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FONTES HISTORICAS NATIVAS DA MESOAMERICA E ANDES. CONJUNTOS E PROBLEMAS DE ENTENDIMENTO E INTERPRETACAO! Eduardo Natalino dos Santos Resumo artigo apresenta alguns dos principais conjuntos de fontes histéricas nativas da Mesoamérica e Andes — compostos por representacdes figurativas e escritas produzidas em tempos pré-hispanicos e coloniais — para refletir sobre problemas de entendimento e interpretagao a eles relacionados. O objetivo central nao é constituir um catélogo ou manual que abranja todos os registros que poderiam se abrigar sob tal denominaco, mas apenas propor um exercicio de tipologia por meio de casos exemplares e com base em problemas de andlise que so comuns a esses conjuntos de fontes. Palavras-chave Fontes hist6ricas pré-hispanicas; fontes histéricas coloniais nativas; escritos mesoamericanos; escritos andinos; cédices mesoamericanos; quipos. Abstract This article deals with some of the main groups of native historical sources from Mesoamerica and the Andes ~ constituted by figurative and written representations composed in pre-Hispanic and colonial times — in order to reflect on questions concerning their understanding and interpretation, ‘The central aim of the article is not to offer a catalogue or handbook that embraces all the possible sources under such a denomination, but to propose an exercise in classification through exemplary cases based on research questions that are common in the analysis of these groups of sources. Key-words Pre-Hispanic historical sources; colonial native historical sources; Mesoamerican writings; Ande- an writings; Mesoamerican codices; quipus. ' As reflexdes iniciais que levarem a confeceao deste artigo foram apresentadas no simpésio temitico Os indios na his t6ria: fontes e problemas, coordenado pot Maria Regina Celestino de Almeida ¢ John Manuel Monteiro. Esse simpé- sio foi parte do XXIV Simpésio Nacional de Histéria — Histéria e multidisciplinaridade: territérios e deslocamentes. realizado em So Leopoldo/RS, em julho de 2007. ¢ promovido pela Associagao Nacional de Histéria (ANPUH), £ Introdugao Alguns dos maiores conjuntos de representages figurativas produzidos por populagées nativas americanas, tanto na época pré-hispiinica quanto colonial, procedem das macto-regides histéri- co-culturais denominadas Mesoamérica e Andes. Sao milhares de imagens, produzidas com as mais diversas técnicas e sobre suportes materiais variados, entre as quais esto as pinturas mu- Tais, as esculturas e relevos em pedra, madeira, osso, concha, metal, gesso ou barro, os mosaicos de pedra e pena, as ceramicas mono ou policromas ¢ os tecidos de la, algodao e outras fibras vegetais. Além desse enorme conjunto de representagdes figurativas’, foram produzidos, tam- bém em tempos pré-hispanicos e coloniais, registros escritos picioglificos’ na Mesoamérica — como 0s cédices ~ ¢ registros numérico-categdricos na regifio andina — como os quipos. Em tempos coloniais, além da continuidade decrescente da produgdo de representagdes figurativas e de registros escritos e numérico-categéricos, a participagdo de indigenas em instituigdes de origem européia — come os cabildos ¢ as missGes religiosas — possibilitou que uma quantidade copiosa de escritos alfabéticos fosse diretamente confeccionada por eles. Ou, ainda, que esses indigenas interviessem de forma mais ou menos vigorosa, de- pendendo de cada caso, em escritos produzidos por europeus na América. Ademais, mui- tos indigenas, sobretudo membros ou descendentes das antigas elites dirigentes, utiliza- ram a escrita alfabética de maneira relativamente aut6noma dessas instituicdes para produzir textos proprios ou para transcrever antigos relatos e registros nativos. Uma parte significativa dessas representag6es figurativas e registros escrito — pré-hispdnicos ou coloniais ~ possui a propria historia nativa por temdtica central. Séo auto-representagdes que tratam primordialmente do passado e que, em geral, foram produzidas por ou so tributarias de tradigdes locais de pensamento, ou seja, de organizagGes, grupos, instituigdes ou individuos que. se dedicavam de modo sistemétivo, mas no necessariamente exclusivo, a construgao, manuten- Essa relative abundancia se deve, entre outros, a0s seguintes fatores: 0 denso povoamento nativo dessas macro- regides; o emprego, em larga escala, de materiais durdveis na construgio de centros politico-cerimoniais ¢ cidades ¢ na confecsSo de objetos; a existéncia de tradigdes académicas de estudo voltadas para essas regides deste a século XIX; a presenga de candigdes climaticas favoraveis & conservagao de materiais pereciveis em boa parte dessas duas macro-regides. Embora seja um neologismo, prefiro o termo pictoglifico a pictografico por evorar explicitamente a combinagao ‘entre elementos pictéricos ¢ glificos, uma das principais caracteristicas tanto do sistema de escrita mixteco-nahua. quanto do maia, dois dos mais importantes e estudados sistemas mesoamericanos. cdo, transformagao ¢ veiculacdo de explicagdes socialmente aceitas, as quais poderiam incluir desde as origens e funcionamento do Mundo até a histéria Jocal recente‘. Podemos chamar esse grupo de representagées e registros sobre o proprio passado de fontes histéricas nativas mesoa- conceito aparece, quase como o empregaremos, em algumas das mais, importantes obras de referéncia para 0 estudo das fontes mesoamericanas - como o Handbook of Middle American indians, vol. 14 € 15° —e andinas — como The Cambridge history of the na- tive peoples of the Americas. South America, vol. IIL, parte 1. mericanas e andinas. Esse Dissemos que empregaremos tal conceito guase como aparecem em tais obras porque acreditamos ser importante para os estudos mesoamericanos € andinos incluir nele os conjuntos de registros figurativos ~ como as pinturas murais e ceramicas, por exemplo, 0 que nao € feito por essas obras. Pensamos que essa incluso pode incentivar trabalhos interdisciplinares que empreguem esses tipos distintos de registro — normalmente anali- sados por estudiosos de areas distintas, como so os historiadores ¢ arquedlogos — para responder a problemas elaborados também de modo interdisciplinar. Talyez assim, ou somente assim, poderemos dar conta, de forma minimamente adequada, de apontar ¢ construit caminhos promissores para a compreensdo dos miiltiplos e mutaveis significa- dos e usos que todas essas fontes teriam em suas sociedades de origem. Além dessa proposta de ampliagao do conjunto de fontes histéricas nativas, que passaria, portanto, a englobar (ambém as representagées figurativas que tratam centralmente do passado, apresentarei uma proposta de subdiviséo desse conjunto ampliado, Tal subdivi- so se fundamentou na existéncia de problemas especificos de entendimento e interpre- ‘ Tratamos das principais caracteristicas das tradigdes de pensamento inca e nahua, bem como de suas transformagdes 10 inicio do Periodo Colonial, em: SANTOS, Eduardo Natalino dos. As tradigdes histéricas indigenas diante da conquista e colonizagao da América: transformagdes € continuidades entre nahuas e incas. In: Revista de Histéria Departamento de Historia, FFLCH-USP. So Paulo: Humanitas & Faculdade de Filosofia, Letras e Ciéneias Huma- rnas ~ Universidade de Sao Paulo, n°. 150, pp. 157-207, 1°. semestre de 2004. * No caso do Handbook of Middle American indians, as fontes hist6ricas nativas so um subgrupo das chamadas fontes ctnohistérieas (ezhnohistorical sources), conjunto mais amplo que inclui todos 0s escritas pictoglificos —pré-hispanicos ‘ou coloniais ~¢ alfabéticos que informam de modo abundantemente sobre quaisquer aspectos das sociedades indigenas € que tenham alguma relagdo com as tradigdes histéricas nativas (native historical tradition). Cf. CLINE, Howard F. (editor dos volumes). Handbook of Middle American indians — vol, 34-15. Austin: University of Texas Press, 1975. No caso de The Cambridge history of the native peoples of the Americas. South America, concebe-se como fon- tes histéricas nativas “...writings that contain native South American versions of the past..”. Cf. SALOMON Frank. Testimonies: The making and reading of native south american historical sources. In: SALOMON, Frank & SCHWARTZ, Stuart (ed.). The Cambridge history of the native peoples of the Americas. Volume Il. South America Part 1. Cambridge: Cambridge University Press, 199. pp. 19. Eduardo Natalino tago que perpassam certos grupos de registros. Por sua vez, esses problemas definidores de grupos derivam de caracteristicas compartilhadas por certos registros, entre as quais merecem destaque a época de produgao (pré-hispanica ou colonial), a regitio de confecgaio (Mesoamérica ou Andes) ou 0 tipo de registro (figurativo ou escrito). Entrecruzando esses critérios, é possivel obter os seguintes grupos no interior do conjunto das fontes historicas nativas da Mesoamérica e Andes: | — Fontes his: (oricas pré-hispdnicas figurativas ou de leitura’ ampla, Ul — Fontes histéricas pré-hispanicas escritas ou de leitura estrita; Wl - Fontes histéricas nativas coloniais em textos alfabéticos e pictoglificos Essa proposta nao é totalmente inovadora, pois, como mencionamos, ela coincide e se ba- seia parcialmente em propostas presentes em outras obras. No entanto, talvez ela contribua para colocar em contato tipos de fontes que, embora possuam muitos elementos em comum, tais como a tematica ou a produgao e uso por um mesmo estrato social, vém sendo analisa- dos separadamente por estudiosos de diferentes areas. A proposta, tampouco, da conta de todos os grupos que poderiam ser formados no interior do conjunto das fontes histéricas nativas — por exemplo, no iremos incluir as representagées figurativas coloniais indigenas, tais como as pinturas, a nao ser na medida em que sejam partes constituintes de cédices pictoglificos ou escritos alfabéticos coloniais. Isso porque a pretensdo deste texto nao é constituir um catalogo ou manual que abranja todos os registros que poderiam se abrigar sob tal denominagao e nem todos os problemas de entendimento ¢ interpretagao a eles relacio- nados. A intengdo é apenas propor um exercicio de tipologia por meio de casos exemplares e com base em problemas de entendimento e interpretagaio comuns.’ Além disso, talvez 0 artigo contribua para apresentar aos interessados e estudiosos brasileiros um conjunto de fontes disponivel e muito pouco utilizado em nossos cursos universitarios e pesquisas aca démicas sobre os povos indigenas, e que pode servir de contraponto as fontes castelhanas, as quais ainda so utilizadas de modo quase exclusivo em tais cursos ¢ pesquisas. ” Empregaremos o termo leitura como sindnimo de reabilitagao de informagdes ¢ significados codificados por meio de qualquer sistema de registro, tanto dos que sto denominados como escritas ~ que teriam convengdes delimitadas de modo mais estrito — quanto dos que tém sido classificados como representacdes figwativas — sujeitos a um rol de ‘convengdes mais aberto * ‘Talvez sejam os problemas com 0s quais mais tenho me defrontado nas pesquisas que venho realizanda e que em- pregam essas fontes historicas nativas como elementos centrais de andlise. O objetivo central dessas pesquisas & entender as concepgdes de hist6ria e cosmogonia das elites dirigentes da Mesoamérica e Andes como construgdes sociopoliticas ativas, isto é, que envolviam, determinavam ¢ eram determinadas por uma série de outros fenémenos, processos ¢ instituigdes sociais, tais como a pertinéncia ou nao de uma determinada versio historica 9 um grupo Conquistador ou o interesse de seus produtores na aquisigdo ou manutengdo de determinados privilégios no interior de redes de aliangas, inimizades ¢ acordos politicas, I- Fontes histéricas pré-hispanicas figurativas ou de leitura ampla Com essa denominagao pretendemos designar os registros nativos mesoamericanos e andinos produzidos em tempos pré-hispAnicos, que tratam centralmente de representar conceitos € explicagdes sobre 0 passado e que, para isso, empregam critérios e convengtes de codificacio de significados mais “abertos” ou amplos do que os critérios e convengdes utilizados nos sis- temas de escrita— mesmo no sentido mais amplo deste termo, Em outras palavras, estamos nos referindo a toda uma gama de representag6es figurativas cuja leitura nao se vinculava direta- mente a um sistema de representagao visual ou tactil do pensamento ou da fala com conven- g6es, usos, Kigica ¢ gramitica estabelecidos de modo relativamente estrito — em determinada sociedade ou frago social -, os quais garantiriam uma qualidade basica a qualquer sistema de escrita: a permanéncia ¢ a reabilitagdo de significados relativamente bem determinados e so- cialmente compartilhados a partir da decodificagao de seus registros. Apesar disso, néio se trata de propor que esses registros figurativos fossem alvos de leitu- ras “livres”, Como em qualquer sociedade, no caso dos povos andinos e mesoamericanos, © universo visual possuia condicionantes que direcionavam seus entendimentos e usos, constituidos, principalmente, por um grande repertério de significados ¢ pelas situagdes histéricas concretas e cambiantes em que as imagens eram empregadas. Veremos que no caso dessas representagdes, os dois principais problemas sao justamente a falta de evidén- cias para entender esse repertorio e essas situacdes, sobretudo no caso andino. Sendo as- sim, pensamos que manter a idéia que esse tipo de registro também deva ser entendido como passivel de uma /eitura, mesmo que pautada por convengGes mais amplas do que as aplicadas a registros escritos, é util para avangarmos em seu emprego como fontes histo ticas e evitar alguns equivocos, como procuraremos mostrar abaixo. Andinas Da regio andina provém um universo quase imensurdvel de representagées figurativas, produzi- das em todos os periodos ¢ horizontes de sua historia, mas principalmente a partir do Periodo Ce- mio Inicial (com principio entre 3000 e 1800 aC. e com final em 1200 a.C)? do Horizonte > Uma das representagdes figurativas mais antigas encontra-se em Kotosh, no Templo das Maos Cruzadas, ¢ dataria de aproximadamente 2500 a.C. i Uduardo Natalino di Formativo (1200 a 200 a.C), Nesse Horizonte, observa-se uma das mais antigas manifestagdes de uma cultura supralocal ou de tendéneia pan-andina: a chamada cultura Chavin, que se desenvolve a partir dos departamentos peruanos de Ancash, Lima, Hudnuco e adjacéncias. Nela, e nas culturas posteriores, as imagens serio produzidas em larga escala — sobretudo nas cerdmicas ¢ tecidos — € terdio fungdes politicas centrais, ocupando posigdes de destaque na arquitetura dos centros politico- cerimoniais controlados pelas elites dirigentes ~ principalmente sob a forma de relevos. Como mencionamos, nossa intengao ¢ tratar apenas do que podemos chamar de fontes his- téricas nativas e, por isso, entre todas as representagdes, daremos prioridade as que pos- suem manifestadamente um cardter narrativo, isto é, que aparentemente codificam eventos ou personagens relacionados entre si, caracteristica fundamental de praticamente todas as explicagées sobre o passado — embora insuficiente para definir esse tipo de explicagio."” Entre as representagdes figurativas andinas pré-hispanicas, hd algumas séries ou tipos de imagens que apresentam de maneira mais explicita essa indole narrativa. E 0 caso, por exemplo, da série formada pelos relevos em pedra do mosaico megalitico de Cerro Sechin (1200 a.C), os quais representariam uma procissio que intercalaria homens armados com esquartejados, mas cujo vinculo ou relagéio entre as cenas é de dificil estabelecimento. Além dessas séries, ha referéncias coloniais sobre a existéncia de outros conjuntos de re- presentagdes narrativas. Por exemplo, Cristébal de Molina, el euzquefto, cita pinturas que © Sapa Inca teria no Poquen Cancha - uma parte do Templo do Sol, préximo a Cuzco — sobre a vida e as conquistas de cada um de seus antecessores. Talvez 0 conjunto mais famoso e estudado de representagées figurativas com esse manifes- to carater narrativo é o constituido pelos vasos cerdmicos policromos produzidos pelos mo- chicas, na costa norte do Peru, entre 0 inicio da era cristé e o ano 800 d.C. Tal carater é construido por meio de representag6es pictéricas de cenas compostas por personagens, ob- jetos e agdes que se repetem, de modo parcial e modificado, em outras configuragdes ao longo da narrativa visual. Outro recurso empregado em alguns vasos ¢ a disposic&o dessas cenas em faixas delimitadas por linhas, as quais, juntamente com a observagao da disposi- ao da parte frontal das personagens, podem fornecer indicios do sentido de leitura para as "© E-claro que uma representago figuritiva isolada, que apresenta uma organizagao mais sincrdnica também pode ser parte de urna série narativa, No entanto, isso 6 muite dificil de ser detectado na maioria dos casos das representagées figurativas andinas, cenas: em geral de cima para baixo e contornando o vaso a maneira de uma escada em ca- racol, como podemos observar na Figura 1. Esse manifesto cardter narrativo-diacrénico das pinturas ceramicas mochicas tem levado alguns estudiosos a chamé-las de imagens le- giveis!!, denominagiio que nos parece apropriada por evidenciar a existéncia de uma carac- teristica fundamental para a compreensao desses registros figurativos: a observancia de seu sentido de leitura e a relago de interdependéncia entre suas diversas cenas. Essas pinturas sobre cerémica apresentam, por um lado, sucessGes de cenas que representa- riam eventos potencialmente histéricos, como as que apresentam membros das elites diri- gentes empreendendo batalhas, conqui istas ou uma seqiiéncia de atividades politico-cerimo- niais. Por outro lado, apresentam cenas de eventos que considerariamos menos criveis, como relagdes com deuses ou feijées tornando-se homens! — os quais, no entanto, poderiam ser vistos pelos mochicas como parte de seu passado. Nao estamos pressupondo, ingenuamente, que as imagens da ceramica mochica que remetem a episddios criveis possuam necessaria- mente uma relacio de verossimilhanga com 0 passado. Nosso foco de atengdio prioritario neste artigo nao sera o problema da verossimilhanga entre as explicagées histéricas nativas € os acontecimentos passados. Pretendemos apenas identificar fontes histéricas nativas em potencial, para coloca-las em relag’o com outros grupos de registros e refletir acerca dos principais problemas de entendimento e de uso conjunto desses diversos tipos de registros, deixando, para outra ocasiao, 0 problema da relagao de verossimilhanga entre essas infor- magées e os acontecimentos — o qual, reconhecemos, é central para o entendimento das visdes que os mesoamericanos e andinos possuiam sobre 0 passado, mas que justamente por isso neces itaria, pelo menos, de outro artigo para ser adequadamente tratado."* "Ou legible images. Cf. SALOMON, Frank. Testimonies: The making and reading of native south american historical sources. In: SALOMON, Frank & SCHWARTZ, Stuart (ed.). The Cambridge history of the native peoples of the Americas. Volume Ill. South America, Part 1. Cambridge: Cambridge University Press, 1999. pp. 19-96, " Qu ainda sendo transportados por chasquis — mensageiros que cobriam grandes distancias a pé—e, depois, observados por espe- cialistas, como se fossem suportes de alguma mensagem ciffada, Essas representacbes levaram alguns estudiosos a propor que esses fejdes da costa norte do Peru, grandes como favas ¢ um dos alimentos mais antigos cultivados nessa regido, fossem utii- ads, depois de receberem certas marcas, como uma espécie de eserita. Entre esses estudiosos est Larco Hoyle. Cf Kaufinann Doig, Federico. Mochica, nazca, recuayen la arqueologia peruana. Lima: Universidad Nacional Mayor de San Marcos, 1966. ” Um artigo que realiza essa tarefa é: NAVARRETE LINARES, Federico. Las fuentes indigenas: més allé de la di- cotomia entre historiay mito. www.fflch.usp.br/dh/ceveh/public_htmVbiblioteca/artigos/EN-P-A-historiaymito. html ~consultado em 9/12/2000, Embora o autor trate centralmente das fontes mexicas, acreditamos que sua proposta~a saber, burscarmos uma postura analitica que ultrapasse a polaridade assimétrica mito X histéria e atinja uma andlise simbélica das explicagdes indigenas sobre o passado que néo invalide automaticamente seu cardter histérico ~ possa ser ampliada para muitos outros casos da América indigena, Eduardo, Natalino dos Santos Figura 1: Vaso de alga-estribo mochica (1-800 d.C). Por ti América. Arte pré-colombiana. Curadoria Marcia Arcuri. Rio de Janeiro: Centro Cultural Banco do Brasil, 2005. p. 254. De todos os modos, é muito dificil no caso da ceramica mochica — assim como no dos relevos de Chavin — chegar a uma leitura ou interpretagdo mais ou menos consensual sobre os signi- ficados de tais representagdes. Um dos principais obstaculos ¢ 0 modo descontextualizado pelo qual grande parte dessas pegas ~ objetos de cobica de colecionadores e, conseqiientemen- te de saqueadores ¢ traficantes — chega aos estudiosos, fazendo com que as informagées que poderiam resultar da andlise arqueolégica de seu contexto sejam perdidas. Outras matrizes de discordéncias sdo a projegao retrospectiva de conceitos do mundo andino posterior para o caso mochica ¢ as interpretagdes essencialistas, isto é, que atribuem significados fixos ¢ universais acertas formas. Detalharemos mais esses problemas ao final desta primeira parte do artigo, depois de apresentar as fontes hist6ricas pré-hispanicas figurativas provenientes da Mesoamé- rica, pois muitas delas estdo sujeitas ao mesmo tipo de problema analitico. Mesoamericanas No caso da Mesoamérica, também temos um conjunto imenso de representagées figurati- vas produzidas em todas as fases de sua histéria, principalmente a partir do inicio do Periodo Pré-classico Médio (1206 a.C.). Vao desde os relevos, altares, estelas, esculturas ¢ cabegas colossais olmecas (produzidos no I milénio a.C. e nos primeiros séculos da era crist&), passam pelas esculturas e estelas zapotecas ¢ maias e pelos objetos figurativos e murais de Teotihuacan do Periodo Classico (200 — 900 d.C.) e chegam até as esculturas, pinturas ¢ relevos toltecas ¢ tolteco-chichimecas do Periodo Pés-classico (990 — 1521 d.C). Entretanto, ha um grande diferencial para os estudiosos em relagdo ao caso andino: gran- de parte das representa¢ées figurativas mesoamericanas contém ou articula-se com repre- sentagées da escrita pictoglifica. Isso ocorre, por exemplo, desde os relevos zapotecas de San José Mogote e Monte Alban, considerados os mais antigos vestigios mesoamericanos do sistema de calendério e de escrita", passando pelas pinturas murais maias, como as de Bonampak, ¢ chegando até os monumentais gravados em pedra mexicas, como a Pedra do Sol ou a Pedra das Idades do Mundo de Moctezuma II. Essa articulagdo proporciona in- dicios importantes para a leitura ampla dos elementos figurativos, pois temos, em muitos ™ Estamos nos referindo & estela conhecida como Monumento 3 de San José Mogote, que traz o Sr. Um Xoo sacrificado que foi produzida por volta de 600 a.C., ¢ as estelas 12 € 13 de Monte Alban (500 ~ 400 a.C.), consideradas por alguns como os textos mais antigos da Mesoamérica. Cf. MARCUS, Joyce. Mesoamerican writing systems. Propa- ‘ganda, myth, and history in four ancient civilizations. Princeton: Princeton University Press, 1992. pp. 38-39, casos, uma espécie de texto acompanhando a imagem, o qual fornece um rol de infor- mag6es mais precisas: antropénimos, top6nimos, datas, agdes, etc. Isso permite, em parte dos casos, sabermos se estamos diante de auto-representagdes sociais acerca do passado, isto é, do que estamos chamando de fontes histéricas nativas pré-hispanicas de leitura ampla. Alguns dos conjuntos mais importantes de fontes pré-hispanicas mesoamericanas que se encaixam nessa delimitagiio siio: 1 —As estelas olmecas e zapotecas produzidas entre meados do | milénio a.C. e os sé- culos IT ou III d.C. — no caso das estelas zapotecas, esse produgdo avanga pelo menos até o século VII ou VIII d.C, Grande parte dessas estelas apresenta uma caracteristica basica em comum, que mencionamos acima ¢ que est4 presente também nas estelas maias e nos cédices mesoamericanos: a articulagao direta entre escrita e figuragao, isto é, entre glifos que remetem de modo mais estrito e bem estabelecido a um nome, con- ceito, idéia ou som da fala e representagdes figurativas que remeteriam a conjuntos de significados mais amplos, sujeitos, portanto, a leituras menos precisas — 0 que poderia ser uma vantagem sobre os escritos a depender do tipo de uso a que esses registros eram submetidos. E essa articulagdo que podemos observar na Figura 2, que reproduz a Es- Figura 2: Estela 2 de Monte Alban (150 — $00 d.C). FUENTE, Beatriz de la e outros. Laesculturaprehispénicade Mesoamérica. México: Consejo Nacional para la Cultura y las Artes & Jaca Book, 2003. p. 195. tela 2 de Monte Alban (150 — 500 d.C.), na qual temos, em sua porgdio esquerda, uma personagem vestida com um traje de jaguar e aprisionada pelo pescogo e na direita uma seqiiéncia de glifos dispostos em coluna. 2 — As pintaras murais de Teotihuacan produzidas entre os séculos IV e VII d.C., tais como as de Tepantitla e Tetitla. Nesse caso, podemos observar 0 mesmo tipo de articula- 40 mencionada no anterior, mas com uma presenga bastante minoritéria de glifos ideo- graficos, antroponimicos e toponimicos, além de uma auséncia quase absoluta de glifos calendérios's, os quais abundam nos casos olmecas ¢ zapotecas. Nos dois casos — estelas olmecas e zapotecas ¢ murais de Teotihuacan — ha um problema em comum: a decifragdo bastante incompleta dos sistemas de escrita. Na verdade, no caso de Teotihuacan, a presenca minoritéria de glifos ou o seu acentuado cardter pictérico, como podemos observar na Figura 3, que reproduz um fragmento dos murais menciona- dos com um glifo toporiimico, tem gerado uma grande polémica sobre a existéncia ou nao de um sistema de escrita nessa cidade. Os defensores que tal sistema nao teria existido Figura 3: Fragmento de mural teotihuaca- no com glifo toponimico (300 — 600 d.C). DUVERGER, Christian. Mesoamérica. Arte y antropologia. México: Consejo Na- cional para la Cultura y las Artes & Amé- rico Arte Editores, 2000. p. 43. 4 Na lingua portuguesa, a palavra calendério ¢ suas variagbes de género e mlimnero podem ser substantivos ou adjetivos. Fzduardo Natalino dos Santos | alegam que nenhuma estela, semelhante 4s de Monte Alban ou das cidades maias, foi encontrada naquela cidade e que as representagdes visuais dos murais nao sao inquestio- navelmente aceitas como contendo elementos que seriam parte de um sistema de escritu- 1a. Do outro lado esto os autores que partem de una concepgao mais ampla de escrita, afirmando que muitos dos elementos que compéem as cenas e personagens — tomados apenas como signos iconograficos sujeitos a uma leitura mais ampla ~ sto, também, glifos integrados a pinturas ou glifos que explicitam — isto é, que “exageram” propositadamente — seus fundamentos figurativos.” De qualquer modo, devido a decifragao limitada das escritas olmeca e zapoteca ¢ aos 1a- ros consensos sobre as pinturas teotihuacanas, a mencionada articulagdo entre represen- tages figurativas e escritas nao é de muito auxilio para determinarmos a tematica grafa- da nesses registros, ao contrario do que ocorre, como veremos, no caso maia e mixteco-nahua. Sendo assim, ¢ muito dificil dizer, de maneira inquestionavel, quais re- gistros olmecas, zapotecas e teotihuacanos possuem 0 passado como tematica central. Apesar disso, alguns desses registros, como 0 conjunto de cerca de quarenta lajes com inscrigdes do Edificio J de Monte Alban, tém sido interpretados com certo consenso — € grag endidas — como glifos de locais conquistados.’* & semelhanga com inscrigdes mixteco-nahuas e maias, que so mais bem compre- 3 — As pinturas murais e em cerdimica, os relevos em pedra e os painéis em gesso maias. Trata-se de um enorme conjunto formado por representa¢Ges presentes nos mais de cem principais centras politico-cerimoniais maias do Periodo Classico (200 — 900 d.C.) e Pés- classico Inicial (900 — 1200 d.C), entre os quais se destacam Tikal, Uaxactin, Piedras Negras e Quirigua (Guatemala), Copan (Honduras), Yaxchiln, Palenque e Bonampak © Os autores que usam uma definigdo mais estreita de escrita defendem que “..even though there is some limited use of glyphie notations as possible names, captions, or labels at Teotihuacém, ! see less evidence for true writing in Teotihuacdin art...” MARCUS. Joyce, Mesoamerican writing systems. Propaganda, myth, and history ih four ancient izations. Princeton: Princeton University Press, 1992. p. 17. "” Bsses autores afirmam que “...Jeotihacat indeed passessed a complex system of hieroglyphic writing. which appe- ars not only on small portable objects but also in elaborate murals in many regions of the city.” TAUBE, Karl. The writing system of ancient Teotihuacan. Barnardville, N.C. & Washington D.C.: Center for Ancient American Studies. 2000 (Ancient America). p. 2 ' Também ha fortes indicias que o passado seja a tematica central em outros registros zapotecas, como da Estela 2 de Monte Albin, na qual constam representagies de datas © de um guerreiro aprisionado, o que € muito recorrente em rmurais € estelas maias (Chiapas), Dzibilchaltin, Coba, Labna, Kabah, Uxmal e Chichén Itza (lucata), A grande maioria dessas representagées figurativas apresenta-se, como mencionamos, articulada com elementos do sistema de escrita’’ e com um importante diferencial em relagdo aos casos olmeca, zapoteca ¢ teotihuacano: o alto nivel de entendimento que os estudiosos possuem da escrita maia, constroido principalmente a partir dos anos 1950. Sendo as- sim, tem sido muito mais viavel determinar quais dessas representacées figurativas e textos tratam de episédios que estariam relacionados ao passado ¢ perceber que ha uma quantidade assombrosa de fontes histéricas nativas maias. Nessas fontes, os episddios so datados precisamente pelo sistema de calendario e suas personagens, em geral membros das elites dirigentes e seus antecessores, sdio nomeadas ¢ tém suas agdes descritas.”' E 0 que ocorre, por exemplo, no Dintel 24 de Yaxchilan, repro- duzido na Figura 4. Nesse dintel temos a representagdo figurativa do soberano Itsam Balam (Escudo Jaguar) e de sua esposa principal realizando um auto-sacrificio no dia 28 de outubro de 709 d.C.” Todas essas informagdes especificas sobre a cena sao obtidas por meio da leitura dos glifos em alto-relevo que a acompanham. Elas permitem, por sua vez, uma leitura muito mais precisa e frutifera dos prdprios elementos que compéem a cena figurativa, pois tornam possivel que relacionemos, por exemplo, os atavios ¢ objetos por- tados pelas duas personagens ~ ou a razio dimensional ¢ a articulagao posicional entre elas — a uma circunstancia em especifico, que era parte dos atributos e signos de poder das elites dirigentes maias do final do Periodo Classico. '° No caso da cerdmica pintada maia. hé um grande conjunto de vasos que apresenta essa articulagao de forma siste~ imatica ¢ muito semelhante a que se encontra nos eédices. Esse tipo de pega tem sido chamado de vaso-cédice. CF. LEON-PORTILLA, Miguel, Cédices — Los antiguos libros del Nuevo Mundo, México: Aguilar, 2003. guns dos principais responsdveis por langar as bases da decifragdo da escrita maia, isto & por perceber que se trata- va de um sistema misto ~ ideogréfico-fonético ~ foram Yuri Knorozov, Heinrich Berlin ¢ Tatiana Proskouriakoff. Cf. COE, Michael D. El desciframiento de los glifos mayas. Tradugao Jorge Ferteiro, 4a. reimpressio, México: Fondo de Cultura Econémica, 2001 (Seccién de Obras de Antropologia). Como afirmamos anteriormente, ndo se trata de pressupor que taisregistros tenitam, como fundamento central, a bus- ca do mesmo tipo de verossimilhanga que ¢ perseguida pela tradigo histérica ocidental contempordnea. Casos em que as estelas associam datas propicias a eventos que sabidamente nao ocorreram nelas sto conhecidos. Por exemplo. uma das estelas do Templo 14 de Palenque, inaugurada em 6 de novembro de 705 d.C.. trala da morte ¢ da apoteose de Chan-Bahlum If, ocorrida, segundo outras fontes, ent 702 d.C. Cf. SCHELE, Linda & FREIDEL, David. 4 forest of kings. The untold story of the Ancient Maya. Nova torque: Quill Willian Morrow, 1990, p. 219. Por outro lado, isso nfo invalid automaticamente toda e quaiquer possivel verossimilhanga entre os registros e os eventos passados. £ bastante consensual entre os mesoamericanistas, devido & cocréncia de dados obtidos em estudos arqueol6gicos € ‘em fontes produzidas em épocas ¢ locais distintos, que a grande maioria das datas ¢ nomes de soberanos registrados nas estelas maias ¢ relacionados ao Periodo Classico €, segundo nossos critérios. verossfmil » Cf. COE, Michael D. & KERR, Justin. The art of the maya seribe. Londres: Thames and Hudson, 1997. p. 196. Edduacdey Natalino dos $ berano Itsam Balam ou Escudo Jaguar e sua esposa principal no Dintel 24 de Yaxchilén. COE, Michael D. & KERR, Justin. The art of the maya scribe, Londres: Thames and Hudson, 1997. p. 196. ico 4 — Murais, relevos e gravados toltecas e tolteco-chichimecas do Periodo Pés-cl: (900 — 1521 d.C), Trata-se de um conjunto muito amplo e caracterizado pela diversidade de procedéncia: sdo representagGes figurativas produzidas em varias partes da Mesoamé- rica ao longo deste periodo e que possuem em comum a vinculagdo com o dominio poli- tico de grupos étnico-culturais de origem extramesoamericana, chamados de toltecas ou tolteca-chichimecas, que parecem ter se aliado com ou substituido os grupos que domina- vam os grandes centros urbanos ¢ politico-cerimoniais no Periodo Classico, inclusive os grupos que mencionamos acima.? Em grande parte dos casos, essas representagées figurativas — sejam as produzidas na regido de Oaxaca ou do altiplano central mexicano — possuem em comum a estreita vinculagéio com o sistema de escrita mixteco-nahua, cujo entendimento, embora sujeito a polémicas em alguns pontos, tem avangado de forma consideravel e permitido, assim como no caso maia, andlises relativamente precisas ¢ frutiferas dessas representagdes. Sao os casos, por exemplo, dos frisos de Tula Xicocotitlan, dos relevos de Xochicalco ou dos murais de Cacaxtla. No entanto, ha uma parte significativa das representagdes figurativas que nao apresenta associagéio com signos escriturdrios. E 0 caso, por exem- plo, de toda uma série de relevos em pedra e outros gravados mexicas, como a estétua de Coatlicue Mayor ¢ a enorme laje onde esta esculpida Coyolxauhqui esquartejada, nas quais praticamente nao hd elementos do sistema de escritura em articulagaio direta. Mas o estudo e andlise dessas imagens tém se apoiado em escritos nahuas pré-hispanicos ou coloniais que tratam das mesmas personagens ou episddios nelas representados — e vin- culados ao passado mexica — e, desse modo, tém obtido interpretagdes que superam as meras descrigdes.* Vimos que os registros componentes do conjunto de fonies histéricas pré-hispanicas figu- rativas ou de leitura ampla apresentam situag6es diversas de andlise ¢ entendimento. De modo geral, talvez possamos dizer que as imagens mesoamericanas s4o atualmente mais bem compreendidas pelos estudiosos do que as andinas gragas, sobretudo, ao auxilio de ® Qu de antigos grupos mesoamericanos a eles vinculadas, como, talvez, os maias de Chichén Itz. 1 AS representagbes figurativas dos eédices mesoamericanos pré-hispanicos também poderiam constar como parte deste grupo de fontes. No entanto, como os textos propriamente ditos — ou seja, as represcntacdes visuais formadas por seqigncias de glifos, muitos dos quais incorporados ou indistinguiveis das representagdes figurativas — so pre~ dominantes nas paginas desses manuscritos, preferimos tratar deles na proxima parte do artigo. outro tipo de representago: os textos pictoglificos. Apesar disso, pensamos que, tanto no caso mesoamericano quanto andino, a ieitura e interpretagdo dessas fontes poderia avan- ar com a superacao ou minoragéo de trés grandes problemas, a saber: 1 —O desconhecimento do contexto de uso e produgo de muitas dessas representagées, sobretudo das portdteis, como ceramicas pintadas, esculturas, pequenos gravados ¢ ou- tros. Como dissemos acima, esses objetos tém sido um dos principais alvos dos colecio- nadores, saqueadores ¢ traficantes, cujas ages privam os arqueéloges de inferit infor magées dos contextos de origem dessas pegas. Essas informagées, juntamente com as provenientes de outros tipos de registros, como os escritos, sio fundamentais para supe- rarmos os estudos formais ¢ estilisticos dos registros figurativos, pois os possiveis signi- ficados sociais das imagens nao esto nelas prdprias — em seus tracos, cores ou composi- do fisica, embora muitas informagées possam ser inferidas por meio da andlise desses elementos ~, mas eram construidos ¢ modificados em seus usos especificos, aos quais ‘femos um acesso mais detalhado ¢ completo por meio de outros tipos de vestigio. A rela- gao direta que existe nos casos mesoamericano e andino entre, por um lado, a eventual descontextualizagao das representagGes figurativas ¢ a inexisténcia ou nao-compreensao de fontes escrita s a elas articuladas e, por outro, a conseqiiente dificuldade de se obter avangos no entendimento dos usos ¢ significados de tais representagdes confirma, entre outras coisas, a necessidade de outras fontes de informagao, além das proprias imagens, para aborda-las historicamente ou empregd-las como evidéncias histéricas.”* 2~Tendéncia de universalizar ou considerar come essenciais alguns usos ou significados dos objetos-suporte ou dos elementos formais das representagies figurativas, subestiman- do os miltiplos valores que poderiam adquirit nas variadas situagdes ¢ contextos em que eram empregados e, também, as distintas maneiras de apropriagao social desses valores, Desde que as Ciéncias Humanas reviram o conceito de cultura e ele passou a designar no apenas o conjunto de artefatos herdados, bens, processos técnicos, idéias, habitos e valo- 2 O problema do uso das imagens como fontes historicas — isto é, como portadoras de indicios “inéditos” em relagao a outros tipos de fontes e que podem esclarecer aspectos da histéria de sua sociedade produtora e consumidora que muito além das questdes de autor, estilo e supostos simbolismos universais ~ tem sido objeto de andlise sistematica alguns historiadores. Entre eles MENESES, Ulpiano Toledo Bezerra de. Fontes iconograficas na pesquisa histérica Anotagdes de curso de pds-graduag2o em Histéria Social do Departamento de Histéria da Faculdade de Filosofia, Letras ¢ Cigncias Humanas da Universidade de Sao Paulo, 2°. semestre de 2001 / BURKE, Peter. Testemtunha ocular. Histéria ¢ imagem. Tradugao Vera Maria Xavier dos Santos. Bauru: Editora da Universidade Sagrado Coragao, 2004. res, mas também as dimensbes simbélicas da ago social, com seus conflitos, ineoerén- cias reprodugdes ndo-automaticas, ha que se considerar que tudo o que é recebido, é recebido conforme a maneira do recebedor.* Considerando-se isso seriamente, temos como conseqiiéncia — incémoda, mas necessaria ~ a impossibilidade de encontrar senti- dos fixos nos artefatos culturais, 0 que se tornou um grande problema para a Historia, a Historia da Arte e para a Arqueologia, entre outras disciplinas. 3 — A projegdo retrospectiva de informagées obtidas por meio da anélise de fontes relacionadas a periodos mais recentes, principalmente das oriundas do primeiro sécu- lo do contato, aos periodos longinquos da historia da Mesoamérica e Andes. Qual a consisténcia histérica de interpretarmos os gravados em pedra da cultura Chavin com base nos dados do mundo inca? Ou de interpretarmos os relevos olmecas e as pinturas murais de Teotihuacan fundamentados em informacées sobre os mexicas coloniai: Esses procedimentos — por vezes os tinicos disponiveis ante 0 “siléncio” das represen- tages figurativas” — tém servido como auxiliares para alguns avangos nos estudos das sociedades pré-incas ¢ pré-mexicas, No entanto, talvez eles pressuponham a vali- dade de dois conceitos insustentaveis no panorama atual de discussdo teérica sobre 0 que é uma cultura e sobre o carter plenamente histérico da sociedades indigenas, a saber: a universalidade do significado de formas idénticas ou semelhantes ¢ a imuta- bilidade do mundo indigena. II - Fontes hist6ricas pré-hispanicas escritas ou de leitura estrita Mencionamos no inicio da primeira parte deste artigo que empregariamos um conceito relativamente amplo de escrita, procurando abranger com ele qualquer sistema de re- presentagao visual ou tactil da fala ou de complexos ideolégicos que se sirva de conven- ges, usos, logicas e gramaticas estabelecidos de modo relativamente estrito, os quais ° Cf. GEERTZ, Clifford. 4 interpretagdo das culturas. Tradugao Fanny Wrobel. Rio de Janeiro: Zahar Editores. 1978 (Antropologia Social) 1 [talo Calvino reflete sobre duas posigdes analiticas igurativascujas chaves de leituraeinterpretagdo foram perdidas. posigBes que. segundo € escrito. devem ser evitadas, Num extremo estariaa répidaidentificagao dos possiveis significados que as representagdes teriam para seus produtores e usuarios 2 partir do repertbrio de valores e conceitos do proprio observador mademo: no outro, a abstengao total e premeditada do abservador de realizar qualquer inferéncia ou analogia, que focaliza entdo sua atengdo apenas nos aspectos Formais da representagdo, Cf, CALVINO, Italo. Palomar. Tradugao Ivo Barroso, Sio Paulo: ‘Companhia das Letras, 1994, 2 Em um de seus belos contos.inttulado Serpentes e Caveiras, 0 es extremas diante de representag garantiriam uma qualidade basica a tais sistemas: a permanéncia ¢ a reabilitagdio de significados relativamente bem determinados e socialmente compartilhados a partir da decodificagao de seus registros. Apresentaremos, nesta parte, alguns grupos de representa¢Ges visuais mesoamericanas que se enquadram nessa concepgdio de escrita e abordam, de modo central, a temética do passado de seus proprios produtores e usudrios primérios. Além disso, trataremos de um grupo de fontes andinas que também se encaixa nessa concep¢do de escrita, mas cujo possivel contetido histérico de alguns registros é ainda motivo de muita polémica. Procu- raremos mostrar que tratar esses grupos de fontes como escritos nao € apenas uma ques- tao de preferéncia terminolégica, mas parte de uma abordagem que procura estabelecer principios e pressupostos que ajudariam na andlise de grupos inteiros de registros — tais como a existéncia de sentidos de leitura, de significados relativamente bem estabelecidos para suas unidades minimas e de situagdes sociais especificas de leitura.* Quipos andinos Entre os sistemas andinos de codificagao de informagiio que poderiam inscrever-se numa defini¢go ampla de escrita, as quipos tém sido os “candidatos” mais cotados, o que se deve, principalmente, a preciso dos significados reabilitados na leitura e a uma série de referéncias oriundas de fontes coloniais.” Qs modelos mais simples de quipos séo formados por um cordao horizontal principal, a0 longo do qual estdo atados cordéis verticais secundarios de diferentes cores ou ma- ¥ Tratamos desse problema de modo mais detathado na tese de doutorado, mais especificamente em sua Introdugao ¢ Capitulo 1. Cf. SANTOS, Eduardo Natalino dos. Calendiirio, cosmografia e cosmogonia nos cédices e textos nahuas do sécula XVI. Tese de doutorado. Orientadora Janice Theodoro da Silva, Sao Paulo: Departamento de Historia da Faculdade de Filosofia, Letras e Ciéncias Humanas — Universidade de Sao Paulo, 2005, » Os tocapus também tém sido sondados por alguns estudiosos como parte de um sistema de codificagao de mensagens reabilitadas com preciso. Consistem em trajes de trabathos preciosos usados pelos Incas e Coyas e que apresentam principalmente representagdes de cardter_geométrico. A principal fonte hist6rica a dar sustentacao a essa proposta €xobra de Guamén Poma de Ayala, Nueva Corénica y buen gobierno. Nela se retratam essas vestimentas por meio de desenhos que trazem, além dos tradicionais motivos geométricos, letras latinas e némeros hindu-ardbicos, numa possivel referencia a0 valor escriturdrio de tais motivos. Além disso, Guamdn Poma menciona, ern meio aos textos relacionados as imagens dos acapus dos Incas ¢ Coyas, a quantidade de fileiras em que tais motivos, letras e nimmeros aparecem e sua quantidade, Cf. GUAMAN POMADE AYALA, Felipe. Nueva Cordnica y buen gobierno, 3 tomos. Edigdo e prologo Franklin Pease G. Y. Vocabutério ¢ tradugdes Jan Szeminski, México: Fondo de Cultura Econémi- ca, 1993 (Seccién de Obras de Historia). tome I, pp. 62-114 ou 79-143 no manuserito. Figura 5: Quipo inca (séculos XV ~ XVI) com cordéis de cores distintas. Porti América. Arte pré-colombiana. Curadoria Marcia Arcuri, Rio de Janeiro: Centro Cultural Banco do Brasil, 2005. p. 293, teriais, nos quais estdo diferentes tipos de nés em distintas posigdes, como podemos observar na Figura 5. Ha cerca de seiscentos exemplares de quipos sobreviventes — muitos deles pré-hispanicos —, sendo que aproximadamente metade se encontra no Mu- seum Fiir Vélkerkunde, em Berlim, e outros cem no American Museum of Natural History, em Nova Iorque.” Até onde sabemos com seguranga —e essa advém principalmente do fato destes aparatos terem sido empregados pelo meno’ até as tiltimas décadas do século XX -, os quipos codificariam e permitiriam a reabilitagao de dois tipos entrecruzados de informagao: 1 — quantidades; registradas em unidades ou grupos decimais por meio de nés de distintos » Cf: URTON, Gary. Quipu. Contar anudando en el imperio inka. Exposicién julio 2003 —abrit 2004. Santiago: Museo Chileno de Arte Precolombino & Universidad de Harvard, 2003. p. 11 25 ‘Eduardo Natalino dos Santos tipos e em distintas posigdes nos cordéis secundarios:*' 2 — categorias; distinguiveis nas diferentes cores ou materiais dos cordéis ou pelas distintas posigdes relativas em que es- tavam atados ao cordao principal. No entanto, ha uma grande quantidade de quipos mais complexos: com cordéis du- plos, triplos ¢ superiores, além das diversas cores e materiais e dos diferentes tipos de nés.* Muitos desses quipos, cerca de um tergo do total dos conhecidos, nao res- pondem aos principios numérico-categéricos que mencionamos, 0 que contribui para a proposic¢do que tal sistema também serviria para codificar outros tipos de informagao, inclusive narrativas, embora nao saibamos quais seriam as convengdes e cddigos nesse caso. Mas 0 principal fundamento da hipétese que os quipos teriam uma dimensdo narrativa sio os testemunhos coloniais, segundo os quais esses aparatos téxteis serviam de base para relatos que dependiam de uma tradigéo oral articulada. Alguns destes testemunhos constam na Nueva corénica y buen gobierno, de Guamén Poma, na qual se afirma que os indigenas deveriam registrar seus pecados em quipos para relembra-los durante a confis- so: “Que los dichos padres del santo sacramento de la conficién mande exsaminar su anima y consencia una semana el dicho penetente aunque sea espanol y el yndio haga quipo de sus pecados.”* Outro cronista, Pérez Bocanegra, reafirma, em 1631,'essa fungao dos quipos: “Para este efecto les mandan vayan atando fiudos en sus hilos que llaman Caitu, y son los pecados que les ensefan, los cuales parecen: afiadiendo y poniendo en Vale notar que nos Andes predominou o sistema decimal, diferentemente da Mesoamérica e da maioria da América indigena, onde era utilizado o sistema numérico vigesimal © maior quipo conhecido, proveniente do norte do Chile, tem 1.404 cordaes de dados, Cf, SALOMON. Frank. Testi- monies: The making and reading of native south american historical sources. In: SALOMON, Frank & SCHWARTZ. Stuart (ed.). The Cambridge history of the native peoples of the Americas. Volume IIL South America. Part 1. Cam- bridge: Cambridge University Press, 1999. p. 22. © Um dos estudiosos que acredita na existéncia dessa dimensdo narrativa em parte dos quipos ¢ URTON. Gary. Quipu. Contar anudando en el imperio inka. Exposicién julio 2003 — abril 2004. Santiago: Museo Chileno de Arte Precolombino & Universidad de Harvard, 2003. Essa possibilidade ¢ investigada também por ASCHER. Marcia & ASCHER, Robert. El quip como lenguage visible, e por MURRA, John V. Las etnocategorias de un Khipu estatal. In: LECHTMAN, Heather & SOLDI, Ana Maria (org). La tecnologia en el mundo andino. Tomo I: subsis- tencia y mensuracién, 2a, edi¢ao, México, Universidad Nacional Auténoma de México, 1985. pp. 407-432 ¢ 434- 442, respeetivamente. GUAMAN POMA DE AYALA. Felipe. Nueva Cordnica y buen gobierno. 3 tomos. Edigao ¢ prélogo Franklin Pease G. Y. Vocabulario e tradugdes Jan Szeminski. México: Fondo de Cultura Econémica, 1993 (Seccién de Obras de Historia). tomo Il, p. 498 ou pp. 616 [630] do manuscrito. sus nudos otros, que jamds cometieron, mandéndoles, y ensefidndoles, a que digan es pecado el que no lo es, y al contrario.”* Em ambos o8 casos, poderiamos pensar que os indigenas estariam registrando nos quipos apenas os tipos (categorias) ¢ quantidade de pecados e que, desse modo, nio se teria, nessas mengdes, elementos para afirmar que o sistema abrangeria outros tipos de informacao, além das numéricas e categéricas. No en- tanto, Guaman Poma menciona 0 uso dos quipos como base para a composicéo de uma série de narrativas que constam em sua obra: “..,juzgando por temeraria mi intencién, no hallando sujeto en mi facultad para acabarla conforme a la que se debia a unas historias sin escritura ninguna no mas de por los quipos y memorias y relaciones de los indios antiguos de muy viejos y viejas, sabios, testigos de vista... As afirmagdes de Guamén Poma sao reforgadas por outros testemunhos coloniais, entre os quais estdo escritos pertencentes a pleitos judiciais, segundo os quais quipos teriam sido apresentados e lidos como provas.” Além disso, outros indicios poderiam apontar para a existéncia de dimensdes narrativas nos quipos, como a longa formagao dos guipu- camayocs incas, que duraria cerca de quatro anos em escolas especializadas em Cuzco, chamadas de yacha huasi, e a queima desses aparatos téxteis por religiosos e autoridades castelhanas no Periodo Colonial por conterem idolatrias. De todas as formas, parece que esses testemunhos coloniais confirmariam pelo menos que além de os cordéis estarem organizados para representar uma seqiiéncia de catego- rias quantificadas — por exemplo, um mimero “x” de homens, batatas, Ihamas, sandé- lias, cerémicas, carvéo, pescado e etc. —, estas também estavam distribuidas em outra seqiiéncia, de natureza talvez cronolégica, pois ao que parece os quipucamayocs pode- * Apud MONTOYA ROJAS, Rodrigo. Historia, memoria y olvido en los Andes quechuas. In: Revista Tempo Brasileiro ~ Historia: Meméria e Esquecimento. Ditegao Eduardo Portella. Rio de Janeiro: Edigdes Tempo Brasileiro. n°. 135. outubro/dezembro de 1998. p. 175. ™ Grifo meu. GUAMAN POMA DE AYALA, Felipe. Nueva Corénica y buen gobierna. 3 tomos. Edigio ¢ prélogo Franklin Pease G. Y. Vocabulario e tradugdes Jan Szeminski. México: Fondo de Cultura Econémica. 1993 (Seccién de Obras de Historia). Tomo I, p. 13 ou p. 8 do manuscrito. Na obra de Guamén Poma, se mostra ainda que os chasquis = mensageiros no mundo inca ~ levavam os quipos como “cartas”. As ilustragdes que retratam os hatun chasqui encontram-se nas paginas 348 [350] e 811 [825] do manuscrito. As imagens digitalizadas de toda a Nueva corénica y buen gobierno padem ser consultadas em http://www: kb.dk/permalink/2006/poma/info/es/frontpage.htm > Porexemplo, 0s quipucamayoes aimarés, especialstas na confecgio ¢ leitura desses aparatos.teriam usado quipos em suas petigdes & administragao colonial, recitando as genealogias. Cf. MURRA, John. As sociedades andinas anteriores a 1532. In: BETHELL, Leslie (org.). Histéria da América Latina: América Latina colonial, I. Tradugdo Maria Clara Cescato, 2. cligdo, S30 Paulo: Editora da Universidade de Sao Paulo & Brasilia: Fundagio Alexandre Gusmao, 1998. p. 81 riam localizar essas categorias quantificadas no tempo — por exemplo, um némero “x” de Ihamas nascidas em tal época.>* JNo entanto, mesmo que se aceite que 0s quipos conteriam outros tipos de informagao além das numéricas e categéricas, como informagées histéricas, ¢ muito dificil para os estudiosos atuais as decodificarem, pois existem dois abstaculos que dificilmente serao superados. Por um lado, no ha nenhum exemplar que sabidamente contenha esses outros tipos de informa- Gao e que possua uma espécie de tradugio. Por outro lado, mesmo que um segistro ¢ sua suposta tradugdo venham a ser encontrados, é muito provavel que as codificagdes das infor- mages no-numéricas ou néo-categoricas seguissem padrdes variados segundo as iname- ras regides ou escolas de quipucamayocs andinas e, dessa forma, seriam de pouca valia para a decodificagdo geral dos quipos que nao respondem aos principios numérico-categéricos. No caso dos quipos, assim como no dos tocapus, ceques € huacas,” parece que estamos diante de registros ou escritos to distintos dos alfabéticos que os religiosos ou autorida- > © que € confirmado por uma série de outros testertunhos colonia: “Las yndios desta terra tienen cuenta y razon de les casas que dana sus sefiores(..) por quipas que elles laman y todo lo que han dado de mucho tempo atras lo tienen asimismo en Sus quipes. Esaue este testigo que las dicho sus quipas son muy ciertas e verdaderos pongue este testigo muchas y diversas veces ha cotejado algunas cuentas que ha tendo con yndkos de las cosas que le han dado le han debi eles ha dado ha hallado que los quipes que tienen los dichos yndios eran muy cieros ...” Tl firmagao tera sido feta por Pedro de Alconchel em meio de um pleito judicial € {i publicada por Waldemar Espinoza Soriano em: Los huaricas aliados dela conguista: ts informaciones inéditas sobre la partci- pacién indigena en la conquista de Pena, 1558, 1560,y 1561. In: Anales Cienficos dela Universidad del Centro I. Huancayo, 1971, 1972. Apud MURRA, John V, Las etnovategorias de un khipu estat In: LECHTMAN, Heather & SOLDI, Ana Maria (org). La tecnologia en el mundo ancdina. Toma l: subsistencia y mensuracién. 2a, ediglo, México, Universidad Nacional Auténoma de Méxi- 0, 1985, p. 433, Quito caso que confimaria essa organizago cronokigica é mencionadlo por Frank Salomon no pleito dos senhores ddeHlotun Xauxa a Audiencia de las Reyes, em 1561, para recuperar os bens dacs € 0s servigas prestados como aliados i forgas de Piaarro, Tudo teria sido registrado, at¢ a Gina pordiz par de sandilias, lida 25 ans depois para ser cobrado, Cf. SALOMON, Frank. Testimonies: The making and reading of native south american historical sources. In: SALOMON, Frank & SCHWARTZ, Stuart (i). The Cambridge histar ofthe naive people ofthe Americas. Volume IM, South America. Part 1, Cambridge: Cambridge University Press, 1999. p.23.$S claro que o-assunto€ objeto de polémicae alguns dos mais resets conhcedones das fonteshis- t6ricasandinas ido acetar essa hipstese. Entre eles, Franklin Pease: es sabido que los mismas (0s quipucaaocs se dedicaban ‘areunir-y procesar informacién cuantitativa, no historias, relatos, leyenda o textos lteravios.” PEASE.G. ¥, Franklin. Las erénicas .y los Ande’. Lia, Pontificia Universidad Caidica de Pert &e México, Fond: de Cultura Econérniea, 1995. p. 23. Expresso ese Parénese inscrda por mim. Para Pease, apesar dos testemuntos coloniais, no possuimes nenfurralitura,traduco au versio colo- nial reconhecidae accita dos Supostos contetidos ndo-numéticas dos quipos. Os cegues eram linhas ou caminhos demarcados na paisagem por meio das Auacas, algo material que manijesta aguilo que ndo se vé ou que possui um cardter de excepcional. As huacas poderiam ser pessoas vivas ou mortas (raalguis ou cocpos twumificados), grandes construgdes humanas, marcas de fronteiras (saywa), de caminhos (apacita ou pilhas de pedras que sinalizavam pontos criticos) ou elementos que se destacavam ma paisagem (como montanhas proeminentes ou apus). Muitas delas se relacionavam com 0s antepassados, aos quais etam dedicados discursos € ‘encenagdes sobse seus feitos, realizades durante procissdes que percorriam os ceques onde suas huacas estariam dispostas. Dessa forma, 08 ceques ¢ as huacas eram um meio de se fixar ou relacionar a lembranga dos antepassados € dos acontecimentos a eles vinculados geografia local, aerescida de intervenges humanas des castelhanas no tiveram interesse em transcrevé-los ou traduzi-los, como ocorreu na Mesoamérica com os © critos pictoglificos. As duas tradi¢des de escrita e pensamento hist6rico ~ a crista e as andinas, ~ eram tao diferentes e irredutiveis que as tradugdes fo- ram virtualmente impossiveis."® Sendo assim, muitos dos quipos sobreviventes seriam potenciais fontes histéricas pré-his- pénicas de leitura estrita — caso seja correta a hipétese sobre o registro de informagdes narrativas acerca do passado nesses aparatos. No entanto, nfo entendemos 0 sistema a pon- to de poder decodificar esse tipo de informagao, o que nos dispensa de tratar dos outros tipos de problema, como o desconhecimento do contexto de produgdo e uso dos quipos que hoje se encontram em museus ou cole¢6es particulares. Um panorama bem diferente envolve os escritos pictoglificos mesoamericanos pré-hispanicos, como veremos a seguir. Escritos pictoglificos mesoamericanos A produgiio de escritos que combinavam glifos fonéticos, logograficos e ideograficos com pinturas foi realizada por mais de dois mil anos na Mesoamérica. Os escritos pictoglificos eram confeccionados sobre suportes materiais variados, tais como madeira, ceramica, osso, pedra, estuque, tecido, pele animal e papel, produzido a partir da casca da figueira (papel amate), da fibra do agave (papel maguey) ou ainda de uma palma chamada iczotl. Tais escritos serviram a distintos objetivos e usos ao longo da historia mesoamericana e entre seus principais temas estavam a cosmogonia, a hist6ria grupal, os feitos das elites dirigentes e suas linhagens, as guerras, conquistas e fundagdes de cidades, os prognésti- cos, as oferendas ¢ os tributos. Grande parte desses escritos, como vimos na primeira parte do artigo, trata de maneira central do passado de seus préprios produtores e usuarios, principalmente nos seguintes grupos de fontes, onde se articulam com representagées figurativas de leitura ampla: | - estelas olmecas e zapotecas; 2 — pinturas murais de Teotihuacan; 3 — pinturas murais, relevos em pedra, painéis em gesso e pinturas em cerdmica maias; 4 — murais, relevos ¢ gravados toltecas e tolteco-chichimecas. "CE. SALOMON, Frank. Testimonies: The making and reading of native south american historical sources. In: SA~ LOMON, Frank & SCHWARTZ, Stuart (ed.). The Cambridge history of the native peoples of the Americas, Volume IIL South America, Part 1. Cambridge: Cambridge University Press, 1999. pp. 19-96. 29 Eduardo Natalino dos Santos N&o itemos tratar das representagGes escritas destes grupos de fontes histéricas nativas nesta segunda parte, especialmente porque alguns dos principais problemas relacionados a0 seu entendimento e interpretagdo so os mesmos que enunciamos ao tratar de suas representacdes figurativas: 1 — desconhecimento do contexto de produgdo e uso de muitos desses registros; 2 ~tendéncia a universalizar ou essencializar os significados de determinadas representages. sejam figurativas ou escritas; 3 — projego retospectiva de informag6es mais recentes ou oriundas do primeiro século do contato a periodos muito anteriores. Além desses problemas gerais, mencionamos também a pequena compreensdo que temos dos sistemas de escrita ol- meca, zapoteca e teotihuacano, o que, logicamente, compromete o entendimento basico tanto das mensagens escritas quanto das representag6es figurativas a elas associadas. Entretanto, ha outros problemas relacionados com o entendimente dessas mensagens ¢ sua articulagdo com as representagdes figurativas. Iremos tratar de alguns deles nesta ena proxima parte do artigo, ao apresentarmos um importante conjunto de explicagdes histo- ricas nativas produzidas na Mesoameérica: as histérias contidas nos cddices mixteco- nahuas pré-hispanicos e coloniais. Os cédices mixteco-nahuas sdo parte de um conjunto maior de escritos, chamados atu- almente de cédices mesoamericanos. Trata-se de escritos pictoglificos produzidos sobre tecido, pele animal ou papel e que, em geral, eram enrolados como pergaminhos ou dobrados como biombos, sobretudo no caso dos confeccionados com papel ou pele. Eram chamados de amoxtli na lingua nahuatl, termo que significa papéis colados ou aderegados” e que no século XVI foi traduzido como livro pelos castelhanos.” Uma das caracteristicas pictéricas mais notoria desses manuscritos é a presenga de linhas de contorno grossas e negras, que formavam glifos ¢ imagens cujas partes eram pintadas de cores distintas, porém uniformes, isto é, sem sombreamento, como podemos obser- var na Figura 6. O numero total de cédices mesoamericanos ¢ desconhecido, pois apenas parte deles en- contra-se relacionada em levantamentos, nos quais constam cerca de uma duzia de ma- * C£LEON PORTILLA. Miguel. Ef destino de la palabra: de fa oralidad y los cédices mesoamericanos a la escritura alfabética. México: El Colégio Nacional & Fondo de Cultura Econémica, 1997. p. 21 * Cf, MOLINA, Alonso de. Focabulario en lengua castellana y mexicana y mexicana y castellana. Estudo preliminar Miguel Leén Portilla, #, edigto, México: Editorial Porrtia, 2001, p. 5y. Figura 6: Eventos relacionados ao ano 7 Casa e ao Senhor Oito Veado no cédice mixteco Zouche-Nuttall (900 — 1521 d.C). Cédice Zouche-Nuttall. Introdugao e explicacao Ferdinand Anders ¢ outros. Austria: Akademische Druck-und Verlagsanstalt & México: Fondo de Cultura Econémica & Madri: Sociedad Estatal Quinto Centenario, 1992 (Cédices Mexicanos I), p. 52. nuscritos pré-hispanicos e mais de cinco centenas de coloniais.* Entre todos esses manus- critos, é possivel distinguir tipos de livros que versam sobre temas distintos e se organizam. internamente de maneiras diferentes — algumas dessas diferengas repousam no uso pre- dominante de distintos ciclos temporais que compunham 0 sistema calendario mesoame- ricano. Alguns dos principais tipos de cddices sao 0 xiuhamatl (livro da conta dos anos), 0 fonalamati (livro da conta dos dias e do destino), 0 tlacamecayoamatl (livro de linha- gens) e 0 teoamatl (livro sobre os deuses). * $a considerados como pré-hispanicos os cédices Borgia, Cospi. Fejérvéiry-Mayer: Laud e Vaticano B, que formam ‘© Grupo Borgia, e os cddices Becker n® 1, Bodler, Colombino, Zouche-Nuttall e Vindobonense, que formam 0 Gru- po Nuttall. Todos esses manuscritos procedem da regio de Cholula, Tlaxcala e oeste de Oaxaca, da qual procede também 0 Cédice Selden, parte do grupo Nuttall. mas cuja datagao € controversa. Do altiplano central mexicano provém os cédices Borbdmrico e Aubin, dois manuscritos de formato, estilo e caracteristicas tradicionais, mas euja datacdo também € controversa. Os manuscritos produzidos em todas essas regides, apesar da existéncia de diversas linguas, serviam-se de um mesmo sistema escriturdrio, relativamente distinto do maia e chamado de mixteco-nahua. Da regio maia procedem mais trés cédices pré-hispanicos: 0 Dresde, 0 Paris € 0 Madrid, formado pelos cédices Cortesiano € Troano e, por isso, chamado também de Tro-cortesiano, Embora todos esses manuscritos fornegam informagdes sobre a histéria dos povos mesoa- mericanos, nos interessam especialmente, nesta ocasiéio, aqueles que se constituem predo- minantemente como explicagées do proprio passado, isto é, os tlacamecayoamatl ¢ os xiuhamatl. O xiuhamatl, que se organizava com base na conta de 52 anos de 365 dias, era utilizado para registrar as historias grupais, tidas como posse das linhagens dirigentes — cujos membros eram chamados de pipiltin, em nahuat! — e que, assim, funcionavam como fundamento de sua posigao de destaque social. Os flacamecayoamatl, mais comuns na re- gio mixteca e na época colonial, narram as origens e ramificagdes de certas linhagens, 0 que também € feito, por vezes, com apoio da conta dos anos. Temos, portanto, em ambos os casos, formas de organizagio ¢ tematicas muito aparentadas, tornando a distingao entre esses dois tipos de livros polémica ¢ aparentemente sem grandes utilidades analiticas.* No caso dos poucos manuscritos pré-hispanicos remanescentes, os tinicos xiuhamatl e tlaca- mecayoamatl sobreviventes séio procedentes da regidio de Oaxaca e foram confeccionados no Periodo Pés-classico (900 — 1521). Esses manuscritos constituem o Grupo Nuttall, formado, pelos cédices Becker n° 1, Bodley, Colombino, Zouche-Nuttall e Vindobonense. Em todos eles, a tematica central é composta pelas realizagées das linhagens dirigentes da regio mixteca, sobretudo as conquistas de outros altepetl.“* Em alguns deles, como no Zouche-Nuttall ¢ no Vindobonense, a conta dos anos é parte fundamental da organizacio da narrativa, pois mesmo que no estejam registrados em seqiiéncias completas e ininterruptas, como ocorre nos xiuha- matl nahuas coloniais, os anos sio marcados a medida que a narrativa os exige. Dessa manei- ra, a presenga dos glifos dos anos, como podemos observar assinalado com um retngulo em negro na Figura 6, que reproduz uma pagina do Cédice Zouche-Nuttall, é fundamental para a inteligibilidade desses cédices histéricos, pois registra a diacronia existente entre as inime- ras representagdes figurativas e escritas grafadas em suas diversas e sucessivas paginas. Sendo assim, por meio dessas hist6rias nativas pictoglificas ¢ possivel obter uma série de informagées precisas, sobretudo no que diz respeito aos nomes das personagens, as datas “ Elizabeth Hill Boone no considera esses livros mixtecos como anais ¢ 0s agrupa sobre a categoria de res gestae por possuirem como temética central as dinastias e seus feitos. Cf. BOONE, Elizabeth Hill, Manuscript painting in service of imperial ideology. In: BERDAN, Francis e outros (org,). Aztec imperial strategies. Washington: Dumbarton Oaks Research Library and Collection, 1996. pp. 181-206, No entanto, tal categorizagao pode ser uma complicagio desne- cesséria e, além disso, mascarar o princfpio bésico de leitura dessas historias, as quais possuem claramente a conta dos anos como estrutura organizativa basica e que, por isso, poderiam ser incluidas na categoria existente de xiuhamatl * Termo nahuatl que pode ser traduzidos por cidade ou entidade politica independente. e aos locais mencionados, pois esses trés tipos de informagiio constam nos trés conjuntos de glifos mais bem entendidos pelos estudiosos do sistema de escrita mixteco-nahua: os glifos antroponimicos, calendarios e toponimicos, expressos por meio de signos fonéticos ou ideograficos. Entretanto, o entendimento de grande parte dos outros glifos ¢ elementos figurativos que compéem as paginas desses cédices ainda esta sujeito a grandes polémi- cas. A principal delas diz respeito aos limites entre glifos ¢ elementos figurativos. Em outras palavras, além das trés categorias de glifos mencionadas, quais outros elementos seriam glifos sujeitos a uma leitura mais estrita — ¢ de que tipo: fonéticos ou ideograficos? —e quais seriam figuras sujeitas a uma leitura mais ampla? Essa discussao se insere numa polémica ainda maior: o sistema mixteco-nahua é uma escrita? Alguns estudiosos defendem que “verdadeiras” escritas mesoamericanas teriam existi- do apenas na porgdo oriental da Mesoamérica, com os olmecas e principalmente com os maias, por se tratar de sistemas em que os glifos fonéticos sio predominantes em relagio aos ideograficos e as representagdes figurativas.”® Esses sistemas diferenciam- se parcialmente do utilizado na por¢ao ocidental — isto é, no centro do México e na re- gido zapoteca, que depois passou ao predominio politico mixteco —, no qual os glifos fonéticos no eram predominantes. Parece-nos que esta postura preconiza uma visdo muito restrita do que possa ser um sistema de escrita, pressupondo que seu ideal univer- sal seja grafar, de modo mais completo possivel, os discursos de uma lingua em especi- fico, preferencialmente por meio de signos que representem os sons que a constituem. Pensamos que os sistemas de escrita podem dedicar-se a registrar visualmente elemen- tos que ndo necessariamente possuem uma natureza primordialmente fonética, como categorias ¢ conceitos. Sendo assim, respeitando-se um rol de convengdes compartilha- do e relativamente restrito, a leitura de registros com categorias e conceitos grafados ideograficamente pode resultar em discursos relativamente distintos — até mesmo pro- feridos em linguas diferentes -, mas nunca em interpretagdes amplamente abertas, como ocorre com as representagdes figurativas, para as quais, em geral, néio ha, por exemplo, um sentido previamente determinado para a leitura de suas partes componen- tes. Por tudo isso, é possivel dizer que as relagdes entre escrita e oralidade podem ser 4% Além dos distintos sistemas de escrita, essa divisio entre oriente e ocidente da Mesoamérica também se marcaria por diferengas no registro numérico, respectivamente o posicional maia ¢ o figurative mixteco-nahua. Cf, LOPEZ. AUSTIN, Alfredo. La consiruccién de una visién de mundo. Curso de pos-graduacao. Instituto de Investigaciones Antropoldgicas — Universidad Nacional Auténoma de México, setembro de 2002 a janeiro de 2003. 33 z muito mais variadas do que as que ocorrem nos sistemas fonéticos ou logograficos. Além disso, mesmo nesses sistemas, elas sio sempre muito mais complexas do que pressupée a ingénua visdo que uma fala ou discurso é totalmente registrado por meio da escrita. Nenhuma escrita é capaz de grafar totalmente uma fala e, portanto, todas de- pendem, em algum grau, de uma tradigo oral conjunta.” Essa utilizagao das escritas fonéticas como modelos dos “verdadeiros” sistemas de escrita tém produzido posturas analiticas radicais ¢ equivocadas diante dos escritos mixteco-nahuas e, também, dos maias.** Talvez até com a intengaio de combater a subvalorizacdo a qual os sistemas de escrita mesoamericanos tém sido submetidos, alguns estudiosos tém assumido como pressuposto que todos os elementos presentes no sistema mixteco-nahua sao estritamente fonéticos. Isso termina por reforgar 0 ju- izo gue um sistema visual de registro é uma “verdadeira” escrita somente quando se configura como a grafia de uma lingua. Tal postura, sobretudo no caso dos escritos mixteco-nahuas, parece reduzir as enormes e pouco investigadas potencialidades dos sistemas ideografico-fonéticos aos pressupostos de funcionamento do fonético.”” Além disso, é de dificil sustentag&o que o sistema mixteco-nahua seja totalmente, ou mesmo predominantemente, fonético, pois é mais ou menos consensual que combina- va glifos fonéticos com ideograficos — estes em maior proporcdo — e ambos com re- presentag6es figurativas. Esse entendimento equivocado do sistema mixteco-nahua, como um rébus que nota- ria a expressdo verbal, remonta ao Ultimo quarto do século XV] e aos trabalhos de alguns religiosos franciscanos que, desde ent4o, promoveram a produgao dos chama- © Cf. DERRIDA, Iacques. Gramatologia, Tradugao Mirian Schnaiderman e Renato Janine Ribeiro, Sao Paulo: Pers- pectiva & Editora da Universidade de $80 Paulo, 1973 (Estudos, n°. 16) “No estudo dos escritos maias, certa tendéncia foneticista manifesta-se na tentativa de entender scus escritos foca- lizando apenas, ou centralmente, os glifos fonéticos e ideograficos, deixando em segundo plano as repreventagdes figurativas ou as dimensdes figurativas desses glifos. No caso dos cédices mixteco-nahuas, um dos principais defensores dessa postura era Joaquin Galarza. quem acre~ ditava que o sistema de escrita empregado nesses manuscsites teria servido para fixar e transcrever a lingua nahuat! Ele elaborou um catilogo ou dicionério de glifos para os Cédices Testerianay a partir de um manuscrito que registra a oragao do Pai Nosso ¢ que, supostamente, permite a leitura de outros manuscritos desse grupo. Galarza e seu grupo de estudas também trabalharam num catélogo-diciondrio que serviria para os cédices nahuas em geral, no qual todas as imagens devem ser lidas Toneticamente. Cf. GALARZA, Joaquin, Cédices o manuscritos testerianos. In: rque- ologia Mexicana. Cédices coloniales. Diregao cientifica Soacjuin Garcia-Barcena ¢ outros. México: Editorial Raices & INAH & CONACULTA, vol. VIL, n®, 38, p. 34-37, 1999. / Jn amaxtl’ in acatl ~ ef libro, el hombre. Cédices y vivencias, México: Tava Editorial, 1992 (Coleccién Cédices Mesoamericanos), dos Cédices Testerianos. Nesses manuscritos, oragdes e outros textos cristaos em nahuatl teriam sido grafados somente por meio de representagées visuais de elemen- tos cuja combinacdo dos nomes se assemelharia as palavras das tais oragGes e textos. Suas confecgées partiram, assim, de uma premissa equivocada, pois as tradigées na- tivas nao grafavam, predominantemente, a fala por meio de glifos com valores exclu- sivamente fonéticos — 0 que nao significa dizer que tal recurso no fora utilizado pe- las tradigdes de escrita locais.® No entanto, 0 uso de glifos fonéticos no sistema mixteco-nahua nao se dava como em uma escrita rébus, visto que os glifos silabicos eram, preponderantemente, empregados na forma de prefixos ou sufixos — como o de tetl (pedra) para te (alguém ou alguns) 0 de pantli (bandeira) para pan (em cima) - ou para representar sons — como acail (junco) para o som da letra “a”, ef! (feijdo) para da letra “e” ¢ offi (caminho) para o som da letra “o”.!! Buscando superar polaridades do tipo escritas “verdadeiras” versus “falsas”, varios outros pesquisadores tratam as inscrigdes mixteco-nahuas como produtos de uma escrita particular, ‘com suas proprias limitagdes e vantagens.® Partindo de uma concepedo mais ampla de escrita e entendendo que as diferenciag6es entre os sistemas relacionam-se mais com preferéncias de ordem visual, propésitos politicos ou usos sociais do que com supostas forcas evolutivas fone- ticistas intrinsecas aos sistemas de escrita, tais estudiosos procuram compreender a gramatica, a semantica e a légica proprias dos registros pictoglificos mixteco-nahuas,® interpretando suas partes dentro de um todo maior formado pelo texto, pelo proprio sistema ¢ pela sociedade que ‘0s empregava para fins ¢ em situages muito particulares.** Dessa forma, analisam as técnicas ¢ priticas de transmissao oral e de escrita indigena de modo positivo, isto ¢, procurando com- preender suas capacidades ¢ recursos especificos, bem como seus empregos na constituicao de & A obra do frei Valdés de 1579, Rethorica christiana, testemunharia a autoria franciscana do projeto que produziu esses escritos. Cf. BOONE, Elizabeth Hill. Pictorial documents and visual thinking in Postconquest Mexico. in: BOONE. Elizabeth Hill & CUMMINS, Tom (ed.). Native traditions in the postconquest world. A symposium at Dumbarton Oaks = 2nd through 4th October 1992, Washington: Dumbarton Oaks Research Library and Collection, 1998. pp. 149-199. 5! CE ALCINA FRANCH, José. Cédices mexicanas. Madri: Editorial Mapfre, 1992 (Coleccién Lenguas y Literaturas Indigenas / Colecciones Mapfre 1992). © Entre essas vantagens, estaria, por exemplo, o fato de falantes de diversas linguas, como 0 nahuatl, otomie, totonaco, cuicateco, chocho, mixteco, zapoteco ¢ tlapaneco, poderem compartilhar um mesmo sistema. © CE. BROTHERSTON, Gordon. Traduzindo a linguagem visivel da escrita, In: Literatura e Sociedade. So Paulo: Depar- tamento de Teoria Literdria ¢ Literatura Comparada da FFLCH da Universidade de Sto Paulo, n° 4, pp. 78-91, 1999. % Elizabeth Hill Boone propde que uma definiglio mais ampla de escrita deva envolver nfo sé os manuscritos do México Central e de Oaxaca, mas também os quipos andinos. Cf. BOONE, Elizabeth Hill, Stories in red and black pictorial histories of the Aztecs and Mixtecs. Austin: University of Texas Press, 2000. 35 ino dos Santos discursos socialmente estabelecidos e que operavam no interior de marcos institucionais que definiam, em parte, seu funcionamento e seus objetivos.*8 Essa postura analitica vem produzindo resultados consistentes no estudo dos manuscritos mix- teco-nahuas, sobretudo quando utiliza a comparago entre os diversos tipos de escritos— cédices pré-hispanicos, cddices coloniais ¢ textos alfabéticos—, mostrando a possibilidade de um manus- crito esclarecer a outro e apontando para a acerto metodoldgico de se analisar as imagens de maneira contextualizad: ., isto é, como entidades que significam dentro de um texto que se serve de codificagdes bem estabelecidas. Entre tais resultados podemos mencionar os obtidos pelos estudos dos cédices do Grupo Nuttall sobre os reinos eas linhagens mixtecas,* sobre a migracaio mexica’” ou sobre os povos chichimecas*®, além dos inumeraveis estudos sobre os cddices e es- telas maias.” Além disso, a possibilidade de os estudos com as fontes pictoglificas se juntarem aos estudos das representagGes em monumentos ¢ em pegas arqueolégicas, ou ainda aos estudos etnograficos, abre toda uma nova série de possibilidades de pesquisa ainda por se realizar®? CE. NAVARRETE LINARES, Federico. Las fuentes indigenas: més allé de la dicotomia entre historia y mito, WW. ffich.usp.br/dh/ceveh/public_htmV/biblioteca/artigos/FN-P-A-historiaymito.htm! — consultado em 9/12/2000, % Por exemplo: CASO, Alfonso, Reyes y reinos de la mixteca, 2a. reimpressio, México: Fondo de Cultura Econémica, 1992. ) JANSEN, Maarten, Un viaje a la casa del sol. In: Argueologia Mexicana. Cédices prekispanicos. Direga0 ciemtifica Joaquin Garcia-Barcena ¢ outros. México: Editorial Raices & Instituto Nacional de Antropologia ¢ Historia & Consejo Nacional para la Cultura y las Artes, vol. IV, n°. 23, pp. 44-49, 1997, » Por exemplo, NAVARRETE LINARES, Federico. Mito, historia y legitimidad politica: las migraciones de los pue- blos del Valle de México. Tese de doutoramento. Orientador Alfredo Lopez Austin, México: Facultad de Filosofia y Letras — Universidad Nacional Auténoma de México, 2000. Por exempio, BROTHERSON, Gordon. Grupos Chichimecas. Curso de extensio universitaria, Instituto de Invest gaciones Antropoldgicas — Universidad Nacional Autinoma de México, 18 a 22 de novebro de 2002. ® Entretanto, ainda ha muitos estudiosos que negam terminantemente a possibilidade de estudo dos povos mesoamericanos por meio de seus proprios escritos, sobretudo dos pictoglificos: “As inserigdes mesoamericanas, por mais sofisticadas que sejam, nao foram inteiramente decifradas e sa0 de pouca valia para empreender wma reconstituigdo histérica.” Em decorréncia dessa postura, previamente negativa, s6 nos restaria recorrer aos textos alfabéticos ¢, preferencialmente, aos produzidos pelos europeus: “Tudo 0 que sabemas sobre as civilizagdes antigas procede, desta forma, dos conguistadores ceuropews.” BERNAND, Carsnen & GRUZINSKI, Serge. Histéria do Novo Mundo. Da descoberta d conguists uma expe- riéncia européia (1492 — 1550). Tradugao Cristina Muracho, Sto Paulo: Editora da Universidade de Sao Paulo, 1997. p. 16, Michel Graulich parece concordar com essa posig2o, pois em um de seus mais importantes estudos afirma que a obra de Sahagiin ¢ a mais completa para se estudar mundo mesoamericano e que outras fontes, como os e6dices Vaticano A, Borbénico e Magliabechiano sto pobtes: “Si cito el Cédice borbénico en iltimo lugar es porque, como todo cédice prehis- pénico, no es inteligible més [que] a fa luz de las informaciones provenientes de lax fuentes escritas.” A expressto entre colchetes foi inserida por mim. GRAULICH, Michel. Mitas y rituales del México antiguo. Tradugao Angel Barral Gomez. Madi: Ediciones Istmo & Colegio Universitario, 1990 (Antes, Técnicas y Humanidades, n°. 8). p. 310. Em outra ocasido, fizemos um balango das maneiras como os manuscritos mixteco-nahuas vém sendo empregados pelos estudiosos nas tltimas quatro ou cinco décadas. Cf. SANTOS, Eduardo Natalino dos. Usos historiograticos dos cédices mixteco-nahuas. In: Revista de Histéria. Departamento de Histéria, FFLCH-USP, Sao Paulo: Humanitas & Faculdade de Filosofia, Letras Ciéncias Humanas— Universidade de So Paulo, r°. 153, pp. 69-115, segundo semestre de 2005, If — Fontes historicas nativas coloniais em textos alfabéticos ou pictoglificos Esse grupo é constituido por textos pictoglificos, alfabéticos ou hibridos que foram pro- duzidos em tempos coloniais por membros das sociedades nativas ~ ou vigorosamente influenciados por eles — e que tratam centralmente de estabelecer explicagées sobre o passado dessas sociedades. Entre os grupos de fontes que temos tratado, é, seguramente, © mais amplo ¢ heterogéneo. Isso porque, apesar de possuir a tematica histérica em co- mum, seus componentes constituem-se por escritos t&o diversos quanto: cédices pictogli- ficos tradicionais produzidos depois da chegada dos europeus; cédices encomendados por ou confeccionados sob a dire¢do de autoridades civis e religiosas castelhanas, em geral constituidos por registros pictoglificos acompanhados de textos ou glosas alfabéticas de carater explicativo; textos alfabéticos em linguas nativas que transcrevem cédices, quipos ou depoimentos ¢ que foram produzidos diretamente ou com o auxilio de membros das sociedades locais; textos em castelhano ou outra lingua européia que reproduzem expli- cagGes nativas; escritos de carater legal ou administrativo que também apresentem ver- ses indigenas sobre 0 passado, tais como livros paroquiais, petigdes de revisdo de privi- légios, pleitos judiciais e outros documentos. Andinas Ha varias formas de subdividir em grupos menores as heterogéneas fontes histéricas na- tivas andinas produzidas em tempos coloniais: segunda a época de produgao, a regiao de origem, o status étnico-social de seu autor e 0 tipo ou fungao do escrito, entre outros cri- térios. Um dos mais conhecidos levantamentos dos escritos histéricos cotoniais andinos foi feito por Franklin Pease na obra Las crénicas y los Andes. Esse autor trata tanto dos escritos produzidos por membros das sociedades andinas quanto dos confeccionados por castelhanos e outros europeus sobre elas. Também nao se restringe aos escritos que pos- suem a histéria nativa como tematica central. Pease organiza a apresentagao dos escritos em blocos cronolégicos, que se marcariam pelas diferencas de contextos politicos existen- tes na regido dos Andes Centrais ao longo dos séculos XVI e XVII. Essa forma de agrupar tais escritos revela uma preocupagiio do autor que deve ser levada em conta na leitura e analise desses textos: 0 grande peso dos diferentes conjuntos de demandas e horizontes politicos que estavam em jogo em cada um desses momentos histéricos, con- 8 alino dos Santos Eduardo Na formados por forcas oriundas das sociedades nativas ¢ do mundo cristéo ¢ castelhano." Em outras palavras, tais obras devem ser entendidas como produgées que refletem tensdes oriundas das diversas fases de transformagées radicais pelas quais passaram os Andes Cen- trais desde a conquista castelhana, ¢ no como se todo o Periodo Colonial se caracterizasse. constante e¢ estabelecido desde o seu inicio. Esse proble- ma, aparentemente simples e superado, deve ser uma preocupacao central para a andlise desses relatos, pois, em muites casos, a riqueza de suas informagées pode funcionar como por um arranjo de forgas politi um atrativo para que o estudioso se prenda exclusivamente ao universo interno do escrito ‘ou, ainda, que tente solucionar 0 problema apenas citando 0 contexto de produgio e uso da obra, sem, no entanto, leva-lo realmente em conta no momento de realizar a andlise. Um levantamento mais recente dos escritos historicos coloniais andinos foi produzido por Frank Salomon e intitula-se Testimonies: The making and reading of native south ameri- can historical sources, mencionado na ultima nota de rodapé. Esse levantamento se dife- re do proposto por Pease por ter como meta principal tratar das fontes nativas que apre- sentam versdes do passado e, desse modo, nao inclui os relatos europeus sobre a conquista — a nao ser nos casos em que eles reproduzem relatos ou informagdes histéricas & Os conjuntos de textos propostos so: | — relatos produzidos na década de 1530; caracterizados por focalizarem cen- tralmente a conquista ¢ as dificuldades nos contatos e tradugdes; composto pac Verdadera relacidn de la conquista del Perit, de Francisco Lopez de Xerez, ¢ Noticia del Peri, de Miguel Estete; 2 — cronicas produzidas entre 1540 ¢ 1570; caracterizadas por serem mais minuciosas e pelas aproximages aos incas ¢ sua cultura, inclusive por meio da participagdo de indigenas bilingies, de informagdes provenientes de quipucamayocs € de espanhdis que falavam qui chua; composto por Informaciones, de Cristobal Vaca del Castro, Cronica del Pert, de Pedro de Cieza Leén, Suma y narracién de los incas de Juan Diez de Betanzos, Vocabulario de ta lengua general de! Peri, de Domingos de Santo ‘Tomé, além de obras de burocratas, como Juan de Matienzo e Polo de Ondegarda; 3 ~ escritos da década de Fran- cisco de Toleds ou anos 1570; caracterizados pelas influéncias desse vice-rei; composto por Instrucién del ¥nga don Diego de Castro Titu Cusi Yupangui, de Titu Cusi Yupanqui, ¢ levantamentos de informagdes, como os de Sarmiento de Gamboa; 4 ~ escritos produzidos entre o fim do século XVI € 0 inicio do XVII; caracterizados pelos trabalhos missionérios ¢ pela extitpagao de idolatrias; composto por Nueva cordnica y buen gobierno, de Felipe Guamén Poma de Ayala, Relacién de antigiiedades deste reino del Piri, de Joan de Santa Cruz Pachacuti Yamui Salcamay gua, Comentarios reales, de Garcilaso de la Vega, ¢ pelo Manuscrito de Huarochiri, compitado por Francisco de Avila, ® Ao analisarmos os eseritas de Guamén Poma de Ayala ¢ Joan de Santa Cruz, por exemplo, é fundamental levarmos em conta que eles sdo nobres nativos que aprenderam, sob influéncia mondstica, a escrever em castelhano e quichua. Também, que fazem apotogia das nobrezas locais, com raizes incas ou pré-incas, no contexto de seu rebaixamento p6s-toledano, ¢ combinam a historia local com a histéria universal crista, fazendo criticas aos reinos cristdos. Nao se trata, portanto, de cronistas nativos fossilizados, mas de vozes marginais em selagdo a um establishment rico em literatura em quichua geral e que produzird sermdes barrocos ¢ poesia devocional nesse idioma, as quais desempe~ nnhardo um papel fundamental na construgao da idealizagao de uma nagao inca precoce, que marcaré a produgao de escritos posteriores, sobretudo a partir da segunda metade do século XVIII, Cf. SALOMON, Frank. Testimonies: ‘The making and reading of native south american historical sources. In: SALOMON, Frank & SCHWARTZ, Stuart (ed.). The Cambridge history of the native peoples of the Americas. Volume IHl. South America. Part |, Cambridge: Cambridge University Press, 1999. pp. 19-96. de origem indigena — e incorpora fontes de cardter legal ou administrativo, Além disso, propde uma agrupacao dos escritos que no se pauta primordialmente na simples datagdo de suas produgées, mas no tipo de ambiente ou instituigao relacionada a essa produgio ¢ no grupo social ao qual o autor — ou informante — do escrito estaria vinculado. O primeiro grupo de fontes proposto por Salomon é composto pelos testemunhos orais in- corporados em crénicas ibéricas, ou seja, por relatos oriundos de contatos com a nobreza inca. Sao, nas palavras do autor, historias indigenas emolduradas pelo tema da vit6ria cas- telhana. Desse grupo, fazem parte as obras de Juan de Betanzos e Cieza de Leén, além dos escritos dos oficiais de Toledo, como Juan de Matienzo e Juan Polo de Ondegardo. O segun- do grupo é formado pelos escritos produzidos pelo governo civil, nos quais constam muitos testemunhos nativos. Trata-se de uma massa documental gerada pela burocracia civil, tais como cartas de lideres nativos, demandas e processos judiciais e pedidos de nobilitagao, além das relaciones geograficas. O terceiro grupo é composto por escritos relacionados & Igreja, muitos dos quais também contém testemunhos nativos. Esse grupo compensaria a pouca atengaio dos funcionarios estatais ao pensamento nativo, além de cobrir regides dis- tantes dos centros urbanos e administrativos dos Andes Centrais. E constituido predomi- nantemente pelos escritos oriundos da ago missionaria de eliminagao da idolatria, sobretu- do a partir de meados dos anos 1560, tais como os textos que contém depoimentos dos Participantes do movimento Taki Ongoy, 0 Manuscrito de Huarochiri ¢ os relatos das visi- tas ¢ dos extirpadores de idolatria do século XVII. Além de textos relacionados indireta- mente A extirpagao, como as cartas anuais dos jesuitas, os registros de campo, os catecis- mos, os vocabularios, as biografias e os papéis sobre disputas entre as ordens religiosas. O ultimo conjunto é composto por relatos produzidos, ou fortemente influenciados, por auto- res nativos e que retrataria a curta produgao de uma historiografia nativa dissidente, que pretendia explicar a Europa dentro da historia andina. Esse conjunto caracteriza-se tanto pela utilizagao de conceitos oriundos do mundo andino quanto pela incorporago de formas literarias e historiograficas européias e de conceitos cristaos —como idolatria. Desse grupo fariam parte as obras de Titu Cusi Yupanqui (Ynstrugion del Ynga, 1570), de Garcilaso de la Vega (Comentarios reales, 1609), de Blas Valera (Costumbres antiguas del Perti, década de © Por exemplo: Visita de la provincia de Ledn de Hudnuco en 1562. Inigo Ortiz de Ziihiga, visitador Tomo I. Visita de las cuatro waranga de los chupachu. Edigao de John V. Murra. Ensaios de Robert McK. Bird e outros. Paleografia de Domingo Angulo ¢ outros. Huanuco: Universidad Nacional Hermilio Valdizan — Facultad de Letras y Educacién, 1967 (Documentos para la Historia y Etnologia de Hudnuco y la Selva Central, tomo 0). Figura 7: Pagina de abertura da Nueva coré- nica y buen gobierno, de Guamén Foma de Ayala (1615), htp:/www.kb.dk/permalink/2006/poma/info/ es/frontpage.htm 1580), de Diego Lobato de Sosa (manuscrito ainda nao encontrado), de Guamén Poma de Ayala (Nueva corénica y buen gobierno, 1615) ¢ de Joan de Santa Cruz Pachacuti Yamqui Salcamaygua (Relacién de Antiguedades deste reyno del Piru, anterior a 1613), Todos esses quatro grupos, especialmente o ultimo, se encaixam de modo mais ou menos integral no conjunto que estamos denominando fontes histéricas nativas coloniais em textos alfabéticos. Em todo esse conjunto de escritos andinos, nao temos, aparentemente, proble- mas basicos de entendimento de suas mensagens, pois sua reabilitagdo estaria supostamen- te garantida pelo uso da escrita alfabética, embora essa pressuposic&io possa ser enganosa, pois algumas dessas fontes apresentam discursos visuais em paralelo com os alfabéticos, como ocorre nas obras de Santa Cruz Pachacuti e de Guaman Poma de Ayala, que tem a sua pégina de abertura, que apresenta texto e imagem, reproduzida na Figura 7, Apesar dessa relativa facilidade de entendimento inicial, a andlise ¢ a interpretagiio desses textos enfrentam problemas para, por exemplo, separar quais de seus contetdos ou estruturas narrativas* sto de origem andina ou crista e para compreender como foram articulados. Isso sede , entre outros fatores, as profundas transformagées que seguramente estiveram presen- tes no processo de adaptagao de géneros nativos de explicagdo do passado para géneros ndo- nativos — como a crénica, a historia ou a relacién —, ou ds envolvidas no processo de trasvase de registros provenientes de um sistema néo-alfabético ou Ue relatos orais para o texto alfabé- tico. Diante dessas transformag6es, temos a auséncia de versdes pré-hispanicas andinas acerca do proprio passado ov a pouca compreensao dos registros nativos tradicionais remanescentes. Desse modo, no podemos comparar verses pré-hispanicas com coloniais para entendermos , assim, termos certo controle sobre —as transformagées envolvidas nesses processos. Mes- mo assim, podemos supor com certa seguranga que a transposic&o colonial de relatos manti- dos oralmente — pelas panagas incas, por exemplo — ou registrados em representagées figura- tivas e escritas — como os quipos — foi um processo caracterizado mais pela recriagdo de versdes sobre o passado do que pela transcrigao das versdes existentes. Essas recriagdes, além de caracterizadas por profundas transformacées formais, também estavam sujeitas 4s demandas politicas coloniais, que eram distintas em cada momento histérico ¢ em cada regio ou grupo social e que, desse modo, n&io devem ter suas parti- cularidades subestimadas nas analises desses textos.” Isso nao significa que as fontes histéricas andinas coloniais em textos alfabéticos sejam representativas apenas das de- mandas politicas e estruturas narrativas de origem cristd. Ao contrario, estdo plenas de concepgdes andinas, mais ou menos transformadas, dependendo da época ¢ ambiente onde foram produzidas. Tanto que outro grande problema de andlise desse material tem sido a centralidade explicativa desempenhada por conceitos e concepgdes andinas de dificil com- preensao, tais como as idéias de ancestralidade, de tempo, de espago, de transformagao ¢ outras, expressas em termos como hanan, hurin, runa, pachacuti, huaca, malqui ¢ outros.” “ Expressio que designa a mancira pela qual as partes de uma composigao textual estdo articuladas entre si © Por exemplo, nao sabemos ao certo se os relates andinos coloniais que estabelecem a sucesso eronolégica de dove incas, como o de Guaman Poma de Ayala, correspondem a explicagdes andinas anteriores ou a uma recriagéio colonial bascada nas historias das monarquias européias. Isso porque ha indicios que 0 governo do Tahuantinsuyu s do por uma diarquia e, assim, alguns dos incas relacionados sucessivamente nos relatos coloniais teriam. na verdade, governado conjuntamente. Uma das principais defensoras dessa idéia é ROSTWOROWSKI DE DI Maria. Historia del Tahuantinsuyu, 3a, edi¢o, Lima: Instituto de Estudios Peruanos, 1988 (Ilistoria Andina 13) % Tratamos de alguns desses conceitos em outra ocasido: SANTOS, Eduardo Natalino dos. As tradigdes histéricas indigenas diante da conquista ¢ colonizagio da América: transformagdes ¢ continuidades entre nahuas ¢ incas. In: Revista de Histéria. Departamento de Historia, FFLCH-USP. Sao Paulo: Humanitas & Faculdade de Filosofia, Le- tras e Ciéneias Humanas ~ Universidade de S40 Paulo, n°. 150, pp. 157-207, lo. semestre de 2064 41 Eduacde Natal Veremos abaixo que problemas muito semelhantes estéio presentes no entendimento ¢ interpretagao das fontes histéricas nativas coloniais mesoamericanas. Mesoamericanas As historias nativas mesoamericanas coloniais fazem parte de um grande conjunto de manuscritos, formado por escritos mais diversos e numerosos ainda que os andinos. Sao centenas de manuscritos que utilizam dois sistemas de escritura de maneira isolada ou combinada: o pictoglifico, que contou com uma continuidade decrescente até pelo menos 0 final do século XVII, ¢ 0 alfabético.” O principal levantamento ¢ classificagéo dos manuscritos pictoglificos foi realizado por John B. Glass e Donald Robertson e é parte do volume catorze do Handbook of Middle American Indians. Nele, os manuscritos coloniais encontram-se subdivididos segundo 0 maior ou menor grau de relagao com as demandas castelhanas e, também, segundo sua temitica e regitio de procedéncia. Sendo assim, sao divididos e coloniais nativos, patro- cinados por espanh6is ¢ coloniais mistos. A essa classificagao, sobrepée-se duas outras categorizagdes: critos em rituais-calendarios, hist6ricos, genealégicos, cartograficos, cartografico-histé- ricos, econémicos, etnograficos e misceléneas. cgundo a regitio de procedéncia e segundo o tema, que divide os manus- Entre as cinco centenas de manuscritos pictoglificos coloniais catalogados nesse levanta- mento — chamados de cédices coloniais ~, ha desde exemplares com material, formato ¢ temitica tradicionais, relacionados principalmente ao sistema mixteco-nahua, até manus- critos que apresentam fortes influéncias da pintura, da escrita e da encadernagao euro- péias. No primeiro caso estariam cédices como o Borbénico, 0 Tonalamatl Aubin ea Tira de la peregrinacién; no segundo, entre muitos outros, estariam os cédices Magliabechia- no e Vaticano A, que apresenta a classica interagao colonial entre os sistemas pictoglifico e alfabético, como podemos observar na Figura 8, que reproduz uma de suas paginas. © Segundo Lockhart, esses dois sistemas se auto-suportam e competem nos manuscrites coloniais do centro do Méxi- co, mas ha, sem divida, uma progressiva vit6ria do alfabético ¢ 0 conseqlente desaparecimento do pictoglifico, CF. LOCKHART, lames. The nahuas after the conquest. A social and cultural history of the indias of Central Mexico. Sixteenth through eighteenth centuries. Stanford, California: Stanford University Press, 1992. Mais especificamente, em duas sogdes desse Volume: A survey of native Middle American pictorial manuscripts € A census of native Middle American pictorial manuscripts, entre as paginas 3 ¢ 252. Cay matenony ab pls cae ee Figura 8: Articulac&o entre glifos, representagdes figurativas ¢ texto alfabético no Cédice Vaticano A. Introdugéo ¢ explicagdo Ferdinand Anders e Maarten Jansen. Austria: Akademische Druck-und Verlagsanstalt & México: Fondo de Cultura Econdmica, 1996 (Cédices Mexicanos XII). p. 7. & Eduardo Natalino dos Santos Muitos desses cédices coloniais so xiuhamatl (anais), que incorporam, em distintos graus, de- mandas relacionadas aos enfrentamentos e horizontes politicos deste periodo, mesmo quando parecem nao fazé-lo ¢ manter o estilo ¢ a organizagiio tipicos da Mesoamerica. Este é 0 caso, por exemplo, da primeira parte do Cédice Mendoza, que registra a historia mexica desde a fundagiio de México- fenochtitlan com base na conta dos anos; mas, ao fazé-lo, produz uma narrativa “lim- pa” de elementos que poderiam ser considerados idolatricos, pois o manuscrito seria enviado para o rei de Espanha, Alguns dos mais importantes cédices com contetido hist6rico produzidos 1no Periodo Colonial sio: 0 Aubin, a parte final do Vaticano A, 0 Azoytin’. 1, a Tirade la Peregri- nacién, a primeira parte do Mendoza, o Selden, o Becker n°. 2,0 Rolo Selden e a Historia tolteca chichimeca, entre outros. Infelizmente no temos cédices pictoglificos coloniais maias remanes- centes ¢ todos os que foram mencionados servem-se do sistema mixteco-nahua e provém da re- gio do altiplano central mexicano, Oaxaca e Ocidente de México. Entre esses cédices histéricos coloniais mixteco-nahuas, os mais tradicionais est&o sujei- tos aos mesmos problemas de entendimento que os pré-hispdnicos, tratados na segunda parte deste artigo, e que centralmente se relacionam com 0 entendimento da escrita mix- teco-nahua e com a complexa articulag4o entre elementos glificos e figurativos. No caso dos manuscritos hibridos, surge o problema e, ao mesmo tempo, a vantagem adicional da presenga de glosas ou explicagdes grafadas com o alfabeto latino. Vantagem, pois tais glosas e explicages tém sido as grandes “chaves” de decifracao do sistema mixteco- nahua. Problema, pois ao analisar tais manuscritos n&o podemos tomar a relagao entre os dois tipos de textos como uma transcrig&o ou tradu¢do simples, total e pretensamente objetiva. Trata-se de um complexo processo de adaptag4o, sempre pautado por interes- ses institucionais ou pessoais, os quais se vinculam diretamente a demandas politicas e contextos histéricos especificos, sem os quais os contetidos, as selegdes tematicas ¢ os objetivos de produgtio e uso desses manuscritos so ininteligiveis. O mesmo tipo de pro- blema aparece nos escritos alfabéticos, como veremos abaixo. No caso dos textos alfabéticos nativos, o principal balango e proposigdio de classificagio — que também inclui escritos de autoria castelhana que tenham sido fortemente influen- © Em minha dissertagao de mestrado, apresentei casos em que alunos ¢ informantes indigenas dos religiosos eastelhia~ nos que produziram historias sobre a Mesoamerica participavam da produgdo de escritos alfabéticos ou pictogiificos ‘que adaptavam e selecionavam certos conteddos a partir do universo de saberes ¢ registros nativos para satisfazer as demandas missiondrias. Cf. SANTOS, Eduardo Natalino dos. Deuses do México indigena, Estudo comparativo entre narrativas espanholas e nativas. So Paulo, Editora Palas Athena, 2002. ciados pelas tradig¢des de pensamento e escrita locais” — também se encontra no Hand- book of Middle American Indians, em seu volume quinze, e foi composto por Charles Gibson e John B. Glass.” Sao cento e oitenta e oito textos divididos primordialmente por regidio de procedéncia — norte ¢ ocidente do México, México central, terras baixas maias ¢ terras altas maias. Muitos desses textos possuem origem em anais pictoglificos mesoamericanos ¢ em ou- tros tipos de livros nativos de tematica histérica. Algumas dessas histérias nativas co- loniais encontram-se nos seguintes manuscritos: Relacién de Michoacan; Crénica me- xicayotl, de Tezozomoc; Cantares mexicanos; Historia de los mexicanos, de Cristébal de Castillo; Relaciones ¢ Diario, de Chimalpahin Cuauhtlehuanitzin, Cédice Chimal- popoca, composto pela Leyenda de los soles ¢ Anales de Cuauhtitlan;, Relaciones, de Alva Ixtlilxochitl; Historia de los mexicanos por sus pinturas; Histoire du Mechique; Historia de Tlaxcala, de Diego Mufioz Camargo; Primeros memoriales; Cédice matri- tense; Historia tolteca-chichimeca; Ritual de los Bacabs; Libros de Chilam Balam, Crénica de Mani; Relacién de las cosas de Yucatan, de Diego de Landa; Anales de los Cakchiqueles ou Memorial de Sololé; Popol vuh; Titulos de los sefiores de Totonicapan. Quase todos esses manuscritos apresentam uma caracteristica em comum: as formas narrativas e contetidos tradicionais selecionados e transformados pelas demandas poll ticas, adicionavam-se ou sobrepunham-se formas narrativas e tematicas de origem eu- ropéia ¢ crista. E 0 que ocorre, por exemplo, com os titulos primordiais - como os Titu- los de los sefores de Totonicapdn, das terras altas maias —, que evocam a cosmogonia ¢ a histéria local para recolocd-las diante da nova ordem colonial ¢ obter 0 reconheci- mento de direitos de posse de territérios Apesar das enormes particularidades formais ¢ dos contextos de produciio ¢ uso dessas historias nativas coloniais, sejam pictoglificas, alfabéticas ou hibridas, é possivel agrupa- las em dois grandes tipos, os quais, a0 que parece, refletem a existéncia de dois momentos na historia colonial das tradigdes nativas de pensamento ¢ escrita. ™ Como o famoso Cédice Florentino, manuscrito com textos em nahuatl e castelhano € com ilustragdes, produzido na segunda metade do século XVI, no altiplano central mexicano, por Bernardino de Sahagin e por seus alunos ¢ informantes indigenas a partir de informagdes oriundas de diversos outros manuscritos, alguns mais antigos © outros confeccionados por essa mesma equipe de indigenas nabuas. ” Mais especificamente, em duas segdes desse volume: Prose sources in the native historical tradition e A census of native Middle American prose manuscripts in the native historical tradition, entre as péginas 311 ¢ 400. O primeiro tipo é composto pelos manuscritos que recontam a histéria local e, em muitos casos, incorporam os eventos coloniais. Nestes casos, trata-se centralmente de tornar a historia local inteligivel aos estrangeiros, de suprimir alguns dos principais focos de con- frontos politico-ideolégicos — como as antigas ceriménias - e de reafirmar a importancia da histéria local para a manutengdo da posigdo de destaque das elites dirigentes, tanto dentro da sociedade nativa quanto em suas relagdes com as instituigdes castelhanas. Os manuscritos desse grupo, como os cédices Mendoza e Vaticano A, sio predominantemen- te pictoglificos com glosas ou hibridos e foram produzidos, no caso do altiplano central mexicano, principalmente até o tiltimo quartel do século XVI. Em outras regides, de con- {ato menos intenso com as institui¢des e presenca castelhanas, eles continuam a ser feitos por muito mais tempo. O segundo tipo é composto pelos manuscritos que inserem a historia local na historia universal crist& ou as relacionam de modo vigoroso. Nestes casos, parece que nao se trata mais de apenas tornar a historia local inteligivel aos estrangeiros ou de “limpé- la” das supostas idolatrias, mas de reafirmar sua validade — mantendo, por vezes, caracteristicas tipicas dos xiuhamat! mesoamericanos, como a precisa conta dos anos sazonais — no interior de um quadro mais amplo, formado pela historia universal ¢ teleologia de cunho predominantemente cristao. Para isso, paralelamente 4 manuten- ¢do de estruturas narrativas e temas tipicamente mesoamericanos — como as conquis- tas das elites dirigentes de um altepet! sobre outros —, se operam profundas transfor- magées na histéria local, identificando ou relacionando diretamente alguns de seus episédios ou personagens a correspondentes do Velho Mundo — como o diltvio uni- versal, os gigantes do Antigo Testamento e os apéstolos de Cristo. Exemplos desse tipo de histéria, predominantemente alfabéticas, so as obras de Fernando de Alva Axtlilxochitl e de Chimalpahin Cuauhtlehuanitzin, produzidas na passagem do século XVI para o século XVIL”? ® Parece que esses dois tipos de historias nativas coloniais, relacionados a dois momentos distintos na hist6ria das tradi- ‘gdes de pensamento e escrita que as produziram, podem ser relacionados as duas primeiras fases de mudanca propostas por James Lockhart para o idioma nahuat! apés a chegada dos castelhanos. Essas fases seriam: de 1519 a 1540-50, na ual o nahuat! praticamente ndo apresenta mudangas; de 1540-50 a 1640-50, caracterizada pelo uso de termos castetha- ‘nos em uma tinguagem que permanece inalterada em outros aspectos: ¢ de 1640-50 aos dias de hoje, marcada pela in- fluéncia espanhola derivada do bilinguismo, que se relaciona com o ineremento da frequncia e intensidade do contato. Cf. LOCKHART, James. The nahuas after the conquest. A social and cultural history of the indias of Central Mexico, sixteenth through eighteenth centuries. Stastord, California: Stanford University Press, 1992 Apesar dessas profundas transformagées, diversas caracteristicas da tradigao histérica nahua continuaram quase onipresentes em seus registros pictoglificos, alfabéticos ¢ hibri- dos durante o Periodo Colonial: 1 — a utilizagao de um preciso e complexo sistema calen- dario como elemento central na organizagdo intelectual das explicagdes acerca do passa- do; 2 —a localizagao da época atual apés uma seqiiéncia de eras ou idades, cujos inicios ¢ finais teriam sido marcados por criagées ¢ destruigées césmicas parciais; 3 - a centralida- de tematica do altepetl e seus pipiltin nas narrativas acerca do passado mais recente. Dessa forma, essas fontes, especialmente quando comparadas as pré-hispanica ou aos cédices coloniais tradicionais, podem oferecer um rico conjunto de informagdes sobre 0 pensamento histérico nahua e mixteco no Periodo Colonial, seja para compreendermos as continuidades e transformagdes em relagiio aos conceitos e formas de origem pré-hispa- nica ou para entendermos as criagdes nativas deste periodo.” Palavras finais Pudemos ver que alguns dos principais problemas de entendimento e interpretagdo rela- cionados ao grupo que chamamos de fontes histéricas pré-hispanicas figurativas ou de leitura ampla sao: | — 0 desconhecimento do contexto de produgao e uso de muitas dessas representagées, sobretudo das portateis, como vasos ceramicos pintados, esculturas, pe- quenos gravados e outros; 2 — a tendéncia de universalizar ou essencializar significados de determinadas formas ou representagdes, subestimando seu valor em uso, 0 modo de apropriagao dos objetos e dos signos em contextos e situagdes sociais especificos; 3— a projegdo retrospectiva de informagdes oriundas de contextos mais recentes, principal- mente do primeiro século do Perfodo Colonial, a periodos extremamente longinquos da hhistéria pré-hispanica. ‘Vimos também que a esses problemas, no caso do grupo que denominamos de fontes histé- ricas pré-hispdnicas escritas ou de leitura estrita, podem se somar os seguintes: | —a even- tual incompreensao do cédigo e das convengées do sistema escriturario empregado, princi- palmente no caso dos sistemas olmeca, zapoteca e teotihuacano, mas também no caso dos ™ Tratamos de algumas dessas continuidades ¢ transformagdes nas explicagdes histéricas nahuas sobre o passado em SANTOS, Eduardo Natalino os. Calendiirio, cosmografia e cosmogonia nos eédices e textos nahuas do século XV. Tese de doutorado, Orientadora Janice Theadoro da Silva, Sdo Paulo: Departamento de Hist6ria da Faculdade de Filosofia, Letras ¢ Cincias Humanas — Universidade de Sao Paulo, 2005. a7 Eduardo Natalino dos Santo quipos andinos, especificamente no que diz respeito ao possivel registro de informagdes nao-numéricas ou néio-categéricas; 2 —a utilizagao de conceitos de escrita baseados no fun- cionamento dos sistemas fonéticos diante dos escritos mixteco-nahuas e, também, dos maias, o que tem resultado em posturas analiticas negativas ou equivocadas. Vimos ainda que além de todas essas dificuldades, no caso dos registros que denomina- mos fontes histéricas nativas coloniais em textos alfabéticos ou pictaglificos, podem emergir os seguintes problemas: | — a subestimago analitica dos distintos conjuntos de demandas e horizontes politicos que estavam em jogo em cada um dos diferentes momen- tos histéricos do Periodo Colonial; 2 — a dificuldade de separar e compreender, principal- mente no caso andino, a origem dos contetidos e estruturas narrativas dos textos alfabéti- cos, 0 que se deve, entre outros fatores, 4 presenga de profundas transformagdes no processo de adaptagdo de géneros nativos para ndo-nativos ou no processo de trasvase de registros provenientes de sistemas nao-alfabéticos ou de relatos orais para textos alfabéti- cos; 3 —a dificuldade de compreender profundamente as concepgdes andinas e mesoame- ricanas de tempo, espa¢o, transformagao, ancestralidade e outras, as quais desempenham papéis centrais nas explicagSes nativas sobre o proprio passado. Esse conjunto de problemas, enfrentado pelo estudioso que procura analisar essas fontes, relaciona-se diretamente ndo a uma, mas a uma série de disciplinas académicas, muitas das quais agrupadas sob a denominagao de Ciéncias Humanas. Por exemplo, de modo predominante, 0 estudo do contexto de produgao das representagées figurativas pré-his- panicas tem sido tarefa dos arquedlogos, a tentativa de estabelecer significados possiveis para representagdes figurativas tem sido trabalho dos historiadores da arte, a busca de compreensio dos escritos pictoglificos mixteco-nahuas ou maias tem sido empreendida por lingilistas e antropdlogos e o entendimento dos contextos coloniais de transformacaio das escritas mesoamericanas tem ficado a cargo dos historiadores. Sendo assim, a superag&o desse conjunto de problemas dificilmente serd realizada apenas pelos profissionais de uma disciplina. Ela s6 podera vir da proposig&o de estudos ¢ pes- quisas que envolvam as varias disciplinas envolvidas nos estudos dessas fontes. Todas elas, para usar a metéfora que Braudel tornou famosa, so observatérios importantes € distintos, que olham para uma mesma realidade e que produzem fragmentos que nfo se encaixam, pois 0 homem é¢ diferente em cada observatério e quer promover seu setor ao patamar de panorama geral.* A soluedo, ainda seguindo as proposigbes de Braudel, é a construcao de patamares de atuagao comum — como vocabularios conceituais, que ajuda- riam a superar discusses do tipo o que é pi disciplinas? — que embasem pesquisas coletivas, as quais, mais do que usar a disciplina rae 0 que é escrita para cada uma das vizinha para a solugdo de problemas tipicos de uma area, deveriam partir de problemas interdisciplinares, Serfamos capazes ~ historiadores, arquedlogos, lingilistas, antropélo- gos e outros profissionais — de realizar uma pesquisa voltada, por exemplo, a entender as continuidades e transformagées nas explicagdes histéricas dos maias do lucata, desde o século V até o XTX, e 0 seu papel nas petmanéncias e mudangas nos modos como os gru- pos concebem suas identidades étnicas e dispdem suas habitagdes? Muitos sao os obstaculos para a aproximagdo entre as diversas disciplinas que esto envolvidas, ou poderiam se envolver, no estudo e andlise das fontes histéricas nativas pré-hispdnicas e cotoniais. Talvez. eles sejam mais de natureza politico-institucional do que teérica. No entanto, parece que apenas superando-os ¢ que poderemos avangar sig- nificativamente no entendimento das representagdes e escritos que compdem esse con- junto de fontes. Eduardo Natalino dos Santos Departamento de Historia da Faculdade de Filosofia, Letras ¢ Ciéncias Humanas e Centro de Estudos “Mesoamericanos e Andinos da Universidade de S20 Paulo “CL BRAUDEL, Fernand, Histéria ¢ ciéncias sociais. Tradugdo Rui Nazaré. 5*. edigdo, Lisboa: Editorial Presenga, 1986 (Biblioteca de Textos Universitarios, 46).

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