Escolar Documentos
Profissional Documentos
Cultura Documentos
2
MAGAZINE DE FICÇÃO CIENTÍFICA
N0 10 - JANEIRO DE 1971
CONTOS ESTRANGEIROS
CONTO BRASILEIRO
CIÊNCIA
Magazine de Ficção Científica é a edição brasileira de “The Magazine of Fantasy and Sci-
ence Fiction” — Copyright © Mercury Press, Inc., New York. É publicada mensalmente pela
Revista do Globo S. A.
3
4
A GAROTA COM OLHOS DE 100°
Ron Webb
10
ENCONTRO EM LANKHMAR
Fritz Leiber
11
de confiança, contratados da Irmandade dos Assassinos para esta noite,
um bem na frente como vanguarda, os outros dois na retaguarda, como
principal força de ataque.
Como se tudo isso não bastasse para fazer Slevyas e Fissif sentirem-
se seguros e serenos, andava silenciosamente ao seu lado, na sombra do
meio-fio, uma pequena figura disforme e um tanto cabeçuda, que poderia
ser um cachorro pequenino, ou algum gato de tamanho abaixo do normal,
ou um rato muito grande.
Em verdade, esta última guarda não era totalmente por si só uma
segurança. Fissif adiantou-se para murmurar no grande lóbulo da orelha
de Slevyas:
— Que o diabo me carregue, se me agrada ser seguido por este
demônio de Hristomilo, não importa a segurança que possa nos oferecer.
O pior é que Krovas tenha contratado ou se deixado convencer a contratar
um feiticeiro da mais dúbia, senão terrível reputação e aspecto, mas que...
— Cale a boca! — Slevyas cochichou ainda mais baixo.
Fissif obedeceu dando de ombros, preocupado em lançar olhares
atentos para os lados e principalmente à frente.
Um pouco além, nesta direção, de fato exatamente perto da Rua
do Ouro, a da Moeda era atravessada por uma passagem fechada de dois
andares, ligando os dois edifícios que constituíam os prédios dos famosos
escultores Rokkermas e Slaarg. Na fachada da casa havia pórticos muito
rasos, sustentados por pilares desnecessariamente largos de forma e de-
coração variadas, mais vistosos do que membros estruturais.
Exatamente debaixo da galeria, ouviram dois baixos e breves as-
sobios, um sinal do bandido dianteiro, avisando que inspecionara aquela
área contra o perigo de emboscada, não descobrira nada suspeito e que a
Rua do Ouro estava livre.
Fissif não estava inteiramente satisfeito com o sinal de segurança.
Para dizer a verdade, o ladrão gordo preferia ser apreensivo e mesmo me-
droso, ao menos até certo ponto. Perscrutou, então, mais atentamente,
através da fina e escura neblina, as fachadas e as Saliências de Rokkermas
e Slaarg.
Deste lado, a galeria possuía quatro janelinhas, entre cada uma
delas havia três nichos, nos quais se levantavam — outros ornamentos
— três estátuas de gêsso de tamanho natural, um pouco corroídas pelo
tempo e manchadas de variados tons de cinza escuro, por muitos anos de
névoa. Quando se aproximava da casa de Jengao, antes do roubo, Fissif
as tinha notado. Agora, parecia-lhe que a estátua da direita mudara in-
12
definivelmente. Era a de um homem de estatura média, vestindo capote
e capuz, olhando fixamente para baixo com os braços cruzados e aspecto
atento. Não, não completamente indefinível — a estátua era agora de um
cinza-escuro mais uniforme, o capote, o capuz e o rosto, supôs; as feições
pareciam um poucp mais aguçadas e quase poderia jurar que ela diminu-
íra um pouco.
Logo abaixo dos nichos, além disso, havia um entulho cinza e bran-
co que não se recordava de ter visto antes. Esforçou-se para se lembrar
se durante a excitação do roubo, a parte vigilante de sua mente teria re-
gistrado um estrondo distante. Agora acreditava que sim. Sua rápida ima-
ginação representou a possibilidade de haver um buraco atrás de cada
estátua, através da qual fosse possível, por meio de um forte empurrão,
fazê-las cair em cima dos passantes, êle e Slevyas especificamente. Ima-
ginou também, que a estátua da direita tivesse sido quebrada, quando
testavam o estratagema, e substituída por outra quase igual.
Vigiaria atentamente todas as estátuas enquanto êle e Slevyas pas-
savam por baixo. Seria fácil escapar se uma começasse a balançar. Deveria
puxar Slevyas, desviando-o do perigo, quando isto acontecesse? Era algo
sobre o que pensar.
Sua atenção inquieta fixou-se em seguida nos pórticos e pilares.
Os últimos, grossos e com quase três jardas de altura, colocados em in-
tervalos irregulares como se fossem de formas e ranhuras desiguais, pois
Rokkermas e Slaarg eram muito modernos e salientavam o aspecto inaca-
bado, fortuito e inesperado.
Entretanto, parecia a Fissif que havia uma intensificação de impre-
vistos, especialmente um pilar a mais sob os pórticos do que quando êle
passara por ali pela última vez. Não podia ter certeza de qual era o novo
pilar mas estava quase certo que havia um.
A galeria estava perto, agora. Fissif olhou de relance para a estátua
da direita e notou outras diferenças. Embora menor, parecia mais firme-
mente ereta e a carranca gravada no rosto cinza-escuro, não era propria-
mente de meditação filosófica mas de desprezo arrogante, consciente de
sua inteligência e vaidade.
Contudo, nenhuma das três estátuas tombou, enquanto êle e Sle-
vyas passavam sob o viaduto. Entretanto algo aconteceu a Fissif naquele
instante.
Um dos pilares piscou o olho para êle.
Gray Mouser fêz a volta no nicho da direita, saltou e segurou-se na
cornija, silenciosamente pulou para o telhado baixo e cruzou-o precisa-
13
mente a tempo de ver os dois ladrões aparecerem em baixo.
Sem hesitação, saltou, o corpo reto como um dardo, as solas de
suas botas de pele de rato visando os omoplatas gordos do ladrão mais
baixo embora adiantando-se um pouco, levando em conta a jarda que lhe
faltava transpor enquanto Mouser impelia-se para êle.
No instante em que este pulou, o ladrão alto lançou um olhar por
cima dos ombros e sacou uma faca, não fazendo entretanto nenhum mo-
vimento para empurrar ou puxar Fissif para fora do caminho do projétil
humano que com velocidade vinha em sua direção.
Manobrou com mais rapidez do que alguém pudesse imaginar, Fis-
sif voltou-se e gritou fracamente:
— Slivikin!
As botas de pele de rato apanharam-no exatamente no ventre.
Era como aterrissar numa grande almofada. Desviando-se do ataque de
Slevyas, Mouser virou uma cambalhota para frente e como o crânio do
ladrão gordo batesse numa pedra com um pesado bong, voltou-se com a
espada na mão, pronto para golpear o ladrão alto.
Mas não houve necessidade. Slevyas, os olhos arregalados, estava
caindo também.
Um dos pilares lançara-se para a frente, arrastando um manto vo-
lumoso. Um grande capuz ao resvalar para trás descobriu um rosto jo-
vem emoldurado por longos cabelos. Musculosos braços emergiram das
compridas e largas mangas que tinham sido a parte superior do pilar. Ao
mesmo tempo em que um forte punho, na extremidade de um dos bra-
ços distribuiu a Slevyas um perigoso murro no queixo, deixando-o fora de
combate.
Fafhrd e Gray Mouser encararam-se por sobre os dois ladrões ca-
ídos inconscientemente, prontos para atacar, embora no momento ne-
nhum deles se movesse.
Fafhrd disse:
— Nossos motivos para estar aqui parecem idênticos.
— Parecem? Certamente devem ser! — Mouser respondeu brusca
e arrogantemente, observando seu novo adversário em potencial, que ti-
nha uma cabeça a mais de altura que o ladrão alto.
— O que disse?
— Eu disse: Parecem? Certamente que devem ser!
— Que educado de sua parte! — Fafhrd comentou em tom agra-
dável..
— Educado?— Mouser perguntou com suspeitas, apertando sua
14
espada com mais força.
— Sim, em preocupar-se no auge da ação, com o que dizer exata-
mente — Fafhrd explicou.
Sem deixar Mouser fora do alcance de sua visão, olhou rapidamen-
te para baixo.
Seu olhar atento passava de uma sacola à outra dos ladrões caídos.
Então olhou para Mouser com um sorriso amplo e ingênuo.
— Metade? — sugeriu.
Mouser hesitou, embainhou sua espada e vociferou:
— Negócio fechado!
Ajoelhou-se abruptamente, os dedos na correia da bolsa de Fissif.
— Faça você o saque em Slivikin — indicou.
Era natural supor que ao final o ladrão gordo tivesse gritado o
nome de seu companheiro.
Sem prestar atenção para onde se ajoelhara, Fafhrd observou:
— Aquele... furão que estava Com eles, aonde foi?
— Furão? — Mouser respondeu brevemente. — Era um pequeno
bugio.
— Um bugio — Fafhrd ponderou. — É um macaquinho tropical,
não é? Bem. deve ser. Eu nunca estive no sul, mas tenho a impressão
que...
A silenciosa lança que naquele instante investia contra eles quase
os atingindo, na verdade não os surpreendeu. Ambos inconscientemente
a esperavam.
Os três bandidos caíram em cima deles em ataque conjugado, to-
dos com espadas assestadas para atacar, supondo que os dois assaltantes
estivessem armados no máximo com facas e fossem tão tímidos, em com-
bate, como em geral acontece com ladrões e contra-ladrões.
Entretanto, foram os bandidos que ficaram confusos quando, com
a velocidade de um relâmpago, própria da mocidade, Mouser e Fafhrd
saltaram, desembainharam terríveis e grandes espadas e, de costas um
para o outro, os enfrentaram.
Mouser defendendo-se, desviou-se um pouco de modo que o ata-
que do bandido, vindo da direita, passou raspando por seu lado esquerdo.
Imediatamente revidou o golpe. Seu adversário, recuando desesperada-
mente deu uma volta, defendendo-se do ataque. Com firmeza e vagar, a
ponta da longa e fina espada de Mouser desviou-se, devido à manobra,
com a delicadeza de uma princesa cortejando, então projetou-se para a
frente e um pouco para cima e entrou entre duas lâminas da armadura do
15
bandido, entre duas costelas, e, atravessando o coração, saiu nas costas
como se tudo fosse um bolo macio.
Entrementes, Fafhrd, enfrentando os dois bandidos vindos da es-
querda, varreu fora suas rasteiras investidas com mais força, impedindo
seus golpes de defesa; então desembainhou a espada tão longa como a
de Mouser, mas mais pesada, de maneira que ela golpeou o pescoço de
seu adversário da direita, quase decapitando-o. Recuando com rapidez,
preparou um golpe para o outro.
Mas não foi preciso. Um estreito fio de aço ensangüentado, segui-
do por uma luva cinza e por um braço, brilhou trespassando de trás para
a frente o ultimo bandido, com idêntico golpe que Mouser usara com o
primeiro.
Os dois jovens limparam as espadas. Farhrd esfregou a palma da
mão direita no manto e estendeu-a. Mouser tirou a luva cinzenta da mão
direita e apertou a de Fafhrd. Sem trocar palavras, ajoelharam-se e termi-
naram de saquear os dois ladrões inconscientes, apanhando as bolsinhas
de jóias. Com uma toalha embebida em óleo e outra seca, Mouser limpou
cuidadosamente o rosto da mistura de graxa e fuligem com que o tinha
escurecido.
Após um olhar inquisidor na direção leste da parte de Mouser e um
aceno de cabeça de Fafhrd, caminharam rapidamente na mesma direção
em que iam antes Slevyas, Fissif e sua escolta.
Depois de um reconhecimento na Rua do Ouro, atravessaram-na e,
a um gesto convidativo de Fafhrd, continuaram a leste na Rua da Moeda.
— Minha mulher está na Lampreia Dourada — exclamou.
—Vamos apanhá-la e levá-la à minha casa para conhecer minha
pequena — sugeriu Mouser.
— Casa? — Fafhrd inquiriu polidamente.
—. Beco Escuro — Mouser explicou.
— Enguia Prateada?
— Atrás. Tomaremos algumas bebidas.
— Apanharei um jarro. Nunca é demais.
— É verdade. Concordo.
Fafhrd parou, novamente limpou a mão direita no manto e esten-
deu-a.
— Chamo-me Fafhrd.
De novo Mouser apertou-a.
— Gray Mouser — disse um tanto acintosamente, como se desa-
fiasse qualqurer um que escarnecesse de sua alcunha.
16
— Gray Mouser, hem? — Fafhrd observou. — Bem, você matou um
par de ratos esta noite*.
— Isso é verdade — Mouser empertigou-se e jogou a cabeça para
trás. Então, fazendo um cômico trejeito com o nariz e a boca, admitiu:
— Bem, você pegaria seu segundo homem facilmente. Eu o roubei
de você para demonstrar minha destreza. Além disso, estava excitado.
Fafhrd deu uma risada.
— É a mim que você vem dizer isso? Como pensa que me sentia?
Uma vez mais Mouser fêz um trejeito com a boca. Que diabo tinha
este companheiro grandalhão que o desarmava de seu habitual sarcas-
mo?
Fafhrd perguntava-se o mesmo. Sempre desconfiava de homens
baixos, sabendo que sua altura despertaria ciúme imediato. Mas este ra-
pazinho inteligente era de algum modo uma exceção. Implorou a Kos que
Vlana gostasse dele.
Na esquina nordeste da Rua da Moeda e das Prostitutas, uma to-
cha trêmula, protegida por uma larga espiral dourada, lançava para o alto
um cone de luz na espessa e negra neblina noturna e outro cone, em
direção ao chão de pedras em frente à porta da taberna.
Iluminada pelo segundo cone de luz, caminhava Vlana, linda, num
vestido justo de veludo preto e meias vermelhas, tendo como únicos ador-
nos um punhal com cabo e bainha de prata e uma bolsa negra trabalhada
em prata, ambos num cinto preto liso. Fafhrd apresentou Gray Mouser,
que comportou-se com uma cortesia quase lisonjeira. Vlana estudou-o
com petulância e então esboçou um sorriso.
Fafhrd abriu sob a luz da tocha, a bolsa que tirara do ladrão alto.
Vlana examinou o conteúdo, estreitou-o nos seus braços e beijou-o sono-
ramente. Colocou então as jóias na bolsa de seu cinto. Após, disse:
— Olha, vou comprar um jarro. Conte a ela o que aconteceu, Mou-
ser.
Quando saiu da Lampreia Dourada, levava quatro jarros com o bra-
ço esquerdo e limpava os lábios com as costas da mão direita. Vlana fêz
uma carranca que êle respondeu com um trejeito. Mouser estalou os lá-
bios ao ver as garrafas. Continuaram a leste na Rua da Moeda.
Fafhrd percebeu que a carranca de Vlana era por algo mais do que
os jarros e a perspectiva de algazarras de homens estupidamente embria-
*O autor faz um trocadilho com o nome do personagem: Gray Mouser significa Rato
Cinzento. (N. do Trad.).
17
gados. Mouser com muito tato seguiu à frente.
Quando sua figura parecia na densa neblina, um pouco mais que
uma bolha, Vlana sussurrou com aspereza:
— Tendo dois membros da Sociededade dos Ladrões fora de com-
bate, você não cortou suas gargantas?
— Matamos três bandidos — Fafhrd protestou, desculpando-se.
Minha disputa não é com o Sindicato dos Assassinos, mas com esta
abominável sociedade. Você me jurou que sempre que tivesse a oportu-
nidade.. .
— Vlana! Não poderia deixar Gray Mouser supor que sou um con-
tra-ladrão amador, consumido pela histeria e desejo de vingança.
— Bem, êle disse que teria cortado suas gargantas num piscar de
olhos, se soubesse que eu assim o desejava.
— Estava somente apoiando-a por cortesia.
— Talvez sim, talvez não. Mas você sabia e não o fêz.
— Vlana, cale-se.
A carranca transformou-se num olhar irado; então, de repente, ela
riu abertamente, contraiu-se num sorriso como se fosse gritar, controlou-
se e sorriu de maneira mais amável.
— Perdoe-me, querido — disse. — Algumas vezes você deve pen-
sar que estou ficando louca e às vezes eu mesma acredito.
— Bem, não — disse-lhe rapidamente. — Pense nas jóias que con-
seguimos e comporte-se com nossos novos amigos. Tome um pouco de
vinho e relaxe-se. Pretendo divertir-me esta noite. Eu o mereço.
Ela assentiu e apertou seu braço, confortante e sensata. Apressa-
ram-se para alcançar a fraca figura à frente.
Mouser, dobrando a esquina, conduziu-os numa meia quadra ao
norte, na Rua das Pechinchas, onde um caminho mais estreito ia a leste
novamente. A névoa preta parecia sólida.
— Beco Escuro — Mouser explicou.
Vlana disse:
— Escuro é fraco demais — uma palavra demasiado transparente
para o beco esta noite — com um riso perturbado onde ainda havia traços
de histeria e que terminou num acesso de tosse sufocante.
Disse ofegante:
— Maldita neblina de Lankhmar! Que inferno de cidade!
— Estamos nas proximidades do grande Pântano Salgado — Fafhrd
explicou. .
Em verdade tinha razão na observação. Com o Rio Hlal correndo
18
entre o Pântano e o Mar Interior, os campos de trigo a sudoeste, irrigados
por canais alimentados pelo Hlal, e as inumeráveis fumaças, Lankhmar
tornava-se a presa fácil de nevoeiros e neblinas de fuligem.
Cerca de meio caminho da Rua do Carroceiro, na parte norte do
beco, uma taberna emergia da escuridão. Indicando-a, pendia do alto
uma mola em espiral de metal pálido, crestado pela fuligem.
Passaram por baixo dela e pela frente de uma porta com cortinas
de couro enegrecido, de onde se derramava barulho, luzes trêmulas de
tochas e cheiro de bebida. Logo além da Enguia Prateada, Mouser condu-
ziu-os através de uma passagem escura a leste. Tiveram que andar em fila
indiana, sentindo o caminho áspero, tijolos lodosos e enevoados.
— Cuidado com o atoleiro — preveniu Mouser — êle é fundo como
o Mar Exterior.
A passagem alargou-se. Refletia as luzes das tochas que se infiltra-
vam através da névoa escura, permitindo-lhes perceber à sua volta so-
mente vagos contornos.
Apertado logo atrás da Enguia Prateada, surgiu um prédio, som-
brio e frágil, de madeira escura e antiga e tijolos enegrecidos. Fracas luzes
amarelas brilhavam ao redor e atrás de três janelas gradeadas, no sótão
do quarto andar, sob o telhado esburacado de goteiras. Mais adiante ha-
via uma estreita travessa.
— Travessa dos Ossos — indicou-lhes Mouser.
Agora Vlana e Fafhrd poderiam ver uma estreita escadaria externa
de madeira, sem corrimão, íngreme, embora gasta, que conduzia ao sótão
iluminado. Mouser aliviou Fafhrd dos jarros e subiu carregando-os com
rapidez.
— Sigam-me quando eu chegar em cima — voltou-se dizendo. —
Penso que suportará seu peso, Fafhrd, mas é melhor um de cada vez.
Fafhrd empurrou gentilmente Vlana para diante. Ela subiu até
Mouser que agora permanecia em em frente a uma porta aberta, através
da qual fluía uma luz amarela perdendo-se rápida na noite brumosa. Re-
pousava a mão suavemente num grande e inútil lampião de ferro forjado,
fixo na pedra da parede externa. Curvou-se para o lado. Vlana entrou.
Fafhrd seguiu-os, colocando os pés o mais perto possível da pa-
rede, as mãos prontas para apoiar-se. A escada inteira rangeu agouren-
tamente e cada degrau cedeu um pouco, oprimido com o peso. Próximo
ao topo, um degrau cedeu com o estalo surdo de madeira podre. Com o
máximo cuidado dividiu seu peso, as mãos e os joelhos pelo maior núme-
ro de degraus que pudesse alcançar e praguejou.
19
— Não se queixe, as garrafas estão salvas — disse Mouser alegre-
mente.
Fafhrd arrastou-se o resto do caminho e só levantou-se à entrada
da porta. Quando aí chegou, quase sufocou de surpresa.
Era como limpar o azinhavre de um anel de cobre barato, surgindo
um luminoso diamante de primeira categoria.
Ricas tapeçarias, algumas com bordados cintilantes de ouro e prata
cobriam as paredes, exceto as janelas, cujas venezianas eram douradas.
Tecidos semelhantes, porém escuros, escondiam o teto baixo, represen-
tando uma abóbada celeste e magnífica onde os salpicados de ouro e pra-
ta pareciam estrelas.
Espalhadas pela sala, uma grande quantidade de almofadas e me-
sas baixas, onde ardiam numerosas velas. Sobre estantes, contra as pa-
redes, havia uma grande reserva de velas enfileiradas cuidadosamente
como pequenos cepos, numerosos rolos de pergaminhos, jarros, garrafas
e caixas esmaltadas.
Um pequeno fogão de metal preto e com um braseiro ornamenta-
do, estava colocado em uma grande lareira. Ao lado do fogão, havia tam-
bém uma bem organizada pirâmide de tochas finas e resinosas, com as
pontas esfiapadas, acendedores e outras pirâmides de pequenos cepos e
rutilantes e negros carvões.
Num estrado baixo ao pé dai lareira havia um sofá revestido de
brocado dourado. Nele, estava sentada uma linda moça magra, pálida e
delicada, usando um vestido de grossa seda violeta, trabalhado em prata
e acinturado com uma corrente prateada. Grampos de prata com pontas
de ametistas prendiam seu cabelo negro no alto da cabeça, seus ombros
envoltos por um manto de pele de serpente, branco como a neve. Ela
inclinou-se para diante, com forçada graciosidade, estendendo a trêmula
e pequena mão branca em direção a Vlana, que se ajoelhou à sua fren-
te, e, então, gentilmente tomou-lhe a mão, curvando á cabeça sobre ela,
seus cabelos castanhos e lisos formando um dossel, e apertou-a contra
os lábios.
Fafhrd estava satisfeito de ver sua mulher representando apropria-
damente esta situação que, embora agradável, era absolutamente bizarra.
Olhando para a longa perna de Vlana, com meias vermelhas, es-
tendida para trás, pois ela ajoelhara-se sobre a outra, notou que o chão
estava todo atapetado — duas, três e até quatro camadas com espessos,
densos e bem tramados tapetes de vários matizes da mais fina qualidade,
importados das terras do Leste. Sem se dar conta seu polegar apontava
20
para Gray Mouser.
— Você é o Ladrão de Tapetes! — exclamou. — Você é o Recru-
tador de Tapêtes! — e o Corsário das Velas! — continuou, referindo-se a
duas séries de roubos insolúveis que estavam na boca de toda Lahkhmar
quando êle e Vlana haviam chegado, há uma lua atrás.
Mouser deu de ombros, impassível, encarando Fafhrd; então re-
pentinamente fêz um trejeito, os olhos apertados piscaram e Mouser ir-
rompeu numa dança inesperada que o levou pela sala, gingando num tur-
bilhão até Fafhrd. Com destreza puxou o imenso manto de capuz e longas
mangas dos ombros encurvados de Fafhrd, estendendo-o, dobrando-o
cuidadosamente, colocando-o sob uma almofada.
A garota de violeta nervosamente bateu de leve com a mão livre
no brocado de ouro ao seu lado, onde Vlana sentou-se cuidadosamente,
não muito perto, e as duas mulheres conversaram em voz baixa, Vlana
tomou a liderança.
Mouser despiu sua capa de capus cinzenta e a colocou ao lado da
de Fafhrd. Então desafivelaram as espadas e Mouser colocou-as por cima
do manto e da capa que estavam dobrados.
Sem aquelas armas pesadas e os volumosos mantos, pareceram
repentinamente dois jovens, ambos com rostos claros e bem barbeados,
esbeltos, apesar dos protuberantes músculos dos braços e das pernas de
Fafhrd. Este, com longo cabelo vermelho-dourado caindo sobre os om-
bros de Mouser com o cabelo preto cortado em franja, o primeiro com
túnica de couro marrom trabalhada em fios de cobre, e o outro vestindo
uma jaqueta de seda cinza rüsticamente tecida.
Sorriram-se. A sensação de sua transformação em garotos, levou-
os subitamente a sorrir embaraçados. Mouser limpou a garganta e, in-
clinando-se um pouco, mas olhando para Fafhrd, estendeu o braço com os
dedos frouxamente abertos na direção do sofá dourado e disse com um
balbuceio preliminar, ainda que bastante polido:
— Fafhrd, meu bom amigo, permita-me apresentá-lo à minha prin-
cesa. Ivrian, minha querida, por favor receba Fafhrd afàvelmente, pois
esta noite lutamos frente a frente contra três e vencemos.
Fafhrd adiantou-se parando um pouco, a coroa de cabelos verme-
lho-dourado roçando a abôbada estrelada, e ajoelhou-se em frente de
Ivrian exatamente como Vlana tinha feito. A delgada mão estendida para
êle parecia firme agora, mas ainda se agitava com um tremor que desco-
briu logo que a tomou. Tocou-a como se ela fosse de sedosa teia branca
de aranha, somente roçando-a com os lábios e ainda a sentiu nervosa
21
quando murmurou alguns cumprimentos.
Não sabia se Mouser estava tão ou mais nervoso que êle, implo-
rando com fervor que Ivrian não exagerasse em seu papel de princesa e
desprezasse seus convidados, ou desfalecesse em tremores ou lágrimas,
pois Fafhrd e Vlana eram literalmente os primeiros seres que Mouser
trouxera para o luxuoso ninho que criara para sua bem-amada aristocrata
— exceto os dois adoráveis pássaros que pulavam numa gaiola prateada,
pendurada no outro lado da lareira, em frente ao trono.
A despeito de sua astúcia e cinismo jamais ocorrera a Mouser que
era principalmente seu encanto e não a absurda ternura de Ivrian que a
estava transformando em boneca.
Mas agora, como Ivrian finalmente, sorrisse, Mouser relaxou-se
com alívio, trouxe duas taças e duas canecas de prata, selecionou cui-
dadosamente uma garrafa de vinho tinto, e então, com uma careta para
Fafhrd desarrolhou-a, em vez de um dos jarros que o Nortista trouxera,
encheu os quatro rutilantes recipientes e sorriu para todos.
Desta vez sem hesitação, brindou:
— Ao meu maior roubo em Lankhmar, que, queira ou não, devo
repartir a metade com — não pôde resistir ao impulso repentino — este
grande bárbaro cabeludo aqui presente! — E bebeu um quarto da sua
caneca, do agradável e ardente vinho adicionado de conhaque.
Fafhrd bebeu de um sorvo a metade, então retribuiu:
— Ao mais presumido, polido e educado rapazinho com quem já
me dignei a dividir uma pilhagem — bebeu de um trago o resto, e com
um amplo sorriso, mostrando os dentes brancos, estendeu a caneca vazia.
Mouser serviu-o novamente, encheu sua própria caneca, largou-a
para ir até Ivrian e derramou em seu regaço as gemas da bolsinha que
tinha roubado de Fissif. Elas brilharam em seu novo e invejável local como
uma pequena poça refletindo as cores do arco-íris.
Ivrian recuou trêmula, quase deixando-as cair, mas Vlana segurou
seu braço gentilmente, firmando-o. Vlana aproximou de Ivrian uma caixa
esmaltada de azul incrustada de prata, e as duas passaram as jóias do colo
de Ivrian para o interior de veludo azul da caixa. Então conversaram.
Fafhrd bebendo a segunda caneca em goles menores, relaxando-se
e começou a perceber o ambiente de modo mais profundo. O maravilho-
so deslumbramento da primeira visão desta sala majestosa, situada numa
zona de cortiço, desvaneceu-se e êle começou a notar a fraqueza e a po-
dridão sob a magnífica cobertura.
Pedaços de madeira pretos e podres apareciam por toda parte en-
22
tre as cortinas, desprendendo antigos e nauseantes odores. Todo o chão
cedia sob os tapetes chegando a um palmo no centro da sala. Filêtes de
neblina noturna entravam através das venezianas, formando pretos ara-
bescos evanescentes contra o dourado. As pedras da grande lareira ti-
nham sido esfregadas e envernizadas, embora grande parte da argamassa
tivesse caído; algumas estavam soltas, outras faltando completamente.
Mouser estivera preparando um fogo no fogão. Agora empurrou,
em todas as direções, o acendedor em chama amarela que acendera no
braseiro, bateu a portinhola preta, fechando-a sobre as chamas que su-
biam e voltou para a sala.
Como se tivesse lido os pensamentos de Fafhrd, apanhou diversos
cones de incenso, queimou suas pontas no braseiro e espalhou-as pela
sala em resplandescentes taças de bronze. Então calafetou as fendas mais
largas com pedaços de seda, apanhou novamente sua caneca de prata e,
por um momento, lançou a Fafhrd um olhar severo.
Em seguida, sorrindo, levantou a caneca para Fafhrd, que fêz o
mesmo. A necessidade de enchê-las novamente aproximou-se. Movendo
os lábios com dificuldade, Mouser explicou:
— O pai de Ivrian era um duque. Eu o matei. Um homem muito
cruel, também para com sua filha, embora sendo um duque, de modo que
Ivrian é completamente incapaz de prover-se a si mesma. Orgulho-me em
mantê-la em melhor situação do que seu pai lhe proporcionava com todos
os seus criados.
Fafhrd assentiu e disse amigavelmente:
— Com certeza você roubou também um encantador palacete.
Do divã Vlana chamou, com sua voz rouca de contralto:
— Gray Mouser, sua princesa gostaria de ouvir uma descrição da
aventura desta noite. Poderíamos ter mais vinho?
— Sim, por favor, Mouser — disse Ivrian.
Mouser olhou para Fafhrd, esperando o sinal de partida, e lançou-
se na estória. Mas primeiro, serviu-as de vinho. Não havia o suficiente
para suas taças, então abriu outro jarro e, depois de um momento de
hesitação, desarroIhou todos três, colocou um junto ao sofá, outro perto
de Fafhrd, agora estendido no tapete macio, e reservou um para si. Ivrian
olhou apreensiva para essa evidência de pesada bebedeira à vista, Vlana
cínica.
Mouser contou satisfatoriamente, a estória do contra-roubo, re-
presentando-a em parte, com - as mais artísticas imagens — o macaqui-
nho que antes de escapar subira no seu corpo e tentara arrancar-lhe os
23
olhos — e só foi interrompido duas vezes.
Quando dizia: — Então, com um silvo e um golpe, desembainhei
Escalpelo — Fafhrd observou:
— Oh! Então você apelida sua espada como a você mesmo?
Mouser levantou-se:
— Sim, e chamo meu punhal de Garra de Gato. Alguma objeção?
Parece-lhe infantilidade?
— Não, de maneira alguma. Chamo minha própria espada de Vara
Cinzenta. Por favor, continue.
E quando mencionou o animal de natureza indefinida que pulava
junto dos ladrões (e que atacara seus olhos). Ivrian empalideceu e disse
horrorizada:
— Mouser! Aquilo parece um demônio de bruxa!
— De feiticeiro — corrigiu Vlana. — aqueles vilões sem entranhas
da Sociedade não mantém relações com mulheres, exceto como instru-
mentos remunerados ou coagidos, de seus apetites. Mas Krovas, seu atual
rei, salienta-se por tomar todas as precauções, e deve, certamente, ter
um feiticeiro a seu serviço.
— Parece-me mais nrovável; isto me deixa angustiado de pavor —
Mouser concordou com um -gourento olhar de espanto e uma voz sinis-
tra, aceitando com avidez toda e qualquer atmosfera de encantamento
pela sua façanha.
Depois, as moças, com olhos briIhantes e ternos, os brindaram por
sua destreza e bravura. Mouser, fazendo uma reverência, os olhos cinti-
lantes, sorriu, então estendeu-se no chão com “um-olhar fatigado limpan-
do a fronte com um pano de seda, e sorveu um grande gole.
Após pedir a permissão de Vlana, Fafhrd contou as aventuras da
fuga de ambos da Esquina Fria — êle de seu clã, ela, de sua companhia
teatral — e de sua jornada para Lahkhmar, onde agora habitavam uma
casa de artistas perto da Praça dos Prazeres Noturnos, Ivrian abraçou-se a
Vlana e, arrepiada, ficou atenta às partes de feitiçaria do conto.
O único fato que êle propositalmente omitira dessa estória foi a
idéia fixa de monstruosa vingança de Vlana contra a Sociedade dos La-
drões que a tinham expulsado de Lankhmar e torturado seus cúmplices
até a morte quando ela tentava roubar, por livre iniciativa na cidade, antes
de se conhecerem. Naturalmente, também não mencionou sua própria
promessa — loucura, pensava agora — de ajudá-la nessa sangrenta aven-
tura.
Quando acabou e recebeu os aplausos, sentiu a garganta seca,
24
apesar de acostumado à bebida, mas quando procurou molhá-la desco-
briu que a caneca e o jarro estavam vazios, embora não sentisse a menor
embriaguez — falando, expelira toda a bebida, pensou, um pouco do ál-
cool escapara em cada palavra ardente que dissera.
Mouser estava em situação semelhante, e também não estava em-
briagado — embora com tendência a pausas misteriosas e olhares vagos
para o infinito antes de responder perguntas ou fazer comentários. Suge-
riu, depois de um olhar absorto especialmente longo, que Fafhrd o acom-
panhasse até a Enguia enquanto adquirisse um novo suprimento.
— Mas ainda resta muito vinho em nosso jarro — Ivrian protestou.
— Ou ao menos um pouco — emendou.
Quando Vlana o sacudiu, pareceu-lhe vazio.
— Além disso, você tem aqui vinho de todas as qualidades.
— Não desta espécie, querida, e a primeira regra é nunca misturá-
las — Mouser explicou, sacudindo um dedo. — Senão torna-se nocivo, na
verdade, embriaga.
— Minha querida, disse Vlana, com simpatia, batendo no pulso de
Ivrian — em um dado momento, em qualquer festa que se preze, todos
os homens que o são em verdade, simplesmente, têm que sair. É extre-
mamente estúpido, mas de sua natureza e não pode ser evitado, acredite-
me.
— Mas Mouser, estou apavorada. O conto de Fafhrd aterrorizou-
me. O seu também — ouvirei este demônio arranhando as venezianas
depois que vocês saírem, sei que ouvirei.
— Queridíssíma — disse Mouser com um pequeno soluço — há
todo o Mar Interior, todo o Reino das Oito Cidades, e ainda todas as Mon-
tanhas Tortuosas com seus picos majestosos entre você e a Esquina Fria
de Fafhrd e seus tolos feiticeiros. Quanto aos demônios, ih! — nada mais
tem sido no mundo que repugnantes, característicos caprichos de velhas
bolorentas e velhos efeminados.
Vlana disse alegremente:
— Deixe esses tolos saírem, minha querida. Teremos a oportunida-
de de uma conversa particular, durante a qual os manteremos afastados
da embriaguez.
Como Ivrian deixara-se persuadir, Mouser e Fafhrd escaparam rapi-
damente, fechando a porta atrás deles, para impedir a entrada da neblina
noturna. As moças então, ouviram seus passos leves descendo a escada.
Enquanto esperavam que os quatro jarros fossem trazidos da ade-
ga da Enguia, os dois novos camaradas encomendaram uma caneca do
25
mesmo vinho forte, e abrigaram-se no canto menos barulhento do longo
balcão da tumultuosa taberna. Habilmente, Mouser deu um pontapé num
rato que mostrava a cabeça e os ombros pretos no buraco de sua toca.
Depois de se terem cumprimentado entusiasticamente por suas
garotas, Fafhrd disse com desconfiança:
— Cá entre nós, você crê que sua doce Ivrian deva ter alguma ra-
zão em sua opinião de que a negra criaturinha que acompanhava Slivikin e
o outro ladrão da Sociedade era um demônio de feiticeiro, ou de qualquer
modo, um astuto animal de estimação de um bruxo treinado para infiltrar-
se e informar desgraças a seu amo ou a Krovas?
Mouser riu levemente.
— Você está vendo fantasmas — pequenas deformações inexplicá-
veis pela lógica — nada mais que isto, caro irmão bárbaro, se me permi-
te falar assim. Como poderia apresentar um útil relatório? Não creio em
animais que falam — exceto papagaios e tais pássaros, que somente...
papagueiam.
— Alô! Você aí atrás do balcão! Onde estão meus jarros? Será que
os ratos comeram o menino que foi buscá-los há dias? Ou simplesmente
morreu de fome procurando na adega? Bem, diga-lhe para andar mais
ligeiro e sirva-nos novamente.
— Não, Fafhrd, mesmo supondo ser o animal direta ou indireta-
mente uma criatura de Krovas, e que tivesse voltado correndo à Casa dos
Ladrões depois de nossa briga, o que lhe poderia dizer? Somente que algo
fracassara no roubo a Jengao.
Fafhrd franziu as sobrancelhas e resmungou obstinadamente:
— Êsse covarde peludo poderia, entretanto, transmitir de algum
modo nosso aspecto aos mestres da Sociedade, que poderiam reconhe-
cer-nos, perseguir-nos e atacar-nos em nossas casas.
— Meu caro amigo — Mouser disse pesarosamente — mais uma
vez imploro sua indulgência, temo que este potente vinho esteja alteran-
do o seu juízo. Se a Sociedade soubesse quem somos ou onde moramos,
teria estado sordidamente em nosso encalço, não há dias e semanas, mas
há meses atrás. Ou então presume-se que você desconheça a pena da So-
ciedade para ladrões independentes dentro dos muros de Lankhmar, não
é nada menos que a morte, depois de torturas, caso conseguir sobreviver.
— Sei tudo sobre isto, e minha situação é ainda pior que a sua —
Fafhrd retrucou — e depois de pedir segredo a Mouser, contou-lhe a estó-
ria da vendetta de Vlana contra a Sociedade e seus sérios sonhos mortais
de uma vingança geral.
26
No decorrer da estória, os jarros chegaram da adega, entretanto,
Mouser pedia que enchessem novamente suas canecas de barro:
Fafhrd concluiu:
— Então, em conseqüência de uma promessa feita por um rapaz
enfatuado e ignorante ao sul do Deserto Frio, sou agora um homem sen-
sato — bem, em outras ocasiões — constantemente solicitado a combater
um poder tão grande como o dos domínios de Lankhmar, pois como você
deve saber, a Sociedade tem filiais em todas as outras cidades e capitais
deste país. Amo Vlana profundamente e ela é uma ladraiexperiente, mas
com referência a este assunto, é maníaca, com um firme nó no cérebro,
que nem a lógica nem a persuação conseguem afrouxar.
— Por certo seria loucura assaltar diretamente a Sociedade, nisso
sua sabedoria é perfeita — comentou Mouser. — Se você hão pode per-
suadir sua adorável garota a afastar-se dessa idéia louca, então você deve
recusar firmemente até mesmo sua menor súplica nesse sentido.
— Certamente que devo — Fafhrd concordou com grande ênfase
e convicção — tenho sido um idiota preocupando-me com a Sociedade.
Naturalmente, se eles me pegassem, de qualquer maneira me matariam
como assaltante e ladrão por conta própria. Mas assaltar ia Sociedade
direta e audaciosamente, matar um ladrão associado, sem necessidade
— verdadeira loucura!
— Você não tem sido somente um idiota bêbado e tolo, você esta-
ria sem dúvida rescendendo no máximo há três noites, do pior dos males,
a morte. A maliciosos ataques a sua pessoa, a golpes diretos à organiza-
ção, a Sociedade retribui dez vezes mais severamente do que a outras
quebras de regulamento e a independência inclusive. Então dê o mínimo
de atenção à Vlana neste assunto.
— Concordo! — disse Fafhrd em voz alta, apertando a mão mus-
culosa de Mouser com força quase esmagadora.
— Agora deveríamos voltar para a companhia das moças — disse
Mouser.
— Uma dose mais, enquanto acertamos a conta — Ei, rapaz!
— De acordo.
Vlana e Ivrian, que conversavam entretidas e animadamente, as-
sustaram-se com o ruído das fortes pisadas subindo a escada. Uma corrida
de animais antediluvianos não poderia ter feito mais barulho. Os estalos
e os rangidos eram extrordinários e ouviam-se duas passadas distintas. A
porta escancarou-se e seus dois homens precipitaram-se através da nebli-
na em forma de um grande cogumelo, cuja haste negra fora nitidamente
27
arrancada com a batida violenta da porta.
— Disse-lhe que voltaríamos num instante — Mouser piscou a-
legremente à Ivrian, enquanto Fafhrd entrava com largas passadas, não se
importando com os estalos do chão, gritando:
— Querida, senti muitas saudades de você — e, levantando Vlana
a despeito de seus protestos e empurrões, beijou-a e abraçou-a sonora-
mente antes de colocá-la de volta no divã.
Estranhamente, era Ivrian que parecia zangada com Fafhrd, em vez
de Vlana, que sorria com ternura e deslumbramento.
— Fafhrd, senhor — disse ela com atrevimento, os pequenos pu-
nhos colocados nos quadris estreitos, o queixo fino erguido, os olhos pre-
tos flamejando — minha querida Vlana esteve me contando das inexpri-
míveis atrocidades que a Sociedade dos Ladrões fêz a ela e a seus mais
queridos amigos. Perdoe-me a franqueza de falar com quem conheço há
tão pouco, mas penso ser quase inumano de sua parte recusar-lhe a jus-
ta vingança que deseja e merece plenamente. Serve para você também,
Mouser, que se gabou a Vlana sobre o que você teria feito se soubesse,
mas sua intenção era de vazia bajulação. Você, que em situação seme-
lhante não teve escrúpulos em matar meu próprio pai!
Fafhrd percebeu que enquanto êle e Mouser bebiam ociosamente
na Enguia, Vlana relatara a Ivrian de maneira duvidosa e colorida suas
queixas contra a Sociedade, ativando impiedosamente românticas simpa-
tias e um alto conceito de honra cavalheiresca na mente teórica da moça
ingênua. Notava, também, que Ivrian estava um pouco mais do que ligei-
ramente embriagada. Um frasco de vinho tinto do longínquo Kiraay, quase
vazio, encontrava-se na mesa baixa, perto do divã.
Como se não soubesse o que fazer, estendeu suas grandes mãos
desamparadamente, inclinou a cabeça mais do que o teto baixo obrigava,
sob o olhar penetrante de Ivrian, agora reforçado pelo de Vlana. Afinal de
contas elas tinham razão. Êle tinha prometido. Foi Mouser o primeiro que
tentou refutar.
— Venha cá, queridinha — exclamou suavemente, dançando pela
sala, calafetando outras fendas para impedir a entrada da espessa neblina
noturna, atiçando e alimentando o fogo no aquecedor — e você também,
bela senhora Vlana. No último mês Fafhrd, com seus assaltos, tem atingi-
do a Sociedade dos Ladrões ferindo-a onde ela mais sente em sua bolsa.
Venham, bebamos todos.
Desarrolhou um dos jarros novos com estouro e precipitou-se para
encher as taças de prata e as canecas.
28
— Uma vingança de mercador — retrucou Ivrian com escárnio,
nem um pouco apaziguada, mais zangada ainda. — Você e Fafhrd deve-
riam ao menos trazer à Vlana a cabeça de Krovas!
— O que Vlana faria com ela? para que serviria senão para man-
char os tapetes? — Mouser inquiria lamentosamente, enquanto Fafhrd,
finalmente, recuperando sua sabedoria, ajoelhou-se e disse calmamente:
— Respeitadíssima Sra. Ivrian, é verdade que prometi solenemente
à minha amada Vlana que a auxiliaria em sua vingança, mas se Mouser e
eu trouxéssemos à Vlana a cabeça de Krovas, ela e eu teríamos de sumir
de Lankhmar no mesmo instante, pois teríamos todos os homens contra
nós. Quanto a você, certamente perderia este formoso reino que Mouser
criou pelo seu amor, e ambos teriam de fugir como mendigos pelo resto
de suas vidas.
Enquanto Fafhrd falava, Ivrian arrebatou sua taça recém-servida e
bebeu um trago. Agora permanecia ereta como um soldado, o rosto páli-
do e ardente, e disse de maneira severa:
— Você avalia as conseqüências! Você me fala de coisas — indi-
cando o esplendor que a cercava — simples bens materiais, ainda que
custosos — quando a honra está em jogo. Você deu a Vlana a sua palavra.
Estará perdida toda a dignidade de cavalheiro?
Fafhrd encolheu os ombros de novo, contorceu-se por dentro e be-
beu, pouco à vontade, de sua caneca de prata.
Com maestria, Vlana tentou habilmente conduzir Ivrian até seu as-
sento dourado.
— Calma, querida — pediu — você falou nobremente por mim e
por minha causa; acredite-me, estou agradecidíssima. Suas palavras re-
viveram em mim sentimentos nobres e puros, mortos todos estes anos.
Mas de todos nós aqui, só você é uma verdaderia aristocrata em harmo-
nia com os mais altos padrões. Nós outros não passamos de três ladrões.
Será surpreendente que algum de nós coloque a segurança acima da hon-
ra e da palavra empenhada e, mais prudentemente, evite arriscar nossas
vidas? Sim, somos três ladrões e fui vencida. Por favor, não fale mais em
honra e arrebatamento, em bravura destemida, mas sente-se e...
— Você quer dizer que ambos estão com medo de desafiar a Socie-
dade dos Ladrões, não ? — disse Ivrian, os olhos abertos e o rosto crispa-
do pelo desgosto. — Sempre pensei que meu Mouser fosse em primeiro
lugar nobre e depois ladrão. Roubar não é nada. Meu pai vivia de roubos
cruéis contra ricos viajantes e vizinhos menos poderosos, ainda assim era
um aristocrata. Oh! vocês são covardes, ambos! Poltrões! — terminou, fi-
29
xando os olhos de desprezo, primeiro em Mouser, em seguida em Fafhrd.
O último não pôde sustentar o olhar por muito tempo. Levantou-se
de um salto, o rosto vermelho, os punhos apertados, despreocupado com
o ruído de sua caneca caindo ao chão e do estalo de mau agouro que sua
ação repentina produziu no soalho vergado.
— Não sou um covarde! — gritou. — Desafiarei a Casa dos Ladrões
e trarei a cabeça de Krovas para você e jogá-la-ei sangrando aos pés de
Vlana. Juro pela minha espada Vara Cinzenta aqui ao meu lado!
Levou a mão ao quadril esquerdo, mas não encontrando nada mais
que sua túnica, teve que se contentar em apontar com o braço trêmulo
para a espada embainhada que estava sob o manto cuidadosamente do-
brado — então apanhou a caneca, encheu-a até as bordas e bebeu até o
fim.
Gray Mouser começou a rir em alta, divertida e estrepidosa gar-
galhada. Todos fitaram-no com espanto. Começou a dançar ao lado de
Fafhrd e ainda sorrindo amplamente perguntou:
— Por que não? Quem fala em temer a Sociedade dos Ladrões?
Quem se transtorna com a perspectiva dessa façanha fácil e ridícula,
quando todos sabemos que todos eles, até mesmo Krovas e sua facção
regulamentada, não passam de pigmeus em argúcia e destreza, compara-
dos a mim ou a Fafhrd? Ocorreu-me agora um esquema admiràvelmente
simples e seguro para penetrar na Casa dos Ladrões em todas as suas fres-
tas e cubículos. Fafhrd e eu levá-lo-emos a efeito imediatamente. Você
está comigo, Nortista?
— Naturalmente que sim — respondeu Fafhrd com grosseria, ao
mesmo tempo indagando-se frenèticamente que loucura afligira seu pe-
queno companheiro.
— Dê-me algum tempo para reunir o material necessário e saire-
mos — gritou Mouser. Puxou de uma estante um saco resistente, então
correndo para lá e para cá, jogou para dentro um rolo de cordas e atadu-
ras, jarros de óleo, pomada e ungüento e o outras ninharias.
— Mas você não pode ir esta noite — protestou Ivrian, repentina-
mente pálida e com voz incerta. — Estão ambos... sem condições.
— Estão ambos embriagados — disse Vlana com aspereza. — To-
dos embriagados, e desta maneira não conseguirão nada na Casa dos La-
drões, exceto a morte. Fafhrd! Controle-se!
— Oh não — Fafhrd disse-lhe enquanto afivelava a espada. — Você
queria a cabeça de Krovas lançada a seus pés numa grande possa de san-
gue e é o que vai receber, ou isso ou nada.
30
— Calma, Fafhrd — Mouser interveio, parando de repente, e fe-
chou firmemente a boca do saco, puxando suas tiras.
— E devagar você,também, Sra. Vlana, e minha querida princesa.
Tenciono executar esta noite apenas uma expedição de patrulha. Não cor-
reremos riscos, somente obteremos a informação necessária para plane-
jar o golpe mortal amanhã ou depois. Então nada de cabeças cortadas ou
qualquer violência esta noite, Fafhrd, entendeu? O que quer que suceda,
observar é a palavra. Vista o seu manto de capuz.
Fafhrd deu de ombros, concordou e obedeceu.
Ivrian parecia um pouco aliviada. Vlana também, contudo disse:
— De qualquer modo estão ambos embriagados.
— Tudo vai dar certo! — Mouser assegurou-lhe com um sorriso
louco. — O álcool pode retardar a espada de um homem e abrandar um
pouco seus golpes, mas deixa suas idéias ardentes, inflama a imaginação,
e são estas as qualidades de que precisaremos esta noite.
Vlana olhou-o indecisa.
Aproveitando-se da confabulação, Fafhrd, tranqüilo, mas rapida-
mente, preparou-se para encher uma vez mais sua caneca e a de Mou-
ser, mas Vlana, notando, isso, lançou-lhe um olhar tão penetrante que
êle depositou as canecas e o jarro destampado, tão ligeiro que seu manto
esvoaçou.
Mouser colocou o saco nos ombros e abriu a porta com violência.
Com um abano casual às moças, em silêncio, Fafhrd saiu para o pequeno
alpendre. A neblina noturna estava tão espessa que quase não se podia
avistá-lo. Mouser acenou quatro dedos a Ivrian e seguiu Fafhrd.
— Que a boa sorte os acompanhe — gritou Vlana cordialmente.
— Oh, tenha cuidado, Mouser — murmurou. Ivrian.
Mouser, a figura delgada contra o vulto de Fafhrd, fechou a porta
em silêncio.
Automaticamente as moças se abraçaram, esperando os inevitá-
veis estalos e gemidos da escada. Demorava e demorava. A neblina notur-
na que entrava na sala já se dissipara e o silêncio continuava total.
— O que podem eles estar fazendo? —- murmurou Ivrian. — Pla-
nejando seu rumo?
Vlana, impaciente, sacudiu a cabeça, então desembaraçando-se,
foi até a porta na ponta dos pés, abriu-a, desceu com cuidado alguns de-
graus que estalavam dolorosamente e voltou, fechando a porta atrás de
si.
— Foram-se — disse admirada.
31
— Estou assustada — murmurou Ivrian.
Atravessou rapidamente a sala e abraçou a moça mais alta.
Vlana estreitou-a, e logo desvencilhou um braço para correr os três
pesados ferrolhos da porta.
Na Travessa dos Ossos, Mouser recolocou em sua bolsa a linha que
amarrara ao gancho da lâmpada e pela qual eles tinham descido. Sugeriu:
— Que tal pararmos na Enguia Prateada?
— Você está falando sério? Pararmos na Enguia Prateada e depois
dizer às garotas que estivemos na Casa dos Ladrões? — perguntou Fafhrd.
— Oh! não — Mouser protestou — mas você não conseguiu seu
trago de despedida e eu também não.
Com um sorriso velhaco, Fafhrd tirou de baixo do manto dois jarros
cheios.
— Passei a mão neles, como estavam, quando depositei as cane-
cas. Vlana viu muito, mas não tudo.
— Você é prevenido, camarada perspicaz — disse Mouser com ad-
miração. — Orgulho-me em chamá-lo de camarada.
Cada um abriu um jarro e bebeu um gole sequiosamente. Sob a
indicação de Mouser, dirigiram-se para oeste, mudando de rumo e tro-
peçando um pouco, então entraram a norte numa travessa ainda mais
estreita e fétida.
— Beco da Peste — disse Mouser.
Depois de diversas olhadelas e espreitadas preliminares, cruzaram
rápidos e cambaleantes a ampla e vazia Rua da Astúcia e entraram nova-
mente no Beco da Peste. Inesperadamente, o beco tornava-se um pouco
mais claro. Olhando para cima viram estrelas. No entanto, nenhum vento
soprava do norte. O ar estava mortalmente parado.
Embriagados e preocupados com seu plano e a simples locomoção,
não olharam para trás. Lá, a neblina noturna estava espessa como nun-
ca. Um vôo circular de corvos noturnos veria as partículas convergindo
de todas as partes de Lankhmar e em rápidos e escuros regatos e rios,
acumulando-se, redemoinhando, correndo em espirais, a escura e enfu-
maçada essência de Lankhmar oriunda dos ferretes, braseiros, fogueiras
e fogos de cozinha e de aquecedores, fornos, fornalhas, cervejarias, des-
tilarias, incineradores de lixo, vapores de alquimistas e dos antros de fei-
ticeiros, crematórios, montes de carvões em brasa, todos estes e muito
mais... convergindo determinadamente sobre o Beco Escuro, e particular-
mente sobre a Enguia Prateada e a frágil casa atrás dela. Quanto mais se
aproximavam deste ponto, mais compacta tornava-se a neblina, fiapos em
32
turbilhão e trapos em espirais prendiam-se como teias pretas nos cantos
ásperos das pedras e na irregular superfície dos tijolos.
Mas Mouser e Fafhrd só tinham exclamações de branda e muda
admiração para as estrelas e, ziguezagueando cautelosamente, atravessa-
ram a Rua dos Pensadores, chamada Avenida dos Ateístas pelos moralis-
tas, continuando pelo Beco da Peste até a bifurcação.
Mouser escolheu o caminho da esquerda que se dirigia para no-
roeste.
— Travessa da Morte. Depois de duas curvas, a Rua das Pechinchas
surgiu cerca de trinta passos à frente. Mouser parou imediatamente e se-
gurou Fafhrd. Via-se claramente, no outro lado da Rua das Pechinchas, a
entrada ampla, baixa e aberta da Casa dos Ladrões, construída de sujos
blocos de pedra. Dois degraus esburacados por séculos de uso levavam
até ela. De dentro suportes com tochas derramavam luzes amarelo-ala-
ranjado. Não havia porteiro ou guarda à vista, nem mesmo um cão de
vigia numa corrente. O efeito era agourento.
— Agora, como conseguiremos entrar neste maldito lugar? — per-
guntou Fafhrd num sussurro louco. — Esta entrada cheira a armadilha.
Por fim, Mouser respondeu com desdém:
— Por quê? — Entraremos direto por esta entrada que você teme.
— Franziu as sobrancelhas. — Apronte-se, mexa-se. Venha, vamos nos
preparar.
Enquanto voltava, arrastando o cético e carrancudo Fafhrd pela
Travessa da Morte até que toda a Rua das Pechinchas desaparecesse de
vista, explicava:
— Passaremos por mendigos, membros da sua Sociedade, que
nada mais é do que um ramo da Sociedade dos Ladrões e que informa
ao Chefe dos Mendigos, na Casa dos Ladrões. Seremos membros novos,
que saíram durante o dia, de modo que não é provável que o Chefe dos
Mendigos Noturnos nos reconheça.
— Mas não temos aparência de mendigos — protestou Fafhrd. —
Os mendigos têm chagas horríveis e são aleijados.
— É isso exatamente o que vou providenciar agora — riu-se Mou-
ser puxando Escalpelo.
Ignorando a hesitação e o olhar receoso de Fafhrd, Mouser olhou
atento e confuso para a longa e fina barra de aço que desembainhara;
então, com um alegre assentamento, desprendeu do cinto a bainha de
pele de rato do Escalpelo, embainhou a espada rapidamente e enrolou-a
toda em espirais, incluindo o cabo, com a larga faixa do rolo de ataduras
33
tirado do saco.
— Eis — disse, amarrando as pontas da faixa. — Agora tenho uma
bengala contudente.
— O que é isto? — Fafhrd. — E por quê?
Mouser colocou um trapo preto e fino por sobre os olhos e amar-
rou-o firmemente atrás da cabeça.
— Porque serei cego, eis a razão.
Deu alguns passos cambaleantes, batendo nos seixos à frente com
a espada enrolada — segurando-a pelo guarda-mão, de tal modo que a
alça e o punho ficaram escondidos pelas mangas — e tateando à frente
com a outra mão.
— Que tal lhe parece, bem? — perguntou a Fafhrd enquanto se
virava.
— Parece-me, perfeito. Morcego cego!
— Oh! Não se aborreça, Fafhrd — o pano é de gaze, posso enxergar
através dele perfeitamente bem. Além disso, não preciso convencer nin-
guém na Casa dos Ladrões de que sou realmente cego. Muitos mendigos
da Sociedade fingem ser cegos, como você deve saber. Agora, o que fazer
com você? Não poderá ser cego também — óbvio demais — poderia pro-
vocar suspeitas. — Desarrolhou o jarro e sugou inspiração. Fafhrd imitou
o seu gesto, em princípio.
— Encontrei! Fafhrd, firme-se em sua perna direita e dobre a es-
querda para trás. Segure-se! — não caia em cima de mim! Avante! Segure-
se em meu ombro. Assim está bem. Agora, mantenha o pé esquerdo mais
alto. Disfarçaremos sua espada como a minha, como uma muleta — é
mais grossa e ficará bem. Você também pode se firmar com a outra mão
em meu ombro, enquanto pula — o coxo conduzindo o cego. Mas, mais
alto com este pé esquerdo! Não, êle não deve escorregar — terei que
amarrá-lo. Mas, primeiro, desprenda a bainha.
Em seguida, Mouser transformava Vara Cinzenta com a bainha,
como fizera com Escalpelo e amarrava o tornozelo esquerdo de Fafhrd à
coxa, puxando a corda brutalmente, ainda que os nervos de Fafhrd, ver-
melhos o entorpecidos, mal o registrassem. Equilibrando-se com a muleta
de aço enquanto Mouser trabalhava, bebeu com grandes goles e delibe-
rou profundamente.
Por mais brilhante que fosse o plano de Mouser, parecia que se
prejudicariam com êle.
— Mouser — disse — não sei se estou satisfeito com as espadas
amarradas, assim não poderemos puxá-las numa emergência.
34
— Podemos ainda usá-las como cacetes — retrucou Mouser, a res-
piração sibilando entre os dentes enquanto esticava firme o último nó.
— Além disso, teremos nossas facas. Aliás, vire seu cinto para que a faca
fique nas costas, então o manto a esconderá, seguramente. Farei o mes-
mo com Garra de Gato. Mendigos não usam punhais, ao menos à mostra.
Pare de beber agora, você já bebeu demais. Preciso de dois tragos mais
para alcançar minha melhor forma.
— Não sei se gostarei de entrar maneando neste antro de assassi-
nos. Posso pular espantosamente ligeiro, é verdade, mas não tão depres-
sa quanto posso correr. É realmente compreensível, não acha?
— Você pode se livrar num instante — falou Mouser sibilando, com
um toque de impaciência e irritação. — Você não está querendo fazer o
menor sacrifício, por amor à arte?
— Oh! Muito bem — disse Fafhrd, esvaziando seu jarro e jogando-
o para o lado. — Sim, naturalmente que quero.
— Sua compleição é vigorosa demais — disse Mouser, inspecio-
nando-o criticamente. Retocou o rosto e as mãos de Fafhrd com graxa
cinza-pálido; então salientou as rugas com cinza-escuro.
— E seus trajes estão limpos demais.
Escavou poeira de entre os seixos e sujou o manto de Fafhrd, de-
pois tentou rasgá-lo, mas o pano resistiu. Deu de ombros e meteu o saco
vazio no cinto.
— Agora é sua vez — observou Fafhrd, e agachou-se em sua perna
direita, pegou uma boa quantidade de sujeira. Levantou-se com esforço, e
limpou a mão na capa de Mouser e na jaqueta de seda cinza.
O homenzinho blasfemou, mas — conformidade dramática — Fa-
fhrd lembrou-o. — Agora venha, enquanto nossos ânimos e nossa irrita-
ção ainda estão no auge. — Agarrando-se nos ombros de Mouser, impeliu-
se rapidamente pela Rua das Pechinchas, apoiando sua espada enrolada
bem à frente, entre os seixos, dando saltos vigorosos.
— Devagar, idiota — Mouser gritou, não muito alto, deslizando
quase tão veloz quanto um patinador equilibrando-se, enquanto batia sua
bengala (espada) furiosamente:
— Presume-se que um aleijado seja fraco, isto é que atrai a sim-
patia.
Fafhrd concordou sabiamente e andou um pouco mais devagar. A
entrada vazia e agourenta aparecia aos poucos, de novo. Mouser inclinou
seu jarro para beber todo o vinho, sorveu-o demoradamente e apoiou-
se estonteado. Fafhrd apanhou o jarro e, esgotando-o, jogou-o para trás,
35
despedaçando-o ruidosamente .
Arrastaram-se, aos pulos, para o outro lado da Rua das Pechinchas,
subiram os degraus gastos e, através da entrada, passaram pelo muro ex-
cepcionalmente espesso. À frente, havia um corredor longo e reto, de teto
alto, terminando em escadas, iluminado pela claridade que se infiltrava
através das portas e pelas chamadas tochas nas paredes, porém vazio em
toda a sua extensão.
Tinham acabado de passar pela entrada quando o fio do aço arre-
piou-lhe o pescoço e picou-lhes o ombro. Do alto, duas vozes ordenaram
em uníssono: — Parem!
Embora excitados — e estontea-dos — pelo vinho forte, ambos
tiveram a suficiente lucidez de se imobilizarem, e então, muito cautelosa-
mente, olharam para cima.
Dois rostos esqueléticos, cheios de cicatrizes, excepcionalmente
feios, emoldurados por cabelos pretos presos por uma faixa de pano es-
palhafatosa, olhavam para eles de um grande e profundo nicho bem em
cima da entrada. Dois braços musculosos e curvos empurraram as espa-
das que ainda os espetavam.
— Saíram com o grupo dos mendigos do meio-dia, hem? — ob-
servou um deles. — Bem, será melhor que tenham uma boa coleta para
justificar a volta tardia. O Chefe dos Mendigos Noturnos está de licença
na Rua das Prostitutas. Apresentem-se a Krovas. Meu Deus, vocês cheiram
mal! É melhor limparem-se primeiro ou Krovas os jogará num banho de
vapor fervendo. Andem!
Fafhrd e Mouser arrastaram-se mancando para frente, da maneira
mais autêntica possível. Um guarda sentinela gritou atrás deles:
— Relaxem-se, meninos! Aqui não precisam fingir.
— A prática faz o mestre — respondeu Mouser com voz trêmula.
As pontas dos dedos de Fafhrd cutucaram o ombro de Mouser,
advertindo-o. Caminharam um pouco mais naturalmente, tanto quanto a
perna atada de Fafhrd o permitisse. De fato, pensou Fafhrd, Kos dos Des-
tinos parecia estar conduzindo-o diretamente a Krovas e talvez cabeças
cortadas fossem a ordem da noite. Agora começaram a ouvir vozes, na
maioria ásperas e entrecortadas, e outros ruídos.
Passaram por outras entradas nas quais desejaram deter-se, em-
bora o máximo que ousaram foi diminuir um pouco mais a marcha.
Muito interessantes eram algumas daquelas atividades. Numa
sala, jovens rapazes estavam sendo treinados para bater carteiras e abrir
bolsas. Abordavam um instrutor pelas costas e, se êle ouvisse o ruído de
36
pés descalços ou sentisse o toque da mão batendo a carteira — ou, pior,
ouvisse o tinido das falsas moedas de chumbo ao caírem — aquele rapaz
seria espancado.
Em uma segunda sala, ladrões estudantes mais velhos faziam ex-
periências de como arrombar fechaduras. Um grupo assistia às aulas de
um velho respeitável e de mãos encardidas que desmontava uma fecha-
dura mais complexa, peça por peça.
Numa terceira sala, os ladrões comiam em mesas compridas. Os
odores eram tentadores, mesmo para os homens embriagados. A Socie-
dade tratava bem seus membros.
Numa quarta, o piso era parcialmente acolchoado; ali eram treina-
dos a fugir, trapacear, saltar, dar cambalhotas e, desta maneira, despistar
as perseguições. Uma voz como a de um primeiro sargento rosnou:
— Não, não, não! Vocês não poderiam escapar nem de uma avó
aleijada. Eu disse abaixar-se, não ajoelhar-se em adoração a Arth. Agora
desta vez...
Nesse meio tempo, Mouser e Fafhrd estavam a meio caminho do
topo da escada, Fafhrd pulando com esforço, agarrando-se no corrimão e
na espada enfaixada.
O segundo andar assemelhava-se ao primeiro, embora tão sun-
tuoso quanto o outro era simples. Pelo longo corredor alternavam-se
lâmpadas e potes de incenso ornamentados com filigrana, pendentes do
teto, difundindo uma luz suave e um odor picante. As paredes eram rica-
mente cobertas, o chão espêssamente atapetado. Contudo, estava vazio
também e, além disso, completamente silencioso. Após trocarem-se um
olhar, seguiram adiante corajosamente.
A primeira porta, escancarada, mostrava uma sala desabitada,
cheia de cabides com trajes ricos e simples, impecáveis e imundos, tam-
bém suportes com perucas, estantes com barbas e coisas deste gênero.
Uma sala de disfarces, evidentemente.
Mouser entrou e saiu rapidamente a fim de apanhar um grande
frasco verde sobre a mesa mais próxima. Destampou-o e cheirou-o. Um
odor forte de gardência, podre e adocicado, opôs-se aos vapores do vinho
que impregnavam seu nariz. Mouser salpicou seu rosto e o de Fafhrd com
este duvidoso perfume.
— Antídoto contra sujeira — explicou com a empáfia de um médi-
co, tampando o frasco.
— Não quero ser ludibriado por Krovas. Não, não. não.
Dois vultos apareceram no fim do corredor e dirigiram-se a eles.
37
Mouser escondeu o frasco sob seu manto, apertando-o contra o corpo
com o braço, e seguiram corajosamente em frente.
As próximas três entradas, pelas quais passaram, estavam fecha-
das por pesadas portas. Perto da quinta entrada, os dois vultos que se
aproximavam de braços dados, tornaram-se nítidos. Suas roupas eram de
nobres, mas seus rostos de ladrões. Olhavam com desagrado, indignação
e suspeita para Mouser e Fafhrd.
Neste exato momento, de algum lugar entre os dois pares, uma voz
começou a falar numa língua estranha, usando o tom rápido e monótono
que os padres empregam nos sermões de rotina, ou alguns feiticeiros nas
suas magias.
Os dois ladrões ricamente vestidos detiveram-se no sétimo vão e
olharam para dentro. Interromperam sua caminhada. Os pescoços esti-
cados, os olhos arregalados. Empalideceram. Então, de repente, avança-
ram rapidamente quase correndo, e passaram por Fafhrd e Mouser como
se estes fossem apenas peças de mobiliário. A voz encantada retumbava
continuamente.
A quinta entrada estava fechada, mas a sexta aberta. Mouser olhou
de esguelha para dentro, o nariz esbarrando de leve no umbral. Deu um
passo adiante e olhou atentamente o interior com expressão fascinada,
empurrando para a testa o trapo preto para poder enxergar melhor. Fa-
fhrd juntou-se a êle.
Era uma sala grande, vazia do que possa ser chamado de vida hu-
mana e animal, mas abarrotada dos mais interessantes objetos. De certa
altura para cima, toda a parede oposta era um mapa da cidade de Lankh-
mar. Todos os prédios e ruas estavam ali representados, até a mais insigni-
ficante choupana e a mais estreita viela. Havia sinais de rasuras, recentes
e novos desenhos em muitos pontos, e aqui e ali, pequenos hieróglifos
coloridos de misteriosa significação.
O soalho era de mármore, o teto azul como lápis-lazúli. As paredes
lateriais eram abundantemente carregadas, uma delas com todas as espé-
cies de ferramentas de ladrões, desde uma imensa, espessa alavanca que
parecia ser capaz de deslocar o universo, até uma haste tão delgada que
podia ser uma vara de condão aparentemente planejada para projetar-se
e pescar de uma certa distância preciosos adornos de um toucador de
dama, com tampa de marfim e pernas alongadas. Todas as espécies de es-
tranhos objetos, brilhantes e cintilantes, estavam presos a cadeado na ou-
tra parede, evidentemente mementos escolhidos por suas excentricida-
des, nas pilhagens de memoráveis assaltos, desde uma máscara feminina
38
de ouro delgado, empolgantemente bonita em suas feições e contornos,
mas espêssamente incrustada de rubis, simulando as marcas da varíola
no estágio febril, até uma faca cujas lâminas eram diamantes cuneiformes
colocados lado a lado e a borda cortante como uma navalha afiada.
No centro da sala estava uma mesa redonda, vazia, de ébano e
quadrados de marfim. Cercavam-na sete cadeiras de encosto reto mas
bem estofadas; uma delas, em frente ao mapa e afastada de Mouser e
Fafhrd, tinha o encosto mais alto e braços mais largos que as outras — a
cadeira do chefe, provavelmente a de Krovas.
Mouser adiantou-se na ponta dos pés, irresisíivelmente atraído,
mas a mão esquerda de Fafhrd apertou seu ombro.
Franzindo o sobrolho com desaprovação, o Nortista puxou a ven-
da preta sobre os olhos de Mouser novamente, apontou para a frente
e partiu naquela direção em pulos cuidadosos, calculados e silenciosos.
Encolhendo os ombros, desapontado, Mouser seguiu-o.
Logo que se afastaram da entrada, uma cabeça, de barbas pretas
e cabelos curtos, apareceu como uma serpente ao lado da cadeira mais
alta, fixou-os atentamente com olhos encovados e brilhantes. Em seguida,
um dedo de ofídio da mão comprida e flexível, aproximou-se dos lábios
como uma serpente em sinal de silêncio, acenando com os dedos para os
dois pares de homens vestidos com túnicas parados de cada lado da en-
trada, de costas para o corredor, segurando em uma das mãos um punhal
e na outra um pesado cacete de couro escuro.
Quando Fafhrd estava a meio caminho da sétima entrada, de onde
vinha a monótona mas sinistra recitação, surgiu um jovem esguio e de
faces pálidas, os olhos arregalados de terror, as mãos estreitas colocadas
sobre a boca, como se abafando gritos ou vômitos, e com uma vassoura
embaixo do braço, parecendo-se um pouco com um jovem feiticeiro pron-
to para voar. Passou impetuosamente por Fafhrd e Mouser, continuou, as
pisadas rápidas e abafadas pelos tapetes e com sons agudos nas escadas,
até extinguir-se.
Fafhrd olhou atentamente para Mouser com uma careta e um en-
colher de ombros, e ajoelhou-se, avançou a metade de seu rosto pelo um-
bral da porta. Depois de um instante, sem entretanto mudar de posição,
acenou para que Mouser se aproximasse. Este último espiou, colocando
vagarosamente a cabeça por cima da de Fafhrd.
O que eles viam era uma sala menor do que a do mapa, ilumi-
nada por luminárias centrais que davam uma claridade branco-azulada,
ao invés da costumeira luz amarelada. O chão era de mármore escuro e
39
com desenhos em espirais. Das paredes pendiam quadros astrológicos e
antropomânticos, instrumentos de magia e estantes com jarros de porce-
lana criptieamente rotulados, frascos vítreos e tubos de vidro das mais es-
tranhas formas, alguns cheios de fluídos coloridos, outros rutilantemente
vazios. Ao pé das paredes, onde as sombras eram mais espessas, trastes
quebrados e rejeitados amontoavam-se irregularmente, como se arrasta-
dos do caminho e esquecidos, ao mesmo tempo em que grandes tocas de
ratos apareciam aqui e ali.
No centro da sala, com um brilho contrastante, havia uma mesa
comprida de tampo espesso e, inúmeras pernas sólidas. Lembrou a Mou-
ser uma centopéia e o bar da Enguia, pois o tampo da mesa estava inten-
samente sujo e marcado por sucessivas manchas de elixires e queimadu-
ras escuras causadas por fogo e ácido.
No meio da mesa um alambique funcionava. A chama da lampari-
na, azul-escura, conservava fervendo na cucúrbita grande de cristal, um
líquido escuro e viscoso com cintilações luminosas. Da matéria espessa
e espumante subiam espirais de vapor mais escuro para aglomerarem-se
através do gargalo da cucúrbita e tingir — estranhamente, de escarlate
brilhante — a parte superior transparente. Então, agora de um preto in-
tenso, dali fluía por um cano estreito para um recipiente esférico de cris-
tal, ainda maior que a cucúrbita, e aí ondulava-se e entrelaçava-se como
rolos vivos de corda preta — uma serpente de ébano — sinuosa e sem
fim.
Atrás da extremidade esquerda da mesa encontrava-se um homem
alto e encurvado, de manto preto com capuz, que sombreava mais do que
escondia um rosto cujas feições eram muito proeminentes, o nariz grosso,
longo e pontudo, a boca saliente e quase sem queixo. Sua côr era cinza-
pálida, como barro arenoso. Uma barba aparada, eriçada e cinza crescia
no alto da face. Abaixo da testa recuada e das cinzentas sobrancelhas
cerradas, os olhos separados olhavam intensamente para o pergaminho
amarelecido que suas pequenas mãos repugnantes, de juntas grandes e
pêlos cinzentos, desenrolavam sem cessar. O único movimento que seus
olhos faziam, além de um curto vai-e-vem ao ler as linhas que ràpidamen-
te entoava, era uma ocasional olhadela para o alambique.
Do outro lado da mesa, havia um pequeno animal preto encolhi-
do, cujos olhos grandes e redondos moviam-se rapidamente do feiticeiro
para o alambique e vice-versa. Fafhrd, percebendo-o de relance, fincou os
dedos dolorosamente no ombro de Mouser que quase sufocou, mas não
de dor. Parecia-se mais com um rato, embora tivesse uma testa mais alta
40
e olhos mais juntos, enquanto suas patas dianteiras que constantemente
esfregava impaciente, parecendo divertir-se, assemelhavam-se a minús-
culas cópias das mãos disformes do feiticeiro.
Simultânea, mas independentemente, Fafhrd e Mouser certifica-
ram-se de que era o animal que escoltara Slivikin e seu companheiro e
escapara. Recordaram-se do que Ivrian dissera a respeito do demônio de
bruxa e Vlana acêrca da probabilidade de Krovas ter um empregado fei-
ticeiro.
O ritmo do encantamento acelerou-se; as chamas branco-azula-
das, brilharam e chiaram audivelmente; o fluido da cucúrbita tornou-se
espesso como lava; grandes bolhas se formaram e estouraram ruidosa-
mente; a corda preta no recipiente enroscou-se como um ninho de ser-
pentes; havia uma crescente impressão de presenças invisíveis; a tensão
sobrenatural tornou-se quase insuportável, e Fafhrd e Mouser tiveram
dificuldade em ficar silenciosos, e embasbacados, de boca aberta, pela
qual agora respiravam, temiam que as batidas do coração pudessem ser
ouvidas ao longe.
Abruptamente a feitiçaria atingiu o máximo e cessou como um
tambor rufando que fosse instantaneamente silenciado pela palma da
mão e pelos dedos estendidos contra o couro. Com um brilhante clarão
e uma surda explosão, inumeráveis rachas apareceram na cucúrbita; seu
cristal tornou-se branco e opaco; no entanto, não se despedaçou e nem
vazou. A parte superior do alambique subiu um pouco, vacilou e recuou.
Duas laçadas pretas apareceram entre as espirais no recipiente e repen-
tinamente reduziram-se a dois grandes nós pretos. O feiticeiro sorriu ma-
liciosamente, deixou o fim do pergaminho a enrolar-se com um estalo,
mudou o olhar atento do recipiente para o seu demônio que saltava e
guinohava extasiado.
— Silêncio, Slivikin! Agora vem a sua vez de correr, esforçar-se e
suar — gritou o bruxo, falando em jargão Lankhmaresco, agora, mas tão
rapidamente e com voz tão aguda que Fafhrd e Mouser mal podiam acom-
panhá-lo. Entretanto, ambos perceberam que estavam enganados quanto
à identidade de Slivikin. No momento do infortúnio, o ladrão gordo prefe-
rira pedir ajuda ao animal bruxo que ao seu companheiro humano.
— Sim, mestre — Slivikin respondeu confusamente, modificando,
num instante, as opiniões de Mouser sobre animais falantes, continuou
no mesmo tom agudo e bajulador: — Ouço-lhe obedientemente, Hristo-
milo.
Hristomilo ordenou em sons sibilantes:
41
— Vá fazer a sua tarefa! Convoque um número suficiente de con-
vivas! Quero os corpos estripados até os ossos, de maneira que os efeitos
da névoa mágica e todas as evidências de morte por sufocação fiquem
totalmente apagados. Mas não esqueça a pilhagem! A missão, agora —.
parta!
Slivikin, que a cada ordem sacudia levemente a cabeça, demons-
trando sua vivacidade, agora, guinchava: — Providenciarei para que assim
seja! — e, como um relâmpago cinzento, saltou ao chão e entrou numa
escura toca de rato.
Hristomilo, esfregando suas mãos à maneira de Slivikin, gritou às
gargalhadas:
— O que Slevyas perdeu, minha mágica reconquistou!
Fafhrd e Mouser retiraram-se, em parte por medo de serem vistos,
em parte por repulsa do que tinham visto e ouvido, nuna pungente, mas
inútil piedade por Slevyas, fosse êle quem fosse, e pelas outras vítimas
desconhecidas das palavras mágicas mortais do feiticeiro referentes a ra-
tos, pobres estranhos, que mortos, teriam suas carnes devoradas.
Fafhrd arrebatou a garrafa verde de Mouser e, quase vomitando
do cheiro fétido, tomou um grande e forte gole, Mouser não se animou a
fazer o mesmo, conformando-se em aspirar os vapores do áleool.
Então, viu, além de Fafhrd, de pé antes da entrada da sala do mapa,
um homem ricamente vestido com uma faca de cabo de ouro e bainha in-
crustada de jóias. A face de olhos fundos era prematuramente enrugada
nela responsabilidade, excesso de trabalho è autoridade, emoldurada por
cabelos e barba pretos, cuidadosamente cortados. Sorrindo, acenou-lhes
silenciosamente com um gesto sinuoso.
Mouser e Fafhrd obedeceram, o último devolvendo a garrafa verde
ao primeiro, que a escondeu embaixo da capa segurando-a com o braço,
com dissimulada irritação.
Suspeitaram que aquele que os convocara era Krovas, o Grão-Mes-
tre da Sociedade. Mais uma vez, novamente, Fafhrd admirava-se, enquan-
to mancava de modo impetuoso e vacilante, como Kos ou os Destinos
guiavam-no a seu alvo esta noite. Mouser, mais alerta e também mais
apreensivo, lembrava-se que eles tinham sido encaminhados pelas sen-
tinelas para apresentarem-se a Krovas, de modo que a situação, se bem
que não se desenvolvesse totalmente de acôrdo com seus próprios planos
vagos, deles não se desviava desastrosamente.
Entretanto, nem mesmo sua vigilância, nem os instintos primiti-
vos de Fafhrd preveniram-nos, quando seguiam Krovas, para a sala dos
42
mapas.
Logo que entraram, foram agarrados rapidamente pelo ombro e
ameaçados com cacetes por um par de valentões armados com facas nos
cintos.
— Estão sob controle, Grão-Mestre — um dos rufiões vociferou.
Krovas girou a cadeira mais alta e sentou-se, olhando-os friamente.
— O que traz dois bêbados e malcheirosos mendigos associados
até os aposentos mais reservados dos mestres? — perguntou calmamen-
te.
Mouser sentiu um suor de alívio formar gotas na testa. Os disfarces
que imaginara brilhantemente ainda funcionavam, logrando até mesmo o
chefe, embora este tivesse percebido a embriaguez de Fafhrd. Reassumin-
do os ares de cego, disse trêmulo:
— Fomos encaminhados pelo guarda à porta da Rua das Pechin-
chas para apresentarmo-nos a vós em pessoa, grande Krovas, pois o Se-
nhor dos Mendigos Noturnos estava de licença, por razões de higiene se-
xual. Hoje à noite conseguimos uma boa bolada! — E, remexendo na sua
bolsa, ignorando tanto quanto possível o forte aperto nos seus ombros,
êle retirou uma moeda de ouro e exibiu-a com as mãos trêmulas.
— Poupem-me de sua inexperiente atuação — disse Krovas brus-
camente. — Não sou uma das suas vítimas. E tire esta venda dos olhos.
Mouser obedeceu, endireitou-se novamente tanto quanto sua ma-
nietação permitisse, e sorriu, procurando parecer o mais despreocupado
possível, apesar das novas incertezas despertadas. Compreensivelmente,
sua representação não era tão brilhante quanto pensara.
Krovas inclinou-se para a frente e disse plácida mas penetrante-
mente :
— Admitindo que vocês estivessem tão atarefados, por que esta-
vam espiando para a sala ao lado desta quando os encontrei?
— Vimos bravos ladrões fugindo desta sala — Mouser respondeu,
convenientemente. — Temendo que algum perigo ameaçasse a Socieda-
de, meu camarada e eu investigamos, prontos a Impedi-lo.
— Mas o que vimos e ouvimos apenas nos tornou perplexos, gran-
de Senhor — disse Fafhrd polidamente.
— Não perguntei a você, beberrão. Só fale quando lhe fôr dirigida
a palavra — vociferou Krovas. Então, dirigindo-se a Mouser: — Você é um
velhaco vaidoso, presunçoso demais para seu nível. Os mendigos alegam
proteger os ladrões — realmente! Pretendo mandar açoitá-los por sua
curiosidade, outra vez por sua embriaguez, sim, e uma vez mais por suas
43
mentiras.
Num lampejo Mouser decidiu que a situação exigia mais insolência
e mentiras do que bajulação.
— Eu sou um malandro muitíssimo presunçoso, na verdade, se-
nhor — disse de modo convencido. E, com um ar solene: — Mas agora
vejo que chegou a hora de dizer toda a mais negra verdade. O Mestre dos
Mendigos Diurnos suspeita de um complô contra sua própria vida, senhor,
por um de seus mais altos e mais próximos tenentes — um em quem você
confia tanto que não acreditaria, senhor. Êle nos contou! Por esta razão
designou-nos a mim e a meu companheiro para protegê-lo e pegar este
miserável canalha.
— Mais mentiras desajeitadas — disse Krovas rispidamente, mas
Mouser viu sua face tornar-se pálida.
O Grão-Mestre ergueu-se um pouco da sua cadeira.
— Qual tenente?
Mouser sorriu malicioso e relaxou. Seus dois cantores fixaram-no
de lado curiosamente, afrouxando as mãos um pouco. O par de Fafhrd
parecia igualmente intrigado.
— Você está me interrogando como um fiel espião ou um mentiro-
so amarrado? Caso seja o último, não o insultarei com nenhuma palavra
a mais.
O rosto de Krovas tornou-se mais sombrio.
— Rapaz! — chamou.
Através das cortinas de uma entrada secreta, surgiu um jovem com
a pele escura de um Keeshita e vestindo apenas uma tanga preta; ajoe-
lhou-se diante de Krovas, que ordenou:
— Convoque primeiro meu feiticeiro, em seguida os ladrões Sle-
vyas e Fissif — após o que, o jovem moreno correu para o corredor.
Krovas hesitou um momento, pensando, e logo estendeu a mão
em direção a Fafhrd:
— O que você sabe a este respeito, beberrão? Você sustenta a es-
tória maluca de seu companheiro?
Fafhrd apenas escarneceu e cruzou os braços, pois os captores os
agarravam frouxamente. Sua mão segurava levemente a muleta-espada,
que pendia contra seu corpo. Então franziu a testa, sentindo uma súbita
e aguda dor na perna esquerda amarrada e dormente, que já esquecera.
Krovas ergueu-se com um punho cerrado em prelúdio a alguma
ordem terrível — provavelmente que Fafhrd e Mouser fossem torturados,
mas neste instante Hristomilo entrou na sala, os pés presumivelmente rá-
44
pidos e os passos muito curtos — de qualquer modo, seu manto preto
tocava sereno o piso de mármore apesar de sua velocidade.
Houve um choque à sua entrada. Todos os olhos na sala dos mapas
seguiam-no, a respiração suspensa, e Mouser e Fafhrd sentiram as mãos
calosas que os seguravam tremer um pouco. Até mesmo a expressão ten-
sa de Krovas tornou-se também defensivamente apreensiva.
Aparentemente absorto da reação provocada por seu aparecimen-
to, Hristomilo, com um sorriso nos lábios finos, parou ao lado da cadeira
de Krovas e inclinou sua face roedora num arremedo de reverência.
Krovas perguntou ríspida mas nervosamente, gesticulando em di-
reção a Mouser e Fafhrd:
— Você conhece estes dois?
Hristomilo acenou positivamente:
— Agora mesmo ambos me espiavam com um olhar estonteante
— disse — enquanto eu fazia aquele negócio de que falamos. Eu os teria
enxotado e denunciado, não fosse tal ação quebrar meu encanto mágico,
desajustar minhas palavras com o trabalho do alambique. Um deles é um
nortista, as feições do outro têm uma aparência de sulista — o mais pro-
vável, de Tovilinis ou proximidades. Ambos mais jovens do que aparentam
agora. Bandidos independentes, eu os julgaria, da espécie que a Irman-
dade contrata como extras quando estão sobrecarregados, com serviços
de vigia e escolta. Claro, agora, grosseiramente disfarçados de mendigos.
Fafhrd bocejando, Mouser sacudindo a cabeça penalizado, tenta-
vam convencer de que tudo isso não passava de pobres conjeturas. Mou-
ser ainda acrescentou um penetrante olhar de advertência, breve como
um relâmpago, sugerindo a Krovas que o tenente poderia ser o próprio
feiticeiro do Grão-Mestre.
— Eis tudo que posso lhe dizer sem ler suas mentes — Hristomilo
concluiu. — Devo mandar vir minhas luzes e espelhos?
— Ainda não. — Krovas encarou Mouser e disse:
— Agora, fale a verdade ou a obterei por meio de mágicas, e então
serão açoitados até a morte. Qual dos meus tenentes foi indicado para
vocês o espionarem, pelo Chefe dos Mendigos Diurnos? Mas estão men-
tindo sobre este encargo, creio?
— Oh! Não — Mouser negou-o fingindo sinceridade. — Informa-
mos todas nossas atividades ao Chefe dos Mendigos Diurnos e êle apro-
vou-as, dizendo-nos para espionar o melhor que pudéssemos e reunir o
maior número possível de fragmentos, fatos e rumores sobre a conspira-
ção.
45
— E êle nada me falou sobre isto! — Krovas vociferou. — Se fôr
verdade, mandarei cortar a cabeça de Bannat por isto! Mas vocês estão
mentindo, não?
Quando Mouser fixava Krovas com olhar ofendido, um homem im-
ponente passou mancando pela entrada, com o apoio de uma bengala
dourada. Movia-se em silêncio, e serenamente.
Mas Krovas o viu.
— Chefe dos Mendigos Noturnos! — chamou categoricamente. O
homem coxo parou, voltou-se e entrou majestosamente. Krovas apontou
um dedo para Mouser, depois para Fafhrd:
— Você conhece estes dois, Flim?
O Chefe dos Mendigos Noturnos estudou sem pressa cada um, por
algum tempo, e sacudiu a cabeça com um turbante dourado.
— Nunca vi nenhum deles antes. Quem são? Mendigos delatores?
— Mas Flim não nos conheceria — Mouser explicou desesperado,
sentindo que tudo iria desmoronar para êle e Fafhrd. — Todos os nossos
contatos eram apenas com Bannat.
Flim disse calmamente: — Bannat tem estado acamado com febre
nestes últimos dez dias. Enquanto isso tenho sido o Chefe dos Mendigos
Noturnos e Diurnos.
Neste momento Slevyas e Fissif entraram correndo por trás de
Flim. O ladrão alto ostentava uma mancha roxa no queixo. A cabeça do
ladrão gordo estava enfaixada, acima dos olhos dardejantes. Êle apontou
rápido para Fafhrd e Mouser e gritou:
— Eis os dois que nos atacaram, tomaram nosso roubo de Jengao
e mataram nossa escolta.
Mouser levantou seu cotovelo e a garrafa verde espatifou-se em
cacos a seus pés, no piso de mármore. O cheiro forte de gardênia espa-
lhou-se rapidamente pelo ar.
Mas mais rápido ainda, Mouser desvencilhou-se do negligente do-
mínio dos guardas surpreendidos, saltou em direção a Krovas, golpeando
com sua espada enfaixada.
Com velocidade espantosa, Flim lançou a bengala dourada, derru-
bando Mouser, que ficou de pernas para o ar, procurando, a meio cami-
nho, transformar em voluntária, sua involuntária pirueta.
Entrementes, Fafhrd deu uma guinada brusca contra o captor à
sua esquerda, ao mesmo tempo balançando a enfaixada Vara Cinzenta
fortemente para diante para atingir seu captor da direita sob o queixo.
Recuperando o equilíbrio, apoiado numa perna só e com uma poderosa
46
contorção, saltou para a parede dos roubos atrás dele.
Slevyas dirigiu-se para a parede dos instrumentos de ladrões, e
cem um esforço que fêz os músculos estalarem, arrancou a grande ala-
vanca do cadeado.
Levantando-se, depois de uma infeliz aterrissagem em frente à ca-
deira de Krovas, Mouser encontrou-a vazia e o Rei dos Ladrões curvado
atrás dela, o punhal de ouro desembainhado, os olhos encovados frios e
enfurecidos para a luta. Virando-se, viu os guardas de Fafhrd no chão, um
deles caído inconsciente, o outro, começando a levantar-se enquanto o
grande nortista, de costas contra a fantástica parede de jóias, ameaçava
toda a sala com a Vara Cinzenta enfaixada e com a sua longa faca, arranca-
da da bainha, às suas costas.
Desembainhando igualmente a Garra de Gato, gritou com voz de
comando:
— Afastem-se todos! Êle está ficando louco! Cortarei o tendão de
sua perna sã para vocês!
E correndo através da confusão e entre seus dois guardas que ain-
da pareciam segurá-lo admirados, lançou-se com, a espada rutilante para
Fafhrd, implorando que o nortista, embriagado agora não só pela batalha,
mas também pelo vinho e o perfume venenoso, o compreendesse e adi-
vinhasse seu estratagema.
Vara Cinzenta golpeava bem acima de sua cabeça desviada. Seu
novo amigo não somente adivinhara, mas o apoiara e não errava o alvo
somente por acidente, Mouser assim o esperava. Abaixando-se junto à
parede, cortou os cordões da perna esquerda de Fafhrd. Vara Cinzenta e
a comprida faca de Fafhrd continuaram a poupá-lo. Levantando-se num
salto, para o corredor, gritando por trás do ombro de Fafhrd: — Venha!
Hristomilo permanecia fora do caminho, observando serenamen-
te. Fissif fugiu à procura de segurança. Krovas ficou atrás de sua cadeira
gritando:
— Detenham-nos! Segurem-nos! Os três remanescentes guardas
rufiões, finalmente recobrando sua capacidade de luta, reuniram-se em
posição a Mouser. Mas este, ameaçando-os com rápidas fintas de sua es-
pada, deteve-os e lançou-se entre eles — então, naquele exato momento,
com um golpe rasteiro do Escalpelo enfaixado, derrubou para o lado a
bengala dourada de Flim, que o atacara novamente tentando derrubá-lo.
Tudo isto deu tempo a Slevyas de retornar da parede de ferramen-
tas e tentar atingir Mouser, balançando a pesada alavanca. Ao iniciar o
golpe, uma espada embainhada e enfaixada, na ponta de um longo braço,
47
lançou-se por cima do ombro de Mouser e, solida e pesadamente, empur-
rou Slevyas para trás, atingido-o na parte superior do peito, de maneira
que o balanço da alavanca foi demasiado curto e passou zunindo inofen-
sivamente.
Então Mouser encontrou-se no corredor com Fafhrd a seu lado; o
companheiro por alguma razão, ainda mancava. Mouser apontou em di-
reção às escadas. Fafhrd assentiu, mas deteve-se para arrancar da parede
mais próxima uma dúzia de jardas e de pesados panos que espalhou pelo
corredor para confundir seus perseguidores.
Alcançando as escadas começaram a subir o lance seguinte, Mou-
ser na frente. Havia gritos atrás deles, alguns abafados.
— Pare de mancar, Fafhrd! — Mouser ordenou, lamentando-se.
Você tem duas pernas de novo.
— Sim, e a outra está dormente — queixou-se Fafhrd. — Ah! Agora
a sensibilidade está voltando.
Uma faca passou sibilando entre eles e retiniu, quando a ponta
atingiu a parede, levantando poeira da pedra. Estavam agora dobrando
a esquina.
Mais dois corredores vazios, mais dois lances curvos, e avistaram
acima deles, sobre o último patamar, uma escada sólida que levava a um
buraco quadrado a escuro no telhado. Um ladrão com os cabelos presos
atrás, por um colorido lenço — que parecia ser a identificação das senti-
nelas — ameaçou Mouser com a espada desembainhada, mas ao ver que
eram dois, ambos atacando determinantemente com facas reluzentes e
estranhas clavas, voltou-se e correu pelo último corredor vazio.
Mouser, seguido de perto por Fafhrd, subiu rapidamente à escada
e pulou, através do alçapão, para a noite estrelada.
Encontrou-se próximo à borda, sem parapeito, de um telhado de
ardósia com tal inclinação que parecia alarmante a um inexperiente cami-
nhador de telhados, mas seguro como chão para um veterano.
Voltando-se ao som de um baque, viu Fafhrd prudentemente içan-
do a escada. Logo que conseguiu, uma faca vinda do alçapão passou zu-
nindo perto deles.
Caiu com estrépito a seu lado e escorregou para fora do telhado.
Mouser marchou para o sul através das ardósias e, a meio caminho entre
o alçapão e aquela extremidade do telhado, ouviu o fraco tinido da faca
chocando-se nas pedras arredondadas da Travessa dos Assassinos.
Fafhrd seguia mais devagar, fosse talvez devido a uma menor expe-
riência em telhados, fosse porque ainda coxeava um pouco para proteger
48
sua perna esquerda, e também, porque carregava a pesada escada que
oscilava sobre seu ombro esquerdo.
— Não precisaremos dela — exclamou Mouser.
Sem vacilar, Fafhrd jogou-a alegremente por cima da borda. En-
quanto ela se espatifava com estrépido na Travessa dos Assassinos, Mou-
ser pulava duas jardas abaixo e transpunha uma brecha de uma jarda para
o telhado seguinte, de inclinação menor e oposta. Fafhrd aterrissou a seu
lado.
Mouser o precedia, numa quase corrida através de uma floresta de
chaminés cobertas de fuligem, canos de chaminés, cataventos cujas cau-
das faziam-nos ficar de frente para o vento, cisternas escurecidas, tampas
de alçapão, casas de pássaros e armadilhas de pombas; passaram sobre
cinco telhados, até alcançarem a Rua dos Pensadores, no ponto onde esta
se cruzava com uma passagem coberta muito semelhante à de Rokermas
e Slaarg.
Enquanto a atravessavam curvados, algo passou por eles sibilando
e caiu com estrépido logo adiante. Ao saltarem do telhado da ponte, três
coisas mais assobiaram sobre as suas cabeças, para cair mais além. Uma
delas ricoeheteou de uma chaminé quadrada, quase aos pés de Mouser.
Apanhou-a, imaginando uma pedra, e surpreendeu-se com o grande peso
de uma bola de chumbo do tamanho de dois dedos.
— Eles — disse, apontando com o polegar por sobre o ombro —
não perderam tempo em colocar atiradores de estilingues no telhado.
Quando provocados ficam bons.
A sudeste então, através de outra floresta de negras chaminés, em
direção a um ponto na Rua das Pechinchas, onde havia tantos pavimentes
mais altos projetando-se sobre os dois lados da rua que seria fácil transpor
as brechas. Durante a travessia do telhado, uma frente de neblina notur-
na, suficientemente densa para fazê-los tossir e engasgar, envolveu-os e,
talvez pelo tempo de sessenta batidas do coração, Mouser teve de andar
mais devagar, arrastando os pés e tateando o caminho, a mão de Fafhrd
em seu ombro. Bem próximo da Rua das Pechinchas, saíram abrupta e
completamente do nevoeiro e enxergaram as estrelas de novo, enquanto
a nuvem preta rolava em direção ao norte.
— Bem, que diabo era aquilo? — indagou Fafhrd e Mouser deu de
ombros.
Um corvo noturno teria notado um vasto círculo de neblina es-
cura, espalhando-se em todas as direções de um ponto perto da Enguia
Prateada.
49
A leste da Rua das Pechinchas, os dois camaradas logo saltaram
para o solo, aterrando no Beco da Peste.
Por fim, olharam um para o outro e para suas espadas, as faces
e roupas imundas tornadas ainda mais sujas pela fuligem do telhado, e
riram, riram e riram; Fafhrd ainda numa gargalhada, ao inclinar-se para
massagear sua perna esquerda ao redor do joelho. Continuaram a zombar
de mesmos, enquanto desenfaixavam as espadas — Mouser, como se a
sua fosse um pacote de surpresa — e prenderam mais uma vez as bainhas
nos cintos.
Seus esforços dissiparam a última molécula e átomo de vinho for-
te e do ainda mais forte perfume fétido, mas não sentiram mais vonta-
de de beber, apenas a pressa de chegar em casa, comer imensamente e
empanturrar-se de gahveh quente e amargo, e finalmente, contar às suas
adoráveis pequenas sua louca aventura.
Andavam lado a lado.
Livres da neblina noturna e salpicados com as luzes das estrelas,
Os limitados arredores pareciam muito menos miseráveis e opressivos
do que quando tinham partido. Mesmo na Travessa dos Ossos havia uma
aragem.
Subiram apressadamente a longa e crepitante escada de degraus
quebrados, sem a menor cautela e, quando atingiram o alpendre, Mouser
empurrou a porta para abri-la com surpreendente rapidez.
Mas esta não se moveu.
— Trancada — disse a Fafhrd secamente. Notou, agora, que ne-
nhuma luz se infiltrava através das frestas da porta, nem tampouco das
venezianas — somente um débil brilho vermelho-alaranjado. Então, com
um trejeito sentimental e numa voz afetuosa que revelava apenas uma
sombra de preocupação, disse:
— Estão dormindo, as despreocupadas raparigas!
Bateu três vezes ruidosamente e, apertando os lábios, chamou su-
avemente pela fresta da porta:
— Olá, Ivrian! Estou a salvo em casa. Ei, Vlana! Seu marido satisfez
seu orgulho, derrubando, um grande número de ladrões da Sociedade,
com um pé amarrado nas costas!
Não se ouvia nenhum som do interior — isto é, não contando um
sussurro, tão fraco que quase não se podia percebê-lo.
Fafhrd franziu as narinas: — Sinto cheiro de bichos.
Mouser bateu na porta novamente. Nenhuma resposta. Fafhrd
afastou-o do caminho e forçou o portal com seu grande ombro.
50
Mouser sacudiu a cabeça e com um hábil golpe e um puxão, re-
moveu um tijolo que há pouco parecia firmemente fixo na parede ao lado
da porta. Estendeu para dentro todo seu braço. Ouviu-se o ruído de um
ferrôlho sendo retirado, então mais outro e um terceiro. Rapidamente re-
tirou seu braço e, a um toque, a porta abriu-se inteira para dentro.
Mas nem êle nem Fafhrd precipitaram-se em seguida, como ha-
viam tencionado, pois o indefinível cheiro de perigo e do desconhecido
soprou com um crescente odor de animal e um leve aroma enjoativo que,
embora doce, não era um perfume propriamente feminino.
Mal podiam ver a sala através da luz alaranjada, saída do pequeno
retângulo da porta aberta do pequeno e negro fogão. No entanto, o retân-
gulo não estava devidamente aprumado, mas estranhamente inclinado —
sinal evidente que o fogão havia sido derrubado e agora apoiava-se contra
a parede lateral da lareira, com a portinhola aberta naquela direção.
Esta posição anormal, por si só, transmitia todo o impacto de um
universo revirado.
Através do brilho alaranjado, percebia-se que os tapetes haviam
sido estranhamente amarrotados, apresentando aqui e ali, círculos pre-
tos esburacados de um palmo de largura; as velas, antes cuidadosamente
empilhadas, esparramavam-se por baixo das estantes com alguns jarros e
caixas esmaltadas, e — acima de tudo — dois aglomerados pretos, baixos,
irregulares e um tanto longos, um junto à lareira, o outro, metade sobre o
divã, metade a seus pés.
De cada aglomerado, inúmeros pares de olhos minúsculos, bastan-
te separados e avermelhados, fitavam Mouser e Fafhrd.
Sobre o chão espêssamente atapetado, do outro lado da lareira,
havia uma fina trama prateada — uma gaiola de prata caída, mas dela não
se ouviam cantos de adoráveis pássaros.
Houve um fraco tinido de metal, quando Fafhrd certificou-se de
que Vara Cinzenta estava solta em sua bainha.
Como se este minúsculo som tivesse sido escolhido de antemão
como o sinal de ataque, sacaram instantaneamente as espadas e avança-
ram lado a lado para dentro da sala, vigilantes a princípio, testando o chão
a cada passo.
Com o retinir das espadas, os pequeninos olhos avermelhados
piscaram e mexeram-se agitados e agora, com a aproximação dos dois
homens, espalharam-se rápida e ruidosamente de par em par, os olhos
na extremidade de um corpo preto, pequeno, delgado, com o rabo liso, e
dirigiram-se para um dos círculos negros nos tapetes, por onde desapa-
51
receram.
Sem dúvida, os círculos negros eram buracos que os ratos haviam
recentemente roído através do soalho e dos tapetes, e as criaturas de
olhos vermelhos eram ratos pretos.
Fafhrd e Mouser saltaram para a frente, açoitando-os e retalhan-
do-os num frenesi, blasfemando palavras ásperas.
Atingiram alguns. Os ratos fugiram com rapidez sobrenatural, a
maioria deles desaparecendo pelos buracos das paredes e da lareira.
A primeira investida desvairada de Fafhrd atravessou o chão e ao
seu terceiro passo... com agourento estalo, sua perna afundou através do
soalho até o quadril. Mouser passou por êle sem ligar para ulteriores es-
talos.
Fafhrd ergueu sua perna, sem mesmo notar os arranhões e tão
despreocupado como Mouser quanto aos contínuos estalos. Os ratos su-
miram. Pulou até seu camarada, que atirava uma pilha de acendedores
dentro do fogão, para fazer mais luz.
O horror era que, embora os ratos tivessem ido embora, os dois
aglomerados permaneciam, ainda que consideravelmente menores e,
agora, visíveis claramente à luz das chamas amarelas lançadas pela porta
aberta, transformados num matiz de cores — não mais eram vultos com
pontos vermelhos, mas uma mistura de um vago preto e marrom-escuro,
um nauseante azul-purpúreo, violeta, prêto-aveludado e branco, do ver-
melho das meias e do sangue de carnes e ossos ensangüentados.
Embora as mãos e os pés tivessem sido roídos até os ossos, e os
corpos escavados, os dois rostos tinham sido poupados. Mas estavam ar-
roxeados, revelando morte por estrangulamento, os lábios retraídos, os
olhos salientes, as feições contorcidas em agonia. Apenas os cabelos pre-
tos e castanho-escuros rutilavam imutáveis — estes e os dentes, brancos,
brancos.
Ao olharem atentamente para suas amadas, incapazes de desviar
o olhar apesar das ondas de horror e tristeza que os envolviam cada vez
mais, viram um minúsculo fio preto soltar-se da depressão negra que en-
volvia cada garganta e flutuar, dissipando-se, em direção à porta aberta
— dois fios de neblina noturna.
Com um crescendo de estalos, o chão cedeu em mais três partes
ao centro, antes de chegar a uma nova e temporária estabilidade.
Os limiares das mentes torturadas notavam detalhes: que o punhal
de cabo prateado de Vlana espetara no chão um rato, que provavelmente,
demasiado esfomeado, aproximara-se demais antes que a neblina notur-
52
na provocasse seu mágico efeito. Que seu cinto e bolsa haviam desapa-
recido. Que a caixa esmaltada de azul e incrustada de prata onde Ivrian
colocara a parte de Mouser no assalto das jóias também desaparecera.
Mouser e Fafhrd fitaram-se, as faces lívidas e contraídas, e bas-
tante transtornadas, ainda que inteiramente unidos em compreensão e
propósito. Não foi necessário a Fafhrd explicar por que despiu o manto e
capuz, ou por que arrancou o punhal de Vlana com uma torção do pulso,
colocando-o em seu cinto. Nem foi necessário a Mouser dizer por que
procurou meia dúzia de jarros de óleo e, após atirar três deles contra a
parede do fogão flamejante, parou, pensou e jogou os outros três dentro
da sacola na sua cinta, juntando a eles os acendedores e o braseiro reple-
to de carvão em brasa e amarrou-o firmemente.
Então, ainda sem trocar palavras, Mouser penetrou na lareira e
sem recuar ao contato do metal ardente, com deliberação derrubou o fo-
gão em chamas sobre os tapetes ensopados de óleo. Chamas amarelas
espalharam-se à sua volta.
Viraram-se e correram para a porta. Com estalos ainda mais altos
o chão desmoronou. Lutaram desesperadamente para transpor uma pilha
de tapetes e alcançaram a porta e o alpendre momentos antes que tudo
cedesse. E tudo estava incandescente, os tapetes, o fogão, todas as lenhas
e velas, o divã dourado, as mesinhas, as caixas, as jarras e os corpos in-
concebivelmente mutilados de suas amadas — rolaram para a sala abaixo,
atulhada de teias, seca e empoeirada; e as grandes chamas de uma pu-
rificante e arrasadora cremacão começaram a arder em direção ao alto.
Precipitaram-se pela escada que, assim que alcançaram o solo,
desmoronou na escuridão. Tiveram que forçar seu caminho sobre os es-
combros para chegar à Travessa dos Ossos.
A esta altura as chamas lançavam brilhantes e compridas línguas
pelas venezianas do sótão e pelos tapumes do andar inferior. Ao alcança-
rem a Viela da Peste, correndo lado a lado o mais que podiam, o alarma
de fogo da Enguia Prateada ressoou dissonante atrás deles.
Corriam ainda quando alcançaram a bifurcação na Travessa da
Morte. Então, Mouser agarrou Fafhrd e forçou-o a parar. O enorme ho-
mem debateu-se, blasfemando loucamente e só desistiu — a face branca
ainda de um lunático — quando Mouser gritou ofegante:
— Apenas dez batidas de coração, será o tempo suficiente para nos
prepararmos.
Puxou a sacola do cinto e, segurando-a com firmeza, atirou-a com
violência contra os seixos — quebrando não só as garrafas de óleo, mas
53
também o braseiro, a sacola incendiando-se em seguida.
Desembainharam o rutilante Escalpelo e a Vara Cinzenta de Fafhrd,
continuaram a correr, Mouser balançando a sacola em grandes círculos
para atiçar as chamas. Era uma verdadeira bola de fogo queimando sua
mão esquerda quando se lançava pela Rua das Pechinchas; entraram na
Casa dos Ladrões e Mouser, com um enorme salto, jogou-a em direção ao
grande nicho que encimava a entrada.
As sentinelas gritaram de surpresa e pânico ante o incendiário in-
vasor de seus abrigos.
Ouvindo as pisadas e os gritos, ladrões estudantes saíram pelas
portas e, então, recuaram ante as labaredas e as duas caras endemoni-
nhadas dos inesperados invasores que brandiam suas longas e rutilantes
espadas.
Um magro e pequeno aprendiz — que podia ter no máximo dez
anos de idade — demorou-se demais. Vara Cinzenta trespassou-o sem
piedade, os grandes olhos arregalaram-se e a pequena boca contorceu-se
de horror, implorando misericórdia a Fafhrd.
Agora chegava até eles um fantástico clamor de lamentação, irreal
e horripilante, e portas se fechavam com estrondo ao invés de despejarem
os guardas armados que Fafhrd e Mouser ansiavam por que aparecessem
para espetá-los com suas espadas. Apesar das longas tochas pendentes
das paredes, parecendo recém-renovadas, o corredor estava escuro.
A razão disso tornou-se clara quando se lançaram escada acima.
Fios de neblina noturna surgiam na escadaria, materializando-se do nada,
ou do ar.
Os fios tornaram-se mais longos e mais palpáveis. Eram desagrada-
velmente aderentes e pegajosos. No corredor acima, de parede a parede
e do teto ao chão, formavam uma gigantesca teia que tornou-se mais real
quando Mouser e Fafhrd tiveram de cortá-la para abrir caminho, ou assim
acreditavam suas obcessivas mentes. A teia preta amorteceu um pouco
a repetição do sinistro e lamentoso clamor que provinha da sétima porta
adiante e que agora terminava em uma sonora e macabra gargalhada, tão
insana como as emoções dos dois atacantes.
Aqui, também portas eram violentamente fechadas. Num efêmero
lampejo de razão, ocorreu a Mouser que não era a eles que os ladrões
temiam, pois ainda não tinham sido vistos, mas a Hristomilo e sua mágica,
ainda que este estivesse agindo em defesa da Casa dos Ladrões.
Mesmo a sala do mapa, o lugar mais provável de onde eclodiria
o contra-ataque, estava bloqueada por uma imensa porta de carvalho e
54
pinos de ferro.
À medida que avançavam, desferiam golpes na preta e pegajosa
teia de aranha, espessa como corda. Entre a sala do mapa e a das má-
gicas, sob a teia escura, formava-se, vaga a princípio, mas rapidamente
tornando-se mais real, uma aranha grande como um lobo.
Mouser retalhou a densa teia, recuou dois passos e então arremes-
sou-se num grande salto. Escalpelo trespassou-a, golpeando-a no meio
dos oito olhos negros recém-formados, A aranha desmoronou como um
balão esvaziado, desprendendo um repulsivo mau cheiro.
Depois, êle e Fafhrd inspecionaram a sala das mágicas, o aposento
do alquimista. Estava tal qual como antes, com exceção de algumas coisas
que haviam duplicado e até multiplicado.
Sobre a mesa comprida, duas cucúrbitas ferviam em chamas a-
zuis, borbulhando e turvando-se. De seus topos projetava-se uma sólida
corda que se enroscava mais rápido do que se move a preta cobra do pân-
tano, capaz de destruir um homem. — não para dentro dos dois idênticos
recipientes, mas para o ar livre da sala (caso se pudesse chamar de livre
o ar da Casa dos Ladrões). Tecia assim uma barreira entre suas espadas e
Hristomilo, que uma vez mais permanecia alto e curvado sobre o pardo
pergaminho mágico, porém desta vez, seu exultante olhar fixava-se sobre-
tudo em Mouser e Fafhrd, com apenas um ocasional olhar para o texto
das palavras mágicas que entoava de modo retumbante.
Do lado oposto da mesa, no espaço livre de teias, exultava Slivikin e
um imenso rato que se equiparava a êle em tamanho e membros, exceto
na cabeça.
Dos buracos de ratos ao pé das paredes, olhos vermelhos brilha-
vam e faiscavam.
Com um urro de raiva, Fafhrd começou a golpear a barreira preta.
As cordas que saíam das cucúrbitas eram substituídas rapidamente tão
logo êle as cortava, e as extremidades cortadas, ao invés de penderem,
começaram agora a contorcer-se esfomeadamente em direção a êle como
cobras ou vinhas estrangulantes.
Repentinamente, mudou Vara Cinzenta para a mão esquerda, pu-
xou sua longa faca e atirou-a contra o feiticeiro. Faiscando em direção ao
seu alvo, a faca cortou três fios, sendo desviada por um quarto e quinta
fios, quase detida por um sexto e terminou pendurada inutilmnete na alça
enroscada de um sétimo fio.
Hristomilo riu às gargalhadas, exibindo seus imensos incisivos su-
periores, enquanto Slivikin chilreava extasiado e saltava.
55
Mouser arremessou Garra de Gato sem melhor resultado. — Na
verdade, pior, pois este até deu tempo para que dois dardejantes fios de
neblina se enrolassem em volta de sua mão e se enrascassem envolvendo
seu pescoço.
Ratos pretos saíram correndo dos grandes buracos ao pé das pa-
redes.
Entrementes, outros fios serpenteavam em volta dos quadris, dos
joelhos e do braço esquerdo de Fafhrd, e quase derrubando-o. Mas, mes-
mo lutando para equilibrar-se, arrancou o punhal de Vlana de seu cinto
e ergueu-o sobre o ombro, o cabo de prata reluzindo, a lâmina marrom,
com sangue seco de rato.
Ao enxergá-lo, Hristomilo modificou seu semblante. O feiticeiro gri-
tou estranha e inoportunamente, afastou-se do pergaminho e da mesa, e
ergueu suas mãos tortas: e armadas de garras para desviar o golpe mortal:
O punhal de Vlana voou desimpedido através da teia negra — seus
fios pareciam romper-se — e continuou por entre as defensivas mãos do
feiticeiro para enterrar-se até o cabo em seu olho direito.
Hristomilo deu um fino grito de agonia e arranhou sua face.
A teia preta contorceu-se num espasmo mortal.
As cucúrbitas despedaçaram-se, derramando sua lava sobre a
mesa manchada, extinguindo as chamas azuis, a espessa madeira da
mesa começou a fumegar ao ser atingida pela lava que começou a pingar
sobre o piso escuro de mármore.
Com um fraco e derradeiro grito, Hristomilo inclinou-se para fren-
te, as mãos tapando os olhos acima do nariz saliente, o punhal de cabo de
prata projetando-se entre os dedos.
A teia tornou-se descorada como tinta preta inundada por um jato
d’água.
Mouser correu para diante e trespassou Slivikin e o imenso rato
com um único golpe do Escalpelo, antes dos animais perceberem o que
acontecia, eles também morreram rapidamente com gritos agudos, en-
quanto todos os outros ratos retornavam para suas tocas, velozes como
um relâmpago preto.
Então, o último vestígio de neblina noturna ou névoa encantada
desapareceu, e Fafhrd e Mouser encontraram-se a sós com três corpos
mortos em meio a um profundo silêncio, que parecia invadir não só esta
sala, mas toda a Casa dos Ladrões. Mesmo a lava da cucúrbita cessara de
mover-se, solidificava-se e a madeira da mesa não fumegava mais.
Sua fúria desaparecera e também toda a raiva — desafogada até a
56
última partícula vermelha, saciada até a saturação. Para eles, agora, matar
Krovas ou quaisquer outros ladrões, era tão desejável como esmagar mos-
cas. Horrorizado, Fafhrd olhou para a face deplorável do ladrâo-criança
que espetara em sua fúria lunática.
Apenas a tristeza permanecia, nem um pouca atenuada, mas antes
tornando-se maior — e ainda mais rápida e crescente repulsa de tudo
que os rodeava: os mortos, a desordenada sala mágica, toda a Casa dos
Ladrões, toda a cidade de Lankhmar, até sua última viela miserável.
Com um murmúrio de desgosto, Mouser arrancou o Escalpelo dos
cadáveres roídos, enxugou-o na roupa mais próxima, e devolveu-o à sua
bainha. Fafhrd, também negligentemente, limpou e embainhou Vara Cin-
zenta. Então apanharam do chão suas facas e punhais, que tinham caído
quando a teia se desmaterializara. Nenhum deles sequer olhou para onde
estava enterrado o punhal de Vlana. Mas, sobre a mesa do feiticeiro, nota-
ram a bolsa e o cinto de veludo preto e trabalhados em prata de Vlana, e a
caixa de esmalte azul, incrustada de prata, de Ivrian. Estas, eles pegaram.
Sem trocar palavra, como antes no incêndio do ninho de Mou-
ser, atrás da Enguia, mas em uma contínua sensação de sua unidade de
propósito, sua identidade de intenção e sua camaradagem, seguiram de
ombros caídos e em passos vagarosos e fatigados que aos poucos iam
acelerando. Saíram da sala das mágicas e andando pelo corredor atape-
tado, passaram pela sala do mapa, cuja porta estava agora, trancada com
barras de ferro e madeira maciça, por todas as outras silenciosas portas
fechadas e pelas escadas que repercutiam o som de suas pisadas, agora
um pouco mais rápidas; ao longo do gasto assoalho do corredor inferior,
passaram por outras portas fechadas e imóveis, as passadas ressoando
ruidosamente, não obstante suas leves pisadas; passaram sob o nicho
dos guardas, desertos e chamuscados, em direção à Rua das Pechinchas,
dobrando à esquerda e ao norte, porque este era o caminho mais curto
para a Rua dos Deuses, e aí, dobrando à direita e a leste nenhuma alma
desperta na extensa rua, exceto um jovem aprendiz magro e encurvado,
tristemente esfregando as lajes, em frente a uma loja de vinhos na fraca
luz rósea que começava a infiltrar-se do leste, embora houvesse muitos
vultos adormecidos que roncavam nas sarjetas e sob os pórticos escuros
— sim, dobrando à direita e a leste, pela Rua dos Deuses, pois este era o
caminho do Portão dos Pântanos, que conduzia à Estrada Elevada através
do Grande Pântano Salgado; e a Portão do Pântano era o caminho mais
próximo para sair da grande e glamurosa cidade, agora repugnante para
eles, uma cidade de adoráveis e irresistíveis fantasmas — na verdade, não
57
podiam mais suportar nenhuma pesada e amargurada batida de coração,
além do necessário.
58
A EXECUÇÃO FATAL
Poul Anderson
PRÓLOGO
59
— Acalme-se. É apenas que às vezes nos atrasamos e não voltamos
a ver um cliente talvez por algumas horas e, como ficam rígidos.., bem, os
caixões são todos do mesmo tamanho, compreende o que quero dizer?
Uma onda de doçura e tepidez percorreu-lhe o corpo, enquanto
permanecia deitado de costas.
— Ei, você não comeu nada nas últimas doze horas? — A face do
homem magro era um borrão côr-de-rosa indistinto.
— Eu orrr mmmm, — Bailey ouviu sua própria voz murmurar.
— O. K., durma bem, amigo... — A voz do homem magro retum-
bou e enfraqueceu-se. O último pensamento de Bailey, enquanto a escu-
ridão infinita se fechava, foi a respeito das palavras gravadas no granito
sobre o portal do Centro de Eutanásia:
“... mandem-me os cansados, os pobres, os desesperados, os que
anseiam pela libertação. A eles, ergo a luz ao lado da porta de bronze...”.
SEGUNDO DESTINO
TERCEIRO DESTINO
QUARTO DESTINO
94
QUINTO DESTINO
107
Confesso que assenti com certo mal-estar. Conjeturei que esse país indo-
cumentado e esse heresiarca anônimo eram uma ficção improvisada pela
modéstia de Bioy para justificar uma frase. O exame estéril de um dos
atlas de Justus Perthes fortaleceu minha dúvida.
No dia seguinte, Bioy me telefonou de Buenos Aires. Disse-me que
tinha à vista o artigo sobre Uqbar, no volume XLVI da Enciclopédia. Não
constava o nome do heresiarca, mas sim a notícia de sua doutrina, for-
mulada em palavras quase idênticas às repetidas por êle, ainda que —
talvez — literàriamente inferiores. Êle recordara: Copulation and mirrors
are abominable. O texto da Enciclopédia dizia: Para um desses gnósticos,
o visível universo era uma ilusão ou (mais precisamente) um sofisma. Os
espelhos e a paternidade são abomináveis (mirrors and fatherhood are
abominable) porque o multiplicam e o divulgam. Eu lhe disse, sem faltar
à verdade, que gostaria de ver esse artigo. Em poucos dias êle o trouxe.
O que me surpreendeu porque os escrupulosos índices cartográficos da
Erdkunde de Ritter ignoravam completamente o nome de Uqbar.
O volume que Bioy trouxe, era efetivamente o XLVI da Anglo-Ame-
rican Cyclopaedia. No ante-rosto e na lombada, a indicação alfabética (Tor
- Ups) era a de nosso exemplar, mas em vez de 917 páginas, constava de
921. Essas quatro páginas adicionais compreendiam o artigo sobre Uq-
bar; não previsto (como terá o leitor observado) pela indicação alfabética.
Depois comprovamos que não havia outra diferença entre os volumes.
Os dois (conforme creio haver apontado) eram reimpressões da décima
Encyclopaedia Britannica. Bioy adquirira seu exemplar num de tantos lei-
lões.
Lemos com certo cuidado o artigo. A passagem recordada por Bioy
era talvez a única surpreendente. O resto parecia muito verossímil, muito
ajustado ao tom geral da obra e (como é natural) um pouco maçante.
Relendo-o, descobrimos sob sua rigorosa forma uma fundamental vagüi-
dade. Dos quatorze nomes que figuravam na parte geográfica, apenas re-
conhecemos três — Jorasã, Armênia, Erzerum — interpolados no texto de
um modo ambíguo. Dos nomes históricos, um só: o impostor Esmerdis, o
mago, invocado mais como metáfora. A nota parecia precisar as fronteiras
de Uqbar, mas seus nebulosos pontos de referência eram rios e crateras e
cadeias dessa mesma região. Lemos, por exemplo, que as terras baixas de
Tsai Jaldún e o delta do Axa definem a fronteira do Sul e que nas ilhas des-
se delta procriam os cavalos selvagens. Isso, no começo da página 918. Na
seção histórica (página 920) soubemos que, por causa das perseguições
religiosas do século XIII, os ortodoxos buscaram amparo nas ilhas, onde
108
ainda perduram seus obeliscos e onde não é raro exumar seus espelhos
de pedra. A seção idioma e literatura era breve. Um único traço memorá-
vel: anotava que a literatura de Uqbar era de caráter fantástico e que suas
epopéias e suas lendas não se referiam nunca à realidade mas às duas
regiões imaginárias de Mlejnas e de Tlön. A bibliografia enumerava qua-
tro volumes que não encontramos até agora, embora o terceiro — Silas
Haslam: History of the land called Uqbar, 1874 — figure nos catálogos da
livraria de Bernard Quaritch*. O primeiro, Lesbare und lesenswerthe Be-
merkungen über das Land Ukkbar in Klem-Asien, data de 1641 e é obra de
Johannes Valentinus Andréa. O fato é significativo; um par de anos depois,
deparei com esse nome nas inesperadas páginas de De Quincey (Writin-
gs, volume décimo terceiro) e soube que era o de um teólogo alemão
que, em princípios do século XVII, descreveu a imaginária comunidade
da Rosa-Cruz — que outros fundaram, à imitação do prefigurado por êle.
Aquela noite visitamos a Biblioteca Nacional. Em vão molestamos
atlas, catálogos, anuários de sociedades geográficas, memórias de viajan-
tes e historiadores: ninguém estivera jamais em Uqbar. O índice geral da
enciclopédia de Bioy tampouco registrava esse nome. No dia seguinte,
Carlos Mastronardi (a quem eu relatara o assunto) reparou numa livraria
de Corrientes e Talcahuano as pretas e douradas lombadas da Anglo-Ame-
rican Cyclopaedia... Entrou e consultou o volume XLVI. Naturalmente, não
encontrou o menor indício de Uqbar.
II
109
do, às vezes, as cores irrecuperáveis do céu. Uma tarde falamos do siste-
ma duodecimal de numeração (no qual doze se escreve 10). Ashe disse
que precisamente estava trasladando não sei que tabelas duodecimais a
sexagesimais (nas quais sessenta se escreve 10). Acrescentou que esse
trabalho lhe fora encomendado por um norueguês: no Rio Grande do Sul.
Há oito anos que o conhecíamos e nunca referira sua estada naquela re-
gião... Falamos de vida pastoril, de capangas, da etimologia brasileira da
palavra gaucho (que alguns velhos orientais ainda pronunciam gaúcho)
e nada mais se disse — Deus me perdoe — de funções duodecimais. Em
setembro de 1937 (nós não estávamos no hotel), Herbert Ashe morreu da
ruptura de um aneurisma. Dias antes recebera do Brasil um pacote lacra-
do e registrado. Era um livro em oitavo maior. Ashe deixou-o no bar, onde
— meses depois — o encontrei. Pus-me a folheá-lo e senti uma ligeira
vertigem de assombro que não descreverei, porque esta não é a história
de minhas emoções, mas de Uqbar e Tlön e Orbis Tertius. Numa noite do
Islã, que se chama a “Noite das Noites”, abrem-se de par em par as secre-
tas portas do céu e é mais doce a água nos cântaros; se essas portas se
abrissem, não sentiria o que senti naquela tarde. O livro estava redigido
em inglês e o compunham 1001 páginas. Na amarela lombada de couro
li estas curiosas palavras que o ante-rosto repetia: A first Encyclopaedia
of Tlön. Vol XI. Hlaer to Jangr. Não havia indicação de data nem de lugar.
Na primeira página e numa folha de papel de seda que cobria uma das lâ-
minas coloridas, estava impresso um óvalo azul com esta inscrição: Orbis
Tertius. Fazia dois anos que eu descobrira num volume de certa enciclo-
pédia pirática uma sumária descrição de um falso país; agora o acaso me
mostrava algo de mais precioso e mais árduo. Agora tinha nas mãos um
vasto fragmento metódico da história total de um planeta desconhecido,
com suas arquiteturas e seus debates, com o pavor de suas mitologias e o
rumor de suas línguas, com seus imperadores e seus mares, com seus mi-
nerais e seus pássaros e seus peixes, com sua álgebra e seu fogo, com sua
controvérsia teológica e metafísica. Tudo isso articulado, coerente, sem
visível propósito doutrinal ou tom paródico.
No “décimo primeiro volume” de que falo, há alusões a volumes
ulteriores e precedentes. Nestor Ibarra, num artigo já clássico da N.R.F.,
negou a existência de tais volumes; Ezequiel Martínez Estrada e Drieu La
Rochelle refutaram, quiçá vitoriosamente, essa dúvida. O fato é que até
agora as pesquisas mais diligentes têm sido estéreis. Em vão desarruma-
mos as bibliotecas das Américas e da Europa. Alfonso Reyes, saturado
dessas fadigas subalternas de índole policial, propõe que todos empreen-
110
damos a obra de reconstruir os muitos e maciços volumes que faltam: ex
ungue leonem. Calcula, entre jocoso e sério, que uma geração de tlönistas
pode bastar. Esse arriscado cômputo nos retrai ao problema fundamen-
tal: quais os inventores de Tlön? O plural é inevitável, porque a hipótese
de um só inventor — de um infinito Leibniz trabalhando na treva e na
modéstia — fora descartada unanimemente. Conjetura-se que este brave
new world é obra de uma sociedade secreta de astrônomos, de biólogos,
de engenheiros, de metafísicos, de poetas, de químicos, de algebristas, de
moralistas, de pintores, de geômetras... dirigidos por um obscuro homem
de gênio. Muitos são os indivíduos que dominam essas disciplinas diver-
sas, mas não os capazes de invenção e menos os capazes de subordinar
a invenção a um rigoroso plano sistemático. Esse plano é tão vasto que a
contribuição de cada escritor é infinitesimal. No começo pensou-se que
Tlön era um mero caos, uma irresponsável licença da imaginação; agora
se sabe que é um cosmos e as íntimas leis que o regem foram formuladas,
ainda que de modo provisório. Basta-me recordar que as contradições
aparentes do Décimo Primeiro Volume são a pedra fundamental da prova
de que existem os outros: tão lúcida e tão justa é a ordem que nele se
observou. As revistas populares divulgaram, com perdoável excesso, a zo-
ologia e a topografia de Tlön; penso que seus tigres transparentes e suas
torres de sangue não merecem, talvez, a contínua atenção de todos os
homens. Atrevo-me a pedir alguns minutos para seu conceito do universo.
Hume notou em definitivo que os argumentos de Berkeley não ad-
mitiam a menor réplica e não causavam a menor convicção. Esse ditame
é totalmente verídico em sua aplicação à Terra; totalmente falso em Tlön.
As nações desse planeta são — congênitamente — idealistas. Sua lingua-
gem e as derivações de sua linguagem — a religião, as letras, a metafísica
— pressupõem o idealismo. O mundo para eles não é um concurso de
objetos no espaço; é uma série heterogênea de atos independentes. É
sucessivo, temporal, não espacial. Não há substantivos na conjetural Urs-
prache de Tlön, da qual procedem os idiomas “atuais” e os dialetos: há
verbos impessoais, qualificados por sufixos (ou prefixos) monossilábicos
de valor adverbial. Por exemplo: não há palavra que corresponda à pala-
vra lua, mas há um verbo que seria em espanhol lunecer ou lunar. Surgiu
a lua sobre o rio diz-se hlör u fang axatcaxas mlö, ou seja, em sua ordem:
para cima (upward) atrás dura-douro-fluir lualuziu. (Xui Solar traduz sin-
tèticamente: upa tras perfluyue lunó. Upward, behind the onstreaming it
mooned.)
O que antes foi dito se refere aos idiomas do hemisfério austral.
111
Nos do hemisfério boreal (sobre cuja Ursprache há bem poucos dados no
Décimo Primeiro Volume) a célula primordial não é o verbo, mas o adje-
tivo monossilábico. O substantivo se forma por acumulação de adjetivos.
Não se diz lua: diz-se aéreo-claro sobre escuro-redondo ou alaranjado-
tênue-do-céu ou qualquer outro acréscimo. No caso escolhido, a massa
de adjetivos corresponde a um objeto real; o fato é puramente fortuito.
Na literatura deste hemisfério (como no mundo subsistente de Meinong),
são muitos os objetos ideais, convocados e dissolvidos num momento,
conforme as necessidades poéticas. Determina-os, às vezes, a mera si-
multaneidade. Há objetos compostos de dois termos, um de caráter visual
e outro auditivo: a côr do nascente e o remoto grito de um pássaro. Há
alguns de múltiplos: o sol e a água contra o peito do nadador, o vago rosa
trêmulo que se vê com os olhos fechados, a sensação de quem se deixa
levar por um rio e também pelo sonho. Esses objetos de segundo grau
podem combinar-se com outros; o processo, mediante certas abreviatu-
ras, é praticamente infinito. Há poemas famosos compostos de uma só
enorme palavra. Esta palavra integra um objeto poético criado pelo autor.
O fato de que ninguém acredite na realidade dos substantivos faz, para-
doxalmente, que seja interminável seu número. Os idiomas do hemisfério
boreal de Tlön possuem todos os nomes das línguas indo-européias — e
muitos outros mais.
Não é exagero afirmar que a cultura clássica de Tlön abrange uma
única disciplina: a psicologia. As outras estão subordinadas a ela. Mencio-
nei que os homens desse planeta concebem o universo como uma série
de processos mentais, que não se desenvolvem no espaço, mas de modo
sucessivo no tempo. Spinoza confere à sua inesgotável divindade os atri-
butos da extensão e do pensamento; ninguém compreenderia em Tlön
a justaposição do primeiro (que apenas é típico de certos estados) e do
segundo — que é um sinônimo perfeito do cosmos. Antes, com outras
palavras: não concebem que o espacial perdure no tempo. A percepção
de uma fumaceira no horizonte e depois do campo incendiado e depois
do charuto meio apagado que produziu a queimada é considerada um
exemplo de associação de idéias.
Este monismo ou idealismo total invalida a ciência. Explicar (ou
julgar) um fato é uni-lo a outro; essa vinculação, em Tlön, é um estado
posterior do sujeito, que não pode afetar ou iluminar o estado anterior.
Todo estado mental é irredutível: o simples fato de nomeá-lo — id est,
de classificá-lo — importa em falseio. Disso caberia deduzir que não há
ciências em Tlön — nem sequer raciocínios. Mas a paradoxal verdade é
112
que existem, em quase incontável número. Com as filosofias acontece
o que sucede com os substantivos no hemisfério boreal. O fato de que
toda filosofia seja de antemão um jogo dialético, uma Philosophie des Als
Ob, contribuiu para multiplicá-las. Sobram os sistemas incríveis, mas de
construção agradável ou de tipo sensacional. Os metafísicos de Tlön não
buscam a verdade nem sequer a verossimilhança: buscam o assombro.
Julgam que a metafísica é um ramo da literatura fantástica. Sabem que
um sistema não é outra coisa que a subordinação de todos os aspectos do
universo a qualquer um deles. Até a frase “todos os aspectos” é inaceitá-
vel porque supõe a impossível adição do instante presente e dos pretéri-
tos. Também é lícito o plural “os pretéritos”, porque supõe outra operação
impossível ... Uma das escolas de Tlön chega a negar o tempo: argumenta
que o presente é indefinido, que o futuro não tem realidade senão como
esperança presente, que o passado não tem realidade senão como lem-
brança presente*. Outra escola declara que transcorreu já todo o tempo e
que nossa vida é apenas a lembrança ou reflexo crepuscular, e sem dúvida
falseado e mutilado, de um processo irrecuperável. Outra, que a história
do universo — e nela nossas vidas e o pormenor mais tênue de nossas vi-
das — é a escritura que produz um deus subalterno para entender-se com
um demônio. Outra, que o universo é comparável a essas criptografias nas
quais não valem todos os símbolos e que só é verdade o que sucede cada
trezentas noites. Outra, que enquanto dormimos aqui, estamos despertos
em outro lado e que assim cada homem é dois homens.
Entre as doutrinas de Tlön, nenhuma mereceu tanto escânda-
lo como o materialismo. Alguns pensadores o formularam, com menos
clareza que fervor, como quem expõe um paradoxo. Para facilitar o en-
tendimento dessa tese inconcebível, um heresiarca do século décimo
primeiro** ideou o sofisma das nove moedas de cobre, cujo renome es-
candaloso equivale em Tlön ao das aporias eleáticas. Desse “raciocínio
especioso” há muitas versões, nas quais o número de moedas e o número
de achados variam; eis aqui a mais comum:
Terça-feira, X atravessa um caminho deserto e perde nove moedas
de cobre. Quinta-feira, Y encontra no caminho quatro moedas, um pou-
co enferrujadas pela chuva de quarta-feira. Sexta-feira, Z descobre três
*Russel (The analysis of mind, 1921, página 159) supõe que o planeta foi criado há
poucos minutos, provido de uma humanidade que “recorda” um passado ilusório.
**Século, de acordo com o sistema duodecimal, significa um período de cento e
quarenta e quatro anos.
113
moedas no caminho. Sexta-feira de manhã, X encontra duas moedas no
corredor de sua casa. O heresiarca queria deduzir dessa história a reali-
dade — id est a continuidade — nas nove moedas recuperadas. É absur-
do (afirmava) imaginar que quatro das moedas não existiram entre terça
e quinta-feira, três entre terça-feira e a tarde de sexta-feira, duas entre
terça-feira e a madrugada de sexta-feira, É lógico pensar que existiram,
ainda que de algum modo secreto, de compreensão vedada aos homens
— em todos os momentos desses três prazos.
A linguagem de Tlön se opunha a formular esse paradoxo; os de-
mais não entenderam. Os defensores do sentido comum limitaram-se,
no início, a negar a veracidade do episódio. Repetiram que era uma fa-
lácia verbal embasada no emprego temerário de duas vozes neológicas,
não autorizadas pelo uso e alheias a todo pensamento severo: os verbos
encontrar e perder, que comportavam uma petição de princípio, porque
pressupunham a identidade das nove moedas e das últimas. Recordaram
que todo substantivo (homem, moeda, quinta-feira, quarta-feira, chuva)
somente tem um valor metafórico. Denunciaram a pérfida circunstância
um pouco enferrujadas pela chuva de quarta feira, que pressupõe o que
se procura demonstrar: a persistência das quatro moedas, entre quinta e
terça-feira. Explicaram, que uma coisa é igualdade e outra identidade, e
formularam uma espécie de reductio and absurdum, ou seja, o caso hipo-
tético de nove homens que em nove noites sucessivas padecem uma dor
viva. Não seria ridículo — perguntaram — pretender que essa dor fosse
a mesma*? Disseram que ao heresiarca movia-o apenas o blasfematório
propósito de atribuir a divina categoria de ser a umas simples moedas e
que, às vezes, negava a pluralidade e outras, não. Argumentaram: se a
igualdade abrangesse a identidade, seria necessário admitir, do mesmo
modo, que as nove moedas eram uma só.
Incrivelmente, essas refutações não resultaram definitivas. Ao fim
de cem anos de proposição do problema, um pensador não menos bri-
lhante que o heresiarca, mas de tradição ortodoxa, suscitou uma hipóte-
se muito audaz. Essa conjetura feliz afirmava que há um só sujeito, que
esse sujeito indivisível é cada um dos seres do universo e que estes são
os órgãos e máscaras da divindade. X é Y e é Z. Z descobre três moedas,
*Hoje em dia, uma das igrejas de Tlön sustenta platonicamente, que tal dor, que tal
matiz verdoso do amarelo, que tal temperatura, que tal som, são a única realidade. Todos
os homens, no vertiginoso instante do coito, são o mesmo homem. Todos os homens que
repetem uma linha de Shakespeare são Willian Shakespeare.
114
porque se lembra que X as perdeu; X encontra duas no corredor porque
se lembra que foram recuperadas as outras... O décimo primeiro volume
deixa entender que três razões capitais determinaram a vitória total desse
panteísmo idealista. A primeira, o repúdio do solipsismo; a segunda, a
possibilidade de conservar a base psicológica das ciências; a terceira, a
possibilidade de conservar o culto dos deuses. Schopenhauer (o apaixo-
nado e lúcido Schopenhauer) formula uma doutrina muito semelhante no
primeiro volume de Parerga und Paralipomena.
A geometria de Tlön compreende duas disciplinas um pouco dis-
tintas: a visual e a tátil. A última corresponde à nossa e a subordinam à
primeira. A base da geometria visual é a superfície, não o ponto. Esta ge-
ometria desconhece as paralelas e declara que o homem que se desloca
modifica as formas que o circundam. O fundamento de sua aritmética é
a noção de números indefinidos. Acentuam a importância dos conceitos
de maior e menor, que nossos matemáticos simbolizam por > e por <.
Afirmam que a operação de contar modifica as quantidades e as converte
de indefinidas em definidas. O fato de que vários indivíduos que contam
uma mesma quantidade obtenham resultado igual é, para os psicólogos,
um exemplo de associação de idéias ou de bom exercício da memória. Já
sabemos que em Tlön o sujeito do conhecimento é uno e eterno.
Nos hábitos literários é também todo-poderosa a idéia de um su-
jeito único. É raro que os livros estejam assinados. Não existe o conceito
do plágio: estabeleceu-se que todas as obras são obra de um só autor,
que é intemporal e é anônimo. A crítica costuma inventar autores: esco-
lhe duas obras dissímiles — o “Tao Te King” e as “1001 Noites”, digamos
— confere-as a um mesmo escritor e logo determina com probidade a
psicologia desse interessante homme de lettres...
Também os livros são diferentes. Os de ficção abarcam um único
argumento, com todas as permutações imagináveis. Os de natureza filo-
sófica invariavelmente contêm a tese e a antítese, o rigoroso pró e contra
de uma doutrina. Um livro que não encerre seu contralivro é considerado
incompleto.
Séculos e séculos de idealismo não deixaram de influir na realida-
de. Não é infrequente, nas regiões mais antigas de Tlön, a duplicação de
objetos perdidos. Duas pessoas buscam um lápis; a primeira o encontra
e não diz nada; a segunda encontra um segundo lápis não menos real,
contudo, mais ajustado a sua expectativa. Esses objetos secundários se
chamam hrönir e são, ainda que de forma desairada, mais compridos. Até
há pouco os hrönir eram filhos fortuitos da distração e do esquecimento.
115
Parece mentira que sua metódica produção conte apenas cem anos, mas
assim está referido no Décimo Primeiro Volume. Os primeiros intentos
foram estéreis. O modus operandi, no entanto, merece ser recordado. O
diretor de um dos cárceres do Estado comunicou aos presos que no anti-
go leito de um rio havia certos sepulcros e prometeu a liberdade aos que
trouxessem um achado importante. Durante os meses que precederam
à escavação, apresentaram-lhes fotografias do que iam encontrar. Essa
primeira tentativa provou que a esperança e a avidez podem inibir; uma
semana de trabalho com a pá e a picareta não conseguiu exumar outro
hrön, salvo uma roda enferrujada, de data posterior ao experimento. Esta
foi mantida em segredo e depois repetida em quatro colégios. Em três,
foi quase total o fracasso; no quarto (cujo diretor morreu casualmente
durante as primeiras escavações), os discípulos exumaram — ou produzi-
ram — uma máscara de ouro, uma espada arcaica, duas ou três ânforas de
barro e o limoso e mutilado torso de um rei com uma inscrição no peito
que ainda não se logrou decifrar. Descobriu-se assim a improcedência de
testemunhas que conhecessem a natureza experimental da busca... As in-
vestigações em massa produzem objetos contraditórios; agora preferem-
se os trabalhos individuais e quase improvisados. A metódica elaboração
de hrönir (diz o Décimo Primeiro Volume) prestou serviços prodigiosos
aos arqueólogos. Permitiu examinar e até modificar o passado, que agora
não é menos plástico e menos dócil que o futuro. Fato curioso: os hrönir
de segundo e de terceiro grau — os hrönir derivados de outro hrön, os
hrönir derivados do hrön de um hrön — exageram as aberrações do ini-
cial; os de quinto, são quase uniformes; os de nono, confundem-se com
os de segundo; nos de décimo primeiro, há uma pureza de linhas que os
originais não têm. O processo é periódico: o hrön de décimo segundo grau
já começa a decair. Mais estranho e mais puro que todo hrön é, às vezes,
o ur: a coisa produzida por sugestão, o objeto eduzido pela esperança. A
grande máscara de ouro que mencionei é um ilustre exemplo.
As coisas duplicam-se em Tlön; propendem simultaneamente a a-
pagar-se e a perder as particularidades, quando se as esquece. É clássico o
exemplo do umbral que perdurou enquanto o visitava um mendigo e que
se perdeu de vista com sua morte. Às vezes, alguns pássaros, um cavalo,
salvaram as ruínas de um anfiteatro.
117
Gunnar Erfjord ou como adepto. Seu recebimento de um exemplar do
Décimo Primeiro Volume parece favorecer a segunda hipótese. Mas, e os
outros? Aí por volta de 1942, recrudesceram os fatos. Lembro-me com
singular nitidez de um dos primeiros e acho que vislumbrei algo de seu
caráter premonitório. Sucedeu num apartamento da Rua Laprida, frente
a uma clara e alta sacada, voltada para o oeaso. A Princesa de Faucigny
Lucinge recebera de Poitiers sua baixela de prata. Do vasto interior de um
caixote rubricado de carimbos internacionais, iam saindo finas coisas imó-
veis: prataria de Utrecht e de Paris com dura fauna heráldica, um samovar.
Entre elas — com um perceptível e tênue tremor de pássaro adormecido
— latejava misteriosamente uma bússola. A princesa não a reconheceu.
A agulha azul indicava o norte magnético; a caixa de metal era côncava;
as letras da esfera correspondiam a um dos alfabetos de Tlön. Tal foi a
primeira intrusão do mundo fantástico no mundo real. Um acaso que me
inquietava fêz que também fosse testemunha da segunda. Aconteceu uns
meses depois, na venda de um brasileiro, na Cuchilla Negra. Amorim e
eu regressávamos de Santana. Uma enchente do Rio Taquarembó nos
obrigou a provar (e a suportar) essa rudimentar hospitalidade. O vendeiro
acomodou-nos em catres rangentes numa peça ampla, entorpecida de
barris e couros. Deitamo-nos, mas não nos deixou dormir até o amanhe-
cer a bebedeira de um vizinho fantasma, que alternava injúrias inextricá-
veis com trechos de milongas — melhor, com trechos de uma só milonga.
Como é de supor, atribuímos à fogosa cachaça do hospedeiro essa gritaria
insistente... Pela madrugada, o homem estava morto no corredor. A aspe-
reza da voz nos enganara: era um rapaz moço. Durante o delírio caíram-
lhe do tirador algumas moedas e um cone reluzente, do diâmetro de um
dado. Em vão um menino tentou recolher esse cone. Apenas um homem
mal conseguiu levantá-lo. Peguei-o na palma da mão por alguns minutos:
lembro-me de que seu peso era intolerável e que, depois de retirado o
cone, persistiu a opressão. Também me lembro do preciso círculo que me
gravou na carne. Essa evidência de um objeto muito pequeno e ao mesmo
tempo pesadíssimo deixava a impressão desagradável de asco e de medo.
Um lavrador propôs que o arremessassem à correnteza do rio: Amorim o
adquiriu por alguns pesos. Ninguém sabia nada sobre o morto, exceto que
“procedia da fronteira”. Esses cones pequenos e muito pesados (feitos de
um metal que não é deste mundo) são imagem da divindade, em certas
religiões de Tlön.
Aqui dou término à parte pessoal de meu relato. O resto está na
memória (quando não na esperança ou no temor) de todos os meus leito-
118
res. É suficiente para mim recordar ou mencionar os fatos subseqüentes,
com mera brevidade de palavras que a côncava lembrança geral enrique-
cerá ou ampliará. Por volta de 1944, um investigador do jornal The Ame-
rican (de Nashville, Tennessee) exumou numa biblioteca de Memphis os
quarenta volumes da Primeira Enciclopédia de Tlön. Até o dia de hoje se
discute se esse descobrimento foi casual ou se o consentiram os diretores
do ainda nebuloso Orbis Tertius. É aceitável a segunda hipótese. Alguns
traços incríveis do Décimo Primeiro Volume (por exemplo, a multiplicação
dos hrönir) foram eliminados ou atenuados no exemplar de Memphis; é
razoável imaginar que essas supressões obedecem ao plano de exibir um
mundo que não seja demasiadamente incompatível com o mundo real.
A disseminação de objetos de Tlön, em diversos países, complementaria
esse plano...* O fato é que a imprensa internacional apregoou infinita-
mente o “achado”. Manuais, antologias, resumos, versões literais, reim-
pressões autorizadas e reimpressões piráticas da Obra Maior dos Homens
abarrotaram e continuam abarrotando a terra. Quase imediatamente, a
realidade cedeu em mais de um ponto. O certo é que desejava ceder. Há
dez anos, qualquer simetria com aparência de ordem — o materialismo
dialético, o anti-semitismo, o nazismo — bastava para atrair os homens.
Como não submeter-se a Tlön, à minuciosa e larga evidência de um pla-
neta ordenado? Inútil responder que a realidade também está ordenada.
Quem sabe o esteja, mas conforme leis divinas — explico: leis desumanas
— que nunca percebemos completamente. Tlön será um labirinto, mas
um labirinto urdido por homens, um labirinto destinado a ser decifrado
pelos homens. O contato e o hábito de Tlön desintegraram este mundo.
Encantada por seu rigor, a humanidade esquece e torna a esquecer que
é um rigor de enxadristas, não de anjos. Penetrou nas escolas o (conjetu-
ral) “idioma primitivo” de Tlön; já o ensino de sua história harmoniosa (e
cheia de episódios comovedores) obliterou o que presidiu minha infância;
já nas memórias um passado fictício ocupa o lugar de outro, do qual nada
sabemos com certeza — nem, ao menos, que é falso. Foram reformadas
a numismática, a farmacologia e a arqueologia. Acho que a biologia e a
matemática aguardam também seu avatar... Uma dispersa dinastia de so-
litários mudou a face do mundo. Sua tarefa prossegue. Se nossas previ-
sões não errarem, daqui cem anos alguém descobrirá os cem volumes da
Segunda Enciclopédia de Tlön.
119
Então desaparecerão do planeta o inglês e o francês e o simples
espanhol. O mundo será Tlön. Não me importo, continuo revisando, nos
plácidos dias do Hotel Adrogué, uma indecisa tradução quevediana (que
não tenciono publicar) do Urn Burial, de Browne.
120
CONTO BRASILEIRO
ALFREDO
Luciano Rodrigues
135
136
CIÊNCIA
PREENCHENDO AS LACUNAS
Isaac Asimov
137
Minha mãe disse imediatamente: “Sim, certamente. Isaac Asimov
é meu filho”.
O professor replicou: “Oh! Então não é de admirar que a senhora
escreva tão bem!”.
Ao que minha mãe, bem consciente do fluxo unidirecional dos ge-
nes, empertigou-se e disse friamente: “Desculpe-me, senhor. Não é de
admirar que êle escreva tão bem”.
E, com a lembrança deste comentário moderador a produzir em
mim a humildade adequada, volto-me agora para o assunto do mês, o
qual retomarei a partir do ponto onde o deixei o mês passado.
140
Na Tabela I, uso os símbolos químicos dos elementos para poupar
espaço, mas isso não afeta a argumentação, nem a atrapalha de modo
algum, mesmo se o leitor não souber que elementos os símbolos repre-
sentam. Quando tiver de mencionar um elemento particular, entretanto,
darei o nome completo, bem como o símbolo.
As fileiras da Tabela I contêm, na verdade, famílias de elementos
intimamente ligados. Por exemplo, a primeira fileira contém o lítio (Li), o
sódio (Na), o potássio (K), o rubídio (Rb), o césio (Cs) e o frâncio (Fr), que
têm todos propriedades muito semelhantes. Todos têm baixo ponto de
fusão e são metais extremamente ativos que, sob dadas condições quími-
cas, reagem de modo quase idêntico. E, além disso, onde há diferenças,
estas apresentam uma gradação constante através da fileira. Do lítio ao
sódio, ao potássio e assim por diante, vemos que o ponto de fusão se
torna progressivamente mais baixo e a atividade progressivamente mais
alta. Estes seis elementos são os “metais alcalinos”.
A segunda fileira contém seis “metais alcalinos terrosos”, que tam-
bém são semelhantes entre si, e assim por diante.
Observe-se que, no período 5, o telúrio (Te) vem antes do iodo (I),
apesar do telúrio ter peso atômico maior. Deveria ser colocado após o
iodo, se o peso atômico fosse o único critério.
Foi uma das grandes decisões de Mendeleiev dar primazia às ques-
tões de valência (e às propriedades químicas em geral), relegando as do
peso atômico a segundo, plano. Para colocar o telúrio e o iodo na famí-
lia adequada e com a valência adequada, a ordem do peso atômico teve
de ser invertida. O conhecimento mais sofisticado da estrutura atômica,
alcançado por cientistas mais modernos, provou que, a este respeito, a
intuição de Mendeleiev estava totalmente correta.
Quando se percorre a lista de elementos seguindo a ordem dos pe-
sos moleculares, observa-se que um conjunto particular de propriedades
aparece periodicamente. Assim, quando os elementos são dispostos de
modo a fazer com que esses conjuntos particulares se agrupem em fileiras
ou colunas bem ordenadas, a lista é chamada de “tabela periódica”.
Na época em que Mendeleiev propôs pela primeira vez a tabela
periódica, alguns elementos incluídos na Tabela I ainda não haviam sido
descobertos. Estão indicados na Tabela I por asteriscos.
Por exemplo, os seis elementos da última fileira, o hélio (He), o
neônio (Ne), o argônio (Ar), o criptônio (Kr), o xenônio (Xe) e o rádon
(Rn), eram todos desconhecidos em 1869. Sua existência era totalmente
insuspeitada, e a tabela periódica parecia completa sem eles. Quando se
141
percorre a lista dos pesos atômicos em ordem crescente, observa-se que
a mudança de valência dos elementos incluídos na Tabela I (com exceção
da última fileira) seria 1,1,2,3,4,3,2,1,1,2,3,4,3,2,1, 1,2, e assim por diante.
Entretanto, quando os elementos da última fileira foram descober-
tos, observou-se que eles não se combinavam com nenhum outro ele-
mento e que, conseqüentemente, tinham uma valência de O. A mudança
de valência ficou, portanto, 1,0,1,2,3,4,3,2,1,0,1,2,3,4,3,2,0,1,2, e assim
por diante.
Os elementos da última fileira, que têm todos propriedades muito
semelhantes e são chamados de “gases inertes” ou “gases nobres”, au-
mentam, portanto, a tabela sem a alterar. Bem pelo contrário, a inserção
de um O no lugar adequado torna a tabela periódica ainda mais elegante.
O fato de que um grupo desconhecido de elementos devesse tão notavel-
mente se adequar e dar mais harmonia a uma tabela periódica inventada
sem eles, é uma prova extraordinária a favor da validade do conceito de
Mendeleiev.
Observa-se que, para conservar o argônio (Ar) no seu lugar correto
na família dos gases inertes, êle teve de ser colocado antes do potássio
(K), apesar disso inverter a ordem do peso molecular. Novamente, isto
revelou ser A Medida Acertada.
Observa-se também que, na Tabela I, os cinco elementos que têm
os pesos atômicos mais altos eram desconhecidos na época de Mende-
leiev. São o polônio (Po), o astatínio (At), o rádon (Rn), o frâncio (Fr) e o
rádio (Ra). Foram descobertos a partir da década de 1890 e são exemplos
de elementos radioativos. Todos são instáveis e existem em quantidades
muito pequenas na crosta terrestre. Como estão todos no final da tabela,
sua ausência não afeta o restante.
Depois há o caso do flúor (F), que, a rigor, não era conhecido na
época de Mendeleiev. É, entretanto, um caso especial. Compostos do
flúor eram conhecidos, e, como o elemento é um membro de uma famí-
lia muito intimamente ligada, os cientistas, baseados no conhecimento
daqueles compostos, tinham determinado sua existência e propriedades.
Foi apenas devido ao flúor ser tão estreitamente unido aos outros ele-
mentos que os químicos só conseguiram desprendê-lo e estudá-lo na sua
forma elementar em 1886. Na realidade, foi incluído na tabela desde o
princípio (exatamente como os pólos Norte e Sul puderam ser colocados
nos globos terrestres do século XIX apesar de ninguém ainda ter chegado
até lá nessa época).
Restam dois elementos: o gálio (Ga) e o germânio (Ge). Estes não
142
estão no final da tabela, quer seja na última coluna ou na última fileira,
de modo que não podiam ser omitidos sem afetar o resto da tabela. Ao
contrário do flúor, eram totalmente insuspeitados e deixavam “buracos”
na tabela.
Isto significa que, se tentássemos ordenar os elementos segundo
seu peso atômico e não considerássemos o gálio e o germânio, seríamos
forçados a colocar o arsênio (As) à direita do alumínio (Al), o selênio (Se) à
direita do silício (Si) e assim por diante. Isto alteraria totalmente a ordem
das famílias e da valência.
Mendeleiev recusou fazê-lo, e essa foi a maior de suas contribui-
ções. Colocou o arsênio (As) à direita do fósforo (P) e o selênio (Se) à di-
reita do enxofre (S), onde, segundo o critério das propriedades, eram seus
lugares. Como isso deixava dois espaços vazios à direita do alumínio (Al)
e do silício (Si), êle calmamente decidiu que tais espaços representavam
dois elementos que ainda deveriam ser descobertos. Chamou-os de “eca-
alumínio” e “eca-siiício”, respectivamente, sendo “eca” a palavra sânscrita
para “um”. Em outras palavras, os elementos ainda não encontrados co-
locavam-se um espaço à direita do alumínio e do silício, respectivamente.
Além disso, Mendeleiev predisse, com bastantes detalhes, as pro-
priedades dos elementos ainda não encontrados, supondo que o gálio
(Ga) teria propriedades afins às do alumínio (Al) e do índio (In) e que o
germânio (Ge) teria propriedades afins às do silício (Si) e do estanho (Sn).
Em geral, os químicos sorriram indulgentemeníe do russo louco;
mas em 1875 o gálio foi descoberto e em 1886 descobriu-se o germânio.
As predições de Mendeleiev estavam corretas sob todos os aspectos. Os
químicos pararam-de rir. .
Será que isto significa que a tabela periódica, como foi descrita até
agora, é perfeita?
Infelizmente, não. A versão da tabela periódica apresentado na Ta-
bela I contém apenas quarenta e quatro elementos, mas o número de ele-
mentos é muito maior. Elementos tão conhecidos como o ouro, a prata, o
cobre, o ferro, a platina, o manganês e o tungsrêhio (todos perfeitamente
conhecidos na época de Mendeleiev) não encontraram lugar na tabela
periódica, na forma apresentada na Tabela I.
Deve a tabela periódica ser rejeitada ou será possível encontrar
lugar para os elementos que faltam?
Bem, observem os três lugares que marquei com um sinal #. Entre
o cálcio (Ca) e o gálio (Ga), há uma diferença de peso atômico de 29,7;
entre o estrôncio (Sr) e o índio (In), uma diferença de 27,2; e entre o bário
143
(Ba) e o tálio (TI), uma diferença que atinge o total de 67,1. Estas diferen-
ças são muito maiores que as outras existentes na tabela periódica. Na
verdade, se estes três intervalos não são considerados, a diferença média
de peso atômico de um elemento para outro é de apenas 2,5 em todo o
restante da tabela.
Se aceitamos 2,5 como a diferença média de peso atômico entre
elementos adjacentes em toda a tabela, há lugar para doze elementos
entre o cálcio (Ca) e a gálio (Ga), para onze entre o estrôncio (Sr) e o índio
(In) e para nada menos que vinte e sete entre o bário (Ba) e o tálio (TI).
Será isto possível ?
É possível, se admitimos que os períodos da tabela periódica não
precisam ser todos necessariamente do mesmo comprimento (como al-
guns dos primeiros especuladores supuseram), mas podem ter suas colu-
nas aumentadas.
Na época de Mendeleiev, por exemplo, o primeiro período tinha
apenas um membro, o hidrogênio (H), enquanto os períodos 2 e 3 tinham
cada um sete membros. Na geração seguinte, quando os gases inertes
foram descobertos, o primeiro período passou a conter dois elementos
e o segundo e o terceiro, cada um, oito elementos. (Não houve mudança
desde então.) Por que, portanto, não poderiam os últimos períodos, pular
para vinte ou até mesmo trinta ou mais elementos?
Na verdade, na época de Mendeleiev, eram conhecidos nada me-
nos que nove elementos cujos pesos atômicos se colocavam entre os do
cálcio (Ca) e do gálio (Ga), elementos que serviriam, portanto, para preen-
cher esta grande lacuna de pesos atômicos. Da mesma forma, havia nove
elementos que contribuiriam para preencher as lacunas entre o estrôncio
(Sr) e o índio (In).
O problema era que, entre; esses elementos das lacunas, a valên-
cia não era mais um fenômeno tão predominante e claro quanto entre
os elementos da Tabela I. Os elementos preenchiam lacunas entre um
elemento com uma valência bem definida de 2 e outro com uma valên-
cia bem definida de 3; entre o cálcio (Ca) e o gálio (Ga) no primeiro caso
e entre o estrôncio (Sr) e o índio (In) no segundo. Como representavam
uma espécie de transição de 2 a 3, podem ser chamados de “elementos
de transição”. Por razões deste artigo, chamo os elementos da Tabela I de
“elementos de valência”.
A ordenação dos elementos de transição pode ser orientada em
parte pelo peso molecular, em parte por propriedades de valência me-
nos precisas e em parte por outras propriedades químicas. Seguindo estes
144
critérios, podemos tomar os dezoito elementos conhecidos destas duas
primeiras lacunas (a partir de 1869) e ordená-los como na Tabela II.
145
Não há nenhuma dúvida quanto à ordenação desta tabela. É claro,
por exemplo, que a prata (Ag) deva ficar à direita do cobre (Cu) e que o
cádmio (Cd) deva ficar à direita do zinco (Zn) por considerações químicas
muito convincentes. O mesmo acontece com os outros. É somente com
esta ordenação que as propriedades dos elementos da coluna da esquer-
da se combinam com as dos colocados na coluna da direita; e isto acon-
tece na ordem devida do peso atômico, tom exceção do cobalto (Co) e do
níquel (Ni). Nesse caso, para preservar as verdades químicas, a ordem do
peso atômico deve ser invertida. Mas a diferença entre os pesos atômicos
desses elementos é tão pequena que o inversão é uma falha algo venal.
(Este é o terceiro e último caso de uma inversão da ordem dos pesos atô-
micos na tabela periódica.)
Com os dezoito elementos de transição dos períodos 4 e 5 arran-
jados como na Tabela II, nota-se a existência de dois espaços vazios. O
primeiro é o que fica à esquerda do ítrio (Y) e o segundo é o que fica à di-
reita do manganês (Mu). Mendeleiev escolheu o espaço vazio à esquerda
do ítrio (Y) para predizer, pela terceira vez, a existência de um elemento
ainda desconhecido, com todas as suas propriedades. [Chamou-o de “eca-
boro”, porque, na sua primeira versão da tabela, colocara o espaço vazio
à direita do boro (B).]
Suas afirmações foram confirmadas em 1879, quando o escândio
foi descoberto. Seu símbolo é (Sc), e seu peso atômico é 45,0, ajustando-
se perfeitamente entre o cálcio (Ca) e o titânio (Ti).
O espaço vazio à direita do manganês (Mn) não foi tão facilmente
preenchido. Na verdade, o elemento que o preenche não foi descoberto
senão em 1937. Foi chamado de tecnécio (Tc, peso atômico 99).
Os intervalos de peso atômico entre elementos de transição (su-
pondo-se que os períodos 4 e 5 tivessem, com os espaços vazios, cada
um, dez elementos) estavam agora em ordem. A diferença média de peso
atômico entre os elementos era de 2,6, para a de 2,5 entre os elementos
de valência.
Entretanto, poder-se-ia ter certeza, na ausência de decisivas consi-
derações de valência, de que não havia onze elementos em cada uma das
duas séries de transição ou até mesmo doze? Suponhamos, por exemplo,
que faltasse um elemento entre c e d nas duas séries. Se faltasse um ele-
mento entre c e d em apenas uma das séries, poderíamos notar a lacuna
resultante pela presença do elemento equivalente na outra série (como
no caso da lacuna à esquerda do ítrio, por exemplo). Mas, se ambas as
séries fossem deficientes no mesmo ponto, não poderíamos perceber a
146
ausência de elementos. (Esse foi o caso dos gases inertes, pois sua exis-
tência era insuspeitada, quando toda a série era desconhecida. Assim que
um foi descoberto, os outros surgiram na tabela como espaços vazios;
foram procurados e encontrados.)
Um argumento a favor de dez, como sendo o número correto para
os elementos de transição, deriva-se do fato do número total de elemen-
tos, de valência e de transição, dos períodos 4 e 5 ser 18. Isto introduz
uma regularidade interessante. Isto é, o número total de elementos no
período 1 é 2x12 = 2; o número total de elementos nos períodos 2 e 3 é
2x22 -=8; e o número total de elementos nos períodos 4 e 5 é 2x32 = 18.
Isto é bonito, e, para uma pessoa que tenha, como eu, inclinação
pelos números, é até convincente. Mas, na verdade, que relação têm os
elementos com este arranjo bem ordenado? Não havia, no século XIX,
nenhuma teoria que desse razão a uma tal relação, e ela bem poderia ser
apenas uma coincidência desorientadora.
De modo que os químicos não podiam ter certeza, e a tabela perió-
dica, embora fosse um guia valioso, permanecia algo vacilante.
A seguir, o que dizer sobre a terceira série de elementos de transi-
ção, os elementos que deviam preencher a lacuna particularmente grande
de peso atômico entre o bário (Ba) e a tálio (TI)? Na época de Mendeleiev,
eram conhecidos onze elementos dessa lacuna. Se tentamos combiná-los
com as outras duas séries de elementos de transição de acordo com o
esquema de a a j, acabamos por obter a Tabela III.
Os elementos indicados na Tabela III combinam-se indubitavel-
mente com os da Tabela II. Assim o ouro (Au) ocupa claramente a posição
i à direita do cobre (Cu) e da prata (Ag), e o resto dos elementos indicados
estão, com igual clareza, nos seus devidos lugares.
Há dois espaços vazios na tabela, entretanto. Na posição c, deveria
haver um elemento à direita do zircônio (Zr), e, em 1923, esse elemento
foi, na verdade, encontrado. Recebeu o nome de háfnio (Hf, peso atômi-
co 178,5) e foi descoberto em minérios de zircônio. Adequava-se perfei-
tamente ao lugar. O háfnio levou tanto tempo para ser descoberto não
porque fosse extremamente raro, mas porque suas propriedades eram
tão semelhantes às do zircônio que foi difícil separá-lo de sua irmã gêmea
muito mais comum.
A lacuna na posição e foi preenchida em 1925 com a descoberta do
rênio (Re, peso molecular 186,2).
Não havia nenhum elemento conhecido na terceira série de ele-
mentos de transição que indicasse a existência de lacunas insuspeitadas
147
ha primeira ou segunda séries. Isso era um ponto a favor da suposição
de que havia apenas 10 elementos em cada uma dessas duas primeiras
séries.
148
Mas, mesmo com a descoberta do háfnio, observa-se que há um
intervalo considerável de peso atômico entre este e o lantânio (La), um
intervalo de 39,6. Este intervalo existe entre a e b do período 6, e não
há absolutamente nenhum intervalo na posição correspondente dos pe-
ríodos 4 e 5. Há lugar para vários elementos nesse grande espaço entre
pesos atômicos.
Todavia, eu disse que, na época de Mendeleiev, havia onze ele-
mentos conhecidos cujos pesos atômicos se situavam entre os do bário
(Ba) e os do tálio (TI). A Tabela III apresenta somente oito. E os outros
três?
Esses outros três têm pesos atômicos que, de fato, pertencem a
esse intervalo entre o lantânio (La) e o háfnio (Hf). São o cério (Ce), o érbio
(Er) e o térbio (Tb).
Estes são três dos metais das terras raras que discuti no artigo do
mês passado. Dois outros eram conhecidos na época, o lantânio (La) e o
ítrio (Y), e um outro foi descoberto logo depois, o escândio (Sc). Entretan-
to, o escândio, o lantânio e o ítrio têm seu lugar na posição a dos períodos
4, 5 e 6, respectivamente, e são elementos de transição comuns. Apenas
o cério, o érbio e o térbio devem ser colocados nessa lacuna especial do
período 6. Até 1907, foram localizados mais dez elementos das terras ra-
ras cujos pesos atômicos os colocam neste intervalo especial. A lista dos
treze encontra-se na Tabela IV.
Quantos mais poderia haver?
Voltemos a um jogo de números que mencionei a pouco. O mes-
mo sistema que explica os números 2,8,8,18,18 para os cinco primeiros
períodos, faria o número total de elementos no sexto período ser 2x42 =
32. Como os elementos de valência e os elementos de transição juntos
somam 18 no sexto período, seriam necessários 14 elementos das terras
raras pára preencher as lacunas e obter 32.
Temos 13; onde encontraríamos o décimo quarto?
Entre o neodímio (Nd) e o samário (Sm), há uma diferença de peso
atômico de 6,2, o dobro da diferença normal. Talvez o elemento esteja
neste intervalo. Entretanto, a diferença entre o európio (Eu) e o gadolínio
(Gd) é de 5,3 e a existente entre o túlio (Tm) e o itérbio (Yb) é de 4,1. Tal-
vez faltem três elementos das terras raras, um em cada lugar, ou, quem
sabe, até mais. Não podemos afinal nos apegar demais a uma bela relação
numérica sem ter uma evidência física que explique sua existência.
Em resumo, quarenta anos após Mendeleiev ter apresentado a ta-
bela periódica dos elementos, esta permanecia incompleta. Apesar dos
149
enormes triunfos que alcançou e da maneira ordenada com que solucio-
nou quase todos os problemas com que se defrontou, os químicos não
podiam ter certeza de que permaneceria um guia adequado sob todas as
condições. Em especial, não podiam ter certeza de que incluiria adequa-
damente os elementos das terras raras.
Foi por esta razão, mais do que por qualquer outra, que os quími-
cos vasculharam ansiosamente os minerais das terras raras para ver quan-
tos elementos novos podiam identificar com certeza. Com isso, poderiam
ter ocasionado o colapso estrondoso de toda a tabela periódica.
Mas tal não aconteceu. Pelo contrário, em 1914, a tabela periódica
recebeu finalmente um fundamento firme e lógico; e isso aconteceu de
um modo totalmente inesperado através de um ramo de pesquisa que
parecia não ter relação alguma com a química.
150
CARTAS
ATENÇÃO: Toda a correspondência deverá ser enviada para o se-
guinte endereço: Rua dos Andradas, 1416 — Porto Alegre — RS.
José Sanz (Rio-GB) — Achamos excelentes as sugestões que fêz e que cer-
tamente serão aproveitadas.
José Carlos Kfouri (São Paulo-SP) — Você nos pede, José Carlos, que insis-
tamos na publicação do MFC, que façamos tudo para que êle sobreviva, que êle
é aquilo que você esperava há anos. Creia, lutaremos sempre. Quanto à sugestão
sobre as capas, anotamos.
151
152