Você está na página 1de 50
Copyright © by Tania Navarro Swain Nnhuma pare desta pubeaso pode sr grade, ‘emaziraiem astnas sevens, xocopace, rwprodiata por melos mecdnsoos ou ous quasaver sem autoizarao prov da oor. ISBN 85-11-00052.6 Prima ecco, Jno de 2000 "1 reimoresséo, 2004 coe wre gett Sara ete ante tie cee ey re recters ecto ore ince acne Daehn cen es (Camara Bratim do nro, SE Brest) 4. Leslanismo L Thu. 1 és, ovate 0206760 Indes per cations sstenstin: ‘.Lesinisme’ Socloga a8 tora brasionse 5.2. us A 22- Tape CEP GISTODTD™ Sta Pao SP FonePac (xt) 190-188 mal: basttnssoctevoloon be ‘wwedtorabrasinea co ncn ere fet Se ane cee Si je la vois, mon coeur Saméte, mes mains tremblent, mes pieds se glacent, une rougeur de feu monte 8 mes joues, mes ‘empes battent dovioureusement. Sie la touche, je deviens fll, mes bras se recissent, mes genoux defailent.[..] Les chansons de Bilis Desert: autefos tere aride, étendue de sable. Actullernent tout endroit qui nest pas habité par des lesbiennes. Couleur: toutes les aimantes émettent une couleur qui leur est propre. Avecles caresses, les embrassements, les basers, cette couleur sort avec violence, se répand et quelquefois expose. ‘Monique Wittig Brouilon pour un dictionnaire des aimantes PEQUENA ADVERTENCIA 'No ano passado comecei um de meus cursos na universida- de escrevendo no quadro a seguinte frase: ‘Minha nica preten- sso & mudar o mundot” Achei graca na perplexidade daqueles rostos jovens, na seriedade de seu olhar. Mas de stbito a brinca- deira revelou a extenséo das tarefas a serem realizadas, a densi- dade do espaco @ ser preenchido. Como sacudir as evidencias, ‘como modificar as representagies, como trazer 0 novo a esque- mas de percepco do mundo galvanizados em estruturas de ver- dadeiro/falso? “Por que 0 passarinho canta, perguntou o cientista louco. “Talver por saber, talvez por pode, talvez por querer, respondeu. (0 10b0-que-sabia-tudo. De feto, o que interessa sto as questdes; as respostas, sempre ambiguas, tem valor transitério, Este texto foi escito em menos de um més fruto de um Jmenso cansaco e da impaciéncia crescente ciante do totaltais ‘mo do senso comum e da arroganca dos paradigmnas, dos mode- los, das esséncias. Déem-me asas. N&o tenho mais tempo para procurar a salda dos labirintos. (Quem estiver esto no cimento de suas certezas no mer- guihe nestas éguas. TaniarAnahita PREFACIO ‘Duas jovens caminham lado a lado e se sentam bem juntas, ‘em um banco da praca, um halo de temura, um clima de roman- ce as erwolve; duas mulheres, 0s cabelos grisalhos, se encontram €¢ se abracam, um brilho no olhar, num sopro de prazer: seriarn amigas? irm&s?, amantes?,lesbicas? ‘Um cima de mistérioe de sléncio envolve as relagbes entre mulheres; quando se owve flar& em vor bana, um ar de despre- 10 0u de espanto. ‘Duas mulheres passeando, jogando, vsjando, se dvertindo: que graca pode haver se elas nao tm 2 quem seduzi, se um colhar masculino ndo thes da presenca e lugar no mundo? Afinal, 0 ‘que podem fazer duas mulheres, que mesmo juntas est2o "soz ‘nhas”? Isso significaria que onde nao existe um homem nao pode. existir emogdo ou prazer, nem mesmo amizade, Neste raciocinio, ‘as mulheres apenas team existincia em dupla com um homer, “mulheres acompanhadas’ Felar de lesbianismo ndo ¢ apenas descrever priticas ou ela~ borar defnigdes; ¢ sobretudo tentar observar como uma certa pratica sexual se insere nes relacdes socizis, como € avaliada, julgeda, denegria, louvada ou silenciada no desenrolar da Histé- tia também colocar questbes relatives & identidade do humano, {2 delimitagao des pessoas dentro de categorias sexuadas — mu- ther e homem — que as condicionam e as enquadiam em modes: de ser, maneiras de senti, de perceber o mundo e asi proprias. e (Oque€ Labia Questionar leva a abrir os horizontes, aprender coisas novas ‘ou mesmo desaprender preconceitos, normas e valores afima- dos pelo senso comum. Se a tradigdo estd presente para falar do lesbianismo como um desvio, uma aberracdo, cabe-nos indagar 0 ‘que ¢ esta tradiggo que faz da iésbica um ser ocuto e abscuro, que Ihe reserva um espaco de penversdo e de desordem num mundo que se quer transparente, definindo os seres humanos fem apenas dois: mulheres e homens. A Historia, esta narrative que recorta a vida e o passado em textos produzdos segundo a percepcio da realidade dos historia- ddores, esconde eignora imensos periodos do vver humano, lumi- na e descreve, analisa e prodama uma order, uma Iégica, nos eventos que, por serem escolhdos, se toriam importantes, Assim, as relagbes socais que escapam aos modelos concebidos 40 marginalizadas, esquecidas ou eliminadas da historiografia, este srende conjunto de histérias que compde a memoria do vvido. sbica,fanchona, sapatéo, parafba, machona, entendida: 0 {ue significam essas palavras? Que tipo de pessoas designam? Para que tipo de relagoes apontam? (© que foo lesbianismo ao longo do tempo, nos poucos frag- ments que nos restam das relagdes das mulheres entre elas? ue foi dito pela Histéra”E,sobretudo, 0 que no foi to? O que é ser lésbica hoje? Teria o lesbianismo algo a ver com o ferinismo? A POLITICA DO ESQUECIMENTO INDI{CIOS E INTERPRETACOES que a Historia nio diz no existiu... Se as mulheres comegaram a sutgir na Historia a partir do feminism, onde se escondem as lésbicas, em que nichos de obs- ‘auridade e silencio se pode encontrSlas? Se a Histéria no fala das relagGes fsicas e emocionais ene as mulheres é porque nao exis- tram? Ou porque sue existénca representa a desestabiizazo e 0 aos na ordem “natura” e“divina” da heterossenialidade dorina- da pelo masculine? O que seria do mundo patrarcl se as mulhe- res dispensassem os homens de suas camas e de seu afeto, se recusassem a “incontomével” parceria masculina e @ reprodugao como defnidoras de suas identidades? ‘Quem diz Historia diz construgio. A partir de indlcios, de ta- ‘905 mais ou menos preciso, de restos mal ou bem conservados, sejam eles figurativos, impressos ou monumentais, abundantes (ou extremamente escassos, um tecdo € urdido e um discurso forjado. Os fragmentos atestam um real vvido que € entretanto transformado er Histbria segundo as interpretagies possiveis em ‘cada 6pca, segundo representagies que constioem o mundo € a experiéncia vivida “4 que é Letbini As fontes e 0 material sdo diversos, tragos apenas de uma realidade efetiva, concreta, porém perdida para sempre em sua integridade. Resttuir a realidade histrica tal como se passou & apenas uma isso perseguida ainde por alguns, herdeiros das “certezas”indiscutveis do século XX. A Histra-ciénci, a Hist6ria- lexatiddo de ftos e datas cede hoje lugar a um fazer constante, a uma tarefa de problematizay, de questionar, de tentar apreender (5 signficados ¢ os valores que orientaram os atos e gests, sen- timentos e paixdes que atravessaram o viver humano. Divididos em classes ou grupos, analisados sob uma ética econdmica,religiosa ou “natura” 0s seres humanos foram sen- do categorizados em faitas etrias, cor de pel, altura, peso, for- ‘2, intelgencia, sexo bioldgic, nascimento, sexvalidade. O mo- delo era a civlizac3o ocidental,a referencia principal o homem, branco, heterossexval. Mas essas dvisbes e combinagies nem sempre foram iguais, "nem sempre frem binsias do tipo beo/feo, berv/ma certo/erado,, ‘Rormal/anorral branco/nego, mulher/homem. Os citéios também, se modiicam e as dassfcages ehierarquias mudam de sentido com, ‘0 passardotempo, em lugrese esparos diversas. A Hist, dona do tempo, esqueceu que tempo signa transformagées, esqueceu a ropa histra para trasar um sé perf das relagdes humanas. ‘As Géncias humanes, sicas ou bol6gicas, como qualquer ai- vidade humana, sofrem, em sua apreenséo da realidade, filtro das representacoes soca, das imagens tradicionas, dos papéis € lugares designados 8s pessoas e as cosas, da importinciaatibuida 2 certos atos ou a alguns fatos. Percebe-se hoje que o discurso cientfico est wo impregnado de valores e preconceitos quanto 0 sns0 comum mais near Tints Naver Siain 5 ‘Assim, 0 que se sabe da Histria da humanidade depende de certa racionalidade impressa aos fatos, € uma histéria, uma narracdo cujas conexdes s&0 aritrétas. Isso significa que os olhos véem 0 que querem e podem ver através de uma “politica de esquecimento”: apaga-se ou se destr6i o que ndo interessa & moral, ‘8s conviogbes, aos costumes, 8 permanéncia de tradiqdes e valo- tes que so dominantes em determineda época. Dessa maneira, por exemplo, a sexualidade pode ser um sjeito-tabu ou uma prdtica entre outras na vida dos povos; € stéria cientifica, de cunho moral, elemento organizador do so- _{cal, ou apenas um relacionamento eventual entre pessoas, cujo sexo biolbgico nao é determinante. IMesmo tentando despojar-se de seus preconceitos e mode- los, centistas de todas os campos disciplinaresiluminarn ou des- tacam o que thes parece justo, certo, evidente, o que hes parece digno de importéncia, de andlse, Toda evidencia, porém, é uma armadiha, na medida em que é naturaizado 0 que se deve ques- tionar. Esta seria a tarefa cieifca: desvrtuar as evidéncas, tar delas a inocencia da convicrio e da certeza para se embrenhar na floresta de sentidos que ciaram a condiggo humana e que fize- ram de prétcas socioculturas modelos defntivos de ser. Diga-me teu sexo, eu te direi teu género Mase o lesbianism? Enquanto forma de relaconarnento, 22 denorinagao @o julgamento moral que a acompanha esto nse tidos na perspectva de uma histtia que se quer universal mas que ‘em suas narratvas aponta para a parcialdade de sua construcso. “As representacBes soci, imagens que nos s3otransmitidas — desde 0 aprendizado da linguagem, estabelecem para cada mo- mento vivido em espacos e tempos diversos uma histéria, uma forma de telacionamento entre os seres; no caso do Ocidente, a, afetvas; nfo para compensar a auséncia ou ointeresse imi- tado dos mardos, mas por desejos e pulsdes talvez ambivalentes, talver exclusivos. Nada se diz Sobre essas mulheres, como se acei- {assem passivamente todas as imposiqOes, como se nao tivessem impulsose paixdes, como se nao sentissem amore é¢io, como se estivessem também excludas dos sentimentos humanos pelo sim- ples fto de serem mulheres Para os atenienses as mulheres eram ‘eres infeiores que nao podiam ascender ao nobre sentimento do ‘amor; seus amores erem, portanto, insignifcantes. A Histéria, em seu siléncio sobre elas, crrobore essa visio. AA Histria no fala e um siéncio de chumbo recai sobre as relagbes entre as mulheres. Mas no préprio mundo grego os indicios ‘mostram uma outa realdade: em Esparta os homens e as mulhe- res eram separados, as mulheres partcipavam da vide da cidade, Proticavam esportes etreinavam lutas armadas, estando longe da “Tania Nev Sain 9 clausura e da exclusdo que exstia er Atenas. A reprocucgo era um negicio de Estado que se encarregava de geil, jd que mulheres € homens vivian separadamente (Paste, 1987: 81). Mas de Esparta no temos muitos dados, assim como de Tebas ou Siracusa; sabemos apenas indiretamente, pelas obser- vagbes dos atenienses, que as mulheres nessas cidades dispu- rnham de liberdade, de direitos, de acesso ao saber e & arte. Em. eta fla-se de matiarcado, e as amazonas estdo presentes em ‘um nimero considerével de autores gregos dassicos. Plato no hesitou em considerar Safo de Lesbos @ décma musa e, se 0 deus maximo dos gregos, Zeus, era 0 primeira a se interessar pelos jovens adolescentes, vé-se que a heterossenualidade era ‘apenas obrigagao — dever do cidadio ~ ou eventualidade. Nao a ‘norma, No Ocidentecristéo, porém, aos poucos @ homossexuali- dade masculina foi sendo banida e considerada crime; e a ho- rmossenualidade das mulheres desaparece da ordem do discurso., Nao sfela, logo, nao existe. De tal forma que no século XVI a Inquisgdo, par julgar mulheres acusadas de prticas hommosse~ 2uais, nao dispunha de uma palava com a qual nomedas: era chamadas de “sodomitas”. sso extremamentesignificatvo, pois 220 nomearcria-se uma imagem, cria-se um pessonagem no ima ginrio social. As mulheres homossenuais nao titham direito a um home, logo, 8 existencia, ‘Quando se pensa a bistéria com inquietacio, com um olhiar que busca 0 possivel e nBo apenas a mondtona repeticao do -Mesmo, de uma suposta natureza imutéve, as proprias questtes abrem horzontes inexplorados. Assim, as verdades absolutas de antigamente hoje néo passam de especulagtes arbtrrias. Dessa forma, como pensar as sociedades humanas dentro de modelos, — » Oquet Lesbian Linicos, baseados em apenas uma caracteritica, 0 sexo biol6gico € a reprodugio? Como restringir as préprias manifestacbes de sewvalidade a um 56 modelo, cuasjustficatvas sao moras, e por isso transitrias e mutaveis? Como pensar 40 ou 50 mil anos de vestigios humanos de ‘manera uniforme senéo a pati de crencas e valores contextuais? Por que as propria defines dos seres humanos no seriam ou- tras que o inevitdvel mulher/homem? A cor dos olhos,a quantida- de de pelos, a espessura do sangue, a habilidade attistica e manual, ‘ saber das plantas e dos seres, a idade, a intuicéo, a corpuléncia, ‘opgbes infinitas quanto & organizaclo social. E por que sempre a dlivisdo bindria, por que sempre a suposico de hierarquias? Pode- ‘se mesmo indagar se a senvalidade teria, a0 longo da historia hur ‘mana, a mesma importanca que he & deda hoje. AS antropdlogas feminists tém mostrado a diversidade de ‘configuracdes sociais, mesmo na determinagao do sexo biol6gi- co. Em algumas culturas, 0 sexo da ctianca é definido pelo nome ‘que Ihe é dado, de um parente homem ou mulher, e mais tarde ela decide 0 que vai ser, segundo sua preferéndia, Ente os Indios braslevos & época do Descobrimento, segundo o relato dos pr- meios colonizadores, como Gandavo, havia aqueles eyo sexo bioligico era ferinino mas que escolhiam o papel socal e sexsal masculino, estabelecendo-se como tale realizando as tarefas do ‘grupo escothido. Pouquissimos autores apontaram essa paticularidade e, quan do. fizeram, como Florestan Fernandes, foi pare emitr uma apre~

Você também pode gostar