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Sto Pawo Pasurva 180):41-46, 2004 ESTADO E SAUDE os desafios do Brasil contemporaneo Pato Eovanno Ess Resumo: O artigo wata da slagio aire Estado e sade apresentando as diiculdades para a sua conceituapao {2 retomads da sus treet na Europa e no Brasil, Mostra aspectos par a rellexdo desta relaglo com 2 consageagto da saide come ditit socal e dever do Estado pela Consituigho Federale indica os desfios postos ao Sistema Unico de Sade. Palvras-chave: politica de said; poisca social; Sistema Unico de Sade Abstract: Ths artiste deals with the connection between State and Health cegardng tothe difficulties of ‘conception and concerning tthe retaking o its trajectory, bth in Europe and Brazil. Italso provides elements tothe reflection that Heaths not only a social right bu alo a at's duty guaranteed by Federal Constitution. This paper also points out the challenges st tothe United Healin System, ‘ey words: Health Politics; Social Politics; United Health System, ratar das relagdes entre Estado e saiide é um de- I safio intelectual de porte, pois Estado admite virias conceituagdes segundo as distintas cor- rentes e escolas sociolégicas e politicas (BOUDON; BOURRICAUD, 2001), enquanto a nogio de saiide ain- da carece de definigdo satisfat6ria, isto é, fundada para além das referencias & doenca ou 8 linearidade biologis- {a e historica contida na cléssica formulagio da Organi- zago Mundial de Satide— OMS, por representar “o com- pleto bem-estar fisico, psiquico e social”. Até porque as, conexdes entre Estado e saiide no se estabelecem de forma linear, meednica, e no constituem vineulos de tipo causal, Antes, compdem relagdes complexas de nature za socioeconémica e histérica, Desse modo, o esforgo a ser desenvolvido neste tra- batho & de buscar situar tal relagdo, ainda que generi- camente, a partir de uma breve recomposigio dessa tra- jetéria desde a emergéncia do Estado modemno na Europa, tomado como referencia maior da natureza dessa liga- ‘edo. A seguir, @ recomposigao contemplaré o caso brasi- leiro até as conjunturas mais recentes ¢ os desafios que dosta perspectiva se colocam ao Sistema Unico de Sait- de- SUS Neste trabalho, o SUS é entendido como a principal politica publica para o setor de saide ¢ 0 projeto maior do movimento sanitario brasileiro. No momento histéri- co atual tem o desatio principal de efetivar-se como Po- litica de Estado. Isso representa (re)significar 0 SUS. ‘como expresso da negociagio Estado/sociedade consa- .grada na Constituigdo Federal e, portanto, imune em seus fundamentos as naturais alterndncias de poder. E um gran- de desafio, a julgar as priticas politicas histéricas e cor- rentes, vigentes nas trés esferas de governo, de partida- rizago da maquina piblica e apropriagao das politicas sociais pelos governantes em prol da légica de sua re- produgo politica, Ao se recompor a trajetéria do setor satide no Brasil, serdo apontados fendmenos que expres sam a natureza dessa relagdo Estado/saide. Sto Paco Pancreas, 18) 2004 O ESTADO E A SAUDE Para apresentar os pressupostos que orientam esta abor- ‘dagem, cabe explicar a nocdo de Estado utilizada. Como {fassinalado, definir Estado é uma tarefa quase imposst- vel, uma vez que o seu conceito ndo é universal, como ‘nos ensina Schiera (1998), mas serve apenas para indicar descrever uma forma de ordenamento politico surgida na Europa a partir do século XIII na base de pressupostos ‘e motivos especificos da historia europeia, que se esten- dea todo mundo eivilizado, libertando-se das condig&es ‘originais e concretas de nascimento. ‘Ahistoria do surgimento do Estado moderno € a histé- ria da tense do complexo sistema de poder dos senho- rios de origem feudal ~ policéntrico e, em decorréncia, pulverizado ~ indo até o Estado territorial concentrado ¢ unitério, por meio da racionalizagio da gestio do poder e «da prépria organizagao potitica imposta pela evolugio das ‘condigBes histérieas materiais, Segundo Weber (1980), tal centralizagdo se traduz no monopélio da forga legitima, apontando a dimensio propriamente politica do Estado para além de seu aspecto organizativo e funcional. Isso implica a pesquisa de forgas histéricas ~ para Marx, @ bburguesia e o proletariado ~ que interpretaram o novo curso «se tornaram portadoras das novos interesses politicos ‘em jogo. Assim, o Estado também expressa relagdes de poder entre interesses sociais contflitantes. ‘Com o advento da era moderna, a saide torna-se maté- ria de Estado, isto é, das politicas publicas. E justamente zo grande movimento compreendide pelo processo hist6- rico do século XV ao XIX, em que se estabelece # ordem capitalista na Europa, é que a saiide passa a ser objeto da intervenco estatal por meio de politicas pablicas (FOUCAULT, 1977), Esse processo histético se caracteriza pela transigdo de uma légica territorial - materializada no feudo e nas rela- ‘gbes sociais dele decorrentes — para uma légica setorial — assinalada na formacdo das categorias profissionais disso- ciadas do terrt6rio, materializada nas corporagSes profis- sionais e nas relagées sociais originadas por elas - que iimpera a partir do século XIX. Da perspectiva da economia politica (SINGER, 1975), essa passagem traduz a disso- ciagio entre produgdo ¢ reprodugio e assim estabelece a ccontradigdo entre l6gicas globais esetoriais. Fm tal situaga0, ‘ politica publica torma-se o mecanismo de intermediagao ‘entre o global (todo) eo setorial (as categorias profissionais), transformando-se em instrumento privilegiado do Estado para minimizar as contradigdes e os conflitos sociais gerados pelo conffonto entre as duas logicas. Por esse aspecto, as politicas piblicas constituem instru- mentos para a atuagio do Estado € a Politica Social & central para a regulagdo estatal.J4 0s pressupostos tedricos. do Estado para se pensar a drea social estdo centrados na reprodugo da forea de trabalho. Dessa forma, a Politica Social como tipo particular de Politica Piblica promove a regulagdo entre Estado, economia e sociedade, e a0 se formularem as politicas de saide piiblica, como as do SUS, 6 exatamente esta a natureza da regulago envolvida, [Em suma, a génese da relagio Fstado/saiide na era mo- derna é a expresso da regulagSo estatal da sate para a nova ordem social e econémica emergente— a ordem bur- ‘guesa ~ e centrada na reprodugo da forca de trabalho. No entanto, tal regulaedo expressa as contradigSes ¢ con- Altos entre o global (todo) e o setorial (parte). ‘Assim, na Inglaterra do século XVI, sfo clissicos os trabalhios iniciais de William Petty indicando a importincia do estudo quantitativo do fato social e incentivando sew amigo John Graunt, comerciante londrino de roupas masculi- nas, a se colocar como um dos pioneiros da estatistica com sua obra sobre mortalidade publicada em 1662. Ela envolve 1 busca de regularidades matematicas em acontecimentos ‘humanos como nascimentos, mortes¢ incidéncia de doen. Em 1714, Bellers publica um tratado no qual estabelece um. plano para um servigo nacional de sade, que caracteriza, 0 primérdios da estatistica vital (REGONINI, 1998). Posteriormente, no século XIX, a Lei dos Pobres (1834) documenta uma das primeiras incurs6es do Estado mo- derno no campo da side, Mediante essa edigo, o Esta- do provia esses individuos por consideri-los tendencial- ‘mente perigasos para a ordem c higiene pablicas. também clissico o projeto levado adiante na Prissia entre 1883 ¢ 1889, por Bismark, para a construgdo de um sistema de seguridade social voltado para o proletariado e centrado nas corporagdes profissionais (Iégica setorial), que con- templava a assisténcia médica individual, Tal movimento abrange outros paises europeus, como Franca, Ita, pai- ses n6rdicos, mas é na Inglaterra da inicio do século XX, no periodo entre 1905 e 1919, que, sob um alinhamento politico progressista de inspiraedo igualitiria, insttui-se lum seguro nacional de saiide aliado a um sistema fiscal fortemente progressive. ‘No conjunto da Europa, a relagdo Estado/saide teré sua expresso mais notivel apés a Segunda Guerra Mundial, com a constituigdo do Welfare State, representando o de- senvolvimento desse tipo particular de Estado que se de- nomina Estado Social e ainda hoje & muito vigoroso na- quele continente. Seu principio fundamental é expresso pelo postulado de que, independentemente da renda, todos os Esta u Sal! o otsciog bo Baas, commnrorAsso ‘cidadiios tém direito a ser protegides, com pagamento em dinheito ou servigos, contra situagdes de dependéncia lon- «2a, ais como velhice ou invalidez, e curta, como doenga, desemprego e matemidade, O slogan dos trabalhistas in- gleses em 1945, “participagdo justa de todos”, resume 0 cconceito do universalismo da contribuigdo que é 0 funda- ‘mento do Welfare State (REGONINI, 1998). A explicagiio para a génese desse tipo particular de Es- tado divide os autores em duas correntes prineipais: os {que ressaltam o papel desempenhado pelos fatores eco- ndmicos (0 crescimento da economia como seu impul- sionador) ¢ aqueles que acentuam a politica (a ameaga & ‘ordem capitalista representada pela Revolugdo de 1917 nna Riissia), tema para outra oportunidade. Importa assi- nalar aqui que os estudiosos consideram o desenvolvimento do Welfare State uma quebra da separago entre a socie- dade (ou mercado, ou esfera privada) e o Estado (ou poli tica, ou esfera piblica), tal como concebido no modelo de sociedade liberal. Nos paises capitalistas periféricos esse movimento re- percute desigualmente em fungdo das especificidades pre~ sentes em cada um deles; no entanto, em todos apresenta um padréo mitigado perante © movimento originrio (LAURELL, 1995). Desse modo, desenvolvem-se siste- mas de protegiio especificos geralmente vinculados ao mer= ‘ado formal de trabalho, compondo na maioria das vezes istomas previdencidrios solidérios sob a égide do méto- do de repartigao simples. ‘No caso brasileiro, come veremos, o esmaccimento da separagio entre a esfera privada ¢ a piblica explicita-se xno émbito do econémico, quando o Estado se apresenta ‘como uma espécie de séeio do capital privado, ainda que no plano das politicas publicas néo se tenha verificado nenhuma iniciativa comparavel ao modelo do Estado de Bem-Estar Social. Quanto & relagdo Estado/saide, 0 advento do Estado de Bem-Estar Social significa a desmercantilizagao da saiide com a elevagio de seu estatuto a direito universal e nuclear para a cidadania plena, A RELACAO ESTADO/SAUDE NO BRASIL. No Brasil, apesar de a intervengdo estatal no setor da saiide ocorter desde o perfodo colonial, mais precisamente no inicio do século XIX (MACHADO ct al, 1978), as formas mais incisivas da intervengio se dio a partir do periodo republicano, Na dimensio coletiva da said exemplos clissicos da especificidade da regulagio Estado- sociedade-economia, as intervengdes sanitério-urbanas realizadas no inicio do século XX nas eidades dos prineipais pportas brasileiros — Rio de Janeiro e Santos eas campanhas pela erradicagao da febre amarela, que na época assolava esas cidades, resultando na insurgéncia popular conhecida ‘como revolta da vacina ¢ @ firia dos moradorcs dirigida a seu idealizador, o sanitarista Oswaldo Cruz (COSTA, 1985). Dados os interesses mais especificos em jogo, é na di- ‘mensiio individual da saide representada pela assisténcia médica que a relagio Estado/saiide vai revelar melhor a sua especificidade no caso brasileiro. ‘Acrigem da intervengao estatal na assisténcia & sade zo Brasil tem na Lei Eléi Chaves um significative marco. Editada em 1923 — periodo no qual o Estado Social jé se consolidara na Europa, © apés as movimentagdes operi- rias do periodo 1910 a 1920 -, estabelecia 0s marcos re- ‘gulatérios para as aposentadorias, pensdes e assisténcia médica, numa espécie de arremedo ao que se passava na Europa desde o século anterior. Vejamos os motives dessa qualificagdo. Tal qual os ‘modelos europeus, essa politica piblica nasce vinculada 20 mundo do trabalho, portanto submetida & logica seto- rial corporativa. Entretanto, no caso brasileito, ndo se ¢ tivou para abranger o conjunto dos trabalhadores, mas apenas parte deles: justamente aqueles vinculados aos polos mais dinémicos da economia, como os ferrovidrios ‘205 portuarios, Seu financiamento dava-se exclusivamente por desconto compulsério na folha de salério, sem qual- ‘quer participagdo de recursos fiscais do Estado. Assim, a assisténcia médica previdenciaria emerge no Brasil mercantilizada sob a forma de seguro, no qual a garan- tia do acesso aos servigos de saiide ¢ feita com pagamento ‘mediante desconto compulséria, ao mesmo tempo em que se estrutura um sistema urbano de assisténeia quando a maioria da populagio era rural. Da mesma forma, configu- 1a-se segmentado e socialmente excludente, isto 6, privilegia ‘ populagdo urbana em detrimento da maioria rural. Na area urbana atinge apenas a forga de trabalho e, entre os trabalhadores, favorece os vinculados 20s pélos dinamicos de acumulagio capitalista, A saide assim estruturada ‘concorre para o padrio de regulagdo social denominada por Santos (1979) de eidadania regulada, mantendo-se pratica- mente intocada até o final da década de 80. Esse modelo centrado na légica setorial (corporagées) tem sua expresso mais completa nos anos 30 e 40, Inicial- ‘mente, com a estruturagao dos Institutos de Aposentado- ras ¢ Pensdes ~ [APs por categoria profissional, foi man- tida a contribuigdo compulséria sobre a folha de salirio e a vinculagdo ao trabalho formal, possibititando um duplo ppadrio na relagdo piblico/privado, So exemplos,o Instituto Sto Paco Pancreas, 18) 2004 de Aposentadoria ¢ Pensdes dos Bancérios ~ IAPB, que investiaem servigos proprios, eo Instituto de Aposentadoria «e Pensées dos Industridrios — lapi, que comprava servigos de terceiros. Eis a tensto que ird marcar o sistema previdenciério brasileiro, com a poupanga previdencidria servindo de base para a reprodugdo do capital pela via da assistincia & saiide, que desta maneira inicia seu processo de mercantlizasao, Nos anos 40, 0 modelo setorial & estendido aos traba- Ihadares do setor pilblico por meio dos sistemas de previ- ‘dgncia fechados nas diferentes esferas de governo, tais, ‘como o do Instituto de Previdéncia dos Servidores - Ipase, zno Ambito federal, eo do Instituto de Assisténcia Médica do Servidor Piblico Estadual - Iampse, abrangendo os funcionérios paulistas. A configuragao pablico/privado na saiide como expres- so da sua mercantilizagdo tem sua expresso maior na ‘riago do Instituto Nacional da Previdéneia Social INPS. (p6s-golpe militar de 1964), que por meio da imple- mentagdo de politicas voltadas para o setor privado da satide se constituird em potente instrumento para a ampliago da dinémica de acumulagdo no setor (COHN, 1980). Esse novo ajuste revela a organicidade da relagao Estado/satide em prol dos interesses dos produtores privados, pois ao Estado se reservava a fungio de organizar a clientela, financiar a produgto de servigos ¢ subsidiar 0 investimento privado para ampliagdo da capacidade instalada (COHN, 1995). Kis af o processo sociopolitico ‘ehistérico que engendra a privatizagdo precoce do sistema de saiide brasileiro com a consegiiente estruturagdo da produgo de servigos de saiide em moldes privados e Iucrativos, fendmeno que na América Latina se iniciaré apenas na década de 80 com o golpe militar no Chile, A CONTEMPORANEIDADE ADVENTO DO SUS EO No Brasil, o movimento de consolidagao do setor pri- vado na salide ganha velocidade a partir do final da déca- dda de 80, com o fechamento do ciclo de industrializagao propiciado pelo projeto nacional desenvolvimentista que orientou @ agdo estatal desde os anos 30, Pois & justamente nesse momento histérieo de grande indefinigdo para o projeto econdmico do Estado e em pleno proceso de saida da ditadura militar com a redemocrati- zagdo da relacdo Estado/sociedade, que a nogao de seguridade social & consagrada na Constituigda Federal. Tal fato assinala um importante ponto de inflexao nas Politicas Pablicas de saiide vigentes. Pela primeira vez nas Cartas Constitueionais brasilei- ras, a de 1988 apresenta uma segdo espeeifica para a sail. de, consagrando-a como direito do cidadio e dever do Es- tado, Esse procedimento desloca a nogdo de seguto social, vvigente desde os anos 20, pela de seguridade, isto é, i se- ‘melhanga do que ocorre no Estado de Bem-Estar Social, esti previsto que 0 acesso pleno ao sistema de saiide pas- sa a ndo depender da renda, buscando-se garantir um novo padrio de cidadania, Tal deslocamento, a0 mesmo tempo em que constitui um ponto de apoio pare a redefinigao radical das politi- ceas pliblicas, por exigir a desmercantilizagdo da saiide, rovela-se fonte de enormes tensionamentos e conflitos a0 se confrontar com a realidade do acelerado processo de ‘mereantilizagio da saide como tendéncia mundial. No Brasil, esse movimento se expressa no crescimento répi- do do sistema privado de saiide (BAIIIA; VIANA, 2002). Em escala progressiva, a area da saide vai se firmando como fonte para acumulago de capital ‘Ademais, 0 tema da reforma do Estado, em moldes previstes pelo Consenso de Washington ou pela denominada Agenda Neoliberal, comega a fazer parte do temario da politica brasileira j4 no inicio dos anos 90 (OLIVEIRA, 1999). A entrada se principia justamente pelo ajuste fiscal do Estado, o que resulta em violento “desfinanciamento das politicas sociais e particularmente das de saiide. © SUS, a mais ambiciosa ¢ abrangente politica péblica de saide j4 formulada no pais, emerge completamente sitiado pela disposigao da relacao Estado/sociedade nesse ‘momento hist6rico, De um lado, acossado pelo que pode- sfamos denominar dea nova agenda de problemas, expresso da atual conformagao do Estado, representada pelo acolhimento da mercantilizagio da saide ~ caracterizada, sobretudo, pela regulamentasdo do sistema privado de saide (planos ¢ seguro-saiide) -, pela ética do consumidor completamente a margem de SUS, pela adage de parme- tos de gestio permeados pela nogdo de custolefetividade ou custo/beneticio e pela flagrante insuficiéneia do financia- mento perante os compromissos previstos na Constituigde Federal na area da sade (COHN; ELIAS, 2003), De outro, assomam os tradicionais problemas que com- Oem persistentemente a agenda do Estado brasileiro, ox- pressos pelo patrimonialismo, pela reprodugdo das iniqai- dades sociais nas politicas piblicas, pela persisténeia de um padrio infenso a qualquer forma de controle piblico, pela ineficiéneia social da maquina pablica e por suas debilidades na regulagSo de areas e setores estratégicos para a cmancipasio social, com o objetivo de mitigar a jimensa divida acumulada com amplos setores da popula gio (OLIVEIRA, 1999), Esta u Sal! o otsciog bo Baas, commnrorAsso Como construgdo politica ehistérica, vinculado a0 pro- jeto de desenvolvimento do capitslismo, o SUS permeia © € permeado por essas contradigdes em sua trajetoria de afirmago como politica piblica. Nessa medida, & seme- Ihanga do Welfare State, ndo se prestaa constituir um meio para o questionamento da ordem social capitalista, como imaginado por setores do movimento da reforma sanité- ria brasileira (ESCOREL, 1998) ‘Ademais, durante 67 anos ajustou-se uma relagdo Estado/saiide fundada na nogao de seguro € no acesso contra pagamento dos servigos, construindo uma cultura da saide como mercadoria a ser mediada pelo mercado, realgando 0 pagamento como fonte de legitimagao do servigo prestado e transformando 0 usuario em consumidor em detrimento do seu estatuto de cidadao. Hé spenas 17 anos, desde 1988, intenta-se a mudanga nessa cultura ~ 0 que demanda horizontes do tempo histérico - por meio da nogao de seguridade ¢ da afirmagio da saiide como direito universal, ainda que, como se viu, sem contar com a conformagao de um Estado voltado para estes objetivos. No entanto, a efetivardo do SUS tem apenas 12 anos, iniciando-se com a implementagdo da Norma Operacio- nal Basica NOB 01-93, significativamente intitulada “A ousadia de cumprir e fazer cumprir a Lei”, marcando tam- ‘bém um ato de vontade politica do movimento pela muni- cipalizagao da sade. Em complemento a esse processo, somente a partir de 1998, com a efetivagio da NOB-O1- 96, ampliam-se as transferéncias financeiras fundo a fun- do, isto &, do Fundo Nacional de Saiide para os fundos estaduais © municipais, 0 que ird caracterizar 0 grau de autonomia dos entes subnacionais ¢ qualificar a descen- tralizagdo da saiide em curso, Portanto, 0 SUS constitui uma politica pablica cujo prinefpio fundamental é a consagragio da satide como diteito universal, Em razdo de seu pequeno curso histéri- co, encontra-se em estruturagao e, por isso, vulnersvel a toda sorte de investidas para consagri-lo ou para abort oem seu fundamento maior A efetivagdo da satide, portanto, em conformidade com os ditames constitucionais, exige providéncias de varias ordens, a comegar pela reforma do Estado para tomé-lo capaz de realizar a satide como direito universal. A conse- cugio desse objetivo exigira do Estado a formulagio de politicas voltadas & desmercantilizagao da sade ~ 0 que xno Ambito mais imediato da assisténcia médica implica o incentivo a formas ndo lucrativas, em detrimento das mo- dalidades lucrativas na produgdo de servigos -, e & busca incessante de novas modalidades de gestio na relago pi- blico/privado, capazes de viabilizara eficicia social do sis- tema de saide. Somente dessa maneira se eriam as condigdes para a construgdo de uma nova e potente consciéncia sanitéria, fundada na nogdo da saaide como necessidade social a ser provida nos marcos da regulagdo estatal e, portanto, em ‘contraposigo ao idedio corrente da satide como bem a ser satisfeito nos pardmetros de mercado, ‘A exigéncia dessa nova consciéncia sanitaria univer- salista e cidada torna-se indispensdvel para que o projeto de mudanga na saiide, com o pleno desenvolvimento do SUS, acontega ancorado em bases sociais sGlidas e ndo em imposigio do Estado por meio de estratos politicos & ‘ou de técnicos iluminados, encastelados no aparclho de Estado. A nova consciéneia sanitéria serd o elemento de fortalecimento da relagdo Fstado/sociedade renovada e em prol da efetivagdo da saiide como direito universal, im- portante passo para a vigéneia de um outro padrio de ci- dadania na sociedade brasileira, Ao contrério do idedrio vigente em algumas instincias decisérias do govern, 0 projeto “mudancisia” passa também por uma regulagio de cardter setorial, abarcando as corporagSes ~ médicos & frente ~ sem ultrapassé-las ou negé-las, a fim de efetivar uum tipo de regulago que, a0 englobar o contfito, seja tam- bém capaz de afirmar o interesse geral sobre o particular ‘em prol da eficdeia social da agdo estatal. No entanto, nos anos 90 acentuam-se os conflitos quan- ddo a agenda passa a ser pautada por uma certa reforma do Estado influenciada pelo movimento da globalizago e pe- los postulados do neoliberalismo, Principalmente no tergo final da década de 90, essa reforma promove © esmae- ‘cimento da linha que separa o Estado do mercado, influen- ciada por iniciativas internacionais de “parceria” ou, me- Ihor dizendo, de verdadeira sociedade entre 0s entes piblico ¢ privado, como a expansio das linhas de metré em Lon- dres ea construgdo de rodovias em Portugal e Espanha.Ilus- tra essa tendéncia a recente Lei Federal que institui normas ‘gerais para a parceria entre os setores piblice e privado, ‘denominada de Parceria Pablico-Privado— PPP, inicialmen- le dirigida para as éreas de infra-estrutura, Transpostas para ‘rca da sade, essa nova configuragao representaria uma ampliagdo do conceito vigente nas Organizagées Sociais de Satide ~ OSS ou mesmo das Ocips federais que funcio- ‘nam sob os fundamentos da concessio, No caso do estatu- lo da PPP, trata-se do compartithamento no investimento, ‘que resulta em participagao na propriedade do equipamen- 10 ~ dai a designagto de sociedade -, situagdo até 0 mo- ‘mento inexistente no Ambito das poiticas sociais atuais. Tal tendéncia denota a crescente aproximagdo Estado/capita- lismo, revelada com grande erueza para os padrées liberais ‘vigentos até meados do século XX, talvez expressfio desse momento histérico em que os capitais privados se impoem

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