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FRANKLIN FERREIRA Pensadores Cristaos Agostinho DeAaZ Tradugioo de citagoes em latim Paulo José Benicio eS AGADEMICA ©2006, de Franklin Ferreira ey . Vida Todos os direitos em lingua portuguesa reservadas por Editora Vida PROIBIDA A REPRODUGAO POR QUAISQUER MEIOS, SALVO EM BREVES CITAGOES, COM INDICAGKO DA FONTE. Eprrora Viva Rua Julio de Castilhos, 280, CEP 03059-000 Séo Paulo, SP | Coordenagio editorial: Rosana Brandio Tel: 0 xx 11 6618 7000 | Fdigao: Lilian Jenkino ¢ André Jenkino do Carmo Fax: 0 xx 11 6618 7050 | Revistio: Polyana Lima wwweditoravida.com,br | Diagramacéo: Sonia Peticov wonw.vidaacademicanec | Capa: Marcelo Moscheta Dados Internacionais de Catalogagao na Publicagao (CIP) (Camara Brasileira do Liveo, SP, Brasil) Ferreira, Franklin ‘Agostinho de AaZ./ Franklin Ferrera-—Sio Paulo : Editora Vida, 2006. (Série pensadores ctistios) Bibliografia ISB 85-7367-938-7 1 .Agostinho, Santo, Bispo de Hipona, 354-430 I, Titulo I Série. 06-0122 DD 280.092 Indice para catdlogo sistemético: 1. Agostinho: Pensadores cristios: Cristianismo 280.092 Dedicatéria Certa vez, referindo-se ao dr. John Gerstner, professor de Histéria da Igreja no Pittsburg Theological Seminary (USA), R.C. Sproul disse: “Tive a felicidade de estudar com um professor que confirmava o cristianismo cldssico. Ele era 0 nosso professor mais severo e que mais exigia de nds no terre- no académico, Sua mente sempre pronta a nos preparar ar- madilhas e sua singular habilidade de raciocinio Idgico ¢ conclusivo me impressionavam. Ele parecia sobrepujar o res- tante dos professores tanto em conhecimento quanto em brilhantismo analftico”. Com profunda gratidao, digo exa- tamente o mesmo sobre os professores John Samuel Hammett e Alan Doyle Myatt. Eles tiveram igual significado em mi- nha vida! Sumario Preficio Agostinho, bispo de Hipona: doutor da graca Em peregrinagao De monge a bispo As principais controvérsias O fim de uma cra Cronologia Notas Bibliografia A B ADEODATO 43 BATISMO ALIANGA 43 BELEZA ALMA 44 BEM AMIZADE 45 c AMOR 46 CASTIDADE ANJOS 48 CEU APOLOGETICA 50 CHRISTUS VICTOR ARVORE 51 CIDADE DE DEUS, CIDADE ASCENSAO 51 DATERRA ASTROLOGIA 53 CONCUPISCENCIA 15 16 21 23 35 39 215 239 54 56 58 58 59 59 60 63 CONFISSAO 63 CONSCIENCIA 64 CONTEMPLAGAO 64 CONVERSAO, 65 CRIAGAO 67 CRIAGAO, DIAS DA 69 CRIAGAO, HUMANIDADE 69 CRISTO TOTAL 70 CRUZ 70 CULPA 71 CULTO, LITURGIA 71 CULTO AOS MORTOS 72 D DEMONIOS 72 DEUS, ESPIRITO SANTO 72 DEUS, FILHO 72 DEUS, IMUTAVEL 73 DEUS, PAI 74 DEUS, TRINDADE 75 DEUS, UNICO 80 E EDUCAGAO, FILOSOFIA 82 EDUCAGAO, METODO 84 ENTRETENIMENTO. 85 ESCRITURA, CANON 85 ESCRITURA, INSPIRACAO 88 ESCRITURA, INTERPRETAGAO 90 ESCRITURA, SUFICIENCIA 94 ESPIRITO SANTO 96 ETERNIDADE 97 EUCARISTIA, CEIA DO SENHOR 97 EXISTENCIA 98 EXTASE 99 HH FAMILIA 100 FE 101 FELICIDADE, BEM-AVENTURANGA 103 G GRAGA GRAGA, BENEFICIOS GRAGACOMUM GRAGA COOPERANTE GRAGAPERSEVERANTE GRAGA PREVENIENTE GUERRA H HERESIA HOMEM, SERHUMANO HUMILDADE 1 IDOLATRIA IGREJA IMAGEM DEDEUS INFERNO INVEJA IRMAOS JESUS CRISTO, NATUREZAS JESUS CRISTO, SACRIFICIO JUIZO FINAL JUSTIFICAGAO, LEGISLACAO, LEGISLADOR LIVRE-ARBITRIO, LIBERDADE J L LUTAESPIRITUAL MAL MANIQUEISMO MARIA, MARTIRIO MATRIMONIO MENTIRA MERITO MILAGRES MILENIO M 104 106 108 110 112 112 4114 115 116 117 118 119 122 124 124 125 125 128 130 131 132 132 136 136 138 139 41 142 144 144 144 145 MONICA MORAL MORTE MUNDO N NASCIMENTO VIRGINAL ° ORAGAO P PASTORAL PAZ PECADO ORIGINAL PECADO PESSOAL PEDRO PELAGIO, PELAGIANISMO PENITENCIA, ARREPENDIMENTO PERDAO PERSEVERANGA POBRES, POBREZA PRAZER PREDESTINAGAO, ELEIGAO PREGAGAO, PRESCIENCIA PROSPERIDADE, PROVIDENCIA Q QUEDA R RECAPITULACAO REDENGAO 146 149 150 152 153 153 155 158 158 161 162 164 165 165 167 169 170 171 176 177 179 180 181 182 182 REGENERAGAO RELIGIAO RESSURREIGAO REVELAGAO SABEDORIA SACRAMENTOS SACRIFICIO SALMOS SALVAGAO SANTIFICAGAO SATANAS, DIABO SEDUGAO SEPTUAGINTA SOFRIMENTO SUPERSTIGAO TEMPO. TENTAGAO TRADICAO UNA “VERDADE vicio VIDA ETERNA VIRTUDE ‘VONTADE DE DEUS Zz ZELO 188 189 189 191 191 193, 194 195 196 196 197 198 199 200 200 201 205 205 206 207 209 210 212 213 214 Prefacio Todo livro em portugués que permita um melhor conhe- cimento das idéias de Agostinho é sempre bem-vindo. Afi- nal, trata-se reconhecidamente de um dos personagens centrais da histéria da igreja e do pensamento cristao. Sao muitas as peculiaridades do bispo de Hipona que o tornam uma figura tao notdvel ¢ influente. Em primeiro lugar, vale lembrar sua experiéncia religiosa dramatica e pungente, que © levou de uma vida libertina a uma conversio marcante e um compromisso genuino com Deus, conforme ele mesmo narra, de forma inédita, nas suas Confissbes. Outra area ple- na de conseqiiéncias foi a sua variegada trajetéria filosdfica e intelectual, primeiro como maniquefsta, depois como neoplaténico (influéncia da qual nunca se afastou totalmen- te) e finalmente como cristo, Um aspecto adicional de Agostinho que o torna fascinan- te foi o fato de ele conciliar uma intensa atividade pastoral com uma reflexao teoldgica igualmente apaixonada e fértil. Foi o seu profundo interesse pelo bem-estar da igreja, nao sé a sua propria diocese no norte da Africa, mas a igreja crista no sentido mais amplo, que 0 levou a envolver-se nas famosas controvérsias que foram tao importantes na articulacao de muitos aspectos da sua teologia. Nos seus escritos antimani- queistas, ele teve a oportunidade de repensar uma questao crucial para tantas 4reas da doutrina crista — a natureza do bem e do mal. Os debates com os cismaticos donatistas 0 impeliram a desenvolver a sua eclesiologia, a sua concepc4o sobre 0 ministério cristo e 0 seu entendimento dos sacra- mentos. Finalmente, a controvérsia contra Peldgio fez que reconsiderasse muitas de suas idéias na 4rea fundamental da doutrina da salvagao. Por causa da profundidade, coeréncia, criatividade e am- plitude do seu pensamento, o tedlogo norte-africano do quin- to século marcou profundamente toda a reflex4o teoldgica posterior, das mais diversas correntes. Influenciou a prépria tradicfo catélica, ainda que a sua igreja tenha rejeitado cer- tos aspectos salientes da sua soteriologia. E afetou decisiva- mente a teologia protestante, a comecat dos seus representantes mais destacados, Martinho Lutero e Jodo Calvino. Este ulti- mo chegou ao ponto de escrever em uma de suas obras: Augustinus totus noster est (Agostinho é todo nosso). Nao seria um exagero dizer que a teologia protestante é essencialmen- te uma forma de agostinismo com adaptagies. Por essas e outras raz6es o presente trabalho do pastor e professor Franklin Ferreira se torna téo relevante. Agostinho —DeAaZ éuma obra de envergadura, que resultou de um imenso e cuidadoso trabalho de pesquisa. Sua parte inicial dé ao leitor uma boa nogao contextual ao oferecer um pano- rama biogrdfico do personagem, no qual sao situadas com clareza as suas idéias teoldgicas e a sua vasta producio literd- ria. Essa seco se encerra com uma valiosa cronologia das datas mais significativas da vida de Agostinho. Em seguida, a coletanea de citagées propriamente dita apresenta excertos do pensamento do grande pensador so- bre 134 tdpicos de grande interesse. Alguns tépicos contém apenas uma breve citacio. Outros, mais significativos, podem conter além de dez citacdes, muitas delas bastantes extensas. E o que é mais importante: essas citagdes sdo retiradas de uma grande variedade de obras de Agostinho, permitindo uma visdo realmente abrangente da sua reflexfo teoldgica. No final do livro est4 um outro recurso valioso para os leitores ¢ pesquisadores, que é uma extensa ¢ rica lista de re- feréncias bibliogréficas. Além de um bom ntimero de notas explicativas em ordem alfabética, o volume também é enri- quecido por 687 notas bibliogrdficas que identificam as fon- tes de um igual ntimero de citagdes. Por causa da amplitude do seu escopo e da maneira criteriosa como foram feitas as selecSes que a compéem, esta obra esta destinada a tornar-se uma importante referéncia nos estudos agostinianos em por- tugués. Irao consult4-la com proveito nao sé os que queiram encontrar rapidamente uma citag4o de Agostinho sobre de- terminado assunto, mas aqueles que desejam ter um contato mais prolongado com as fontes primdrias de um tedlogo tao fascinante e original! Dr. Aubert Souza DE Matos Centro Presbiteriano de Pés-Graduagao Andrew Jumper Agostinho, bispo de Hipona: doutor da gracga Precisamos de um Agostinho ou um Lutero para nos falar novamente; caso contrdrio, a luz da graca de Deus serdé nao somente ofiscada, mas completamente extinta na nossa época. R. C. Sprout Poucos tedlogos cristaos so tao relevantes para nossa épo- ca como Agostinho. Em meio a sua luta pessoal, em sua pe- regrinagao em diregao & fé crista, surgiram perguntas que refletem os conflitos espirituais de muitos cristaos modernos: a Escritura € realmente a fonte tiltima de autoridade para nossas crengas? Como podemos interpretar corretamente a Escritura? O que é exatamente 0 mal? Como o mal entrou na Criagao? Por que somos tao freqiientemente incapazes de fazer o bem? Por que nos encontramos tantas vezes amando coisas erradas? Como podemos aprender a amar 0 bem? Como o pecado tem afetado nossa capacidade de amar o que é certo e odiar 0 que é errado? Como 0 pecado tem afe- tado nossa vontade e personalidade? Se Deus é infinitamen- te poderoso e amoroso, por que o mundo esté cheio de tanto mal e¢ sofrimento? Quem é Deus? Como podemos chegar 4 salvacéo? Onde podemos encontrar a igreja verdadeira? Por seu embate com tais questées e pela profundidade e abrangéncia das respostas que ofereceu a elas, Agostinho se tornou o maior tedlogo cristao desde 0 apdstolo Paulo, diri- gindo a mente e os ensinamentos da igreja por mais de mil anos apés a sua morte. EM PEREGRINACAO O norte da Africa produziu quatro gigantes do cristianis- mo ocidental: Tertuliano, Cipriano, Atandsio e Agostinho. Aurelius Augustinus, mais conhecido como Santo Agos- tinho, nasceu em Tagaste, provincia romana na Numidia — hoje Souk-Ahras, na Argélia —, em 13 de novembro de 354.* Ele foi o primogénito de Patricio, conselheiro municipal e membro da classe média, que permaneceu pagio até as vés- peras de sua morte, e da crista Ménica, que orou fervorosa e constantemente em seu favor, O irmao de Agostinho, Navigio, morreu jovem, ¢ a irma, Perpétua, foi membro dos primei- ros mosteiros. *As duas principais biografias sobre o bispo de Hipona, em portugues, soa de Garry Wits, Santo Agostinho, eo classico escrito por Peter Brown, Santo Agostinho: uma biografia. Esta biografia classica, originalmente publicada em 1967, hé mais de trinta anos é a narrativa-padrao sobse a vida de Agostinho. A edico langada aqui é uma versio atualizada em 2000, apds a descoberta de sermdes ¢ cattas até entao desconhecidos; no epilogo Brown reconhece, dentre ‘outras coisas, que na primeira verséo retratou Agostinho bem mais severo do que ele teria sido. Cf. Eugene Pererson, Take and read: spiritual reading: an annotated list, p. 96: ‘A influencia de Agostinho na vida crista é, em grande parte, benéfica, mas no totalmente. Por set multidimensional e difusa, requer considetagao re- petida, Serdo necessérias muitas visitas para apreciar e entender sua existéncia eas conexdes complexas entre sua experiéncia e a cultura secular, Cada retorno a Agostinho tem seu beneficio: perspicdcia, admoestagao, encanto, sagacidade, prudéncia, anelo, A vida crista ¢ ampla, Agostinho viveu-a plenamente. A biografia de Brown faz justica tanto aos emaranhados complexos dos tempos quanto a simplicidade profunda que veio A existéncia, gradualmente, nessa vida santa”, Para uma introdugao aos temas principais da teologia de Agostinho, cf. Justo L. Gonzatez, Uma histéria do pensamento cristo, v. 2, p. 15-54. Em 365, com 11 anos, Agostinho foi enviado para estu- dar em Madaura. Os idiomas com que se expressava eram o punico (ou cartaginés), a lingua de sua terra, e o latim, que dominava com perfeigao.> Em 370, voltou a Tagaste, ¢ aos 17 anos transferiu-se para Cartago, para estudar retérica e artes liberais. Vim para Cartago e logo fui cercado pelo ruidoso fervilhar dos amores ilfcitos. Ainda n4o amava, e j4 gostava de ser amado, e, na minha profunda miséria, eu me odiava por nao ser bastante miseravel. Desejando amar, procurava um obje- to para esse amor, € detestava a seguranga, as situag6es isen- tas de risco, Tinha dentro de mim uma fome de alimento interior — fome de ti, 6 meu Deus.’ Seu pai, Patricio, morreu no ano seguinte, e Agostinho conheceu uma mulher, com quem se uniu nesse mesmo ano; cla se tornaria sua companheira durante quinze anos — cle a abandonou depois, e néo mencionou seu nome nas obras que escreveu. Em Cartago, ele leu Horténsio, de Cicero. A leitura dessa obra levou-o a se apaixonar pela filosofia. A partir de entao, passou a buscar a verdadeira sabedoria, que acabaria por leva- lo & fé crista.2 Em 373, tornou-se um ouvinte (auditor) maniqueu,‘ sendo esse, provavelmente, o ano do nascimento de seu filho Adeodato, falecido em 390. Em 374, regres- ‘Ele nunca dominou o gtego, em grande parte por causa das “terrfveis ameagas e castigos”, empregados na sala de aula. Cf. AGosTINHO, Confisses, 1.14.23, p. 38. Sendo assim, cresceu nele a baralha entre o querer e 0 nao querer. Agostinho queria tornar-se cristéo. Mas ainda nao. Sabia que nao podia mais interpor dificuldades de ordem intelectual, o que fazia a luta consigo mesmo ser ainda mais intensa. De todos os lados vinham noticias de outras pessoas que haviam feito o que ele nao arriscava fazer, e sentia inveja. Certo dia, em agosto de 386, Agostinho sentou-se no jar- dim de uma casa que alugava com alguns amigos. Ele lia, com um amigo chamado Alfpio, o texto da epistola de Paulo aos Romanos,‘e conversava sobre o evangelho pregado e en- sinado pelo apéstolo, Nesse momento, nao podendo tolerar a companhia de seus amigos, e tampouco a sua, ele fugiu para o outro lado do jardim, onde se encontrou em terrfvel agonia de espirito. ‘Romanos, de todas as epistolas paulinas, provavelmente éa mais importante. Eisso nao s6 por ser a mais extensa. Do ponto de vista doutrinal, é uma das mais ricas ea mais estruturada. Fssa epfstola foi comentada por Martinho Lutero, Jodo Calvino, Karl Barth, John Murray, Lloyd-Jones, John Stott ¢ C. E. B, Cranfield, dentre outros. Sua interpretagio desempenhou um papel decisivo em dois'mo- mentos da histéria da Igreja: no século V, por ocasiao da crise pelagiana e das grandes concrovérsias sobre a liberdade da graca, e no século XVI, quando da Reforma protestante. Historicamente, nenhuma outta epistola exerceu igual in- fluéncia, e seu estudo ¢ vital para a espiritualidade crista. Cf. EF. Bruce, Roma- nos; introdugao e comentario, p. 50-2, Ww Deixci-me, nao sei como, cair debaixo de uma figueira ¢ dei livre curso as l4grimas, que jorravam de meus olhos aos bor- botdes, como sacrificio agraddvel a ti. E muitas coisas eu te disse, no exatamente nestes termos, mas com o seguinte sentido: “E tu, Senhor, até quando? Até quando continuards irritado? Nao te lembres de nossas culpas passadas!”. Sentia- me ainda preso ao passado, e€ por isso gritava desesperada- mente: “Por quanto tempo, por quanto tempo direi ainda: amanhi, amanha? Por que nao agora? Por que nao pér fim agora 4 minha indignidade?”.* Toma ¢ lé. Toma e lé— Tolle, lege. Estas palavras, que algu- ma crianca gritava em suas brincadeiras infantis, chegaram aos ouvidos do abatido Agostinho, que sofria profunda- mente debaixo da figueira, As palavras que as criangas grita- yam pareciam ser um sinal do céu. Pouco antes, Agostinho jogara, em outro lugar do jardim, o texto que estivera lendo. Agora voltou para 14, tomou-o e leu as seguintes palavras do apéstolo Paulo: “Nao em orgias e bebedeiras, nem na devas- sidao ¢ libertinagem, nem nas rixas e citimes. Mas revesti-vos do Senhor Jesus Cristo e nao procureis satisfazer os desejos da carne”.’ Nao quis ler mais, nem era necessdrio, Mal terminara a lei- tura dessa frase, dissiparam-se em mim todas as trevas da duvida, como se penettasse no meu coragéo uma luz de cer- teza. Marcando a passagem com o dedo ou com outro sinal qualquer, fechei 0 livro e, de semblante ja tranqitilo, o mos- trei a Alipio.® Nas palavras do apéstolo, Agostinho encontrou 0 que es- tivera procurando por muito tempo. Dedicou-se totalmente a vida crista e deixou sua ocupagao como professor, buscan- do levar a vida de um monge ao converter sua casa em mos- teiro para oragSo, estudo e reflexo. 20 DE MONGE A BISPO Em 387, com 33 anos, na noite da Pascoa de 24 para 25 de abril, Agostinho foi batizado por Ambrésio; seguiram-no seu filho, Adeodato, e 0 amigo de juventude, Alfpio, que viria a ser bispo de Tagaste. Ele abandonou a vida puiblica, indo morar em Cassicfaco, com amigos e familiares. Pouco depois, a piedosa mae de Agostinho, Ménica, faleceu em Ostia Tiberina, perto de Roma. Ele entao voltou para a Africa, indo de novo para ‘Tagaste, onde vendeu suas posses e se dedicou a seu ideal de vida comum: estudo, pobreza, trabalho e meditag4o. Pouco depois, mudou-se para Hipona — que ficava préxima da atual Annaba, na Argélia —, para procurar um lugar onde fundar um mosteiro e viver com seus irmaos. Em 391, foi ptaticamente obrigado a ser ordenado presbitero. Confor- me os planos, fundou um mosteiro e nele viveu, presbitero e monge, no ascetismo e no estudo “segundo a maneira e a regra estabelecida no tempo dos Apéstolos”.” Quatro anos depois, também contra sua vontade, Agosti- nho foi eleito bispo coadjutor. O velho bispo Valério propée a assembléia designar um padre com possibilidades de auxili4-lo, principalmente na pregacao. A presenga de Agostinho nao passara despercebida. Houve um 86 grito: “Agostinho, bispo”. O candidato protesta, recal- citra, chora. Nao adianta nada: a ordenagao estava decidida.® £A andlise meditativa da vida interior, dos desejos e das paixdes ¢ umas das principais caracterfsticas da espiritualidade agostiniana. Meditagao significa re- fletir com nossa menre sobre a Biblia eas verdades de Deus, a fim de amarmosa Deus mais pessoalmente e vivermos como ele quer que vivamos. A meditagio é uma forma de conversa com Deus, ou na presenca de Deus, que é mental, em vez de ser meramente verbalizada. Cf. James Houston, Orar com Deus: desenvolven- do uma transformadora e poderosa amizade com Deus, p. 262-6, Para a diferen- aentrea otagio verbal, meditacfo, contemplagio e oragao extatica, v. p. 249-76, a Logo Agostinho estava ensinando o Credo aos bispos da regido.” Em 396, aos 42 anos, sucedeu ao bispo Valério, em Hipona. O mosteiro que ele fundou acabou por se tornar um semindrio para presb{teros e bispos para toda a Africa. Suas atribuig6es pastorais serviam: 1) A igteja de Hipona, a que estava e sentia-se ligado: a pre- gacao (duas vezes por semana — sdbado e domingo —, as vezes por mais dias consecutivos ou ainda duas vezes ao dia), a audientia episcopalis, que ocupava também o dia todo, o cuidado com os pobres e os érfaos, a formagao do clero, a organizagao dos mosteiros masculinos e femininos, a admi- nistragao dos bens eclesidsticos de que nao gostava, mas tole- rava, a visita aos enfermos; 2) a igreja africana: participagao nos conflitos programados anualmente, freqiientes viagens para responder ao convite dos colegas ou para atender a ne- cessidades eclesidsticas; 3) & igreja universal: controvérsias dogmaticas, resposta a muitas interpelagées, livros e livros sobre as mais variadas quest6es que lhe eram propostas e impostas.? No perfodo de 386 a 396, Agostinho jé tinha escrito de forma consideravel. A primeira categoria de livros escritos nesse perfodo consiste em didlogos filoséficos: Contra os aca- démicos, Soliléquios, A vida feliz e A ordem (386), A imortalt- dade da alma e A gramdtica (387), A grandeza da alma (387-8), O livre-arbttrio (388-95), O mestre (389) eA misi- ca (389-91). O segundo grupo é composto de obras contra os maniqueus: A moral da igreja catélica e A moral dos maniqueus (388), As duas almas (391) ¢ Controveérsia contra “Ao permitir que Agostinho pregasse, Valério infringiu um privilégio zelosa- mente guardado da hicrarquia africana — o de que somente o bispo, sentado em seu trono elevado, devia expor as Escrituras” (Peter BROWN, op. cit., p. 172-3). Fortunato, 0 maniqueu (392). A ultima categoria é composta de obras teoldgicas e exegéticas: Sobre 0 Génesis, contra os maniqueus (386-391), A verdadeira religiéo (389), Questoes diversas (389-96), A utilidade do crer (391), A fé e 0 stmbolo (393), algumas Cartas e alguns Sermées.'° AS PRINCIPAIS CONTROVERSIAS A teologia de Agostinho se desenvolveu em meio a uma série de debates. Em seu primeiro grande debate teoldgico, ele se ocupou dos maniqueus. Na maioria das vezes, a polé- mica é apologética: ele defende a dignidade da igreja e seu direito exclusivo de se chamar Igreja de Cristo.’ Contra o racionalismo de seus adversdrios, Agostinho mostra que a fé nao exclui a inteligéncia — as duas se esclarecem e se refor- cam mutuamente. Defende também o Antigo Testamento como prepatacao do Novo Testamento, e que aquele esta em harmonia e continuidade com este. Deus preserva beleza e bondade na Criacéo. O mal é a corrupgao do bem, resulta- do do livre pecado do homem. Agostinho, sob influéncia do neoplatonismo, e seguindo seu préprio génio, denunciou de forma especial o dualismo metafisico do maniqueismo, com seu conseqiiente panteismo e materialismo.'! No segundo debate teoldgico, Agostinho se viu diretamen- te confrontado com o donatismo. Esse movimento, cujo nome vem de Donato, bispo de Cartago falecido em 332, surgiu durante a perseguicao dos imperadores Décio e Dio- cleciano. Os donatistas, que se percebiam como uma igreja de puros, recusaram a ordenagio de um bispo suspeito de ter entregado as Escrituras por ocasiao de uma petseguicao, ‘Qs maniqueus pretendiam, em vio, remontar seus ensinos a0 préprio Jesus Cristo, ao passo que a verdadeira igreja, por meio dos apdstolos, deriva de Jesus sta autoridade, a qual constitu a base da fé crista. julgando severamente os cristéos que acolhiam com, segun- do lhes parecia, demasiada indulgéncia os chamados /apsi ou traditores — os que haviam tra{do a fé diante do poder romano. Chegaram a rejeitar a validade dos sacramentos administrados por ministros que eles julgavam impuros, pois, para os donatistas, os sacramentos sé teriam valor se o minis- tro fosse digno. Alids, aqueles batizados por ministros indig- nos deviam ser rebatizados por bispos donatistas. Alguns deles comegaram a se reunir em milicias armadas, assaltando e agre- dindo os ministros crist4os, tornando a situag4o extremamente tensa. Para Agostinho, os donatistas eram culpados do pecado de cisma, apartando-se da Igreja de Jesus Cristo, ¢ foi por ocasiao desse conflito que ele elaborou sua teologia dos sa- cramentos e da igreja. Sustentou firmemente que a graca sacramental age por si mesma, ex opere operato (que pode ser traduzido como “em virtude do préprio ato”), sendo irrele- vantes as condicdes espirituais do ministro. Em seu entendi- mento, os sacramentos continuam vélidos porque é Cristo quem os oferece. Ele elaborou, sobretudo, a doutrina da igre- ja, como o corpo de Cristo unificado pelo amor no Espirito. Aqueles que dela se afastam possuem em vio a fé, os sacra- mentos e mesmo as virtudes. Assim, Agostinho foi levado a afirmar uma igreja invisivel, conhecida apenas por Deus — os eleitos, os verdadeiros cristaos —, dentro da igreja visfvel, que era a igreja na terra. Enquanto esperamos a vinda do Senhor, santos e pecadores esto misturados, Somente Deus conhece seus eleitos. Essa diferenciagdo entre a igreja visivel ea igteja invisfvel foi enfatizada por Jodo Calvino e outros tedlogos protestantes. Aos escritos, Agostinho acrescentou encontros e debates. Uma conferéncia publica, realizada em 411, reuniu 286 bis- pos catédlicos e 279 bispos donatistas em Cartago. Os pri- 24 meiros levaram vantagem, com o poder civil intensificando as medidas repressivas. Agostinho sempre tentou afastar as torturas graves e a pena de morte; no entanto, aceitou e até justificou algumas vezes certo grau de coer¢4o, por parte do poder civil, por amor a um bem maior: a salvacdo da alma e a unidade da igreja. Diante do retorno & ordem que disso resultou e das conversées julgadas leais, ele reconheceu a necessidade do uso de represséo por parte do Estado. Mas apenas nessa polémica, por causa de seus desdobramentos, ele buscou apoio no Estado — acima de tudo, Agostinho buscou a paz e a “manutengao da paz pela paz”. As obras desse segundo perfodo, de 396 a 411, contém seus escritos antimaniqueistas posteriores: Contra a epistola de maniqueu (397), Contra Fausto, 0 maniqueu (398) ¢ A natureza do bem (399). Em seguida, houve alguns escritos eclesidsticos: O batismo (400), Conira a epistola de Petiliano (401) e A unidade da igreja (405). Finalmente, houve algu- mas obras teoldgicas e exegéticas: A doutrina cristé (397), Confissbes (398-9), Comentdrio literal ao Génesis (400-15) € A Trindade (400-16). Dessa época, so ainda as obras: Os bens do matriménio, o tnico tratado totalmente dedicado ao casamento, e A santa virgindade (401). Cartas, Sermées e Comentério aos Salmos também foram escritos no perfodo. Dentre tais obras se destacam trés. Nos nove primeiros livros de Confissées, Agostinho relata sua vida até a morte de Monica: sua miséria no pecado ¢ a lenta ascensao para a pre- senca de Deus. Essa obra ndo é uma narrativa ou didrio, mas uma longa orac&o, em que o autor recorda na presenga de Deus os 34 anos, meditando sobre sua peregrinagao espiri- tual, revendo a busca pessoal por Deus confessada no peca- do e proclamada na soberania e liberdade da graga de Deus, que lhe concede misericérdia e 0 perdoa. O décimo livro apresenta uma anédlise psicolégica de seu estado de espirito 25 no perfodo da redag&o da obra, ¢ os trés livros finais contém, partindo da nartagio bfblica da Criagdo, consideragdes so- bre Deus, 0 mundo, o tempo e a eternidade.} Em A doutrina cristd, na verdade um manual de herme- néutica e pregagao, Agostinho estabeleceu importantes prin- c{pios de interpretagdo biblica. Nos primeiros trés livros, oferece alguns deles: 1. A fé é um pré-requisito fundamental para o intérprete da Palavra de Deus. 2. Deve-se considerar o sentido literal ¢ histérico do texto. 3. O Antigo Testamento ¢ um documento cristolégico. 4. O propésito do expositor ¢ descobrir 0 sentido do texto e nao o de atribuir-lhe sentido. 5. O credo ortodoxo deve controlar a interpretagao das Es- crituras. G. O texto nao deve ser estudado isoladamente, mas no seu contexto bfblico geral. 7. Se o texto for obscuro, nao se pode tornar matéria de fé. As passagens obscuras devem dar lugar as passa- gens claras. 8. O Espirito Santo nao dispensa o aprendizado das Ifnguas originais, geografia, hist6ria, ciéncias naturais, filosofia etc. 9. As Escrituras nao devem ser interpretadas de modo a se contradizerem, Para isso, deve-se considerar a progressi- vidade da revelacao.!> 'Eugene PETERSON diz: “A espiritualidade envolve levar nossa experiéncia pessoal a sétio como matéria-prima para a redengio e santidade, examinando seu material, nossa vida, com tanto rigor quanto o fazemos coma Escriturae douttina. As Confissdes sao as balizas desse exercicio” (op. cit., p. 3). Para James Houston, “enquanto ndo lermos as Confissdes de Agostinho, nao teremos idéia da honesti- dade que podemos expressar diante de Deus” (op. cit., p. 253). Cf. tb. Peter Brown, op. cit,, p. 195-224. 26 No livto final, que trata da oratéria, Agostinho estabelece uma relacdo entre os princfpios da retérica e a tarefa da pre- gacdo. Ele insistiu que a pregacao tem trés propésitos: ins- truir, agradar e persuadir, e afirmou que o pregador é 0 que interpreta e ensina as verdades divinas. Também deu énfase a necessidade de haver um acordo entre a vida e as palavras do pregador, bem como a necessidade de oracgo como um preparo para a pregacao do sermio. Quem quiser conhecer ¢ ensinar deve, na verdade, primeira- mente aprender tudo o que € preciso ensinar, e adquirir 0 talento da palavra como convém a um homem da igteja. Mas, no momento mesmo de falar, que pense nestas palavras do Senhor, que se aplicam particularmente ao coracao bem disposto: “Quando vos entregarem nao fiqueis preocupados em saber como ou 0 que haveis de falar, porque ndo sereis vés que estareis falando naquela ora, mas o Espirito de vosso Pai é que falard em vés”." A Trindade é a obra dogmatica mais importante de Agos- tinho, que levou dezesseis anos para termind-la. Estd dividi- da em duas partes: a primeira, com uma énfase biblica e teoldégica, vai dos livros ] ao VII. Ele aceitou sem discussao a verdade que existe um s6 Deus, que ¢ Trindade, e que o Pai, o Filho ¢ 0 Espirito Santo so simultaneamente distintos ¢ coessenciais, numericamente um quanto 4 substancia. Na explicagao que faz do mistério trinitdrio, Agostinho concebe a unidade da natureza divina, antes de considerar as Pessoas divinas em separado. Sua formula trinitariana é: uma sé na- tureza subsistindo em trés Pessoas. Essas trés Pessoas se apro- priam de modo distinto da mesma natureza: o Pai sem princfpio, o Filho por geracao eterna do Pai e o Espirito San- to espirado pelo Pai ¢ pelo Filho. Seus escritos est4o repletos de declaragdes detalhadas quanto a isso. 27 A segunda parte, do livro VIII ao XV, tem um enfoque psicoldgico ¢ filosdfico. Nessa parte, Agostinho desenvolve as analogias trinitarianas, que ele descobre especialmente na alma humana, criada a imagem de Deus. E esse ultimo pon- to que constitui o elemento de maior originalidade no trata- do. Freqiientemente tem sido dito que a principal analogia trinitdria dessa segdo é a do amante (amans), do objeto ama- do (quod amatur) e do amor que os une (amor). Porém, a discussiéo de Agostinho de tal analogia ¢ bastante curta, e ¢ apenas uma transicdo para aquela que considera a analogia mais importante, a da atividade da mente quando dirigida para si mesma ou, melhor ainda, para Deus. As analogias trinitarianas resultantes foram: 1. A mente, seu conhecimento de si mesma e seu amor de si mesma. 2. A meméria ou 0 conhecimento potencial da mente de si mesma, o entendimento, isto é, sua apreensdo de si mesma 4 luz das raz6es eternas ea vontade, ou amor de si mesma, pela qual 0 processo do ato de conhecimen- to € posto em movimento. 3. A mente, lembrando, conhecendo e amando ao pré- ptio Deus. Agostinho considera que apenas quando a mente focaliza a si mesma, com todas as suas poténcias de lembranga, en- tendimento e amor a seu Criador, ¢ que a imagem de Deus, que ela traz em si, corrompida pelo pecado, pode ser plena- mente restaurada. Entao, seguindo o entendimento agosti- niano, apenas no préprio Deus estd a base para a razio e a linguagem humana, para nossa capacidade de escolha, para nossa profunda diversidade de emogoes, para a apreciacdo da beleza, para nossa propensio A criatividade, para nosso 28 senso de ética ¢ cternidade, para nosso desejo de relaciona- mento social.!° No terceiro e mais acalorado debate teoldgico de Agosti- nho, comega a controvérsia sobre a doutrina da graca.! Peld- gio, nascido na Gra-Bretanha, famoso por sua disciplina moral, ao chegar a Roma, em torno do ano 400, comegou a ensinar os seguintes pontos: Addo foi criado mortal e teria morrido quer tivesse pecado, quer no; 0 pecado de Addo contaminou s6 a ele e nao a raga humana; as criangas recém- nascidas estéo naquele estado em que cstava Adao antes da queda; a raga humana inteira nem morte por causa da mor- te de Adao, nem ressuscita pela ressurreigao de Cristo; a Lei, tanto quanto o Evangelho, conduz ao Reino dos céus; mes- mo antes da vinda de Cristo houvera homens sem pecado.'¢ Para Peldgio, nao haveria a necessidade de alguma graca es- pecial de Deus, pois ela era algo que estaria presente em to- dos os lugares, em todo momento. Esses ensinos logo chegaram ao norte da Africa. Agostinho se opés a Peldgio. Para isso, ele se lembrou de como foi dificil sua conversao, em como ele orava: “Por quanto tempo, por quanto tempo direi ainda: amanh4, amanha? Por "Para mais informagées sobre a soteriologia na época pré-nicena, antes da controvérsia pelagiana, v. Reinhold Szeperc, Manual de historia de las doctrinas, v. 1, p. 325-8. Seeberg nota que a atitude dos pais gregos sobre o problema do livre-arbitrio era fundamentalmente diferente dos pais latinos. Aqueles pattem do intelecto, a0 qual a vontade esté subordinada e por meio do qual opera. O que co homem pensa poders fazer, Os latinos, ao contrétio, concedem a vontade uma posi aurénoma. Os pais gregos consideram que o homem opera o comego de suasalvagao, e que depois Deus cooperatia com a gtaca. Os pais latinas, por causa da énfase na doutrina do pecado original, consideram que Deus comega a obra, edepois o homem cooperaria com sua vontade, enfatizando muito fortemente a obra da graga, ainda que nao-exclusiva, Os mestres orientais enfatizaram entao uma sinergia divina, e os ocidentais, uma sinergia humana, 29 que nao agora? Por que nao pér fim agora 4 minha indigni- dade?”.!” Sua resposta foi abrangente: 30 1. Na Criacao, Addo tinha a capacidade de pecar (posse peccare) ¢ a capacidade para nao pecar (posse non peccare). Mas, a partir da queda de Addo, a humanidade se tor- nou totalmente depravada, ou seja, todas as esferas de nossa humanidade — raz4o, vontade e afetos — tot- naram-se escravas do pecado. Como heranga maldita, recebida de Addo, a natureza humana passou a set escrava do pecado e sujeita 4 morte. Na Criacio, Adao foi feito com a capacidade para morrer (pose mori) e para nao morrer (pase non mori). Depois da queda, a morte entrou no mundo e todos os descendentes de Ado foram colocados sob a sua maldig¢ao. O homem caido agora € incapaz de nao morrer (non posse non mori).® Como conseqiiéncia, a humanidade continua tendo livre-arbitrio (liberum arbitrium), mas nao mais liberdade (/ibertas) — a vontade humana nao mais é dona de si mesma. A humanidade livremente escolhe o pecado. Por conseqiiéncia, o ser humano é incapaz de até mesmo buscar a Deus sem 0 socorro da graca especial. Em decorréncia disso, somos redimidos apenas por cau- sa da eleicdo livre e incondicional de Deus. Em sua maravilhosa graca, Deus escolhe pecadores, na eterni- dade, nao por mera previsio de fé ou obras, mas sobe- rana e livremente, por sua gtaga e para sua gléria. “Procuremos entender a vocagio prépria dos eleitos, os quais nao sao eleitos porque creram, mas sao eleitos para que cheguem a crer.”'’ A prioridade da graga li- vre e soberana de Deus na salvacdo de pecadores foi afirmada claramente por Agostinho, porque ele enten- deu que sé sendo livre e soberana a graca pode ser, de fato, imerecida. 3, Entao, essa graca age de forma irresistfvel nos eleitos: 0 Espirito convence com eficdcia os pecadores, atrain- do-os irresistivelmente a Cristo, cativando-os com sua beleza e formosura. Quo suave se tornou de repente para mim a privagéio das falsas delfcias! Eu, que tanto temia perdé-las, senti prazer agora em abandoné-las. Tu, 6 verdadeira ¢ suprema suavida- de [alegria], as afastavas de mim. Afastavas e entravas em jugar delas, mais doce do que qualquer prazer — ¢ claro, nao pela carne nem pelo sangue — mais luminoso que toda luz, porém mais oculto que qualquer segredo, mais sublime que todas as honras, mas nao para aqueles que se exaltam a si mesmos. Meu espirito libertava-se agora das preocupag6es torturantes da ambigao e da avareza, dos pruridos da sarna das paixGes, $6 me entretinha agora contigo, 6 minha gléria, tiqueza e salvacao, Senhor, meu Deus.” Ele afirmou que até’ mesmo a fé dos eleitos em Cristo é um dom de Deus, obra da sua graca imerecida. 4. E esses pecadores, eleitos e graciosamente atraidos a Cristo, perseverarao. Mais ainda, Deus mesmo dé o dom da perseveranga aos eleitos, para conduzi-los a glorificacao. Afirmamos entao ser dom de Deus a perseveranga com a qual se persevera no amor a Cristo até o fim. O fim a que me refiro é o término desta vida, na qual e somente nela h4 0 perigo de pecado. [...] Portanto, nao se pode afirmar que alguém tenha recebido ou possufdo o dom da perseveranga, se nao perseverou.”? A salvacao, do comego ao fim, é obra da graca de Deus para sua gléria. E somente no céu, em nosso estado glorifica- do, seremos nao sé declarados sem pecado, mas também inca- pazes de pecar (non posse peccare). No céu, “um lugar melhor do que aquele que Addo gozou no Eden antes da queda”,” Deus preservard seus eleitos num estado de perfeicao. A diferenga entre Peldgio e Agostinho residia em seus pontos de vista sobre a natuteza humana ca graca de Deus. As idéias de Peldgio foram refutadas por Agostinho numa série de tratados que se tornaram conhecidos como tratados antipelagianos. E o pelagianismo foi condenado de maneira formal como heresia pelo bispo de Roma em 417 ¢ 418, e pelos conctlios de Cartago, em 418, de Efeso, em 431 (o terceiro grande concilio eclesidstico) e, finalmente, de Orange, em 529." Peter Brown escteveu: [Na doutrina da graca) Agostinho encontrou o “antidoto contra o elitismo cristao”. [...] Nenhum grupo deixava de ser tocado pela graca divina. Pois nao havia esfor¢o, por mais humilde que fosse, que nao dependesse tao rigorosamente da dddiva da graca divina quanto a mais espetacular mani- festacao de “carisma” [como no martirio e no celibato]. To- dos os figis eram iguais, pois todos eram igualmente “pobres”. Todos eram também iguais porque, para seu sustento, eram inteiramente dependentes do abundante banquete de Deus. [...] Agostinho pés-se a trabalhar para eliminar a distancia ™Para mais informagées sobre a controvérsia pelagiana, cf. Posstpi0,.A vida de Santo Agostinho, p. 58-60; Peter BROWN, op. cit,, p. 425-69, 475-509 ¢, espe- cialmente, 593-637; lain Murray, Agostinho, bispo de Hipona, in: Fé para Hoje, n, 4, ano 1999, p. 23-8; John Pirer, O legado da alegria soberana, p. 43-803 R. C. SpROUL, op. cit., p. 29-67, e, especialmente, N. R. NEEDHAM, ed. The triumph offgrace: Augustine's writings on Salvation. entre a vitéria da graga divina nos mértires — cujo compor- tamento parecia inimitavel e muito “extramundano” para a maioria dos seus ouvintes — e a operago menos dramitica, porém igualmente decisiva, dessa mesma graga na média dos cristéos, quando eles enfrentavam a dor e a tentagéo em sua vida. [...] A graca divina seguiria o cristéo em todas as ida- des, protegendo o fiel batizado até nos perfodos mais vulne- rdveis de sua vida. [...] E, mais importante que tudo, Agostinho apreendeu com clareza, em sua doutrina da graca, as conse- qiiéncias do intenso sentimento da ago validada por uma inspiragdo sobrenatural, que perpassava toda a cultura reli- giosa de sua época. Ele domesticou essa idéia de agdo ao colocar a gléria da graca divina A disposicao de todos. Num mundo em que ninguém podia gloriar-se em si mesmo, Agos- tinho deixou aberto o caminho para que todos, dentro da igreja catdlica, se gloriassem na idéia da agao baseada em Deus, pois insistiu em que Deus era capaz de colocar um peso de gloria (2Co 4,17) em cada coragao.” Depois da morte de Agostinho, a igreja medieval gradual- mente mudou de opiniao e aceitou a posicéo semipelagiana — ou semi-agostiniana —, acatando o primeito ponto da formulagao de Agostinho, a depravagao total, combinando- a com uma elaborada doutrina da graca presente nos sacra- mentos da igreja, com a qual o homem poderia cooperar para chegar a salvacao. As obras no periodo final da vida de Agostinho, de 411 a 430, eram, em grande medida, antipelagianas, As primeiras obras que escreveu contra os pelagianos foram: Os méritos ¢ a remisstio dos pecados (411-2), O esptrito e a letra (412), A na- tureza e a graca (415), A corregio dos donatistas (417), A gra- ¢a de Cristo e 0 pecado original (418), A alma e sua origem (419), As nipeias e a concupiscéncia (419-20), O enquirldio (421) e dois livros Contra Juliano (421 ¢ 429-30). O segundo grupo de escritos antipelagianos inclui: A graga e o livre-arbi- trio e A correcao e a graca (426), A predestinagdo dos santos e O dom da perseveranca (428-9). As Giltimas grandes obras nesse perfodo sao teoldgicas e exegéticas, incluindo aquela que talvez tenha sido a maior de todas: A cidade de Deus (413-26). O cuidado devido aos mortos (421) ¢ as Retratagdes (426-7) situam-se aqui, assim como grande numero de Car- tas, Sermoes e a continuagio do Comentdrio aos Salmos. A cidade de Deus é a grande obra nao sé desse periodo, mas da vida de Agostinho. O tratado sobre a providéncia de Deus, na verdade a primeira filosofia crista da histéria, é a afirmagao de que nenhuma cidade terrestre pode compa- rar-se com a Jerusalém Celestial, a cidade de Deus. A cidade terrestre tem sua ascensao e queda, mas a cidade de Deus permanece para sempre. Para Agostinho, a cidade terrestre é a ferramenta temporal e tempordria de Deus, e pode assumir muitas formas ao longo do tempo. A cidade de Deus é invencivel e continuard triunfando e realizando a vontade dele. Na esséncia, homens e nagGes se levantam e caem, mas a cidade de Deus conquistard tudo. A cidade de Deus é a igreja e, pela graca e poder de Deus, acabar4 subs- tituindo os reinos terrestres na cidade celeste na ocasiaio da segunda vinda de Cristo. Até entao, serd um reino espiritual oculto, que existe sempre e onde quer que a vontade de Deus © queira. Essa interpretagao crista da histéria foi um grande conso- Jo para muitos cristéos que viram o Império Romano se esfa- celar no Ocidente por causa das invasdes vandalas. Até mesmo cristaos identificaram 0 Império Romano cristianizado com o Reino de Deus, e sua derrota para as tribos barbaras foi um choque. Mas a idéia central de Agostinho é: a cidade de Deus nfo ¢ afetada pelo declinio do Império Romano, por- que ela nao é deste mundo. 34 O FIM DE UMA ERA Em 430, os vandalos, liderados por Genserico, atacaram a Numidia e cercaram Hipona. Em 26 de setembro de 426, Agostinho nomeou seu sucessor, Erdclio, “Uma vez registra- da a decisaéo, Eréclio adiantou-se para orar, enquanto o ve- tho Agostinho sentava-se atrds dele, em seu trono elevado: “O grilo estridula’, disse Erdclio, ‘o cisne silencia’ ”.? Com efeito, santo Agostinho em sua vida, que por um dom de Deus foi longa, para o bem ¢ 0 estado feliz da santa Igreja — de fato viveu setenta € seis anos, dos quais uns quarenta no clericato ou episcopado — costumava dizer-nos nos colé- quios familiares que, apds o batismo, mesmo os cristos e bispos de vida irrepreensfvel nao deviam deixar esta vida sem digna e conveniente peniténcia. Foi o que ele fez durante a ultima doenga que o levou; pois mandara copiar os poucos salmos davidicos penitenciais, dispostos em quatro colunas, e os pendurara na parede jun- to ao leito; durante a doenga os olhava e lia, chorando copio- sa € constantemente. Nao querendo que fosse desviada por alguém a sua aten- G40, uns dez dias antes da morte, pediu-nos a todos os pre- sentes que ninguém entrasse em seu quarto, a nao ser na hora de visita dos médicos ou de se lhe levarem as refeigées. Assim foi feito e observado, enquanto ele se dava o tempo todo 2 oracio. Até a sua ultima doenga, na igreja pregava a palavra de Deus ininterruptamente, com zelo e fortaleza, tendo con- servado mente lticida e julgamento correto. Tendo incélumes todos os membros do corpo, integras a visdo ¢ a audicdo, como estd escrito, adormeceu com os seus pais, numa feliz velhice, estando nds presentes em oragao. Tam- bém estévamos presentes quando foi oferecido a Deus o san- to sacrificio em sufrdgio do defunto; em seguida foi sepultado. Nao fez testamento algum, porque 0 pobre de Deus nada possuia para ter de fazé-lo, [...] Deixou a igreja um clero mais que suficiente e mosteiros masculinos e femininos, cheios de ascetas, com os respectivos superiores. Igualmente deixou bibliotecas de livros e tratados seus ou de outros santos, através dos quais é possivel reconhecer como foi ele ¢ a sua gtandeza na Igreja, pela graca de Deus.” No terceiro més do cerco, em 28 de agosto de 430, mor- reu Agostinho, aos 76 anos." Sua imensa luta teoldgica é 0 exemplo supremo do prin- cipio de que a fé deve buscar a compreensao (praccedit fides, sequitur intellectus). Em toda a sua obra teoldgica, elaborada em clima de oragio, esto unidas sabedoria (sapientia) e eru- dicg&o (scientia). Revela-se, com efeito, em seus escritos, quanto é possivel verificar 4 luz da verdade como aquele agraddvel ¢ caro a Deus viveu reta ¢ verdadeiramente da fé, da esperanga e da caridade da igreja catélica. Reconhecem-no todos os que ti- ram proveito da leitura de seus escritos sobre as coisas divi- nas. Mas julgo que maior proveito obtinham os que puderam vé-lo e ouvi-lo a falar na igreja, e principalmente os que nao desconheciam sua maneira de viver entre os homens.” Os temas principais da teologia agostiniana sao: o mal como a corrup¢do do bem, o poder do pecado, a busca da felicida- *Em 497, os bispos cristéos foram expulsos da Numidia. Ao pactirem para a Sardenha, levaram consigo o corpo de Agostinho, que ali ficou até as invasées sarracenas do século VIII, quando a entio rei dos lombardos, Luitprand, 0 resga- toueordenou que seus cavaleiros o trouxessem aré Pévia, na Itélia, onde perma- nece até hoje. Quando se desce pela Strada Nuovo, chega-se a uma igreja lombardo-romanica do século XII, chamada de San Pietro in Ciel d'Oro. Perto do altar, pode-se ver o relicdtio de marmore ornamentado que contém os restos mortais de Agostinho de Hipona, 36 de ¢ da redengdo, a importancia da defesa filoséfica da fé cristd, a refutagao do ceticismo, a beleza e a bondade do Deus trino e uno, a providéncia de Deus, a liberdade da graca, as evidéncias da existéncia de Deus, a confianga na fé crista, a origem do tempo ¢ o Reino de Deus. Agostinho claramente reconhecia a primazia e a autoridade da revelagao crista. Ele se separou de suas influéncias filosdficas onde via que elas conflitavam com a Escritura, que foi a fonte de autoridade de sua elaboracao teoldgica.® Posstdio, bispo de Calama e amigo de Agostinho, perma- neceu ainda um ano nas rufnas de Hipona e preparou um Catdlogo das obras do mestre. Curiosamente, hoje possui- mos obras que Possidio mencionava como desaparecidas, e outras, citadas no Catdlogo, nao chegaram até nds.” As obras que Possidio assinalou como ausentes j4 haviam chegado a Europa, pois foram copiadas, com a concordancia de Agos- tinho, na sua biblioteca. Além disso, 0 Catdlogo nao contém a enumeracio das 93 obras, repartidas em 233 livros, catalo- gados por Agostinho.” °Em grande medida, seguindo a Agostinho, o fildsofo reformado Cornelius van Til apresentou a chamada apologética proposicional. Essa abordagem reco- nhece que nenhum fato, histérico ou nao, pode set interpretado de maneira coerente sem pressupora fé no Deus trino—infinito ¢ pessoal —como revelado na Escritura, Ao lermos as Escrituras devemos comegar a pattir das pressuposigbes reveladas na Escritura, através das proposigées das Escrituras até as conclusbes da Escritura. Isto nao é neutto nem objetivo. Mas, metodologicamente, nfo pode- mos esperar que sequer entendamos, e muito menos que aceitemos a mensagem da Escritura, se impusermos pressuposig6es estranhas a ela, Devemos, portanto, permitir que nosso pensamento, pelo menos temporariamente, seja moldado pelas pressuposi¢des da Escrituraa fim de entendé-la. Cf. Colin Brown, Filoso- (fice fe crista, p. 159: “Hé lacunas no pensamento da Van Til. Mesmo assim, Van Tildeu passos legitimos em diregao a uma apreciacao filosdfica da religiao biblica. Sua discussao de pressuposig6es, e sua lembranga de que os homens nao precisam que a existéncia de Deus seja comprovada a eles, pois jf tém consciéncia dele, sao de maxima importancia’. A disperséo de sua obra pelo mundo crist4o ocidental ex- plica a influéncia considervel de Agostinho no Baixo Impé- rio Romano, em toda a Idade Média e depois disso. Essas obras forneceram & igreja aquilo de que necessitava pata os séculos vindouros, criando um odsis de certeza num mundo perturbado. Os maiores nomes do Renascimento — entre eles, Erasmo de Rotterdam — dedicaram-se a editd-las com © surgimento da imprensa. Assim, a vida e 0 pensamento de Agostinho chegaram até nds, e talvez nenhum personagem da Antiguidade nos seja mais bem conhecido. Agostinho foi o mestre por exceléncia de uma nova épo- ca. A influéncia agostiniana pode ser encontrada nos escritos de Ledo Magno, nao apenas nos temas cristolégicos, mas tam- bém os que diziam respeito a graca de Deus. Boécio depen- de dos escritos trinitarios e Gregério depende das énfases pastorais e éticas. Na Idade Média, Anselmo de Canterbury encontra em Agostinho a fonte mais importante para o prin- cfpio teoldgico da fé buscando compreensao (fides quaerens intellectum), que dominou sua busca de Deus ¢ seu entendi- mento sobre a expiacao. Igualmente agostiniano é Bernardo de Clairyaux, quando tratou da graga e do livre-arbitrio, do amor de Deus, da espiritualidade crista e do ministério pas- toral. Martinho Lutero e Joao Calvino,” os grandes reforma- dores do século XVI, foram profundamente influenciados pelo bispo de Hipona, assim como o grande tedlogo congre- gacional do século XVIII, Jonathan Edwards. E 0 movimen- to de renovagao inglés do século XVII, 0 movimento puritano, tem sido chamado de “agostinianismo reformado”.*° Freqiientemente tem sido dito que tanto 0 catolicismo quanto © protestantismo tém sua origem em Agostinho. O primeiro °CE., por exemplo, Anthony N. S, Lane, John Calvin: student of the church fathers, especialmente p. 38-9. obtém dele (mas nao exclusivamente dele) seu alto conceito da igreja e dos sacramentos. O ultimo segue Agostinho na sua visdo da soberania de Deus, da perdic&éo do homem no pecado e da graca de Deus que ¢ 0 meio exclusivo para trazer a salvagéo ao homem. Assim como ocorre a todos os ditados faceis, esta declaragao acerca de Agostinho simplifica demais. Ha, certamente, catdlicos hoje que compartilham do ponto de vista de Agostinho acerca da salvacio e protestantes que nao compartilham dele. Seja como for, porém, foi de Agosti- nho mais do que qualquer outro tedlogo individualmente que 0 pensamento medieval recebeu seu arcabougo teoldgi- co de idéias. Mesmo quando pensadores posteriores altera- ram a pintura dentro do quadro, o arcabougo com que comecaram foi a teologia da igreja primitiva em geral ea de Agostinho em particular.*! Portanto, nenhum de seus predecessores foi tio notavel quanto Agostinho, que realizou sua obra numa pequena ci- dade do norte da Africa, cujo impacto, porém, se fez sentir através dos séculos futuros em todo o cristianismo ocidental, tanto catélico como protestante. Senhor, despertai na vossa Igreja o espfrito que animou san- to Agostinho, para que todos nés, sedentos da verdadeira Sabedoria, nao cansemos de vos procurar a vés, fonte viva do amor eterno. Amém.* CRONOLOGIA 313: Constantino promulga o Edito de Milao, tornando © cristianismo a religiao oficial do Império Romano do Oci- dente. SOragao oficial da festa littixgica de Santo Agostinho, em 28 de agosto. 354: Agostinho nasce em Tagaste, Numidia, na Africa. 370: Volta de Madaura para ‘Tagaste. 371: Estuda em Cartago. 372: Patricio morre e Agostinho une-se a uma concubina. 373: Nasce seu filho, Adeodato. 375: Volta de Cartago para lecionar em Tagaste. 376: Retorna a Cartago. 380: O Edito de Teodésio torna o cristianismo religiio oficial no Império Romano do Oriente. 383: Agostinho abandona o maniquefsmo e embarca para Roma. 384: Nomeado professor em Milao. Jerénimo comega a tradugao da Bfblia para o latim, tradicionalmente chamada de Vulgata. 385: Ménica chega a Milao. 386: Agostinho descobre o neoplatonismo (provavelmente em junho). Conversao ao cristianismo (fim de agosto). De- mite-se do cargo de professor, e parte para o Cassicfaco (se- tembro). Teodésio repele os godos no Dantbio. 387: Agostinho volta a Milao e € batizado, com Alipio e Adeodato (abril). Visto de Ostia. Morte de Ménica. 388: Volta a Cartago e a Tagaste. 390: Morte de Adeodato. 391: Chega a Hipona para fundar um mosteiro. E orde- nado presbitero. 392: Debate com o maniqueu Fortunato em Hipona. Escreve a Jerénimo pedindo traducoes latinas de comenté- rios gregos sobre a Biblia. 395: Agostinho sucede Valério como bispo de Hipona. Morte de Teodésio. 40 396: Morte de Valério. 403: Agostinho prega em Cartago. 409: Peldgio em Cartago, Os vandalos e os suevos inva- dem a Espanha. 410: Agostinho em Cartago. Recolhe-se a uma proprie- dade perto de Hipona, por motivo de satide. 411-413: Prega regularmente em Cartago. 418: Peldgio é expulso de Roma. 426: Erdclio é nomeado sucessor de Agostinho. 429: Os vandalos chegam ao norte da Africa Ocidental. 430: Agostinho falece em 28 de agosto. 41 A ADEODATO “Juntamos também a nds Adeodato, filho do meu peca- do, a quem tinhas dotado de grandes qualidades. Com quin- ze anos apenas, superava em talento muitas pessoas maduras e eruditas. [...] Cedo o levaste desta terra; e com a recorda- cdo dele sinto maior seguranca do que a teria com sua vida. Nada mais devo temer por sua infancia, nem por sua adoles- céncia ou puberdade. A nés 0 associamos pela mesma idade na tua graca.”! ALIANCA “Na Velha Alianga, como numa sombra, se esconde a Nova. Por que é, na verdade, que se diz Velha Alianca sendo porque € encobrimento da Nova? E por que é que se chama a outra Nova sendo porque é 0 descobrimento da Velha?”? “O préprio sacerdécio segundo a ordem de Aarao foi cons- titufdo para ser como que uma sobra do sacerdécio eterno.” “A Velha Alianca, a do Sinai, que gera para a servidao, pata mais nao serve do que pata prestar testemunho da Nova Alianga.”* “Gragas 2 Nova Alianga, espera[mos] a verdadeira beati- tude espiritual no Reino dos Céus.”° “Assim, guardadas as proporgGes, acontece com o género humano, cuja vida se desenrola como a de uma sé pessoa, desde Adao até o fim deste século. Pelas leis da divina Provi- déncia que a governa, aparece a humanidade distribuida em duas classes. Uma constitufda pela multidao dos impios que trazem impressa a imagem do homem terreno desde 0 inicio dos tempos até 0 seu fim. A outra classe é formada das gera- des de um povo consagrado ao unico Deus. De Adio a Jodo Batista, conduziu Deus a vida do homem terreno sob certa justica servil. Sua histéria chama-se o Antigo Testamento, sob a promessa de um reino temporal. Mas toda essa histé- ria, no seu conjunto, nada mais é do que a imagem do novo povo do Novo Testamento, ao qual é prometido o reino dos céus. A vida desse povo, na fase temporal, vai da vinda do Senhor 4 humildade, até a sua volta 4 gléria, no dia do Jutzo. Depois do que, o velho homem, tendo desaparecido, serd aquela transformagio definitiva e prometida: uma vida angélica.”® ALMA “Por que motivo, entio, ndo se hd de bendizer a Deus ¢ glorific4-lo com inefaveis louvores quando, tendo criado al- mas destinadas a perseverar na observancia das leis da justi- ga, nosso Criador deu a vida também a outras almas que ele previu haver de pecar e mesmo perseverar em seu pecado? Visto que estas Uiltimas almas s4o ainda superiores em bonda- de aos seres animados que sao incapazes de pecar, seja por falta de razao, seja por carecer do livre-arb{trio da vontade. E, além disso, as almas mesmo impenitentes sao ainda mais nobres e excelentes do que qualquer brilho espléndido dos corpos luminosos. Esses que muitos homens cometem o erro grosseiro de venerar como sendo a substancia prépria de Deus alt{ssimo.”” 44 “Se supusermos que Deus criou uma sé alma, da qual ti- raram sua origem as almas de todos os homens que nascem, quem poderia negar nao ter cada homem pecado, ao pecar © primeiro homem? No caso, porém, de as almas serem cria- das separadamente, uma a uma, na ocasiéo do nascimento de cada homem, nao se pode achar ser contra a razdo, mas, ao contrdrio, perfeitamente conveniente e bem conforme a ordem que os deméritos da primeira alma sejam conaturais a alma seguinte, e que o mérito da segunda seja conatural a antecedente.”® “Ninguém, de modo algum, a nao ser Deus onipotente, pode ser o Criador de tais almas, de dar-lhes a existéncia, antes mesmo de ter sido amado por elas. E reform4-las, aman- do-as; e aperfeigod-las, quando por elas amado. E Ele que dé 0 ser 4s almas que nao existem ainda. E aqueles que o amam como autor de sua existéncia concede-lhes 0 poder de se- rem felizes.”” AMIZADE “Eis 0 que amamos nos amigos, que amamos de tal modo que sentimos a consciéncia culpada quando nao pagamos amor com amor, sem nada esperar do outro sendo sinais de afeto. Daf 0 luto quando morre um amigo, daf as trevas da dor, a dogura que se transforma em amargura, o corac4o inun- dado de pranto e a morte dos vivos pela vida perdida dos que morrem. Feliz aquele que te ama, e que, por teu amor, ama 0 amigo ¢ o inimigo! Somente nao perde nenhum ente querido aquele para quem todos sao queridos, aquele que nunca perdemos. E quem é ele senao 0 nosso Deus, 0 Deus que criou o céu e a terra e que lhes confere plenitude, pois foi plenificando-os que os fez? Somente quem te abandona pode perder-te. Mas onde ira ao abandonar-te? Para onde fugird, sendo para longe de tua bondade e para perto da tua 45 célera? Onde poderia ele, no seu castigo, nao encontrar a tua lei? E a tua lei ¢ a verdade; ¢ a verdade és tu.”! “A amizade sé € verdadeira quando une pessoas ligadas a ti pelo ‘amor derramado em nossos coragées pelo Espirito Santo que nos foi dado’ [Rm 5.5].”" “Se junto comigo aderirdes convictamente a esses dois mandamentos [o amor a Deus e ao préximo], nossa amizade ser4 verdadeira e sempiterna e naéo-somente nos unird a nés mesmos, como também nos unird ao préprio Senhor.”!? “A pessoa que no tem amigos, nada no mundo se apre- senta amével.”' “A amizade nao se deve confinar dentro de limites estrei- tos. Ela abarca todos os que sao dignos de afeicéo e amor, embora brote mais prontamente com uns do que com ou- tros. A amizade ainda se estende aos nossos inimigos, por quem também devemos rezar. Nao existe, portanto, nenhum ser humano que nao mereca amor: se nao for por afeicio miitua, é a0 menos pelo fato de compartilharmos a mesma natureza humana. Por outro lado, é certo que aqueles com quem mantemos relacao reciproca de amor sublime e puro nos proporcionam maior prazer,”" AMOR “Estes sentimentos [as paix6es] sao, portanto, maus, quan- do é mau o amor; bons, quando o amor é bom.”!* “A finalidade de todas as nossas obras é 0 amor. Este é 0 fim, é para alcancd-lo que corremos, é pata ele que corre- mos; uma vez chegados, é nele que repousaremos.”" “Deus, nosso mestre, ensinou-nos dois mandamentos prin- cipais: o amor de Deus e 0 amor do préximo, Neles encon- 4G trou o homem trés objetos para amar — Deus, ele préprio e © préximo.”!” “Nao deve odiar o homem por causa de seu vicio, nem amar o vicio por causa do homem, mas sim odiar 0 vicio € amar 0 homem.”"* “Ama e faze 0 que quiseres.”” “Ama, e assim nao poderds fazer senao o bem.”” “Meu peso ¢ 0 amor; por ele sou levado para onde sou levado. Teu dom nos inflama e nos leva para o alto; nés nos inflamamos e nos movemos. Subimos os degraus do cora¢ao, cantando o cAntico dos degraus [SI 119.1].”*! “Deus s6 pode ser amado pelo Espirito que ele nos con- cedeu.”” “Assim, como ele ama a seus inimigos fazendo nascer 0 seu sol igualmente sobre maus e bons e cair a chuva sobre justos e injustos, do mesmo modo, nés que nao podemos dis- por em favor de nossos inimigos, nem do sol, nem da chuva, pelo menos derramemos as nossas l4grimas, quando orarmos por eles.” “Rogai a Deus a graca de vos amar uns aos outros, Amaia todos os homens, também aos vossos inimigos. Nao por se- rem irmos vossos, mas pata se tornarem tais. Rogai para estardes sempre abrasados do amor fraterno.”* “Pouco te ama aquele que ao mesmo tempo ama outra criacura, sem amé-la por tua causa. O amor, que sempre ar- des € nao te extingues jamais! O caridade, meu Deus, infla- ma-me!”? “Estou seguro, Senhor, de que te amo; disso nao tenho dtividas. Tocaste-me 0 coracdo com a tua palavra, e comecei a amar-te. O céu, a terra e tudo que neles existe dizem-me por toda parte que te ame, e nfo cessam de repeti-lo a todos os homens, ‘de modo que eles nao tém desculpa’ [Rm 1.20; (...)]. Mas, que amo eu quando te amo? Nao uma beleza cor- poral ou uma graca transitéria, nem o esplendor da luz, tao cara a meus olhos, nem as doces melodias de variadas cantilenas, nem o suave odor das flores, dos ungiientos, dos aromas, nem o mand ou o mel, nem os membros to suscetf- veis as carfcias carnais. Nada disso eu amo, quando amo o meu Deus. E contudo, amo a luz, a voz, o perfume, o ali- mento e 0 abraco, quando amo o meu Deus: a luz, a voz, 0 odor, 0 alimento, 0 abraco do homem interior que habita em mim, onde para a minha alma brilha uma luz que ne- nhum espago contém, onde ressoa uma voz que 0 tempo nao destréi, de onde exala um perfume que o vento nao dissipa, onde se saboreia uma comida que o apetite nao diminui, onde se estabelece um contato que a sociedade nao desfaz. Eis 0 que amo quando amo o meu Deus.”* ANJOS “Com o nome de anjo se designa 0 oficio, nao a natureza. Perguntas o nome desta natureza? E espirito. Procuras saber qual o seu minus? EF de anjo, mensageiro. Quanto ao que é, € espirito; quanto ao que faz, é anjo.””” “Os anjos jd existiam quando foram criados os astros. Ora, estes o foram ao quarto dia. Diremos, ent&o, que foram cria- dos ao terceiro? Claro que nao. Sabemos muito bem o que nesse dia foi feito: a terra foi separada das Aguas, cada um destes elementos recebeu as espécies que lhes convinham ea terra produziu tudo o que nela cria rafzes. Seria, porventura, no segundo? Também nao. Nesse dia foi feito o firmamento entre as 4guas do alto e de baixo, dando-se-lhe 0 nome de 48 Céu; e no firmamento foram criados os astros ao quarto dia. E, pois, claro que se eles se encontram entre as obras que Deus fez em seis dias, os anjos sao essa luz que recebeu o nome de dia; e foi para marcar a unidade que se nao disse 0 primeiro dia, mas sim um dia. Porque o segundo, 0 terceiro e 0S Seguintes ndo s4o outros, mas o mesmo dia unico repetido para constituir o ntimero seis ou sete, em vista de um conhe- cimento sendrio ou septendrio — 0 sendrio relativo as obras que Deus fez ¢ 0 septendrio relativo ao repouso de Deus.” “Nao é licito pér em duvida que as inclinagées, entre si contrdrias, dos bons e dos maus anjos, nao resultam de natu- rezas e princ{pios diversos, pois foi Deus, autor e criador ex- celente de todas as substAncias, quem as criou a umas e outras — mas provém das vontades e apetites. Uns mantém-se no bem, comum a todos, que para eles é 0 proprio Deus, e na sua eternidade, na sua verdade, na sua capacidade; os ou- tros, comprazendo-se mais no seu poder pessoal, como se fosse bem seu préprio, afastaram-se do supremo bem, fonte uni- versal de felicidade e — preferindo o fausto da sua elevacao 4 eminentissima gléria da eternidade, a astticia da sua vaida- de & plena certeza da verdade, as suas paixdes de facgio 4 indivistvel caridade — tornaram-se orgulhosos, enganado- res ¢ invejosos. A beatitude daqueles tem, pois, por causa a sua uniao a Deus — e a desgraga destes explica-se pela raz4o contrdria: a separacao de Deus.””° “A verdadeira causa da beatitude dos anjos bons est4 no fato de estarem unidos ao que é no mais elevado grau. Quan- do, pelo contrario, perguntamos qual a causa da desgraca dos anjos maus, ela apresenta-se-nos precisamente no fato de se terem desviado daquele que no mais elevado grau é, para se voltarem a si mesmos, que nao possuem 0 ser em grau supre- mo. E que outro nome tem este vicio senao o de soberba?”? “E preciso reconhecer, em justo louvor do Criador, que nao é apenas dos homens santos mas também dos santos an- jos que se pode dizer que a caridade de Deus neles se difun- diu pelo Espirito Santo que thes foi dado.”*! APOLOGETICA “Quando recordo estas coisas, 0 fago contra os indoutos cuja ignorancia deu origem a este divulgado provérbio: ‘nao chove — a culpa é dos cristaos’. Sem duvida que os que fo- ram educados nas disciplinas liberais ¢ gostam de histéria conhecem estes fatos. Todavia, para tornarem extremamente hostis para conosco as turbas ignaras, fingem ignord-lo e pro- curam convencer o vulgo de que quem tem a culpa das cala- midades que o género humano tem de padecer em certos lugares e tempos é 0 nome de Cristo que por toda a parte se estd a difundir com irresistfvel fama e gloriosissima populari- dade, contra os deuses. Conosco voltem a recordar-se das calamidades que tantas e tao variadas vezes assolaram Roma, antes de Cristo aparecer em carne, antes de ser conhecido entre os povos 0 seu nome cuja gléria em vao invejam; e, se puderem, defendam dessas calamidades os seus deuses, se é que Ihes prestam culto os seus devotos para nao sofrerem desses males. Pretendem imputar-nos essas calamidades se agora as tém que suportar. Por que é que os seus deuses per- mitiram que as calamidades de que vou falar acontecessem aos seus devotos antes que o nome de Cristo, j4 puiblico, os enfrentasse e proibisse os seus sacrificios?”” “Apoiar-me-ei, nao apenas na autoridade divina, mas tam- bém na raz%o — o que me permito por causa dos descren- 33 tes. “Deus emprega dois meios: a autoridade e a razio. A au- toridade exige a fé e prepara o homem para a reflexio. A 50 razio conduz 4 compreensio e ao conhecimento. A autori- dade, porém, jamais caminha totalmente desprovida da ra- 740, ao considerar Aquele em quem se deve crer.” ARVORE (v. tb, CONVERSAO) “Tua lei, Senhor, condena certamente o furto, como tam- bém o faz a lei inscrita no coracdo humano, e que a propria iniqitidade nao consegue apagar. Nem mesmo um ladrao tolera ser roubado, ainda que seja rico e 0 outro cometa o furto obrigado pela miséria. E eu quis roubar, e 0 fiz, nao por necessidade, mas por falta de justica e aversio a ela por excesso de maldade, Roubei de fato coisas que j4 possufa em abundancia e da melhor qualidade; e nao para desfrutar do que roubava, mas pelo gosto de roubar, pelo pecado em si. Havia, perto da nossa vinha, uma pereira carregada de fru- tos nada atraentes, nem pela beleza nem pelo sabor. Certa noi- te, depois de prolongados divertimentos pelas pracas até altas horas, como de costume, fomos, jovens malvados que éra- mos, sacudir a drvore para lhe roubarmos os frutos. Colhe- mos quantidade consideravel, nao para nos banquetearmos, se bem que provamos algumas, mas para jogé-las aos porcos. Nosso prazer era apenas praticar 0 que era proibido,”* ASCENSAO “Antes de toda e qualquer coisa, ¢ preciso converter-se pelo temor de Deus para conhecer-lhe a vontade, para saber © que ele nos ordena buscar ou rejeitar. Necessdrio é que este temor incuta o pensamento de nossa mortalidade e da futu- ra morte e fixe no lenho da cruz todos os movimentos de soberba, como se nossas carnes estivessem atravessadas pelos cravos. Em seguida, é preciso tornar-nos mansos pela pieda- de, para nao contradizermos a Escritura divina. Seja quando ela for compreendida e vier repreender alguns de nossos vi- cios, seja quando, incompreendida, nés nos imaginarmos capazes de julgar ¢ ensinar melhor do que ela. Devemos, ao contrario, pensar e crer que € muito melhor e mais verdadei- ro 0 que esté escrito ali, ainda que oculto, do que o que pos- samos saber por nés prdprios. Depois desses dois graus do temor de Deus ¢ da piedade, chega-se ao terceiro, o grau da ciéncia {...]. Porque € nesse grau que se ha de exercitar todo o estudioso das divinas Escrituras, com a intencdo de nao en- contrar nelas outra coisa mais do que o dever de amar a Deus por Deus, ¢ ao préximo por amor de Deus. [...] Essa ciéncia que leva & santa esperanga nao torna o homem presungoso, mas antes o faz suplicante. Com esse afeto obtém, mediante diligentes stiplicas, a consolagao do auxilio divino, para que n&o caia no desespero. Desse modo, 0 estudioso da Escritura comega a entrar no quarto grau, isto é, na fortaleza, pela qual se tem fome e sede de justica. Gracas a essa forga, ele afasta- se de toda alegria mortifera das coisas temporais e, apartan- do-se delas, dirige-se ao amor dos bens eternos, isto ¢, da imutdvel Unidade que é a Trindade, idéntica a ela prdpria. Apenas o homem — o quanto lhe foi possfvel — chega a divisar de longe o fulgor dessa Trindade e reconhece que a fraqueza de sua vista ndo pode suportar aquela luz, e sobe ao quinto grau, isto é, ao conselho, fundamentado sobre a mise- ricérdia, onde purifica sua alma tumultuada e como desas- sossegada pelo clamor da consciéncia das imundices contrafdas, devido ao apetite das coisas inferiores. Ele se exer- cita especialmente no amor ao préximo e se aperfeicoa nele. Em seguida, na plenitude de sua esperanga, na integridade de suas forgas, chega até o amor aos inimigos e sobe ao sexto grau. L4, purifica os olhos com os quais Deus pode ser visto — 0 quanto é possfvel — pelos que mortem para este mun- 52 do. Porque eles véem a Deus, 2 medida que morrem para este século, Contudo, a medida que vivem para este século, ndo o véem. Embora o aspecto dessa luz divina comece jd a mostrar-se ndo s6 mais segura e tolerdvel, mas também mais agraddvel, é preciso dizer que s6 se pode vé-lo ‘em enigma e em espelho’ (1Co 13.12), porque, enquanto peregrinamos nesta vida, caminhamos mais pela fé do que pela visao (2Co 5.6,7), ainda que nossa convetsac&o seja com o céu (Fp 3.20). [...] Esse santo, em conseqiiéncia, ter4 coragéo tio purificado, tao simples, que nao se apartard da verdade por interesse de agradar aos homens, nem com o fim de evitar os mil aborrecimentos que tornam infeliz esta vida presente. Esse filho de Deus eleva-se até & sabedoria, que é 0 sétimo e tlti- mo grau onde gozard delicias, tranqiiilo e em paz.”* ASTROLOGIA “Eu nao cessava de consultar esses embusteiros denomi- nados astrdlogos, que pareciam nfo sacrificar nem dirigir preces aos espiritos para adivinhar o futuro. [...] Mas esses impostores procuram destruir esse plano de salvagao, dizen- do: ‘Pecar é inevitavel, e a causa vem do céu. E obra de Vénus, de Saturno, ou de Marte’. Evidentemente, querem com isso inocentar o homem, que é carne, sangue e orgulhosa podri- dao; a culpa recairia sobre o criador e ordenador do céu e dos astros. E quem é este, sendo tu, nosso Deus, suavidade e fonte da justiga.”9” “Quando ele {um médico que se tornou cénsul em Cartago] soube de minhas conversas, que eu me dedicava ao estudo dos livros de horéscopo, com paternal bondade me aconselhou a langd-los fora e nao despender em coisas vas o tempo e o trabalho necessdrio a coisas mais titeis.”* 53 B BATISMO “As criangas sio apresentadas [no batismo] para receber a graca espiritual, nao tanto por aqueles que as levam nos bra- cos (embora também por eles, se sao bons fiéis), mas, sobre- tudo, pela sociedade universal dos Santos e dos fieis. [...] Ea Mae Igreja toda, que estd presente nos seus Santos, a agir, pois é ela inteira que os gera a todos e a cada um.”! “O Espfrito Santo habita em bebés batizados, ainda que eles nao o saibam.”? “O sacramento de Cristo nao deixa de ser santo mesmo entre os sequazes de Satands, [...] sempre que tenham, ao re- cebé-lo, essas disposigées de alma [...]. Nao se lhes deve, por- tanto, administrar outra vez. [...] Para mim é coisa evidente que nao devemos considerar quem é que administra, mas 0 que é que se administra; nao quem é que recebe, mas o que é que se recebe [...]. Quem esté com Satands nao pode cor- romper 0 sacramento que procede de Cristo [...]. Cada vez que se administra o batismo observando a férmula do Evan- gelho, por maior que seja a petversao do batizante ou do batizado, o sacramento é santo em si mesmo por ser sacra mento de Jesus Cristo, Caso alguém receba o batismo das mios de um homem desencaminhado, se nao recebe a per- yersidade do ministro, mas a santidade do mistério, sendo incorporado a Igreja pela f¢, pela esperanga e pela caridade, ele recebe a remissdo de seus pecados. [...] Se, porém, o pré- prio batizado esta desencaminhado, entio, enquanto perse- verar no seu erro, o que lhe é administrado nao lhe serve 54 para salvagao; contudo, o que ¢ recebido permanece nele inalteravelmente santo, nao devendo ser renovado quando ele retornar ao reto caminho.”? “Ha grande diferenga entre um apéstolo e um beberrao; mas nao ha diferenca nenhuma entre um batismo cristio realizado por um apéstolo e um batismo cristao realizado por um beberrao [...]. Nao ha diferenga entre um batismo cris- tao realizado por um apéstolo e 0 que € realizado por um herege.”4 “A dgua empregada num batismo herético nao é adulte- rada; pois a criacgdo de Deus nao é em si mesmo mA, e a Pala- vra do evangelho nao deve ser considerada falha por qualquer mestte.”* “A pessoa batizada nfo perde o sacramento do batismo quando se separa da unidade da igreja. Da mesma forma, um homem ordenado nfo perde o sacramento de adminis- trar o batismo ao se sepatar da unidade da igreja.”° “Se as criangas dessas [tenras] idades tiverem recebido os sactamentos do mediador e nessas idades acabarem a vida, transferidas seguramente do poder das trevas para o Reino de Cristo, nao sé no estarao destinadas aos suplicios eter- nos, mas também nao sofrerao, na verdade, tormento algum purificador depois da morte.”” As criangas serao levadas “ao banho da regeneragao”.* “E assim que os teus sacramentos, 6 Deus, gracas as obras dos teus santos, deslizam entre as ondas das tentagdes do mundo para regenerarem os povos no batismo em teu nome.”? “Fomos batizados, e desapareceu qualquer preocupacao quanto & vida passada.”!° “Sabemos que no batismo de Cristo os pecados sdo per- doados, e que este batismo vale para a remissao dos pecados. Se as criangas sfo inteiramente inocentes, por que as maes correm para a igreja quando elas adoecem? Que pecado apa- ga aquele batismo, a que se refere aquele perdao? Veja a cri- anga inocente a chorar, nado a se encolerizar. Que lava o batismo? Que dfvida se paga com aquela graca? Apaga-se a propagacdo do pecado. Se aquela crianca pudesse falar, te diria, e se jd tivesse 0 entendimento que possuia Davi, te responderia: O que observas em mim, que sou uma crian- ca? E verdade que nao vés pecados que tenha cometido, mas fui concebido em iniqitidade e ‘em pecado me gerou minha mae’.”!! “Ha ainda o costume, entre aquelas mesmas pessoas, de indagarem para que pode servir as criancinhas 0 sacramento do batismo de Cristo, quando muitas delas, apés té-lo rece- bido, morrem antes de ser capazes de nada entender. Quan- to a esse problema, conforme uma crenga sélida, piedosa e razodvel, o que é de fato util 4 mesma crianga batizada é a fé daqueles que a oferecem para ser consagrada a Deus. Essa opiniao é recomendada pela autoridade muito salutar da Igreja.”” BELEZA “Eu quero a ti, 6 justiga, 6 inocéncia, 6 beleza que atrai o olhar dos virtuosos, que em ti se satisfazem sem jamais se saciar.”! “Nao falo da beleza que reside na justiga ou na sabedoria, na inteligéncia do homem, na meméria, nos sentidos e na vida vegetativa, nem da beleza da inteligéncia humana, da meméria, dos sentidos e de toda a vida vegetativa, nem da beleza das estrelas na harmonia do firmamento, nem da be- 56 leza da terra e do mar, cheios de vidas que nascendo tomam o lugar dos mortos. E tampouco falo da beleza limitada e ilusdria dos vicios sedutores.”" “Cada uma das criaturas em particular era boa, mas, tomadas em conjunto, eram muito boas. O mesmo se diz da beleza dos corpos, porque o corpo, que é composto de membros belos, é bem mais belo que os membros sepa- radamente, cujo conjunto harmonioso compée o todo, em- bora os membros considerados separadamente sejam belos também.” Quem é Deus? “Perguntei a terra, e esta me respondeu: “Nao sou ew’. E tudo o que nela existe me respondeu a mes- ma coisa. Interroguei o mar, os abismos e¢ os seres vivos, ¢ todos me responderam: ‘Nao somos o teu Deus; busca-o aci- ma de nés’. Perguntei aos ventos que sopram, e toda a atmos- fera com os seus habitantes me responderam: ‘Anaximenes estd enganado; nao somos o teu Deus’. Interroguei 0 céu, o sol, a lua e as estrelas: ‘Nés também no somos o Deus que procuras’. Pedi a todos os seres que me rodeiam o corpo: ‘Falai-me do meu Deus, j4 que ndo sois o meu Deus; dizei- me ao menos alguma coisa sobre ele’. E exclamaram em alta voz: ‘Foi ele quem nos criou’. Para interrogd-los eu os con- templava, e sua resposta era a sua beleza”.'® “Ele é a forma incriada e a mais bela de todas as formas. Os corpos todos possuem certa beleza, sem a qual nao seriam 0 que sao. Se pois, indagarmos quem constituiu os corpos, busquemos entre todos os seres 0 que seja formos{ssimo. Toda formosura procede dele. E quem é esse senao o Deus tinico, a verdade tinica, a tinica salvagao de todas as coisas, a primei- ra e soberana esséncia, a fonte de onde procede tudo 0 que é — enquanto tem o ser — porque tudo o que é como tal é bom.”!” BEM “Por serem bons, procedem de Deus; por no serem ple- namente bons, nao sao Deus. Por conseguinte, o tinico bem que nao se pode deteriorar ¢ Deus. Os demais bens proce- dem dele, podem se deteriorar por si mesmos, porque por sua prépria procedéncia nada séo. E pelo mesmo Deus, que alguns bens, em parte, nao se deterioram e que outros, dete- riorados, podem recobrar a sua integridade.”"* “Ainda que o homem possa usar mal da liberdade, a sua vontade livre deve ser considerada como um bem.””” C CASTIDADE “E gracas & continéncia que nos reunimos e nos recondu- zimos & unidade, da qual nos afastamos para nos perdermos na multiplicidade.”' “Da-me a castidade e a continéncia, mas que nao seja para ja.”* “Muitos hd que preferem abster-se totalmente do seu uso, antes que [se refrear] para us4-los corretamente.”> “Ficava preso As mais insignificantes bagatelas, 4s vaidades das vaidades, minhas velhas amigas que me solicitavam a na- tureza carnal, murmurando: “Tu nos vais abandonar’? E tam- bém: ‘De agora em diante, nunca mais estaremos contigo’. E ainda: ‘De agora em diante, nao poderds fazer isto ou aqui- 58 lo’! E que pensamentos me sugeriam, meu Deus, ao dizerem: ‘Isto e aquilo’. [...] Do lado para onde voltava o rosto e por onde temia passar, apresentava-se a mim a casta dignidade da Continéncia, com serena alegria e sem desordem. [...] Encontravam-se af meninos e meninas, grande nimero de jovens e pessoas de todas as idades, dignas vitivas, virgens ido- sas. Em todas elas nao era estéril a continéncia, e sim a mae fecunda das alegrias geradas de ti, Senhor seu esposo. E a Continéncia ria de mim e ao mesmo tempo me exortava, como se dissesse: ‘Nao poderds tu fazer o mesmo que fizeram estes ¢ aquelas?”.”* CEU (v. VIDA ETERNA) CHRISTUS VICTOR “E porque o Verbo de Deus, o Filho tnico de Deus, que sempre teve e sempre tera o deménio submetido 4s suas leis, tendo se revestido de nossa humanidade, submeteu igual- mente o deménio ao homem, Para isso, nada lhe exigiu com violéncia. Mas venceu-o pela lei da justiga. Posto que o de- ménio, tendo enganado a mulher e feito cair 0 homem por meio dela — certamente animado pelo desejo perverso de causar dano, entretanto com todo direito —, pretendia sub- meter A lei da morte todos os descendentes do primeiro ho- mem, a titulo de pecadores. Em conseqiiéncia, esse poder nao deveria perdurar sendo até o dia em que 0 deménio po- tia o Justo 4 morte, Aquele em quem nada podia encontrar digno de morte. E Ele nao somente foi condenado a morte, sem crime algum, como também nasceu sem concupiscén- cia alguma, pela qual 0 deménio subjugava a todos os scus cativos, como frutos de sua arvore. Isso sem dtivida levado por um desejo muito perverso. Nao obstante, sem lhe ter faltado certo direito de propriedade. Por conseguinte, é com toda justica que o deménio est4 constrangido a libercar aque- les que créem naquele a quem submeteu a morte injustamente. Desse modo, se os homens morrem de morte temporal, que essa morte seja para liquidar sua divida; e se vivem da vida eterna, que seja para viver naquele que pagou por eles uma divida que ele préprio nao tinha. Para aqueles, porém, a quem o deménio tiver persuadido de perseverar na infidelidade, com direito ele os terd como companheiros na danago eter- na. Assim, pois, aconteceu que o homem néo foi atrancado por violéncia ao deménio, tal como este nao havia se apro- priado por violéncia do homem, mas por persuasio. Dessa maneira, foi submetido o homem que com direito havia sido humilhado, a ponto de se tornar escravo daquele a quem dera o consentimento para o mal. Com direito, também, foi libertado por Aquele a quem dera o consentimento para o bem. Isso porque o homem fora menos culpado consentin- do ao mal do que o deménio a persuadir a fazé-lo.”* CIDADE DE DEUS, CIDADE DA TERRA “A glorios{ssima Cidade de Deus — que no presente de- curso do tempo, vivendo da fé, faz a sua peregrinagio no meio dos {mpios, que agora espera a estabilidade da eterna morada com paciéncia até o dia em que ser julgada com justiga, e que, gracas a sua santidade, possuir4 entao, por uma suprema vitéria, e paz perfeita — tal ¢, Marcelino, meu ca- rissimo filho, o objeto desta obra. Empreendi-a a teu pedi- do, para me desobrigar da promessa que te fizera de defender esta Cidade contra os que ao seu fundador preferem seus préprios deuses, Grande e 4rduo trabalho! Mas Deus serd a nossa ajuda! Sei de que forcas tenho necessidade para de- monstrar aos soberbos quao poderosa ¢ a virtude da humil- dade, pois que, para l4 de todas as grandezas passageiras e 60 efémeras da Terra, ela atinge uma altura que nao é uma usur- pagao do orgulho humano, mas um dom da graga divina. De fato, o rei e fundador desta Cidade, de que resolvemos falar, revelou nas Escrituras do seu povo o dito da lei divina Deus resiste aos soberbos e concede a sua graca aos humildes (Tg 4.6, 1Pe 5.5). Mas deste privilégio exclusivo de Deus, a alma intumescida de orgulho tenta apropriar-se dele e gosta de ouvir dizer em seu louvor poupar os vencidos e domar os soberbos. Também € preciso falar da Cidade da Terra, na sua Ansia de dominio, que, embora os povos se lhe submetam, se torna escrava da sua prdpria ambic¢ao de dominio, Dela tra- tarei, nada calando conforme o exige o plano desta obra e o permitir a minha capacidade.”* “Incomparavelmente mais gloriosa é a cidade do Alto, onde a vitéria é a verdade, onde a dignidade é a santidade, onde a paz ¢ a felicidade, onde a vida é a eternidade.”” “Aconteceu que, entre tantos e tao grandes povos espa- Ihados por toda a Terra, apesar da diversidade de usos e cos- tumes, da imensa variedade de linguas, armas ¢ vestudrio, nao se encontram senao dois tipos de sociedades humanas que nés podemos & vontade, segundo as nossas Escrituras, chamar as duas Cidades — uma, a dos homens que querem viver segundo a carne, ¢ a outra, a dos que pretendem seguir 0 espirito, conseguindo cada uma viver na paz do seu género quando eles conseguem o que pretendem.”* “E por isso que agora, na Cidade de Deus ¢ & Cidade de Deus, a peregrinar neste século, muito se recomenda a hu- mildade, altamente exaltada no seu rei que ¢ Cristo. Nas Sa- gtadas Escrituras ensina-se que o vicio da soberba, contrério a essa virtude, domina sobretudo no seu adversdrio que é 0 Diabo, Sem dtivida que € grande a diferenga que opée as duas cidades: uma, a sociedade dos homens piedosos, a 6) outra, a dos fmpios, cada uma com os seus anjos préprios em que prevaleceu o amor de Deus ou 0 amor de si mesmo.”? “Dois amores fizeram as duas cidades: 0 amor de si até ao desprezo de Deus — a terrestre; 0 amor de Deus até ao des- prezo de si — a celeste. Aquela se glorifica em si propria — esta no Senhor; aquela solicita dos homens a gléria — a mai- or gl6ria desta consiste em ter Deus como testemunha da sua consciéncia; aquela na sua gloria levanta a cabega — esta diz ao seu Deus: “Tu és a minha gloria, cu levantas a minha cabe- ga (SI 3.3); aquela nos seus principes ou nas nagdes que sub- juga ¢ dominada pela paixao de dominar — nesta servem mutuamente na caridade: os chefes dirigindo, os stiditos obedecendo; aquela ama a sua propria forca nos seus potentados — esta diz ao seu Deus: ‘Amar-te-ei, Senhor, minha fortaleza’; por isso, naquela, os sdbios vivem como ao homem apraz ao procurarem os bens do corpo, ou da alma, ou dos dois: e os que puderam conhecer a Deus ‘nao 0 glorificaram como Deus, nem lhe prestaram gracas, mas perderam-se nos seus vaos pensamentos e obscureceram o seu coragao insensato. Gabaram-se de serem sdbios’ (isto é, exaltando-se na sua sabedoria sob o império do orgu- lho), ‘tornaram-se loucos — e substitufram a gléria de Deus incorruptivel por imagens representando o homem cor- ruptivel, aves, quadrupedes e serpentes’ (porque & adota- 40 de tais {dolos conduziram os povos ou nisso os segui- ram), ‘e veneraram e prestaram culto a criaturas em vez de ao Criador que ¢ bendito para sempre’ (Rm 1.21-25) — mas nesta sé hé uma sabedoria no homem: a piedade que presta ao verdadeiro Deus 0 culto que lhe é devido e que espera, como recompensa na sociedade dos santos (tan- to dos homens como dos anjos), ‘que Deus seja tudo em todos’ (1Co 15.28).”!° “E que a cidade dos santos ¢ a do Alto, embora procrie cA cidadaos entre os quais ela v4 peregrinando até que chegue o tempo do seu reino.”"’ “Chamamos Cidade de Deus aquela de que dé testemu- nho a Escritura que, nao devido a movimentos fortuitos dos Animos, mas antes devido a uma disposigio da Suma Provi- déncia [...], acabou por subjugar toda a espécie de humanos engenhos.””? CONCUPISCENCIA “Chamo caridade ao movimento da alma cujo fim éa frui- 40 de Deus por ele prdprio, ¢ a fruigao de si préprio e do préximo por amor de Deus. Chamo, ao contrério, concupis- céncia ao movimento da alma cujo fim é fruir de si préprio, do préximo e de qualquer objeto sensivel, sem referéncia a Deus.” “Tu me ordenas que eu me abstenha da concupiscéncia da carne, da concupiscéncia dos olhos e da ambicéo do mundo.” “Na verdade, estdo os homens reduzidos a extrema misé- ria, Padecem sob 0 jugo de suas paixdes: a sensualidade, o orgulho e a curiosidade. Quer seja por duas dessas concupis- céncias quer por todas elas.” “Sao trés as concupiscéncias. E nada encontras que possa constituir os desejos humanos que nao derive da concupis- céncia da carne, da concupiscéncia dos olhos ou da ambico do mundo. Foi por essas tentagdes que o Senhor foi tentado pelo deménio.”" CONFISSAO “Qual ser4, entZo, a nossa esperanga? Antes de tudo, a confissao. Que ninguém se julgue justo. Sob o olhar de Deus que vé o que é o homem, ninguém levante com orgulho a cabega — esse que nada era e agora é. Ento, antes de tudo a confissio, depois 0 amor.”!” CONSCIENCIA “Volta 4 tua consciéncia, interroga-a. [...] Voltai, irmaos, ao interior e em tudo o que fizerdes atentai para a testemu- nha, Deus.”"* CONTEMPLAGAO “Que devo fazer, meu Deus, 6 minha vida verdadeira? Irei além dessa faculdade que se chama meméria, para che- gar a ti, 6 doce luz. Que me dizes? Subindo, através de mi- nha alma, a ti, que est4s acima de mim, transporei também essa minha faculdade que se chama meméria, no desejo de alcangat-te onde podes ser atingido e prender-me a ti onde é possfvel fazé-lo.”!° “Em nenhuma dessas realidades que percorro, e sobre as quais te consulto, encontro lugar seguro para minha alma, senao em ti. Somente em ti posso reunir todos os pensamen- tos dispersos, e nada de mim se afasta de ti.””° “Eu te invoco, ‘meu Deus, misericérdia minha’, que me criaste € nao te esqueceste daquele que se esqueceu de ti. Eu te chamo & minha alma, que preparas para te receber, inspi- rando-lhe este desejo. Nao desampares aquele que te invoca, tu que te antecipaste, antes que eu te invocasse.”*! “O meu Deus, tu te dds e te entregas a mim. Eu te amo. E, se ainda é pouco, faze que eu te ame ainda mais. Nao posso medir para saber quanto me falta de amor, que seja suficiente para que a minha vida corra para os teus bragos e dai nao se afaste, até esconder-se no segredo da tua face.” 64 “Prescinde disto e daquilo e contempla o préprio Bem, se podes. EntZo verds a Deus, que ¢ bom, nao por algum outro bem, mas o Bem de todos os bens.”* “E o que é conhecer a Deus, senéo 0 contemplar e perce- ber com firmeza, com os olhos da mente?” “Vemos todas essas coisas, e vemos que séo muito boas, porque em nés as contemplas, tu que nos concedeste o Espi- rito para as podermos ver e nelas te amar.”** “Ha homens infelizes que, desprezando as coisas conheci- das, s6 se alegram com novidades. Gostam mais de investigar do que contemplar. Enquanto ¢ a contemplacio o fim de qualquer estudo.”?¢ CONVERSAO “Quando essas severas reflexdes me fizeram emergir do {ntimo e expuseram toda a minha miséria 4 contemplagao do coragao, desencadeou-se uma grande tempestade porta- dora de copiosa torrente de l4grimas. Para dar-lhes vazao com naturalidade, levantei-me ¢ afastei-me de Alfpio, 0 necessd- rio para que sua presenga nao me perturbasse, pois a solidao me parecia mais apropriada ao pranto. Alfpio percebeu o estado em que me encontrava: o tom da voz embargada pe- las lagrimas, ao dizer-lhe alguma coisa, havia-me trafdo. Le- vantei-me; ele permaneceu atdnito, onde estavamos sentados. Deixei-me, nao sei como, cair debaixo de uma figueira e dei livre curso as l4grimas, que jorravam dos meus olhos aos bor- botdes, como sacrificio agraddvel a ti. E muitas coisas eu te disse, nado exatamente nestes termos, mas com o seguinte sen- tido: ‘E tu, Senhor, até quando? Até quando continuards ir- ritado? Nao te lembres de nossas culpas passadas!’. Sentia-me ainda preso ao passado, e por isso gritava desesperadamente: ‘Por quanto tempo, por quanto tempo direi ainda: amanha, 65 amanha? Por que nao agora? Por que nao pér fim agora & minha indignidade?’. Assim falava e chorava, oprimido pela mais amarga dor do coragio. Eis que, de repente, ougo uma voz vinda da casa vizinha. Parecia de menino ou menina re- petindo continuamente uma cangao: “Toma e [é, toma e le’. Mudei de semblante e comecei com a maxima atencdo a observar se se tratava de alguma cantilena que as criangas gostam de repetir em seus jogos. Nao me Jembrava, porém, de té-la ouvido antes. Reprimio pranto e levantei-me. A unica interpretacao possivel, para mim, era a de uma ordem divina para abrir o livro ¢ ler as primeiras palavras que encontrasse. Tinha ouvido que Antao, assistindo por acaso a uma leitura evangélica, sentiu um chamado, como se a passagem lida fosse pessoalmente dirigida a ele: ‘Vai, vende os teus bens ¢ da aos pobres, e terds um tesouro nos céus. Depois, vem e segue- me’. E logo, através dessa mensagem, converteu-se a ti. Apres- sado, voltei ao lugar onde Alipio ficara sentado, pois, ao levantar-me, havia deixado ai 0 livro do Apéstolo [Paulo]. Peguei-o, abri ¢ li em siléncio o primeiro capitulo sobre o qual caiu o meu olhar: ‘Nao em orgias e bebedeiras, nem na devassidao e libertinagem, nem nas rixas e citimes. Mas re- vesti-vos do Senhor Jesus Cristo e nao procureis satisfazer os desejos da carne’. Nao quis ler mais, nem era necessdtio. Mal terminara a leitura dessa frase, dissiparam-se em mim todas as trevas da diivida, como se penetrasse no meu coracio uma luz de certeza. Marcando a passagem com o dedo ou com outro sinal qualquer, fechei 0 livro e, de semblante j4 tranqiiilo, o mostrei a Alipio. Também ele, por sua vez, me mostrou o que Ihe acontecera ¢ que eu ignorava. Pediu-me que lhe mostras- se a passagem lida por mim. Mostrei-a, ¢ ele prosseguiu além do que eu havia lido, ignorando eu portanto 0 que estava escti- to. O texto era o seguinte: ‘Acolhei o fraco na fé’. Alipio apli- cou-o asi mesmo eo revelou a mim. Foi como um convite que o 66 firmou em seu propésito, perfeitamente de acordo com seu tipo de vida, que h4 muito tempo o havia distanciado de mim. Sem hesitar ¢ sem se perturbar, juntou-se a mim. Fomos ime- diatamente 4 minha mae e Ihe contamos 0 sucedido. Ela fi- cou radiante. E nds lhe relatamos como os fatos se tinham desenvolvido. E ela exulta e triunfa, bendizendo-te, Senhor, ‘que és poderoso além do que pedimos ou pensamos’. Verifi- cava que lhe havias concedido muito mais do que ela pedira com lagrimas e oragdes em meu favor. De tal forma me con- verteste a ti, que eu jd nado procurava esposa, nem esperanca alguma terrena, mas permanecia firme naquela fé em que tantos anos antes me tinhas mostrado em sonho a minha mie. “Transformaste sua tristeza em alegria’. Alegria muito maior do que ela havia desejado, ¢ muito mais preciosa e pura do que ela poderia esperar dos netos nascidos da minha carne.””” “Logo, aquele que dia a dia renova-se progredindo no co- nhecimento de Deus, na justiga e santidade da verdade (Ef 4.24), transfere seu amor do temporal para o eterno; do visivel para o invistvel; do carnal para o espiritual; e persiste com muito cuidado em reftear suas paixdes e diminuir os desejos em selacdo aos bens temporais, para se unir com per- severanca aos bens espirituais, pela caridade. E tanto mais caminharé, quanto mais for ajudado pela graga de Deus. Pois esta éa palavra divina: sem mim nada podeis fazer (Jo 15.5).”** CRIACAO “O Deus, viste finalmente que todas as coisas que tinhas criado eram ‘muito boas’. Também nés as vemos, e observa- mos que sdo todas muito boas.”” “Vemos todas essas coisas, € vemos que sao muito boas, porque em nds as contemplas, tu que nos concedeste o Espi- rito para as podermos ver e nelas te amar.” “Cada uma das criaturas em particular era boa, mas, to- madas em conjunto, eram muito boas. O mesmo se diz da beleza dos corpos, porque 0 corpo, que é composto de mem- bros belos, é bem mais belo que os membros separadamente, cujo conjunto harmonioso compée o todo, embora os mem- bros separadamente sejam belos também.” “Interroga a beleza da terra, interroga a beleza do mar, interroga a beleza do ar que se dilata e se difunde, interroga a beleza do céu... interroga todas estas realidades. Todas elas te respondem: ‘olha-nos, somos belas’. Sua beleza é um hino de Jouvor. Essas belezas sujeitas 4 mudanga, quem as fez se- no 0 Belo, nao sujeito 4 mudanga?”” “Que se deve, na verdade, entender por esta frase re- petida a propésito de tudo ‘Deus viu que isso era bom’ (Gn 1.4,10,12,18,21,25,31), sendo a aprovacao da obra realizada em conformidade com a arte que é a Sabedoria de Deus? Certamente que Deus nao esperou acabar a sua obra para saber que ela era boa. Pelo contrario — nada teria feito se lhe fosse desconhecido, Para Ele, portanto, ver que a sua obra é boa — e se a nao tivesse visto antes de a criar nao a teria feito — nao é aprender, mas ensinar-nos que ¢ boa.” “O Deus, criaste o céu e a terra neste Principio, ou seja, no teu Verbo, no teu Filho, na tua virtude, na tua sabedoria, na tua verdade, falando e agindo maravilhosamente. Quem o poderd compreender ou descrever? Que luz é essa que bri- Jha diante de mim e golpeia o meu coragdo sem o ferir?”*4 “Tu és, sempre, sempre, sempre 0 mesmo, ‘santo, santo, santo, Senhor Deus onipotente’. Tu no princfpio que proce- de de ti, na tua Sabedoria nascida da tua substancia, do nada criaste alguma coisa. Fizeste 0 céu e a terra, mas nao da tua substancia, pois assim teriam sido iguais ao teu Filho unigé- nito, e, portanto, iguais também a ti. E nao seria absoluta- 68 mente justo que fosse igual a ti aquilo que nao veio de ti. Por outro lado, nada havia fora de ti, de onde pudesses criar, 6 Deus, Trindade una ¢ Unidade trina. Por isso, criaste do nada o céu ea terra,” “Mesmo supondo que o mundo seja feito de alguma ma- téria informe, essa matéria foi tirada totalmente do nada.” “Deus sabe atuar repousando — e repousar atuando.”?” CRIACAO, DIAS DA “Assim o demonstra a prépria ordem dos seis ou sete pri- meiros dias: estio 14 nomeadas uma manhi e uma tarde, até que, acabadas todas as obras de Deus no sexto dia, o sétimo nos descobre, num grande mistério, 0 repouso de Deus. Mas de que dias se trata — ¢ dificil, impossfvel mesmo, fazer disso uma idéia, quanto mais exprimi-la.”* CRIACAO, HUMANIDADE “Embora nao viessem a morrer se nao tivessem pecado, utilizavam-se, porém, de alimentos como homens que eram em corpos ndo espirituais, mas ainda animais e terrestres. A vetustez nao os envelheceria até os levar fatalmente & morte (este estado de vida era-lhes maravilhosamente concedido pela graca de Deus, mediante a drvore da vida que estava no meio do Paraiso junto com a 4rvore proibida). [...] Saborea- vam os frutos das arvores da vida para evitarem que a morte surgisse sorrateiramente, mesmo no termo duma longa ve- lhice. Era como se as outras servissem de alimento e esta de sacramento,”*? “Como estd escrito, Deus fez o homem reto e, como tal, dotado de vontade boa. Nao seria de fato reto se nao tivesse vontade boa. A boa vontade é, portanto, obra de Deus, pois foi com ela que foi criado o homem. Mas a primeira vontade 69 mé, porque precedeu no homem todas as suas més obras, é menos uma obra que um defeito pelo qual o homem, aban- donando a obra de Deus, decai para suas préprias obras que, por tal fato, séo mds, porque séo como ao homem apraz e n&o como apraz a Deus.” “ ‘Abriram-se os olhos de ambos’ (Gn 3.7), diz-se, nao para verem, pois j4 antes viam, mas para discernirem entre o bem que tinham perdido e o mal em que tinham cafdo.”“! “Nenhum outro plano ajustou-se melhor em proveito do género humano do que este realizado pela mesma sabedoria de Deus: — o Filho unigénito, consubstancial ao Pai e co- eterno, dignou-se assumir integralmente o homem. ‘E 0 Ver- bo se fez carne e habitou entre nds (Jo 1.14). Demonstrou assim aos homens carnais e incapazes de captar espiritual- mente a verdade, ¢ escravos dos sentidos corporais, quao ele- vado lugar ocupa, na criacdo, a natureza humana.” CRISTO TOTAL Isafas, “falando em nome de Cristo, diz: ‘Como 0 esposo aformoseado com uma coroa e como a esposa ornada com as suas jdias’ (Is 61.10). Encontra-se af uma sé pessoa que fala e apresenta-se como 0 esposo ¢ a esposa, porque n4o sao dois, mas uma sé carne, ‘porque o Verbo se fez carne e habitou entre nés’. A essa carne refere-se 4 Igreja, e temos entio o Cristo total: Cabega ¢ membros”. CRUZ “Se Cristo ndo te vem 2 mente, em ti ele dorme; acorda-o, lembra-te de tua fé. Cristo dorme em ti se esqueceste a sua paix4o; estard desperto, se te lembrares de seus padeci- mentos. Se o olhares, aderires de coragdo ao que ele pade- ceu, nao tolerards igualmente de bom grado e até com alegria 70 por teres adquirido alguma semelhanga com a paixado de teu rei?”“4 CULPA, “Como agradecerei ao Senhor por minha meméria re- cordar tais fatos, sem que isso perturbe a minha alma? Hei de amar-te, Senhor, hei de dar-te gragas ¢ exaltar-te porque me perdoaste atos tdo graves e tao maus. Sei que, pela tua graga e misericérdia, meus pecados se desfizeram como gelo ao sol; devo 4 tua graga também todo mal que nao pratiquei. A que ponto nao poderia ter chegado, eu que amei 0 pecado por si mesmo, sem motivo? Senhor, proclamo que me perdo- aste todas as culpas, quer cometidas voluntariamente, quer as que, por tua graca, nao cometi.”” CULTO, LITURGIA “Quantas légrimas verti, de profunda comogao, ao mavi- oso ressoar de teus hinos ¢ cAnticos em tua igreja! Aquelas vozes penetravam nos meus ouvidos e destilavam a verdade em meu coragio, inflamando-o de doce piedade, enquanto corria meu pranto e eu sentia um grande bem-estar.”* “Todos os domingos nds cantamos ‘Aleluia’, o que signifi- ca que nossa futura ocupacio no céu ser4 a de louvar a Deus.” “Diante de quem é conveniente tal juibilo senao diante do Deus inefavel? Inefavel ¢ aquilo de que ¢ impossivel falar. E se no podes falar e nao deves calar, o que resta senao jubilar? O coragio rejubila sem palavras e a imensidao do gdudio no se limita a silabas. ‘Cantai-lhe bem com jubilo’.” “O cristao canta a Deus menos pelas palavras do que pelo coragao. E o canto sé é verdade & medida que expressa a emogio interior.” CULTO AOS MORTOS Que nossa religiao nao seja culto aos mortos, Se eles vive- ram na piedade nao se comprazem com tais honras, antes querem que adoremos Aquele em cuja luz eles mesmos se alegram ao ver-nos associados a seus méritos. Honremo-los, pois, imitando-os e nao os adorando. E se viveram mal, onde quer que estejam, nenhum culto merecem.”* D DEMONIOS “Quo pouco merecem as honras divinas estes seres ani- mados aéreos que sé tém raz4o para serem infelizes, s6 tém paixées para serem infelizes, sé tém a eternidade para na in- felicidade permanecerem sem fim!”! “Nés, porém, segundo a linguagem da Escritura, regra da nossa religiao crista, lemos que hé anjos, uns bons e outros maus, mas nunca que hd bons deménios. Onde quer que nas Escrituras se encontre esta palavra de daemones ou dae- monia (deménios), trata-se sempre de espiritos maléficos.”* DEUS, ESPIRITO SANTO (v. Espirito SANTO) DEUS, FILHO (v. Jesus Cristo) DEUS, IMUTAVEL “Dizemos que sé h4 um bem imutdvel — o Deus verda- deiro e bem-aventurado. Porém, as criaturas que Ele fez, embora sejam boas, pois d’Ele provém, sao, todavia, mutdveis, pois que nao foi d’Ele mas do nada que as fez.” Contraria a orientacao dos maniqueus, “a fé catélica ensi- na que sé Deus éa natureza sem princfpio, quer dizer, o Bem supremo e imutdvel. [...] Ela ensina ainda que a partir deste Bem supremo e imutével foram criados 0 universo e todas as coisas boas, embora elas nao sejam iguais, porque foram criadas do nada, sendo, portanto, mutdveis. Nao ha, pois, absolutamente nenhuma natureza ou que nao seja Deus ela prépria, ou que nao seja criada por Deus, de tal modo que todo ser, sejam 14 quais forem seu talho ou sua qualidade, como natureza, s6 pode ser um bem”.4 Os homens “medem pela sua inteligéncia humana, mutdvel e limitada, a inteligéncia divina absolutamente imu- tavel, capaz de abarcar a infinidade e de enumerar os inti- mefos seres sem mudar de pensamento. [...] A sua obra [de Deus] nova pode aplicar um plano [de ac4o] que nao é novo mas eterno. Nao é arrependendo-se duma absten¢4o an- terior que Ele comegou a fazer 0 que nunca foi feito. Se ele primeiro se absteve e depois atuou (niio sei como poderd um homem compreendé-lo), estas palavras primeiro e depois apli- cam-se indubitavelmente aos seres que antes nao existiam e existiram depois; mas n’Ele nenhuma vontade subseqiiente modificou ou suprimiu uma vontade precedente, mas com uma e mesma eterna e imutdvel vontade fez que na criacio nao existissem os seres que ainda nao tinham existéncia e, depois, que existissem os que comecaram a té-la, Mostravam talvez assim, de uma maneira admirdvel, aos que s40 capazes de o compreender, que nenhuma necessidade tinha desses seres, mas ctiava-os por uma bondade gratuita pois que, en- quanto permaneceu sem eles durante toda uma eternidade, nem por isso tinha sido menos feliz”.’ “Fi certo que muitas coisas mds s40 pelos maus praticadas contra a vontade de Deus. Mas tao grande é a sua sabedoria e tamanha é a sua virtude que tudo, mesmo o que parece contrario & sua vontade, tende para os fins e resultados que Ele antecipadamente viu como bons e justos. Por isso, quan- do se diz que Deus muda de vontade, que, por exemplo, fica irado contra aqueles para quem era brando — nfo foi Ele mas foram os homens que mudaram e de certo modo 0 acham mudado nas mudangas que experimentaram: tal como o Sol muda para os olhos enfermos — de suave torna-se de certa maneira 4spero, de deleitoso torna-se molesto, embora ele proprio continue a ser 0 mesmo que era.”® “O tinico Deus, que por ser imutavel, ¢ 0 princfpio de todo ser mutavel.”” “Preferia sustentar que a tua imutdvel natureza era fatal- mente condenada ao erro, a confessar que a minha, mutével, se tivesse desencaminhado por livre vontade e tivesse ficado sujeita ao erro pot castigo,”* “J me disseste, Senhor, com voz forte no meu {ntimo, que és eterno, o tinico a possuir a imortalidade, pois nunca mudas nem de forma nem de movimento, e tua vontade nao varia conforme o tempo, pois uma vontade mutdvel nao pode ser imortal, Este fato me é claro diante de ti.”” DEUS, PAI “Pai Nosso!’ Com esse nome, inflama-se 0 amor, pois 0 que pode ser mais amado pelos filhos do que 0 seu Pai? E ao chamarem os homens a Deus de ‘Pai Nosso’, aviva-se também neles o afeto suplicante e a certeza de obterem o que vai ser 74 pedido. [...] Com efeito, 0 que nao concederia Deus a seus filhos suplicantes, havendo jé lhes outorgado a filiagao divina?”"? “Com razio, pois, entendam-se que as palavras: ‘Pai nosso que estds no céu’ significam que ele estd no coragdo dos jus- tos, onde Deus habita como em seu santo templo. Por af tam- bém, quem ora ha de querer ver habitar em si mesmo aquele a quem ora e nessa nobre ambicao serd fiel & justica que € 0 melhor modo de convidar Deus a vir estabelecer sua morada na propria alma.”!! DEUS, TRINDADE “O minha fé, vai avante na tua confissio. Diz ao Senhor teu Deus: santo, santo, santo é o Senhor meu Deus. Fomos batizados em teu nome, Pai, Filho e Espirito Santo.”” “O Pai, o Filho e o Espirito Santo, isto é, a prépria Trinda- de, una e suprema realidade, é a inica Coisa a ser fruida, bem comum de todos. Se é que pode ser chamada Coisa e nao, de preferéncia, a causa de todas as coisas — se também puder ser chamada causa. Nao é facil encontrar um nome que possa convir a tanta grandeza e servir para denominar de maneira adequada a Trindade. A nfo ser que se diga que éum sé Deus, de quem, por quem e para quem existem to- das as coisas (Rm 11.36). Assim, o Pai, o Filho e o Espirito Santo so, cada um deles, Deus. E os trés sio um sé Deus. Para si préprio, cada um deles é substancia completa e, os trés juntos, uma sé substancia. O Pai nao é 0 Filho, nem o Espfrito Santo. O Filho nao ¢ 0 Pai, nem o Espfrito Santo. E o Espitito Santo nao ¢ o Pai nem o Filho. O Pai é sé Pai, o Filho unicamente Filho, e o Espirito Santo unicamente Espi- tito Santo. Os trés possuem a mesma eternidade, a mesma imutabilidade, a mesma majestade, 0 mesmo poder. No Pai est4 a unidade, no Filho a igualdade e no Espirito Santo a harmonia entre a unidade e a igualdade. Esses trés atributos todos s4o um sé, por causa do Pai, todos sdo iguais por causa do Filho e todos [sd] conexos por causa do Espirito Santo.”' “Os diferentes nomes aplicados a cada uma das trés pessoas na Trindade traduzem relacao reciproca, tais como: Pai e Fi- lho, e o Dom de ambos, o Espirito Santo. Com efeito, nao se pode dizer que o Pai é a Trindade, ou que o Filho é a Trinda- de, nem o Dom ser a Trindade. O que € dito, porém, de cada um dos trés em relacdo a si mesmo é dito no no plural, mas no singular, pois é referente a uma tinica realidade: a propria Trindade.”' “Creia o homem no Pai, no Filho e no Espirito Santo, como um sé e tinico Deus, grande, onipotente, bom, justo, misericordioso, criador de todas [as] coisas visfveis ¢ invisf- veis, ¢ tudo o mais que dele se possa dizer digna ¢ verdadeira- mente, conforme a capacidade da inteligéncia humana. E quando ouvir dizer que o Pai é um sé Deus, nao separe o Filho e 0 Espirito Santo, porque com ele séo um sé Deus. Quando ouvir dizer que o Filho é um sé Deus é mister en- tender assim, mas sem separ4-lo do Pai e do Espfrito Santo. E de tal modo diga que existe uma sé esséncia, ¢ nao considere a esséncia de um ser maior ou melhor do que a do outro e diferente em algum aspecto. Contudo, nfo pense que o Pai é o Filho ou Espirito Santo ou qualquer coisa que uma pessoa em separado diga em relacdo as outras, como, por exemplo, 0 termo ‘Verbo’ aplica-se somente ao Filho, e Dom afirma-se somente a respeito do Espfrito Santo.” “Com respeito as relacdes muituas na Trindade, se aquele que gerou é princfpio do gerado, o Pai é princfpio cm refe- réncia ao Filho, porque o gerou. Entretanto nao é uma in- vestigagao de pouca importancia inquirir se o Pai é também princfpio com relagio ao Espirito Santo, pois est4 escrito: procede do Pai. Se assim for, € principio nao somente do que gera ou faz (0 Filho), mas também da Pessoa que ele dé (0 Espirito). Isso langaria uma possivel luz sobre a quest4o que a muitos preocupa, sobre a possibilidade de dizer-se que o Es- pirito Santo também seja Filho, j4 que sai do Pai, como se lé no Evangelho (Jo 15.26). Sain do Pai, sim, mas nao como nascido, mas como Dom, e, por isso, nao se pode dizer filho, j4 que nfo nasceu como o Unigénito, nem foi criado como nés, que nascemos para a adocio filial pela graca de Deus.”!° “Nao ha, pois, sendo um bem simples e, conseqiientemen- te, senao um bem imutdvel — Deus. E este bem criou todos os bens que, nao sendo simples, sao, portanto, mutdveis. Digo, precisamente, criou, isto é, fez, ¢ nao gerou. E que o que é gerado de um ser simples é simples como ele e ¢ 0 mesmo que aquele que o gerou. A estes dois seres chamamos Pai e Filho e um e outro com o seu Santo Espirito sao um sé Deus. A este Espirito do Pai e do Filho se chama nas Sagra- das Escrituras Espirito Santo por uma espécie de apropria- cao deste nome. F, porém, distinto do Pai e do Filho, pois nao é nem o Pai nem 0 Filho. Disse que é distinto mas nao é outra coisa, porque também Ele é igualmente simples, igual- mente imutdvel e coeterno. E esta Trindade é um sé Deus e nao deixa de ser simples por ser Trindade. [...] E por isso que se chama simples a natureza que nada tem que possa perder; ou é simples a natureza em que aquele que tem se identifica com aquilo que tem. {Portanto] chamam-se simples as perfei- Ges que, por exceléncia e na verdade, constituem a natureza divina: porque nelas nao é a substancia uma coisa ¢ a quali- dade outra coisa.”!” “Entenda também que, assim como o Pai tem a vida em si mesmo, para que dele proceda o Espirito Santo, assim deu ao Filho para que dele também proceda o mesmo Espirito Santo, o qual procedeu de ambos, fora do tempo. E pelo fato de dizer-se que o Espirito Santo procede do Pai, deve-se 7 entender que o Filho recebe-o do Pai, e entéo, o Espirito Santo procede também do Filho. Pois 0 que o Filho tem, re- cebe-o do Pai, e assim recebe do Pai para que dele proceda, o mesmo Espirito Santo.”"* “Quem poderd compreender a Trindade onipotente? E quem nao fala dela, ainda que nao a compreenda? Ei rara a pessoa que, ao falar da Santissima Trindade, saiba o que diz. Discute-se, debate-se, mas ninguém € capaz de contemplar essa visio, sem paz interior. Quisera meditassem os homens sobre trés coisas que tém dentro de si mesmos, as trés bem diferentes da Trindade. Indico-as, para que se exercitem, e assim experimentem e sintam quao longe estao desse misté- rio. Aludo & existéncia, ao conhecimento e 4 vontade. De fato existo, conhego e quero. Existo, sabendo ¢ querendo; sei que existo e quero; quero existir e conhecer. Repare, quem puder, como é insepardvel a vida nessas trés faculdades: uma s6 vida, uma s6 inteligéncia, uma sé esséncia. Como sao insepardveis os objetos dessa distingéo. Distingao, no entan- to, que existe! Cada um est4 diante de si mesmo. Estude-se, veja e responda-me. Contudo, mesmo que reflita e me res- ponda, no julgue ter compreendido a esséncia deste Ser imutdvel que est4 acima de todas as criaturas, o Ser que imutavelmente existe, imutavelmente sabe e imutavelmente quer. Serd porventura gracas a essas trés faculdades que h4 em Deus a Trindade, ou essa trfplice faculdade existe em cada uma das trés Pessoas, de modo a serem trés em cada uma? Ou ambas as coisas se realizam de modo admirdvel, numa simplicidade miultipla, sendo a Trindade o seu préprio fim infinito, pela qual existe, se conhece e se basta imutavelmente, na grande abundancia de sua Unidade? Quem poderia ex- primir facilmente esse conceito? Quem teria palavras para o exprimir? Quem, de algum modo, ousaria pronunciar-se te- merariamente a esse respeito?”!? “O fundamento para seguir esta religiao [crista] é a hist6- ria e a profecia. Af se descobre a disposigao da divina Provi- déncia, no tempo, em favor do género humano, para reformé-lo ¢ restaurd-lo, em vista da posse da vida eterna. Crendo nisso, a mente vai se purificando num modo de vida ajustado aos preceitos divinos. Isso a habilitaré 4 percepgao das realidades espirituais. Essas realidades nao sao nem do passado, nem do futuro, mas sao sempre idénticas a si mes- mas, imunes de qualquer mudanga temporal. Trata-se do mesmo e tinico Deus Pai, Filho e Espfrito Santo. Conhecida essa Trindade — quanto é possivel na vida presente — sem diivida alguma a mente percebe que toda criatura intelec- tual, animal e corporal recebe dessa mesma Trindade cria- dora: o ser para ser 0 que é; a sua forma; ea direcao dentro da perfeita ordem universal. Nao se entenda por af, porém, que apenas parcela das criaturas é feita pelo Pai, outra pelo Filho ¢ outra ainda pelo Espirito Santo. O certo é que todas e cada uma das naturezas individuais recebe a criagio do Pai pelo Filho, no dom do Espirito Santo. Visto que todas as coisas, substAncia, esséncia, natureza ou qualquer outro termo mais adequado que se dé possui ao mesmo tempo estas trés pro- priedades: é algo unico, distingue-se por sua forma das de- mais coisas, e est dentro da ordem universal.””° “Quando chegarmos A tua presenga, cessard 0 muito que dissemos, mas muito nos ficard por dizer e tu permanecerds s6, tudo em todos (1Co 15.28), e ent4o eternamente canta- remos um sé cAntico, louvando-te em um sé movimento, em ti estreitamente unidos, Senhor, inico Deus, Deus Trinda- de, tudo o que disse de ti nestes livros, de ti vem. Reconhe- cam-no os teus, ¢ se algo hd de meu, perdoa-me e perdoem-me os teus. Amém.”?! “Se o pudesses compreender, ele nao seria Deus.””” DEUS, UNICO “Seu nome é grande, I4 onde for pronunciado com o res- peito devido 4 sua majestade. Assim, pois, ¢ santo o seu nome ali onde, com veneracao e temor de o ofender, ele vier a ser nomeado.”* “Deus, criador de todas as coisas, concedei-me primeira- mente que eu faga uma boa orag4o; em seguida, que me tor- ne digno de ser ouvido por ti; por fim, que me atendas. [...] Deus, Pai da verdade, Pai da sabedoria, Pai da verdadeira e suprema vida, Pai da felicidade, Pai do que ¢ bom e belo, Pai da luz inteligivel, Pai de nosso desvelo e iluminagao, Pai da garantia pela qual somos aconselhados a retornar a ti. Eu te invoco, Deus Verdade, em quem, por quem e mediante quem é verdadeiro tudo o que é verdadeiro. Deus Sabedoria, em quem, por quem e mediante quem tém sabedoria todos os que sabem. [...] Deus, cujo reino é 0 mundo inteiro, a quem o sentido nao percebe. [...] Deus, de quem separar-se signifi- ca cai, a quem retornar significa levantar-se, em quem per- manecer significa ser firme. Deus, de quem afastar-se é morrer, ao qual voltar é reviver, em quem habitar ¢ viver. Deus, a quem ninguém deixa sendo enganado, a quem nin- guém busca sendo estimulado para isso, a quem ninguém encontra senao purificado. Deus, a quem abandonar ¢ 0 mesmo que perecer, a quem acatar é 0 mesmo que amar, a quem ver é 0 mesmo que possuir. Deus, a quem a fé nos estimula, a esperanga nos eleva, o amor nos une. [...] Amo somente a ti, sigo somente a ti, busco somente a tis estou dis- posto a servir somente a ti e desejo estar sob a tua jurisdicao, porque somente tu governas com justica. [...] Afasta de mim a ignorancia para que eu te reconhega. Dize-me para onde devo voltar-me para ver-te e espero fazer tudo 0 que manda- res. [...] Faze, Pai, que eu te procure, mas livra-me do erro. Nenhuma outra coisa, além de ti, se apresente a mim, que te 80 estou procurando. Se nada mais desejo senao a ti, Pai, entao eu te encontro logo. Mas se houver em mim desejo de algo supérfluo, limpa-me dele e torna-me apto a ver-te,”™ “Tarde te amei, 6 beleza tao antiga e tao nova! Tarde de- mais eu te amei! Eis que habitavas dentro de mim e eu te procurava do lado de fora! Eu, disforme, langava-me sobre as belas formas das tuas criaturas. Estavas comigo, mas eu nao estava contigo. Retinham-me longe de ti as tuas criatu- ras, que n4o existiriam se em ti nao existissem. Tu me cha- maste, e teu grito rompeu a minha surdez. Fulguraste e brilhaste e tua luz afugentou a minha cegueira. Espargiste tua fragrancia e, respirando-a, suspirei por ti. Eu te saboreei, agora tenho fome e sede de ti. Tu me tocaste, e agora estou ardendo no desejo de tua paz. Quando estiver unido a ti com todo o meu ser, nao mais sentirei dor e cansago. Minha vida ser verdadeiramente vida, toda plena de ti. Alivias aque- les a quem plenamente satisfazes. Nao estando ainda repleto de ti, sou um peso para mim mesmo. Minhas alegrias, que deveriam ser choradas, contrastam em mim com as tristezas que deveriam causar-me juibilo, e ignoro de que lado est4 a vitéria. [...] Ai de mim! “Tem piedade de mim, Senhor!’ Ai de mim! Vés que nao escondo minhas chagas. Tu és 0 médi- co, eu sou 0 enfermo. Tu és misericordioso, e eu sou miserd- vel. Nao ‘€ uma provagao a vida do homem sobre a terra? Quem deseja trabalhos e dificuldades? Ordenas aos homens que as suportem [...]. Execraveis as prosperidades do mun- do, duas vezes execraveis, seja pelo temor da adversidade, seja pela corrup¢ao da alegria! Amargas adversidades do mundo, uma, duas e trés vezes amargas, por causa do desejo da prosperidade, pela dureza da adversidade e pelo medo de que esta venga nossa capacidade de suportd-la! Quem pode- r4 negar que a vida humana sobre a terra seja uma tentagio sem tréguas?”?? BL “Eu quero a ti, 6 justiga, 6 inocéncia, 6 beleza que atrai o olhar dos virtuosos, que em ti se satisfazem sem jamais se saciar,”?6 Grande és tu, Senhor, e sumamente louvavel: grande a tua forga, e a tua sabedoria nao tem limite’. E quer louvar-te o homem, esta parcela de tua criacéo; 0 homem carregado com sua condicao mortal, carregado com o testemunho de seu pecado e com o testemunho de que resistes aos soberbos; , mesmo assim, quer louvar-te o homem, esta parcela de tua ctiagdo. Tu o incitas para que sinta prazer em louvar-te; fizes- te-nos para ti, € inquieto est4 o nosso coragao, enquanto nao repousa em ti.””” Deus estava “mais dentro de mim do que a minha parte mais intima. E [tu, Deus,] eras superior a tudo o que eu ti- nha de mais elevado”.* E EDUCAGAO, FILOSOFIA O aluno jd possui uma apreensao interna da verdade: “por conseguinte, nem sequer a este, que vé coisas verdadeiras, ensino algo dizendo-lhe a verdade, porque aprende nao pe- las minhas palavras, mas pelas prdprias coisas, que a ele inte- riormente revela Deus”.! “No que diz respeito a todas as coisas que compreende- mos, nao consultamos a voz de quem fala, a qual soa por fora, mas a verdade que dentro de nds preside & prdpria 82 mente, incitados talvez pelas palavras a consulté-la. Quem é consultado ensina verdadeiramente, e este é Cristo, que ha- bita, como foi dito, no homem interior (Ef 3.16,17).”? As palavras so, por si préprias, instrumentos inadequa- dos para ensinar, para comunicar o que cada pessoa sente e sabe em seu {ntimo: “com as palavras nado aprendemos sendo palavras; antes, 0 som e o rufdo das palavras, porque, se o que nfo é sinal nao pode ser palavra, nao sei também como possa ser palavra aquilo que ouvi pronunciado como palavra enquanto nao lhe conhecer o significado. $6 depois de co- nhecer as coisas se consegue, portanto, o conhecimento com- pleto das palavras; ao contrario, ouvindo somente as palavras, nao aprendemos nem sequer estas. Com efeito, nao tivemos conhecimento das palavras que aprendemos nem podemos declarar ter aprendido as que nao conhecemos, senao depois que lhes percebemos 0 significado, 0 que se verifica nao me- diante a audigao das vozes proferidas, mas pelo conhecimen- to das coisas significadas” > “Por af se conclui, com bastante clareza, que para apren- der é mais eficaz a livre curiosidade do que um constrangi- mento ameacador.”4 Aprender envolve também uma mudanga na atitude e no comportamento: “por esse amor, portanto, como por um alvo proposto, pelo qual digas tudo o que dizes, 0 que quer que narres faze-o de tal forma que aquele que te ouve, ouvin- do, creia e, crendo, espere e, esperando, ame”.° A fé é necessdria e est4 acima e além daquilo que nés po- demos saber por meio da experiéncia e da raz4o: “portanto, cteio tudo o que entendo, mas nem tudo que creio também entendo. Tudo 0 que compreendo conhego, mas nem tudo que creio conhego”.6 83 EDUCAGAO, METODO O professor deve estar genuinamente interessado e apre- ciar o que est4 ensinando, porque apenas dessa maneira ele iré superar o senso de inadequago das palavras para comu- nicar tudo que deve ensinar: “um escdndalo nos contrista quando acreditamos ou vemos que o seu autor perece, ou faz perecer um fraco. E aquele que vem para ser iniciado na fé — esperando-se que possa fazer progressos — dissipar4 a dor causada pelo faltoso. [...] Nao sei por que as palavras sao mais ardentes nas adverténcias desse tipo. Alimenta-as a presenca da dor: tornamo-nos menos indolentes ¢ por isso mesmo dizemos mais inflamada e veementemente o que, livres de preocupacoes, dirfamos fria e lentamente”.” O professor deve genuinamente respeitar o estudante: “se 0 ouvinte é demasiado inepto, surdo e indiferente a tais en- cantos, deve ser suportado misericordiosamente”.* Que o professor deve variar sua linguagem e sua aborda- gem de acordo com o estudante: “mas porque agora tratamos da instrugao dos catectimenos, posso eu mesmo testemunhar que me impressiono diferentemente ao ver diante de mim para serem catequizados o erudito, 0 timido, o cidadao, o estrangeiro, 0 rico, o pobre, o civil, o magistrado, o podero- so, 0 representante desta ou daquela familia, desta ou daque- la idade, ou sexo, desta ou daquela seita, provindo deste ou daquele erro vulgar. E de acordo com a diversidade do meu sentimento que o meu comentario brota, se desenvolve e ter- mina. E, apesar de que a mesma caridade se deve a todos, a todos nao se aplica o mesmo remédio: assim também, a mes- ma caridade gera a uns, torna-se fraca em relagdo a outros, procura edificar a uns, teme ferir a outros; inclina-se diante de uns, ergue-se diante de outros; com uns carinhosa, com outros severa, de nenhum inimiga, de todos é mae”. 84 O professor deve estimular seus estudantes e os incentivar a se expressar: “deve ser afastado com branda exortacao 0 temor excessivo, que lhe impede manifestar a sua opiniao; deve-se moderar-lhe a timidez, fazendo-o notar que esté en- tre irmaos. E preciso descobrir por meio de perguntas se est4 entendendo, ¢ incutir-lhe confianga para que fale sem te- mor se quiser opor alguma objegio. F preciso perguntar-lhe também se j4 ouviu alguma vez estas verdades, e se 0 no comovem — talvez por serem conhecidas e banais”.'° “E mais se devera dizer a Deus, por ele, que de Deus, a ele...”"' ENTRETENIMENTO “Somos mais propensos a nos entreter com brincadeiras e jogos nos quais o que nos seduz nao é a verdade pura. [...] Ora, apegando-nos a essas frivolidades, afastamo-nos da Ver- dade e nao descobrimos mais aquilo que elas imitam.”!” “Deixemos de lado, repudiando, as ninharias do teatro ¢ da poesia. Essa curiosidade va deixa-nos 0 espirito alquebra- do de fome e sede. Suas fantasias ocas excitam, em vd4o, 0 desejo do espirito de se refazer e se saciar, tal como se fossem meros banquetes pintados numa tela. Eduquemo-nos, pro- veitosamente, com este nobre jogo (do estudo das Escritu- ras). E salutar jogo de homens livres.” ESCRITURA, CANON “Quanto as Escrituras canénicas, siga a autoridade da maioria das igrejas catélicas, entre as quais, sem duivida, se contam as que mereceram ser sede dos apéstolos e receber cartas deles. Eis o método que se hd de observar no discerni- mento das Escrituras candnicas: os livros que sao aceitos por todas as igrejas catdlicas se anteponham aos que nao sao acei- tos por algumas. Por outro lado, entre os livros que algumas igrejas nao admitem, prefiram-se os que s4o aceitos pelas igre- jas mais numerosas e importantes aos que sao unicamente aceitos pelas igrejas menos numerosas e de menor autorida- de. Enfim, no caso de alguns livros serem aceitos por muitas igrejas e outros pelas igrejas mais autorizadas, ainda que isso seja dificil, eu opino que se atribua a ambas a mesma autoridade,”"4 “O canon completo das Escrituras Sagradas [...] compre- ende os seguintes livros: os cinco de Moisés, a saber: o Géne- sis, o Exodo, o Levftico, os Nuimeros ¢ 0 Deuteronémio; um livo de Jesus, filho de Nave (Josué) e um dos Jufzes; um livri- nho intitulado Rute, o qual parece pertencer ao comego da histéria dos Reis; seguem-se os quatro dos Reinos e dois dos Paralip6menos que nao sao a sua seqiiéncia, mas por assim dizer uma complementacdo. Todos esses livros so narragdo histérica que contém o desenvolvimento das épocas e a or- dem dos acontecimentos. HA outras histérias de tipo dife- rente que nao possuem conexéo com a ordem dos acontecimentos anteriores, nem se relacionam entre si, como os livros de Jd, de Tobias, de Ester, de Judite, os dois livros dos Macabeus e os dois de Esdras. Estes parecem seguir an- tes [d]aquela histéria que ficara suspensa com os livros dos Reis ¢ dos Paralipdmenos. Depois, seguem os Profetas, entre os quais se encontra um livro de Davi, os Salmos, trés de Sa- lomao: os Provérbios, o Cantico dos canticos e o Eclesiastes. Os outros dois livros, dos quais um é a Sabedoria e 0 outro 0 Eclesidstico, s4o atribuidos a Salomao por certa semelhanga com os precedentes, mas comumente se assegura que quem os escreveu foi Jesus, filho de Sirac. E, como mereceram ser recebidos com autoridade (canénica), devem ser contados entre os livros proféticos. Os livros restantes sao os propria- mente chamados dos Profetas. Doze sfo esses livros, corres- 86 pondendo cada qual a um profeta. Como esto conexos e nunca foram separados, s4o contados como um sé livro. Eis o nome dos profetas: Oséias, Joel, Amés, Obadias, Jonas, Mi- quéias, Naum, Habacuque, Sofonias, Ageu, Zacarias e Malaquias. Em seguida, os quatro livros dos grandes profe- tas: Isaias, Jeremias, Daniel e Ezequiel. Estes quarenta e qua- tro livros possuem autoridade no Antigo Testamento. Quanto ao Novo testamento, compreende os quatro livros do Evan- gelho segundo siéo Mateus, séo Marcos, sao Lucas e séo Joao; as quatorze cartas de sao Paulo: uma aos Romanos, duas aos Corintios, uma aos Gdlatas, uma aos Efésios, uma aos Filipenses, duas aos Tessalonicenses, uma aos Colossenses, duas a Timé- teo, uma a Tito, uma a Filémon e uma aos Hebreus; as duas de s&o Pedro; as trés de sao Jodo; 0 livro tinico dos Atos dos Apéstolos e outro tinico de sAo Joao intitulado Apocalipse.”"* “Desde essa época da restauragio do Templo até Aristé- bulo, nunca mais houve reis, mas principes entre os judeus. O cAlculo do tempo deles nao se encontra nas Sagradas Es- crituras chamadas canénicas, mas em outros escritos, entre os quais estao os livros dos Macabeus. Os judeus nao os tém por candnicos, mas tem-nos por tal a Igreja, devido aos cruéis e admirdveis sofrimentos de alguns mértires que, antes da vinda de Cristo na carne, combateram até a morte pela lei de Deus e softeram os mais graves e horriveis males.”' “Ponhamos de parte as fabulas dos escritos chamados apéctifos [atribuidos aos antigos patriarcas Noé e Enoque], pois a sua origem obscura pareceu suspeita aos ‘padres’ atra- vés dos quais nos chega a autoridade das verdadeiras Escritu- ras por uma sucessao bem segura ¢ conhecida. Embora nesses apécrifos se encontre alguma verdade, os seus numerosos erros retiram-lhe toda a autoridade canénica. [...] Da mesma forma muitos escritos foram apresentados pelos heréticos sob o nome de outros profetas ¢ outros, mais recentes, sob o nome dos apéstolos. Depois de um exame cuidadoso foram todos postos de parte como apécrifos pela autoridade canénica.”!” ESCRITURA, INSPIRACAO “Lembra-se do que vou dizer. Uma sé é a palavra de Deus que se estende por todas as Escrituras; e através da boca de muitos santos ressoa um s6 Verbo, que sendo no principio Deus junto de Deus, l4 nao consta de sflabas, porque estd fora do tempo.”'* “As Sagradas Escrituras, absolutamente veridicas.”!? Deus “instituiu também a Escritura chamada canénica e investida da mais alta autoridade. Nela acreditamos a respei- to de tudo o que convém nfo ignorar e que somos incapazes de conhecer por nés préprios”.”” “Aprendi a reverenciar unicamente aqueles livros que cha- mo de canénicos. Creio, portanto, com muita firmeza, que nenhum dos autores desses livros cometeu qualquer tipo de erro em seus escritos.”*! As douttinas cristas “devem ser defendidas pela razo, que deve ter seu ponto de partida ou no sentido fisico ou nas intuig6es da mente. E aquilo que nem experimentamos atra- vés dos sentidos do nosso corpo, nem conseguimos atingir mediante [nosso] intelecto, deve indubitavelmente ser crido com base no testemunho daquelas testemunhas através das quais foram escritas as Escrituras, corretamente chamadas divinas; essas testemunhas foram capacitadas, ou mediante seu sentido fisico ou sua percepgio intelectual, a ver ou pre- ver as respectivas coisas”.”* “As Escrituras Sagradas [...], com toda a taz4o, gozam de admirdvel autoridade no mundo inteiro: foram essas Escri- turas que, sob a ac4o divina, entre outras coisas que jd se Ba verificaram, predisseram que nelas viriam a acreditar todos os povos.”? “Oh! Admirdvel profundidade das tuas palavras! Essa tal profundidade estd diante de nés como um rosto sorridente diante das criangas. Mas como ¢ admirdvel essa profundida- de, meu Deus, como é admirdvel essa profundidade! Que- rer perscrutd-la infunde tremor, tremor diante de tamanha gtandeza, tremor de amor! Odeio com veeméncia os inimi- gos dela.” Nao nos cabe formular ju(zos “a respeito da tua Escritura, ainda que contenha passagens obscuras, porque a ela sub- metemos a inteligéncia, e temos como justo e verdadeiro aré mesmo 0 que permanece velado 4 nossa compreensio”.’> “Senhor, por acaso nao seré verdadeira a tua Escritura, ditada que foi por ti, que és verdadeiro, ou melhor, que és a propria Verdade? [...] E dizes, falando com voz poderosa ao ouvido interior do teu servo, rompendo-the a surdez e cla- mando: ‘O que a minha Escritura diz, eu digo’.”** “De tudo que foi dito [...] esta é a suma: que se entenda ser a plenitude e o fim da Lei, como de toda a Escritura divi- na, o amor Aquela Coisa, que seré nosso gozo (Rm 13.10; 1Tm 1.5); e o amor dos que podem partilhar conosco da- quela fruicdo.”?” A Escritura “é a palavra do Espirito de Deus, porque, sem que ele inspire, nés nao a dirfamos”.”* Os hagidgrafos sao “dedos de Deus”.” “O Espirito de Deus [fala, mas] por intermédio dos ho- mens.”?? “Os que a léem nao desejam encontrar nela mais do que o pensamento e a vontade dos que a escreveram ¢ desse modo 89 chegar a conhecer a vontade de Deus, segundo a qual créem que esses homens compuseram.”?! “Nao duvido de que a obscuridade dos Livros santos seja por disposi¢ao particular da Providéncia divina, para vencer o orgulho do homem pelo esforgo e para premunir seu espf- rito do fastio, que nao poucas vezes sobrevém aos que traba- Tham com demasiada facilidade.”>* “Lemos que pelo dedo de Deus foi gravada a Lei e dada por meio de Moisés, seu santo servo (Ex 31.18; Dt 9.10); muitos entendem por dedo de Deus o Espfrito Santo. Por isso, se julgarmos com acerto serem os dedos de Deus os seus ministros, cheios do Espirito Santo, por causa do mesmo Es- pfrito que nele opera, uma vez que compuseram para nds toda a divina Escritura, interpretaremos aqui de modo ade- quado como céus 0s livros de ambos os Testamentos. [...] Ve- rei e entenderei as Escrituras, que escreveste por obra do Espirito Santo, através de teus ministros.”” “Estes livros séo obra dos dedos de Deus. Foram compos- tos por inspiragao do Espfrito Santo aos santos.” “Todo aquele que nas Escrituras entende de modo dife- rente ao do autor sagrado engana-se em meio mesmo da ver- dade, visto que as Escrituras néo mentem.”” “A fé cambalearé se a autoridade das Escrituras vacilar.”*° ESCRITURA, INTERPRETACAO “Resolvi por isso dedicar-me aos estudos das Sagradas Es- crituras, para conhecé-las, E encontrei um livro que nao se abre aos soberbos, e que também nfo se revela as criangas; humilde no comego, mas que nos leva aos pincaros e estd envolto em mistério, 4 medida que se vai 4 frente, Eu era inca- paz de nele penetrar ou de baixar a cabega a sua entrada.”” 90 - por isso que no Antigo Testamento esconde-se o Novo, e no Novo encontra-se a manifestagao do Antigo.”** “Embora os do Antigo [Testamento] sejam os primeiros no tempo, todavia os do Novo [Testamento] devem antepor- se-lhes devido 4 sua dignidade, uma vez que os do Antigo sao um antincio dos do Novo.”” “Se nfo penetramos na intengao do autor desse livro, pelo menos nao nos afastamos da regra de fé que é tao bem co- nhecida dos figis através de outras passagens das Sagradas Escrituras com a mesma autoridade.”” “Quando lemos os autores cuja autoridade nao nos é per- mitido afastar, tomemos as suas palavras no sentido préprio sempre que uma correta interpretagéo ndo nos mostrar ou- tra safda.”*! “Os que Iéem a Escritura inconsideradamente enganam- se com as multiplas obscuridades e ambigiiidades, tomando um sentido por outro. Nem chegam a encontrar, em algu- mas passagens, alguma interpretagdo. E assim, projetam so- bre os textos obscuros as mais espessas trevas.”" “Se acontecer de o leitor ler alguns pecados cometidos por grandes homens, pode, é certo, notar e descobrir af uma figura dos acontecimentos futuros. ‘Todavia, que ele retire do cardter particular do ato cometido a seguinte ligao: de modo algum, ter a ousadia de se vangloriar de suas boas ag6es, nem, gracas a sua prdpria retidao, condenar os outros como peca- dores, vendo tao excelsos vardes envoltos em tempestades que devem ser evitadas, ou em naufrdgios inteiramente lamentd- veis. Alids, os pecados deles nao foram relatados a nao ser para tornar temido, em toda parte, este pensamento do Apés- tolo: ‘Assim, pois, aquele que julga estar de pé, tome cuidado para nao cair’ (1Co 10.12). Quase nao hd pagina alguma 1 nos santos Livros onde nao ressoe esta palavra: ‘O Senhor resiste aos soberbos, mas d4 sua graca aos humildes’.”* “Nas passagens mais claras se hd de aprender o modo de entender as obscuras.”“4 “Quando das mesmas palavras da Escritura sao tirados nao somente um, mas dois ou varios sentidos — ainda que nao se descubra qual foi o sentido que o autor tenha em vista — no hd perigo em adotar qualquer deles. Sob a condi¢ao, porém, de poder mostrar, através de outras passagens das santas Escrituras, que tal sentido combina com a verdade.”” “Esta é a suma: que se entenda ser a plenitude e o fim da Lei, como de toda a Escritura divina, 0 amor aquela Coisa, que seré nosso gozo (Rm 13.10; 1Tm 1.5); eo amor dos que podem partilhar conosco daquela frui¢ao.”“ “Em todo caso, todo aquele que nas Escrituras entende de modo diferente ao do autor sagrado engana-se em meio mesmo da verdade, visto que as Escrituras nado mentem.”4” “Comecei entdo a notar que eram defensdveis suas teses [de Ambrésio], e logo vim a perceber no ser temerdrio de- fender a fé que eu supunha impossfvel opor aos ataques dos maniqueus. E isso, sobretudo, porque via resolverem-se uma a uma as dificuldades de varias passagens do Antigo Testa- mento que, tomadas ao pé da letra, me tiravam a vida. Ou- vindo agora a explicacao espiritual de tais passagens, cu me reprovava a mim mesmo por ter acreditado que a Lei e os Profetas ndo pudessem resistir aos ataques e insultos de seus inimigos.”* “Logo descobri também que teus filhos espirituais, rege- nerados pela graca na santa Igreja catdlica, nao entendiam as palavras onde se diz que ‘o homem foi criado por ti a tua imagem’, no sentido de te acreditarem e julgarem encerrado 92 na forma de corpo humano, Eu, que nem de longe suspeita- va o que eta substancia espiritual, ent&éo me envergonhei ale- gremente de ter vociferado por tantos anos, nao contra a fé catélica, mas contra as ficcdes criadas por imaginagdes car- nais. [...] Assim, sentia-me confuso e transformado, e estava contente, 6 Deus meu, porque tua Igreja tinica, o corpo do teu Unico Filho, em cujo seio desde menino aprendi o nome de Cristo, nao tinha nenhum gosto por questGes pueris, e que sua auténtica doutrina nao cometia o erro de circuns- crever-te, 6 Criador de tudo, num espago que, embora alto ¢ amplo, seria limitado de todos os lados por configuragées de corpo humano,”” “Alegrava-me, também, por ter aprendido a ler as antigas Escrituras da Lei e dos Profetas, com interpretagao diferente daquelas que antes me pareciam absurdas, quando eu acusa- va teus santos de terem fé em coisas nas quais realmente nao acreditavam. Alegrava-me ouvir Ambrésio quando, muitas vezes em seus sermées, recomendava ao povo a norma a ser escrupulosamente observada: a ‘letra’ mata, ‘mas o espirito comunica a vida’.”*° “Que tuas Escrituras sejam castas delfcias para mim; que eu nao me engane sobre elas, nem a outros engane com elas.”*! “Nao duvido de que a obscuridade dos Livros santos seja por disposigao particular da Providéncia divina, para vencer o orgulho do homem pelo esforgo e para premunir seu espi- rito do fastio, que nao poucas vezes sobrevém aos que traba- Iham com demasiada facilidade.”* “O homem temente a Deus procura diligentemente a vontade divina nas santas Escrituras. Pacificado pela pieda- de, que nao ame as controvérsias. Munido do conhecimento das Inguas, que nao se veja embaragado por palavras e ex- ptessdes desconhecidas. Provido de certos conhecimentos 93 necessdrios, que saiba identificar a natureza e as proprieda- des das coisas quando empregadas a titulo de comparagao. Finalmente, apoiado na exatidao do texto obtido por traba- Tho consciencioso de corregao, que ele, assim preparado, possa dissipar e resolver as ambigiiidades das Escrituras.”** “Uma vez prestada a devida atencao, se ainda aparece incerto ao estudioso como deve pontuar ou pronunciar, que ele consulte as Regras de f¢ (Regula fidei) adquiridas em outras passagens mais claras da Escritura. Ou entdo, que recorra 4 autoridade da Igreja. [...] Mas no caso de dois sentidos, ou todos eles, caso forem muitos, resultarem am- biguos, sem nos afastarmos da fé, resta-nos consultar 0 con- texto anterior, e o seguinte 4 passagem onde est4 a ambi- gilidade. Veremos por ai, entre os diversos sentidos que se oferecem, qual o melhor ou com qual o texto mais se har- moniza.”54 “Um homem fala com tanto maior sabedoria, quanto maior ou menor progresso faz na ciéncia das santas Escrituras. E eu nao me refiro ao progresso que consiste em ler bastante as Escrituras, ou aprendé-las de cor, mas do progresso que con- siste em compreendé-las bem e procurar diligentemente o seu sentido.”* ESCRITURA, SUFICIENCIA “Se quereis seguir a autoridade das Escrituras, que a tudo devem ser preferidas, segui aquela que, desde 0 tempo em que o préprio Cristo estava presente, pelo ministério dos apdstolos e pela sucessdo dos bispos nas sedes que vém dos apéstolos, foi conservada até o tempo atual em todo o uni- verso, recomendada, glorificada. Vereis af, com efeito, as pré- prias passagens obscuras do Antigo Testamento esclarecidas ¢ suas predigées realizadas.”* “Eu tinha de estudar todas as suas prescrigdes nas Escritu- ras, orar € let, agindo de tal modo que forga suficiente para tais deveres perigosos fosse concedida 4 minha alma. Nao o fiz antes porque nao tive tempo, mas tao logo recebi ordem, planejei usar todo o tempo de lazer para estudar as Escritu- ras Sagradas. [...] Ajuda-me [...] com suas orages. [...] Sei que o Senhor nao despreza a piedade das oracdes em tal cau- sa, mas talvez ele as aceitard como um sacrificio de aroma suave e me restaurard em tempo mais curto do que eu tinha pedido, armado com 0 conhecimento salvador das Escrituras.”*” “Eu, que vos falo, estava iludido no passado, quando, ainda em minha juventude, tentei comegar a aplicar as Escrituras divi- nas discussGes criticas, em vez de piedosa investigagao. Em mi- nha moralidade lassa, fechei meu préprio acesso ao Senhor. [...] Em meu orgulho, ousei procurar aquilo que nenhum homem pode achat, a menos que pratique a humildade.”** “Nao conhecemos outros livros que tao eficazmente des- truam a soberba e abatam o inimigo, o defensor que resiste 4 idéia de reconciliar-te contigo, defendendo os préprios pe- cados. Nao conhego, Senhor, nao conhego palavras tao pu- ras, que tanto me induzissem a confessar-te, a tomar sobre minha cabeca 0 teu jugo, que me convidassem a prestar-te tao desinteressado culto. Oxal4 eu compreenda essas verda- des, 6 Pai bondoso. Concede-me essa graca, porque me sub- meti a ti e estabeleceste firmemente aquelas palavras para as almas submissas.”*? “Aquele que se alimenta interiormente com a palavra de Deus nao procura no deserto desta vida o prazer.”® “Tornaste justos os {mpios, sepataste-os dos pecadores € confirmaste a autoridade da tua Escritura entre os homens superiores, para que fossem déceis a ti, e entre os inferiores, para que a eles se submetessem.”6! 95 “Dediquemo-nos a alimentar-nos e a beber no estudo e na aplicacao as divinas Escrituras!”® “Se alguém julga ter entendido as Escrituras divinas ou partes delas, mas se com esse entendimento no edifica a dupla caridade — a de Deus e a do préximo —, é preciso reconhecer que nada entendeu.”® ESPIRITO SANTO O Espirito Santo ¢ a “Caridade suprema que une as duas outras pessoas [0 Pai ao Filho] e que nos submete a elas”. “O Espirito Santo procede principalmente do Pai, pelo dom que o Pai fez ao Filho [...], e conjuntamente procede de ambos.” “O Espirito Santo, conforme as Escrituras, ndo é somente o Espirito do Pai, nem somente o Esp{tito do Filho, mas de ambos. E essa certeza insinua-se a nds acerca dessa caridade miitua com que o Pai e o Filho se amam mutuamente.”% “Se alguma das trés Pessoas deve receber a denominagao de Caridade, quem com mais propriedade senao o Espirito Santo?” “Refere-se, portanto, ao Espirito, onde se lé: Deus é Amor [1Jo 4.16]. Conseqiientemente, o Espirito Santo, que pro- cede de Deus, quando é outorgado ao homem, inflama-o de amor por Deus ¢ pelo préximo, sendo cle mesmo o Amor.” “Nada ha mais excelente do que este dom de Deus. E a Unica coisa que distingue os filhos do Reino eterno dos filhos da perdigao eterna. Outros dons sao também concedidos por meio do Espirito Santo, os-quais, porém, nada aproveitam sem a caridade.”® “Entenda, porém, que o gerou [o Filho] fora do tempo, de tal modo que a vida que o Pai deu ao Filho ao gerd-lo é 9% coeterna 4 vida do Pai que a deu. Entenda também que, as- sim como o Pai tem a vida em si mesmo, para que dele proce- dao Espirito Santo, assim deu ao Filho para que dele também proceda o mesmo Espirito Santo, o qual procedeu de am- bos, fora do tempo. E pelo fato de dizer-se que o Espirito Santo procede do Pai, deve-se entender que o Filho recebe-o do Pai, e entao, o Espirito Santo procede também do Filho. Pois 0 que o Filho tem, recebe-o do Pai, ¢ assim recebe do Pai para que dele proceda, o mesmo Espirito Santo.”” “Portanto, se queres saber se recebestes o Espirito, inter- roga teu coracao. Pergunta-te se acaso nao recebeste o sacra- mento sem ter recebido a virtude do sacramento. Interroga © teu coragao! Se encontrares af o amor, fica tranqiiilo! Nao é posstvel af estar a caridade, sem estar o Espirito de Deus!””! ETERNIDADE O Verbo “é pronunciado eternamente, e¢ por ele todas as coisas s40 eternamente proferidas. Pois 0 que foi dito nao foi sucessivamente proferido -— uma coisa conclufda para que a seguinte pudesse ser dita, mas todas as coisas proferidas simulta- nea e eternamente. Se assim nao fosse, j4 haveria tempo e mu- danga, e nao verdadeira eternidade e verdadeira imortalidade”.” “Tu existes antes de todos os tempos, eterno Criador de todos os tempos; que nenhum tempo é coeterno contigo, nem criatura alguma, se bem que haja algumas supetiores a0 tempo.””5 “Na eternidade nada passa, tudo é presente, ao passo que © tempo nunca é todo presente.””4 EUCARISTIA, CEIA DO SENHOR “O sacramento da piedade! O sacramento da unidade! O vinculo da caridade!”’”> 97 “A Eucaristia ¢ nosso po cotidiano. A virtude prépria desse alimento divino é uma forga de unio que nos vincula ao Corpo do Salvador e nos faz seus membros, a fim de que nos transformemos naquilo que recebemos [...]. O pao cotidiano estd ainda nas leituras que ouvis cada dia na Igreja, nos hinos que sao cantados ¢ que vés cantais. Tudo isso é necessdrio 4 nossa peregrinacao.””6 “O que recebeis é 0 vosso prdéprio simbolo. Ao que sois, respondeis: ‘Amém!’. E essa resposta marca a vossa adesao. Escutas: ‘O corpo de Cristo! e respondes: ‘Amém!”. Torna-te um membro de Cristo, para que o teu ‘Amém!’ seja verda- deiro.””” “Aquele pao que vedes sobre o altar, santificado pela Pala- vra de Deus, é 0 corpo de Cristo. Aquele célice, santificado pela Palavra de Deus, é 0 sangue de Cristo. Por meio destes elementos, o Senhor Cristo quis transmitir seu corpo e seu sangue, que ele detramou por nés.”” “Sabeis o que estais comendo ¢ o que estais bebendo, ou melhor, quem estais comendo e quem estais bebendo.”” Banquete em que ele “confiou e entregou aos discipulos o mistério de scu corpo ¢ de seu sangue”.® “Por que preparais vossos dentes e vosso estémago? Crede, € tereis comido,”*! “Crer nele é comer po vivo. Aquele que cré, come, e fica invisivelmente satisfeito, porque renasce invisivelmente.”* EXISTENCIA Razdo: “Tu, que quetes conhecet-te a ti mesmo, sabes que existes? [Agostinho:] Sei. R. De onde sabes? 98 A, Nao sei. R. Sentes-te como um ser simples ou multiplo? A, Nio sei. R. Sabes que te moves? A. Nao sei. R. Sabes que te pensas? A. Sei”. “Sem qualquer imagem enganosa da fantasia ou da ima- ginagao, é coisa absolutamente certa que sou, que conhego e que amo. Nestas verdades, nenhum receio tenho dos argu- mentos dos académicos que dizem: Que serd se te engana- res? — Pois se me enganar, existo. Realmente, quem nfo existe de modo nenhum se pode enganar. Por isso, se me engano ¢ porque existo. Porque, portanto, existo se me engano, como poderei enganar-me sobre se existo, quando é certo que exis- to quando me engano? Por conseguinte, como seria eu quem se enganaria, mesmo que me engane nio hd dtivida de que nao me engano nisto: — que conhego que existo. Mas a con- seqiiéncia é que nao me engano mesmo nisto: — que conhe- go que me conhego. De fato, assim como conhego que existo, assim também conhego isso mesmo: — que me conhego. E quando eu amo estas duas coisas, acrescento as coisas que conhego 0 amor como terceiro elemento que nao é de me- nor importdncia. Pois nao me engano sobre se me amo, jé que nao me engano nas coisas que amo; mesmo que elas fos- sem falsas, seria verdade que amo as coisas falsas.”*4 EXTASE “Ao aproximar-se 0 dia de sua morte — dia que sé tu co- nhecias e nés ignoraévamos — sucedeu, creio que por tua vontade ¢ de modo misterioso como costumas fazer, que ela € eu nos encontrassemos sozinhos, apoiados a uma janela, cuja vista dava para o jardim interno da casa onde mordva- 99 mos, em Ostia Tiberina. Afastados da multidao, procurdva- mos, depois das fadigas de uma longa viagem, recuperar as forcas, tendo em vista a travessia maritima. Falévamos a sds, muito suavemente, esquecendo oO passado e avangando para o futuro. Tent4vamos imaginar na tua presenca, tu que é a verdade, qual seria a vida eterna dos santos [...]. E subiamos ainda mais ao interior de nés mesmos, meditando, celebran- do e admirando as suas obras. E chegamos assim ao intimo de nossas almas. Indo além, atingimos a regiao da inesgot4- vel abundancia [...]. Assim falavamos, se bem que de modo e com palavras diversas. No entanto, Senhor, tu sabes como nesse dia, durante esse coléquio, o mundo, com todos os seus prazeres, perdia para nds todo valor, e minha mae me disse: “Meu filho, nada mais me atrai nesta vida; nao sei o que es- tou ainda fazendo aqui, nem por que estou ainda aqui. J se acabou toda esperanga terrena. Por um sé motivo eu deseja- va prolongar a vida nesta terra: ver-te catdlico antes de eu morrer. Deus me satisfez amplamente, porque te vejo des- prezar a felicidade terrena para servi-lo. Por isso, a que ¢ que estou fazendo aqui?’.”® F FAMILIA “Daf nasce também a paz do lar, isto é, a concérdia harmoniosa em mandar e obedecer dos que coabitam. Os que cuidam dos outros ¢ que mandam: como o marido na 100 mulher, os pais nos filhos, os senhores nos servidores. Aque- les de quem se cuida ¢ que obedecem; como as mulheres aos maridos, os filhos aos pais, os servidores aos senhores. Mas, na casa do justo que vive da fé e que ainda peregrina afasta- do dessa Cidade Celeste, os que mandam esto ao servigo daqueles sobre os quais parece que mandam. E que nao man- dam pela paixao de dominar, mas pelo dever de deles cuida- rem, nem pelo orgulho, de se sobrepor, mas pela bondade de cuidarem de todos.”' “Os verdadeiros pais de familia cuidam de todos os mem- bros da sua casa como dos filhos, no sentido de todos adora- rem e serem dignos de Deus, vivamente desejosos de chegarem a Casa celestial.”* “Como a familia deve ser 0 principio ou a célula da socie- dade e como todo o principio se refere a algum fim no seu género e como toda a célula se refere a integridade do todo de que é parte — claramente se conclui que a paz da cidade se refere a da familia, isto ¢, que a concérdia bem ordenada dos que juntos convivem no mando e na obediéncia se refere a concérdia bem ordenada dos cidadaos no mando e na obe- diéncia. E assim que o pai de familia deve tomar das leis da cidade aqueles preceitos com que governe a sua casa de har- monia com a paz da cidade.”* FE “A fé busca, o entendimento encontra; por isso diz o pro- feta: Se nao crerdes, néio entendereis (Is 7.9). Doutro lado, o entendimento prossegue buscando aquele que a fé encon- trou, pois, Deus olha do céu para os filhos dos homens, como é cantado no salmo sagrado: para ver se hd alguém que tenha inteligéncia e busque a Deus. Logo, é para isto que o homem deve ser inteligente: para buscar a Deus.” 101 “Eu creio para compreender e compreendo para (melhor) ”5 crer, “Aos antigos santos foi anunciado que Ele havia de vir em carne, tal qual nés O anunciamos como jd chegado, para que por Ele uma sé e a mesma fé conduza a Deus todos os que est4o predestinados a tornarem-se Cidade de Deus, Casa de Deus, Templo de Deus.”* “Por isso é que foi escrito: ‘O justo vive da fé (Hb 10.38. CE. G1 3.11), pois nem vemos ainda o nosso bem [supremo] —€ por isso é preciso que o procuremos crendo; nem o pré- prio viver com retiddo nos vem de nds, mas antes, aos que créem e oram, ajuda Aquele que dé a fé com que cremos que necessitamos de ser por ele ajudados.”” “ Perdoai as nossas dividas como nés perdoamos aos nos- sos devedores’ (Mt 6.12). Esta oragdo nao é eficaz para aque- les cuja fé é morta porque é fé sem obras, mas é-o para aqueles cuja fé se pde em pratica pelo amor.”* “E porque, desejando compreender o quanto possivel a eternidade, a igualdade e a unidade da Trindade, torna-se necessdrio crer antes de compreender, ¢ estar atentos para que nossa fé seja sincera.” “Tinha sido temerdrio e {mpio por ter acusado a fé catéli- ca, sem antes me haver informado através de pesquisa séria.”"° “Seja-nos, pois, Deus propfcio e faga-nos chegar a enten- der aquilo em que acreditamos.”"! “E verdade que o homem que cai por si mesmo nao pode igualmente se reerguer por si mesmo, tio espontaneamente. E porque, do céu, Deus nos estende sua mio direita, isto é, nosso Senhor Jesus Cristo. Peguemos essa mao, com fé firme, esperemos sua ajuda com esperanga confiante ¢ desejemo-la com ardente caridade.”” 102 “Assim, o espirito da graca faz com que tenhamos fé, a fim de que pela fé facamos os pedidos na orag4o ¢ possamos cum- prir os mandamentos. Por isso o Apéstolo freqiientemente antepée a fé a lei, j4 que nao podemos cumprir 0 ordenado pela lei a menos que com fé pecamos mediante a oracdo a forga necessdria.”' FELICIDADE, BEM-AVENTURANCA “— Estamos convencidos de que, se alguém quiser ser fe- liz, dever4 procurar um bem permanente, que nao lhe possa ser retirado em algum revés de sorte. — Jd concordamos com isso, diz Trigésio. — Entio, qual a vossa opiniao? E Deus eterno e imutdvel? — Eis ai uma verdade tao certa que qualquer questdo se torna supérflua, interveio Licéncio. Em piedosa harmonia, todos os outros disseram-se de acor- do. Concluf entao: — Logo, quem possui a Deus ¢ feliz!”!* “Todo o que encontrou a Deus ¢ 0 tem benévolo ¢ feliz. Todo o que ainda busca a Deus tem-no benévolo, mas ainda nao é feliz. E, enfim, todo o que se afasta de Deus, por seus vicios e pecados, nao somente no é feliz, mas sequer goza da benevoléncia de Deus.”* “Como devo procurar-te, Senhor? Quando te procuro, 6 meu Deus, procuro a felicidade da vida. Procurar-te-ei, para que minha alma viva. O meu corpo, com efeito, vive da mi- nha alma, e a alma vive de ti.”! “Possui-lo é a sua felicidade; perdé-lo é a sua desgraca. Mas o que tira a sua felicidade do bem que Ele é e nao de outro nao pode ser infeliz porque nao pode perder-se.”"” 103 “H4 uma alegria que nao é concedida aos {mpios, mas aqueles que te servem por puro amor: essa alegria és tu mesmo. E esta é a felicidade: alegrar-nos em ti, de tie por ti. E esta a felicidade, e n4o outra. Quem acredita que exista outra felicidade persegue uma alegria que nao é a verdadeira.”!* “Ninguém é feliz sem a posse do sumo Bem, cuja contem- plago e posse encontram-se nessa verdade que denomina- mos sabedoria.”! G GRACA “Entre a graca e a predestinacao hd apenas esta diferenca: a predestinagao é a preparacao para a graca, enquanto a gra- a é a doacao efetiva da predestinacao.”! “De ti, 6 Deus, me vém todos os bens, e do meu Deus toda a minha salvagao!”* “Mas esta graga, sem a qual nem as criancas nem os adul- tos podem ser salvos, nao é dada em consideracio aos mere- cimentos, mas gratuitamente, o que caracteriza a concessio como graca. Justificados gratuitamente pelo seu sangue. Assim, séo dignos de justa condenagao os que por ela nao sao liber- tados, seja porque nao puderam ouvir, seja porque nao qui- seram obedecer, seja também quando pela idade nao pode- riam ouvit, e nao receberam o banho da regeneragdo que 104

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