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A Antropofagia como Perspectiva Critica do Kitsch na Literatura ANA MARIA DE ALMEIDA POEMA OVAL Eu gosto de ovos E de balas de ovos E de ovos duros Com lingiiica alema E boa cerveja Eu gosto de ovos mexidos Poached & scrambled Com bacon & toast Em Londres E — ché da China Mas gosto mais — Lé isso gosto De tomar ovos quentes Co’a Serafina ‘ Oswald de Andrade I O CRITICO DA MANIERA MODERNA “Confesso, meu prezado companheiro de gargonniére de 19, que a revolugéo modernista eu a fiz mais contra mim mesmo que contra vocé ou o prezado leitor Sr. Zampeta. Pois eu temia era — 4 — escrever bonito demais. Temia fazer a carreira literéria de Paulo Settibal. Se eu néo destrocgasse todo o velho material lingiiistico que utilizava, amassasse-o de novo nas formas agrestes do moder- nismo, minha literatura aguava e eu ficava parecido com D’An- nunzio ou com vocé. Nao quero depreciar nenhuma dessas altas empressées da mundial literatura. Mas sempre enfezei em ser eu mesmo, Mau mas eu’?! Nesse trecho de correspondéncia, Oswald de Andrade apresenta Marco Zero a Leo Vaz, recolocando, mais uma vez, a sua irénica oposicéo & literatura aguda, de facil consumo, acessivel ao leitor burgués. Curiosamente, e nao acidentalmente, o divisor de 4guas é exemplificado, neste fragmento, pela atividade literaria que no pertence a um certo “dominio especial da literatura” no qual, segundo Waldomiro Silveira ? — em critica & obra de Paulo Setu- bal — “nao sendo jé a verdade sabida e conhecida, escapa seu tanto ou quanto & autoridade de ficgfo”. Ao acentuar, entretanto, a autonomia da criagaéo, Oswald de Andrade o faz no sentido de valo- rizagio da maniera dos artistas que nao “aguavam repetindo” > — da criag&o, enfim, fruto do espirito de “pesquisa e debate publico”.4 Essa tomada de consciéncia do modernismo como maniera (e aqui vale a acepg&o de maniera como “uma retérica de fuegos arti- ficiales, distorsiones preciosistas, un eludir lo decisivo y evitar lo dramatico, junto con una especie de miopia, y un notable virtuo- sismo en el manejo de las formas convencionales”) § configura, na obra oswaldiana, tanto a expresso da crise das formas tradicionais e retéricas quanto a percepgao da atividade artistica como exercicio de uma fungiio social, * isto 6, produgio em série de objetos de arte que devem ser principalmente consumiveis, colocados, como reflexo e alienagio, ao alcance do homem médio. Recusa e assuncfo dos arquétipos e valores da sociedade bur- guesa, a obra de Oswald de Andrade utiliza antropofagicamente os elementos que a estruturam — isto 6, destréi, sacralizando, os elementos com que se constréi, desmitificando. A graciosidade e @ leveza de estilo com que, “fantasiando a crénica e romanceando a histéria”,7 a literatura, 4 Paulo Settibal e & Leo Vaz, garante a aceitag&io do grande publico, podem tornar-se graca a leviandade —4— grotescas, e vice-versa. A absorgéo do inimigo sacro transforma-o em totem: os preconceitos acusam-se na repetigéio dos dogmas, e na. obsessio do ritual revela-se a dptica de devoragio e do consumo que possuem devorador e consumidor. Este trabalho pretende desenvolver alguns tracos do Kitsch na obra de Oswald de Andrade — uma maniera mais que um estilo, uma reflexéo e uma sacralizagio da gratuidade e dos excessos de toda uma cultura burguesa no apogeu.® Levar-se-4 em conta tam- pém que todas as manifestagdes do Kitsch se realizam na tensio entre o pretexto e o simulacro: o funcional (como pretexto de aquisigéio) o original (como simulacro de posse) TI MAU MAS EU “Mau mas eu”: a proposigio de originalidade atenua-se no sentido adversativo. A sintaxe que contrasta o adjetivo ao pro- nome (atributo antecedendo o sujeito) serdé sempre relativizante, como todo conceito Kitsch. Observem-se as seguintes séries con- trastivas: relativizantes absolutizantes Mau mas eu Eu mas mau Bom mas eu Eu mas bom No conceito Kitsch, a idéia do unico e individuo néo se propde como um desejo de absoluto — ela se dissolve numa série em que o néio-bom, o néo-belo séo também uma categoria de fruigdo e aceitagao. “O Kitsch aparece aqui como movimento permanente no inte- rior da arte, na relacdo entre original e banal. O Kitsch é a acei- tagéo social do prazer pela comunhfo secreta com o “mau gosto” repousante e moderado. In medio stat virtus: o Kitsch 6 uma vir- tude que caracteriza o meio. O Kitsch é 0 modo e nfo a Moda no progresso das formas.” ® — 42 A redugiio e o agigantamento ” serio manifestagées constan- tes da idéia de distorgao relativizante que ha na maniera Kitsch do modernismo oswaldiano. O poema-parédia Parafrase de Rostand™ utiliza a distorcio nos dois sentidos: o empilhamento dos clichés sentimentais e das associagdes de rimas banais minimiza, humoristicamente, a exal- tagfio amorosa. Em tal expressio todo encantamento poético sé pode fazer-se espanto; o jogo de metéforas, que se reduplicam, so retém como um espelho, o reflexo das impressdes sobre 0 sujeito; e o alongamento da cadeia de significantes acentua a sua falta de significado. O impressionismo final-de-século fica irremediavel- mente ridicularizado no seu que-como-quando associativo: Tomei de tal maneira A tua cabeleira Como um claréo Que como quando a gente fixa o Astro-Rei S6 enxerga ao depois rodelinhas vermelhas Assim também quando eu deixo Os fogos de que tu m’inundas Meu olhar espantado Pauso as manchas em que tu abundas Segundo Abraham Moles, a literatura Kitsch se caracteriza pelo processo de associagdes automaticas e pelo grau de banalidade dessas associagdes. Na poesia de Oswald de Andrade, o grau de banalidade, intensificado através da redundancia hiperbédlica, des- faz-se num procedimento caracteristico do humor — a ruptura que desloca a cadeia da significantes para outro nivel de enca- deamento inesperado. Essa ruptura faz decair, reduzindo, a gran- diloqiiéncia das associagdes, mas as remete a outro nivel de (e)lo- qiiéncia. Nos 5 primeiros versos, acima citados, a consecugfo banal desmetaforiza e desintegra a expressio antecedente, ao mesmo tempo que estabelece uma reflexéo humoristica sobre 0 processo associativo redundante (o que-como-quando roméntico-impres- sionista) . — 4 — associagéo banal e hiperbélica cabeleira — claro — Astro Rei ruptura todelinhas vermelhas A gradaciio ascendente (climax) é desfeita pela expresso hu- moristico-infantil — rodelinhas vermelhas (anti-climax) que des- metaforiza para novamente metaforizar a expresséo tomada “a0 pé da letra”. O prosaico corta o félego do encadeamento que ameaga estender-se no vazio e o refunde, numa expressio revivi- ficada pelo insdlito, pelo inesperado. Os clichés, despidos de sua funcg&o denotativa (pela repeticao, j& preenchem uma funcfo primeira, corrente e objetiva), passam @ conotar o que niio se estava a dizer. O texto desvenda o seu pre- texto — 0 ready made que mistifica a aquisigéo automatica da linguagem, e revigora um sentido original, trapaceado pelos luga- res-comuns. A mistificagio nao resiste ao prosaismo critico, porém desse processo resulta, ainda, que o banal assuma, inversamente, a sua eloqiiéncia “auténtica”. Outros poemas exemplificam esse processo de ruptura do en- cadeamento redundante, do qual resultam a desmetaforizagao e invers&o da categoria de banalidade dos esteredtipos. Tome-se para comparagao o poema: O filho da comadre esperanga Era o deserdado. Tinha uma histéria de envenenamento No passado Magro pdlido trabalhador Mas agora & forca de lutar Conseguiu uma posicéio na Bolsa de Mercadorias E comprou um chapéu novo #2 —4— Voltando ao poema Parafrase de Rostand, verificamos que a 2.4 parte é também estruturada pela redundancia. A composicéio metaférica, reiterando a série do que-como-quando, esté enfatizada na expresséo assim-também-como que inicia outro encadeamento banal e hiperbélico. O excesso de vocébulos relacionais revela o esforgo do processo associativo que, afinal, se quebra na palavra manchas: cabeleira — clardéo — Astro Rei — rodelinhas vermelhas — fogos — manchas. A figura perde seus contornos num impressionismo levado as Uiltimas conseqiiéncias do ridiculo de sua in-expressio. Todo o artificio ressalta no apoio das rimas que sugerem o duplo sentido grotesco: inundas abundas. Pode-se dizer que a adogao critica desses procedimentos im- plica aquela consciéncia de uma retérica da retérica do excesso e do vazio: uma constante atividade metalingiiistica sobre a autori- dade da ficgio e da poesia. A poesia oswaldiana nao é, entretanto, apenas a remontagem de um “velho material lingiiistico”; 6 também, e principalmente, reflexiéo sobre uma ética Kitsch, burguesa. E curioso notar que o poema adquire sempre e intencional- mente um car&ter de circunstancia, quando o autor, compée sobre e sob a estética e a ética da classe média. & bom lembrar que o carter da poesia de circunstancia é justamente o seu aspecto pro- visorio (o Kitsch é o objeto de consumo da antropofagia burguesa) ; o seu fator acomodativo (o Kitsch é fruto de uma arte de viver), tendendo a emprestar, tomar e exigir das coisas e seres a imagem de um desejo (o Kitsch realiza a idéia de ofelimidade,3 que é a “metafisica do écio” do Homo Ludens.* A monotonia e a mediocridade douradas de uma belle époque, de cujo decadentismo o autor se faz acusador e porta-voz, se amol- dam & técnica de expressao pela cépia e variagdes infinitas do que j& foi e 6 bem sucedido como veiculo de expressiio. Todo decaden- tismo pressupée a estereotipia, e o Kitsch dele se serve como “uma miopia e um ilusionismo” que evitam o draméatico e a crise. Se o — 445 — que importa é a ordem, o estabelecido e aceitdvel, por que aspirar & rubrica do unico, revolucionério e inquietante? Em Poesia de Bordo, que 6 um desnudamento do processo de composig&io poé- tica, (Haroldo de Campos, no estudo cr{tico Serafim: Um Grande Nao -Livro, estuda estuda este processo de desvendamento que pro- move a quebra da “ilusdo e o distanciamento da leitura”, em toda @ unidade a que pertence o poema acima citado), Oswald de An- drade faz o inventdrio das expressdes retéricas que constituem o auge da eloqiiéncia literdria, elegante e vazia, de uma elite de bordo, @ promover picaresca e ingenuamente a crénica dos “novos mundos e horizontes” de seu tempo. Como a obra picaresca, 0 texto é pretexto para a aquisicfio de conhecimento de uma época e refunde outros textos; e é o simulacro da compensagéo de uma posse ficticia, isto é, a posse de uma perdida cosmovisdo herdica e majestosa da existéncia. O Homo Ludens substitui o Homo Viator e o Homo Sapiens. J& em Poema de Fraque, a necessidade de se amoldar & arte de viver de todos, 4 optica dominante, nfo é mar- cada por esse humorismo desesperado de ‘“‘matinada e orfandade”. O poeta se vé obrigado a aderir & etiqueta, a encasacar-se nos padrées vigentes: POEMA DE FRAQUE No termémetro azul Da cidade comovida Faze as pazes Com a vida Savida respeitosamente As familias Das janelas Um baléo vivo Se destaca Das primeiras estrelas Lamparina as avessas Do santuario da terra Faze as pazes As criangas brincam '¢ — 4 — necess4rio manter-se nos limites no ritual religioso e cAn- dido da sociedade pacata e tradicional, de emogdes comedidas — é @ perspectiva dramatica da impoténcia ante a norma social. Na poesia oswaldiana encontramos ainda a visio dramatico- humoristica de uma formagéo bacharelesca e colonial, cujos valores jamais se discutem ao nfvel do real. “Como fato ideolégico, desaparece completamente: a burgue- sia apagou o seu nome passando do real & sua representagio, do hhomem econémico ao homem mental: ela acomoda-se com os fatos, mas nfo “entra em acordos” com os valores, submete o seu estatuto a uma verdadeira operacéo de eliminagao da denomi- nagfo, a burguesia define-se como a classe social que nfo quer ser denominada” .17 Esse anonimato se revela ainda no sistema possessivo, onde o ser 6 o que ele aparece através de suas posses. Em Oswald, 0 fato literdrio é visto ironicamente como consumo e posse de fér- mulas hereditaérias, e a nacionalidade como o empilhamento de bens utilitérios e o mosaico de elementos fantdsticos ou dispara- tados. O seguinte poema exemplifica isso: estrondam em ti as iaras Desde Bilac Somos internacionalistas e portugueses juniors Gostamos de Camembert, do Nilo, de Frinéia e de Marx CarvGes do mar Naéuframos entre sustos e paisagens — “I don’t know my elders!” Desde Gonzaga Somos pastores e desembargadores Desde a Prosopopéia Somos brasileiros.1° Oswald de Andrade ultrapassa os limites do chamado poema- piada dos modernistas: “balas de estalo”, estrondos e rodelinhas de fogo, seus versos desvelam o “verdadeiro” estilo de uma época que, na falta de um, “prope uma duzia deles, todos “inspirados” em algume. coisa”. —47— 7 12, 14, 1b. 16. Mw. 18. 19. REFERENCIAS BIBLIOGRAFICAS ANDRADE, O. Ponta de Langa. Rio, Civilizacdo Brasileira, 1972. p. 11. MENEZES, R. Dictonério Liter4rio Brasileiro. SAo Paulo, Saraiva, 1969. Volume IV, p. 1172. ANDRADE, O. Ponta de Langa. op. cit. p. 12. id. ibid. p. 10. HATZFELD, H. Estudios sobre el Barroco. Madrid, Gredos, 1966. pp. 56-57. MOLES, A. O Kitsch. Sao Paulo, Perspectiva, 1975, p. 25 ss. MENEZES, R. op. cit. p. 1172. MOLES, A. op. cit. pp. 10-11. id. ibid, p. 28. id. ibid. p. 58. ANDRADE, O. Serafim Ponte Grande. Rio, Civilizacdo Brasileira, 1972. p. 142. ANDRADE, O. Poesias Reunidas. Rio, Civilizacio Brasileira, 1972. p. 103. ANDRADE, O. A crise da Filosofia Messianica, in Do Pau Brasil 4 antropofagia ¢ As utopias. Rio, Civilizag&o Brasileira, 1972. p. 83. ANDRADE, O. Serafim Ponte Grande. op. cit. pp. 192-193. ANDRADE, O. Poesias Reunidas. op. cit. p. 108. BARTHES, R. Mitologias. Séo Paulo, Difusio Européia do Livro, 1972. p. 168. MOLES, A. op. cit. p. 81. ANDRADE, O. Poesias Reunidas. op. cit. p. 138. MOLES, A. op. cit. p. 89.

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