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KOK : \ \ COMO OUVIR— § @ _ Musica". AARON COPLAND Traduzido por Luiz. Paulo Horta 2 impressio C@omo voce ouve Todos nés ouvimos musica de acordo com as nossas aptiddes varidveis. Mas, para utilidade da anilise, © processo completo da audicdo pode se tornar mais claro se nés o decompusermos nas suas partes componentes. Sob certo aspecto, todos nés ouvimos mtisica em trés planos distintos. A falta de ter- minologia mais exata, poderfamos chamé-los de (1) plano sensfvel, (2) plano expressivo e (3) plano puramente musical. A Gnica vantagem de dividir dessa maneira 0 processo auditivo € a visio mais clara que se pode ter da maneira como se ouve. A maneira mais simples de ouvir musica € entregar-se totalmente ao pré- prio prazer do som. Esse é 0 plano sensivel. E 0 plano em que nés ouvimos mtisica sem pensar, sem tomar muita consciéncia disso. Ligamos o radio en- quanto fazemos outra coisa e tomamos um banho de som. A mera percepgio do som jé € capaz de produzir um estado mental que nao € menos atraente por ser desprovido de ideias. Vocé pode estar sentado na sala lendo este livro. Imagine uma nota percu- tida no piano, Essa nota, por si s6, € capaz de mudar a atmosfera da sala - 0 que prova que o elemento sonoro da miisica é um agente estranho e poderoso, que seria tolice subestimar. O que é surpreendente, entretanto, € que muitas pessoas que se consideram ouvintes de qualidade abusam desse plano na sua audigso. Vao a um concerto para esquecer-se de si mesmas, usam a miisica como consolacao ou subterfi- gio. Entram em um mundo ideal onde nao se tem de pensar nas realidades de 26 todo dia. Naturalmente, elas também nao estao pensando na misica. A mtisica permite que elas a abandonem e viajem para um lugar de sonho, sonhando a propdsito de uma miisica que ainda nao chegaram a ouvir. E verdade que 0 apelo sonoro da mtisica € uma forca primitiva e poderosa, mas vocé nao deve permitir que ele usurpe uma parte desproporcionada do seu interesse. O plano sensivel € importante na musica, e até muito importan- te, mas é apenas uma parte da hist6ria. Nao hé necessidade de realizar mais digressdes a propésito desse plano. A atraco que ele exerce sobre qualquer pessoa normal é algo evidente. Existe, entretanto, a possibilidade de nos tor- narmos mais sensiveis aos varios tipos de matéria sonora usados pelos diversos compositores. Pois os compositores ndo usam essa matéria sonora da mesma maneira. Evite a ideia de que o valor da mtsica € proporcional ao seu apelo sens6rio, ou de que a mtisica que tem o som mais atraente é feita pelos maiores compositores. Se fosse assim, Ravel seria maior do que Beethoven. A verdade € que 0 elemento sonoro varia para cada compositor, a utilizagio do som faz parte do estilo de cada um, e deve ser levada em conta no nosso processo de audigéo. Pode-se observar, assim, que uma atitude mais consciente tem valor até mesmo nesse plano primario da audigao. O segundo plano em que a mtisica existe é o que eu chamei de expressivo. Aqui entramos, imediatamente, em terreno controvertido. Os compositores gostam de se esquivar a qualquer discussio sobre o lado expressivo da miisica Nao foi o prdprio Stravinsky quem proclamou que a sua misica era um “obje- to", uma “coisa", dotada de vida prépria e sem qualquer outro significado além da sua simples existéncia musical? Essa atitude intransigente de Stravinsky pode ter sido originada do fato de muitas pessoas serem levadas a atribuir significados diferentes a tantas pecas; s6 Deus sabe como € dificil dizer pre samente o que significa uma peca musical, ¢ dizé-lo de uma maneira definitiva, que satisfaga a todo mundo. Mas isso nao deveria levar-nos ao extremo de negar & musica o direito de ser “expressiva” A minha prépria opiniao é de que toda musica tem o seu poder expressivo, algumas mais e outras menos, mas todas tém um certo significado escondido por trds das notas, e esse significado constitui, afinal, o que uma determinada pega esté dizendo, ou o que ela pretende dizer. O problema pode ser colocado de uma maneira mais simples perguntando-se: “A mtisica tem um significado?" Ao que a minha resposta seria “Sim”. E depois: “Vocé pode dizer em um certo Como Ouvin & Extenver Mesica ntimero de palavras que significado € esse2". E aqui a minha resposta seria "Nao". Ai é que esté a dificuldade. As pessoas de natureza mais simples nunca se contentardo com essa respos- ta a segunda pergunta. Elas sempre desejam que a misica tenha um sentido, € quanto mais concreto, melhor. A masica Ihes parece tanto mais expressi- va quanto Ihes represente com mais exatidao um trem, uma tempestade, um funeral ou alguma outra nocgdo conhecida. Essa ideia popular do significado musical — estimulada pelo habito contemporaneo de comentar a musica — de- veria ser desencorajada em qualquer circunstancia. Uma senhora timida me confessou certa vez que suspeitava fortemente da sua capacidade de entender tisica, j& que era incapaz de relaciond-la com algo definido. Isso, naturalmen- te, significa uma inverséo completa do problema. Ainda assim, a questéo permanece, até onde o ouvinte inteligente deveria esforgar-se para identificar um determinado sentido na pega de sua preferén- cia? A minha opiniao é de que ele nao deveria ir além de um conceito geral. A mtisica expressa, em momentos diferentes, serenidade ou exaltagao, tristeza ou vit6ria, furia ou delicia. Ela expressa cada um desses humores, ¢ muitos ou- tros, em uma variedade infinita de nuances ¢ diferengas. Ela pode até mesmo apontar para estados de espirito a que nao corresponde palavra alguma em lingua conhecida. Nesse caso, os méisicos gostam de dizer que ela tem apenas © seu significado musical. Eles as vezes vio mais longe e dizem que toda e qualquer miisica tem apenas um significado musical. O que querem dizer com isso € que nao hé palavras apropriadas para a expresso do sentido musical, € mesmo se elas existissem, nao haveria necessidade de procurar por elas. Mas seja qual for a opiniao do masico profissional, a maioria dos nova- tos em musica gosta de procurar palavras especificas que adaptam as suas reagdes musicais. E por isso que eles sempre acham Tchaikovsky mais facil de “entender” do que Beethoven. E mais facil aplicar uma palavra inter- pretativa a uma peca de Tchaikovsky do que a uma de Beethoven. Muito mais facil. Além disso, em relacao a Tchaikovsky, cada vez que vocé ouve novamente uma de suas obras ela Ihe diz aproximadamente a mesma coisa, enquanto com Beethoven é bem mais dificil arriscar uma opiniao sobre o que ele esté dizendo ou querendo dizer. E qualquer misico The diré que € por isso que Beethoven € 0 maior dos dois. A mtisica que sempre diz a mesma coisa tende necessariamente a gastar mais depressa o seu poder 2, CoMo voc? uve - 27 28 expressivo, enquanto a miisica cujo significado oscila a cada audigio tem melhores chances de permanecer viva. Ouga, se voce puder, os temas das 48 fugas do Cravo Bem Temperado, Ouga cada tema, um depois do outro. Vocé logo perceberé que cada tema espe- Iha um mundo emotivo diferente. Vocé também perceberd que quanto mais belo Ihe parece um tema, mais dificil se torna achar para ele uma explicagdo verbal que satisfaga a vocé mesmo. Claro, vocé pode quase sempre saber se 0 tema € alegre ou triste. Em outras palavras, vocé seré capaz, na sua mente, de tracar uma fronteira de sentimentos ao redor do tema. Agora preste mais atengao ao tema “triste”. Tente definir a qualidade exata da sua tristeza. Ele € pessimistamente triste ou resignadamente triste? Definitivamente triste ou casualmente triste? Suponhamos que vocé tenha sorte e possa descrever em algumas palavras 0 significado do tema, de uma maneira que the satisfaga. Ainda assim nao ha nenhuma garantia de que outras pessoas se satisfizessem com isso. Nem ha necessidade de que elas se satisfacam. O que é importante € que cada um sinta por si mesmo a qualidade expressiva que caracteriza um tema, ou uma peca musical completa. E se se trata de uma grande obra de arte, nao espere que ela Ihe diga sempre a mesma coisa em audigdes sucessivas. Temas ou obras completas nao precisam, naturalmente, expressar uma tinica emocio. Tome, por exemplo, o primeiro tema importante da Nona Sinfonia, Ele é feito, claramente, de elementos distintos, Nao diz apenas uma coisa. E, no entanto, quem quer que o ouca € afetado imediatamente por um sentimento de forca e de poder. Esse poder nao resulta simplesmente do fato de que o tema é tocado a um volume consideravel; € um poder inerente ao proprio tema, A sua forca extraordinéria faz com que o ouvinte tenha a impressdo de ter ouvido uma declaragéo da maior importancia. Mas nao deverfamos nunca confundir essa declaragao com “o martelo implacavel da vida" e coisas semelhantes. E af que os problemas comecam. Exasperado, 0 mtisico diz que ali nao hé senao notas de misica, enquanto o leigo continua a procurar ansiosamente alguma explicacdo que lhe dé a ilusdo de estar mais. préximo do significado da obra O leitor estaré entendendo melhor, agora, 0 que cu quero dizer quando afirmo que a mésica tem um significado expressive, mas que nao ha palavras para dizer que significado € esse. Como Ouwin & ENTENDER Mosica O terceiro plano em que a musica existe € 0 plano puramente musical. Além da atragio do som ¢ dos sentimentos expressivos que ela transmite, a miisica existe no plano das préprias notas ¢ da sua manipulagao. A maioria dos ouvintes nao tem suficiente consciéncia desse terceiro plano. Uma das princi- pais finalidades deste livro é atender a essa deficiéncia O misico profissional, por outro lado, costuma sofrer do defeito contrério, dando uma excessiva atengao as notas. Obcecado pelos seus arpeggios ¢ stacca- tos, cle perde de vista muitas vezes a dimensio profunda do que esté executan- do. Mas do ponto de vista do leigo, nao se trata tanto de extirpar maus habitos do ponto de vista exclusivamente musical como de aumentar a consciéncia desse plano, o plano das notas propriamente ditas. Quando o homem da rua ouve essas notas com algum grau de concentra- Ao, ele costuma fazer sempre mengio & melodia. Ou ele percebe uma melo- dia de que gosta ou nao percebe, e a coisa fica nisso. Nao sendo a melodia, pode ser que cle chegue a prestar atengio ao ritmo, quando se trata de um ritmo excitante, Mas a harmonia ¢ 0 timbre — 0 colorido tonal — costumam passar como coisas dbvias, se € que a sua existéncia € reconhecida. Quanto 2 possibilidade de que a misica tenha alguma espécie de forma definida, isso nao ocorre jamais a esse nosso cidadao. Para qualquer um de nés, € muito importante tornar-se mais atento ao pla- no exclusivamente musical, Afinal de contas, a misica implica um material concreto que esta sendo utilizado. O ouvinte inteligente deve estar preparado para aumentar a sua percepgao do material musical e do que acontece a ele. Deve ouvir as melodias, os ritmos, as harmonias, o colorido tonal, de maneira mais consciente. Mas acima de tudo, para que possa seguir 0 pensamento do compositor, deve conhecer alguma coisa sobre os principios da forma musical. Entender todos esses elementos € entender o plano exclusivamente musical Deixem-me repetir que eu s6 dividi artificialmente esses planos hipotéti- cos da audic&o para obter uma clareza maior. Na verdade, nunca ouvimos a um ou outro desses planos. O que nds fazemos é combina-los, ouvindo-os ao mesmo tempo. E isso nao exige qualquer esforgo mental, porque é feito instintivamente. Talvez essa correlagao fique mais clara através de uma analogia com o que nos acontece quando vamos ao teatro. No teatro, vocé percebe os atores e as atrizes, as roupas € 0s cenérios, os sons € os movimentos. Tudo isso nos dé a 2. Coo voc ouve 9 xe sensacao de que o teatro é um lugar agradvel de se estar. E 0 plano sensério das nossas reacées teatrais. O plano expressivo, no teatro, viria dos sentimentos despertados em vocé pelo que esté acontecendo no palco. Vocé é levado & piedade, a excitagio ou 2 alegria. Esse sentimento, gerado pelas palavras que esto sendo pronuncia- das, ¢ que criam um determinado mundo emocional, é anélogo & qualidade expressiva da mtisica A histéria € o seu desenvolvimento equivalem ao nosso plano puramente musical. O dramaturgo cria e desenvolve um personagem da mesma maneira que um compositor cria e desenvolve um tema. De acordo com o grau de consciéncia que vocé tenha dos processos artisticos utilizados em um ou em outro campo, vocé seré um ouvinte ou espectador inteligente — ou nao. E facil perceber que 0 espectador, no teatro, por melhor que ele seja, nunca est consciente desses elementos separadamente. Ele percebe todos a0 mesmo tempo. O mesmo se pode dizer da audigio da musica. Quvimos simultanea- mente, sem pensar, os trés planos que aqui foram divididos hipoteticamente. Em certo sentido, 0 ouvinte ideal esté ao mesmo tempo dentro e fora da mésica, julgando-a e desfrutando dela, desejando que ela va para um lado ¢ observando como ela vai para 0 outro ~ quase como 0 compositor no mo- mento em que compée, porque para escrever a sua musica, o compositor deve estar dentro e fora dela, levado por ela ¢ ao mesmo tempo friamente cons- ciente do que esté ocorrendo. Uma atitude subjetivo-objetiva esta implicita na criagao e na apreciagao da mtisica. O owvinte deveria, assim, procurar uma maneira mais ativa de ouvir. Seja ouvindo Mozart, seja Duke Ellington, vocé pode aprofundar o seu enten- dimento da misica simplesmente tornando-se um ouvinte mais atento e consciente — nao alguém que est4 apenas ouvindo, mas alguém que esté ouvindo alguma coisa Como Ouve € E cTeNDER MUsica

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