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Assunto: [poiesis] Procura da Poesia


Data: quinta-feira, 17 de fevereiro de 2000 01:21
Procura da Poesia
N o fa as versos sobre acontecimentos.
N o h cria o nem morte perante a poesia.
Diante dela, a vida
um sol est tico,
n o aquece nem ilumina.
As afinidades, os anivers rios, os incidentes pessoais n o contam.
N o fa as poesia com o corpo,
esse excelente, completo e confort vel corpo, t o infenso
efus o l rica.
Tua gota de bile, tua careta de gozo ou de dor no escuro
s o indiferentes.
Nem me reveles teus sentimentos,
que se prevalecem do equ voco e tentam a longa viagem.
O que pensas e sentes, isso ainda n o
poesia.
N o cantes tua cidade, deixa-a em paz.
O canto n o
movimento das m quinas nem o segredo das casas.
N o
m sica ouvida de passagens; rumor do mar nas ruas junto
espuma.
O canto n o
a natureza
nem os homens em sociedade.
Para ele, chuva e noite, fadiga e esperan a nada significam.
A poesia (n o tires poesias das coisas)
elide sujeito e objeto.
N o dramatizes, n o invoques,
n o indagues. N o perca tempo em mentir.
N o te aborre as.
Teu iate de marfim, teu sapato de diamante,
vossas mazurcas e abus es, vossos esqueletos de fam lia
desaparecem na curva do tempo, algo imprest vel.
N o
tua
N o
mem
Que
Que

recomponhas
sepultada e merenc ria inf ncia.
osciles entre o espelho e a
ria em dissipa o.
se dissipou, n o era poesia.
se partiu, cristal n o era.

Penetras surdamente no reino das palavras.


L est o os poemas que esperam ser escritos.
Est o paralisados, mas n o h desespero,
h calma e frescura na superf cie intata.
Ei-lo s s e mudos, em estado de dicion rio,
Convive com teus poemas, antes de escrev -los.
Tem paci ncia, se obscuros. Calma, se te provocam.
Espera que cada um se realize e consume
com seu poder de palavra
e seu poder de sil ncio.
N o forces o poema a desprender-se do limbo.
N o colhas no ch o o poema que se perdeu.
N o adules o poema. Aceita-o
como ele aceitar sua forma definitiva e concentrada no espa o.
Chega mais perto e contempla as palavras.

linha de

Cada uma
tem mil faces secretas sob a face neutra
e te pergunta, sem interesse pela resposta,
pobre ou terr vel, que lhe deres:
Trouxeste a chave?
Repara:
ermas de melodia e conceito,
elas se refugiaram na noite, as palavras.
Ainda midas e impregnadas de sono,
rolam num rio dif cil e se transformam em desprezo.
Carlos Drummond de Andrade

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