um pénis grande © nfo o pénis grande como um guards-chuva. Ea prova, justamente nesse caso, € que o sintoma, na medida em que € simbolo, recuaré no decorier da anélise, por assim dizer, para as suas posigies de partidy, em sua base inconsciente que vai ser elucidada. HA af, portanto, um sentidc, mostrado precisamente pelo tratamento, que € um sentido de recuo. Freud queria enfatizar em seu capitulo terapéutico de Estudos sobre a Histeria esta férmula latina: Ajfla- vit ef dissipari sunt (“bastou um sopro ¢ eles se dissiparam”), Formula que fora empregada pelos ingleses a propésito do modo come @ Invencivel Armada dos espanhéis se dissipara como um hada, como um fantasma, Freud mostrava assim a sua conviccio de que o sintoma no tinha a mesma consisténcia daquilo que descobrimos atrés e que 0 sopro da andlise conseguia fazé-lo dissipar-se, fazé-lo voltar & sua verdade, ‘Algo que circula? 0 que é isso? Para Freud é um afeto, ainda que, em Gltima instincia, seja nfo-qualificado, uma quantidede, 96 AANGUSTIA um quantum, Em outros momentos, numa transposigéo lingiifstica, podese designar 0 que circula como o significado, um significado. ~ (en assimilar 0 afeto ao significado? Pelo menos, no sentido em que os dois, afeto e significado, so indeterminados, inalcan- eis fora da rede de representagSes onde esto contidos, inaces- stveis se nao so precisamente determinados por essas representa- ges que Ihes conferem sua especificagao e que vém eventualmente \ fixé-las. Mas subsiste 0 fato de que nfo se pode consideré-los pura- mente neutros, pela mesma razio por que ndo € possivel considerar © jogo dos “significantes” como sc efetuando entre termos de igual valor, sem polatizacao alguma: hé posicdes, expressdes, grupos de significantes mais verdadeiros do que outros. Toda essa reflexdo sobre a necessidade, pelo menos tedrica, de postular um elemento circulante, tudo isso seria verdadeiro para qualquer sintoma; mas com muito mais razlo ainda no caso de Hans, jd gue 0 proprio sintoma, em sua apresentagao, comporta esta dualidade: 0 cavalo e- angtistia, a representacdo e a descarga afetiva, e, jd que tudo indica que essa angdstia do cavalo vem de outra parte, tanto o absurdo, a "besteira”” do seu objeto quanto a desproporcéo em re- ago a todo 0 objeto possivel, mostram que se trata de alge muito diferente de um medo: trate-se de uma Angst. Origem e destino: © que eu quis indicar através desss dois termos é que convém apurar a origem do afeto, isto é, tentar fazé-lo circular (pelo pensamento) ao longo des- A ANGUSTIA sas cadeias associativas, a fim de encon- COMO DESTINO trar seus melhores pontos de ancaragem DA LIBIDO —- senfo o melhor. Nao se trata de des- cobrir uma verdade definitiva, mas me: mo assim € mais verdadeiro relacionar a angdstia de Hans com @ cena primitiva do que com o fato de ter visto um cavalo, certo dia, na rua, Também destino porque esse afeto, como podemos perceber, pode ele préprio alterar sua qualidade intrinseea, A an- gistia nao tem origem, necessariamente, numa angistia, nem o medo num medo; no s6 so deslocados quanto ao seu ponto de ligac@o mas, nesse préprio deslocamento, o afeto sofreu uma modi- ficacdo qualitativa. E, na conjuntura hist6rico-tedrica em que nos situamos, no momento dessa observagio, a idéia fundamental de Freud € que esse afeto de angistia é apenas a transformactio de um desejo, a transjormagao da libido. ATANGST" NA NEUROSE a7 Como € que Freud a aplica no caso do pequeno Hans? B certo que essa teoria da angistia ests aqui constantemente presente, tanto para Freud como para o pai de Hans, discipulo e ouvinte de Freud. Veremos, em primeiro lugar, © que parece corroborar para Freud essa teoria da angiistia, e veremos mais tarde, com Inibicées, Sintomas ¢ Ansiedade, que retoma a interpretagio de Hans, 0 que parece revogé-la. A prova irrefutavel para Freud ¢ 0 modo como a fobia comega ov, antes ainda, 0 que precede a fixagio num objeto {ébico. E nas péginas 106 e seguintes — depois de ter des- crito em poucas linhas a primeira observagio do pai, em que este comecou logo formulando suposicdes acerca da origem dessa fobia do cavalo — que Freud nos convida ® nfo acompanharmos 0 pai naquela sua pressa muito compreensivel: € preciso examinar o material de maneira imparcial ¢ “suspender o nosso julgamento dedicar 2 mesma atencdo a tudo que-se ofereca & nossa observagio”; tegra capital da anélise, por certo (ndo se apressar em compreender © comecar por dedicar uma atengo o mais ampla e mais imparcial possivel a todo o material que se apresente). Mas, aqui, trate-se de se abrir nao somente as associagSes mas também aos fatos para se perceber que, pouco tempo antes da ‘A ANGUSTIA explosio da jobia do cavalo, houve ata- ANTES DA, ques de angistia sem objeto {6bico. Hou- FOBIA ve dois: primeiro, um sonho de angéstia €, em seguida, 0 primero passeio. — Bis 0 sonko de angistia: Nos primeiros dias de janeiro, Hans (4 anos © 9 meses) levanta-se pela manha em légrimas ¢ responde & sua mae, que lhe pergunta por que esté chorando: Enquanto eu dormia, achei que voce tivesse ido embora e que eu nao tinha mais mamae para fazer carinho.'"* E ele despertou com esse sonho, — 0 primeiro passeio em que surge a angistia: “A 7 de janeiro, ele vai com @ baba, como de hébito, ao Stadtpark, comeca # chorar na rua e pede para voltar para casa: quer fazer carinho com a mame. Quando the perguntam, em casa, por que nfo quis continuar seu passeio e comegou a chorar, Hans nada quer dizer, 82. Em Cing psychanalyses, op. cit. p. 106. 98 AANGUSTIA Esté alegre como de costume, até o fim da tarde; mas, ac cair a noite, € evidente que tem medo, chora e nfo se consegue separé-lo da me; quer de novo os carinhos, Depois, volta @ ficar alegre © dorme bem.” Ai esté, pois, uma angtstia em que néo aparece objeto fabico; 0 tinico objeto presente € a mée, que, longe de ser objeto fébico, € quem apazigua a angiistia, é aquela em que Hans se refugia em sua angistia. Freud pensa que seria um erro acre- ditar que, no primeiro passeio, por exemplo, Hans tenha tido medo do cavalo mas nfo tenha querido dizé-o. Dai a conclusio de Freud que € dupla, ou mesmo tripla: 1) A angistia 6 libido: libido ndo saciada, pois que, quendo cla o é totalmente (quando Hans pode fazer carinho com sva mie), cla desaparece; libido transformada e, igualmente, libido recalcada (teremos ocasifo, provavelmente, de retornar a esse ponto) 2) A angtistia é impossivel de reconverter, mesmo que cla rencontre seu objeto. Isto nao é inteiramente verdade, pois que, precisamente, Hans se acalma; mas logo a presenga da mie, na rua com ele, nao o impediré de sentir angiistia. E notével, aliés, que 0 primeiro passeio seja feito com a babé: ele volta para casa e € acalmado pela presenca da mae. Mas quando a mae, no passeio seguinte, querendo ver do que se trata, vai passear com Hans na rua, entlo aparece 0 objeto fObico © a presenca da mie no per- mite a reconversio da angistia em libido, embora o objeto de amor esteja presente 3) A angiistia fixarse-ia, mas secundariamente, num objeto, buscaria, em suma, um objeto: “A angistia corresponde assim a uma aspiragdo libidinal recalcada, mas nfo & a prépria aspiracao; € preciso lever em conta também o recalque. Uma aspiracéo con- verte-se inteiramente em satisfagio quando se fornece a ela o objeto que ela cobiga. Tal terapéutica j4 nfo € eficaz nos casos de angds- tia; esta persiste, mesmo que haja a possibilidade de satisfazer a io, a angtistia deixa de ser inteiramente retransformavel do Ttemos, af também, uma espécie de orientacio 40 longo das vias do esquema que esboramos, jé que existe uma espécte de 85, Ibid, A ANGST" NA NEUROSE 99 declive que leva a libido na diregio da angéstia, e ¢ imposstvel voltar a subir esse declive ou, pelo menos, isso exigiré meios enor- mes, um trabalho considerdvel de anélise; espontaneamente, nfo se pode efetuar © movimento inverso, nfo se pode reverter do} ‘bolo a0 simbolizado, nem da angtstia & libido]; a libido € mantida por alguma coisa em estado de recalque. As coisas mos- traram ser assim em Hans, por ocasiéo do passeio seguinte em que a mae 0 acompanhou. Desta vez, ele esté com a mie e sente, con- tudo, a angistia, isto é, uma aspiragdo néo-saciada em relagéo a cla, & verdade que a angistia é menor, ele se deixa, com efeito, levar para passear, ao passo que tinha obrigado a babé a levé-lo de volta para casa; a rua, alids, no € um luger propicio para ‘fazer carinho’, ou sea o que mais que 0 pequeno amoroso pudesse desejar. Mas a angiistia suportou a prova € preciso agora que fla encontre um objeto. E durante esse passeio que Hans exprime, inicialmente, o medo de ser mordido por um cavalo."™* Ai esté enti como, secundariamente, um objeto vem “soldar-se” (voltare- tos @ encontrar mais adiante esse termo) & angtstia, (© sonho de Hans, que 0 acorda, sonho de ausncia de sue mae, sonho de angdstia, remete-nos a A Interpretagio de Sonhos, onde esse questo é amplamente debatida. O essencial encontra-se nos capitulos IIT, IV e nas partes 3 ¢ 4 do capitulo VII. Essa questéo do sonho de angtstia é sempre SONHO DE apresentada no quadro da teoria geral ANGUSTIA E segundo a qual o sonho é “realizagio de REALIZAGAO desejo”; tealizagdo, aqui, € a tradugao DE DESEIO do slemio Erfilung, 0 qual nos remete diretamente & fenomenologia. Entre o Wunsch, voto que se pode formular, e a Erfiillung, a relagdo pode ser comparada da intencionalidade ¢ do conteddo ideative que a vem “preenchet” ‘Que © sonho tenha um sentido, que esse sentido seja incons- ciente, que seja indispensével empregar um método ebsolutamente especifico para interpretéslo, para “desfazé-lo” (loser — ana-luein), basta recordélo; mas para ir diretemente ao nosso tema: esse Ta. Tha. pp. 108-108. Entre colchetes: comentérios de I. L

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