Você está na página 1de 18
Finisterra, xxv, 50, Lisboa, 1990, p. 331-348. O GENERO EM GEOGRAFIA INTRODUCAO DE UM NOVO TEMA (’) IsaBeL MARGARIDA ANDRE A evolucéo da Geografia Humana ilustra bem a sucesso de concepgées cientificas sobre as comunidades humanas, em geral, e os comportamentos individuais, em particular. Na perspectiva da Geografia Tradicional Francesa, a Geografia Humana complementava a Geografia Fisica e as comunidades eram entendidas como elementos da paisagem, atribuindo-se-Ihes capacidades mais ou menos «transforma- doras»; os individuos enquadravam-se num cendrio geografico com caracteristicas especificas e particulares, e a organizacéo da comunidade processava-se, sobretudo, segundo uma base territorial. A articulagéo harmoniosa entre elementos naturais e elementos humanos transpunha-se, também, para as relacdes entre individuos, num quadro onde cada um desempenhava fungdes diversas mas complementares. A partir dos anos 50, a Nova Geografia tragou outros rumos, bem diferentes, & Geografia Humana, delineados, de (?) A utilizagdo do termo género 6 controversa, dado que a expressiio tem correspondido apenas a categoria gramatical. No entanto, a seme- Ihanga do que aconteceu na literatura anglo-saxénica onde se ampliou © significado do termo gender, parece vantajosa a sua utilizagéo para significar os comportamentos sociais associados a cada um dos sexos. Assim, género corresponde a uma categoria sociolégica e sexo a uma categoria biolégica. O tema deste artigo enquadra-se na investigagéo que se tem vindo a efectuar no 4mbito da dissertagéo de doutoramento. 332 algum modo, pela preméncia de conhecimentos no 4mbito do planeamento que sustentassem a reorganizagéo da economia mundial, iniciada no pdés-guerra. A Geografia Humana desligou-se claramente da Geografia Fisica: os comportamentos humanos passaram a ser avaliados de forma andloga onde quer que decorressem (na China ou na Guatemala, os individuos adquiririam bens no lugar central mais préximo). A procura de regras gerais, capazes de explicarem a ordem territorial e os comportamentos dos individuos em funcéo do impacto das distancias, implicou um maior recurso a teorias, métodos e técnicas de outras ciéncias. A nova perspectiva sistematica da organizacéo do espaco e dos comportamentos individuais mostrou-se de tal forma complexa que a compartimentagéio da Geografia Humana se tornou inevitavel. As divisdes territoriais que marcaram a investigagéo geografica até aos anos 50 — Geografia de Por- tugal, da Franga, das regides tropicais, da regido mediter- ranea..., foram sendo, progressivamente, substituidas por divisdes tematicas— Geografia urbana, rural, econémica, da populagao..., que, embora ja existentes nos trabalhos mono- graficos tradicionais, adquiriram, na Nova Geografia, um estatuto mais evidente de factores estruturantes da organi- zagéo interna da disciplina. Contudo, algo se manteve comum nestas «geografias humanas»: a concep¢do atomista e funcionalista dos individuos. Elementos da paisagem ou agentes da organizagao espacial, era suposto que as pessoas agissem individualmente, segundo as normas da sua civilizacéo ou mediante critérios de racio- halidade econdmica. . Os conflitos e as questées de ordem social que marcaram o final dos anos 60 impuseram novas preocupacées 4 Geografia Humana. Pode mesmo admitir-se que a Geografia Humana deu lugar 4 Geografia Social: sobrepondo-se aos comporta- mentos individuais, foi a organizacio social que passou a estar em causa. Nesse contexto, a Geografia, como as outras ciéncias sociais, encontraram no Marxismo algumas das principais chaves de leitura das sociedades. Os processos de descoloni- zacao, o subdesenvolvimento, as relacgdes entre superpoténcias, 333 os desequilibrios regionais ou os conflitos sociais urbanos eram facilmente interpretados 4 luz da luta de classes ou das con- digdes necessarias 4 acumulagao do capital. No entanto, passou a pér-se um problema essencial & Geografia: a interpretagéo marxista subvaloriza o papel do territério na organizag&o social, acusa mesmo algumas ana- lises geograéficas de camuflarem os conflitos sociais, permi- tindo que eles emerjam como questées territoriais. Até que ponto o impacto das distancias ou a diversidade dos espagos podem ser tidos como factores explicativos da organizagio das sociedades? A Geografia explica ou apenas diagnostica? E uma ciéncia ou um método? Independentemente dessas questdes existenciais, que parece n&o terem preocupado excessivamente os gedgrafos, a Geo- grafia aumentou o seu campo de intervengéo de forma con- sideravel durante os anos 70 e 80, alargando os referenciais teéricos, diversificando as tematicas e reformulando os métodos e as técnicas de anialise. Na Ultima década, as quest6es sociais nfo perderam importéncia na investigagéo, mas verificou-se que n&o se podem limitar as relacdes de classe ou as estratégias do capital. A definicio de grupos na sociedade nao se deve restringir aqueles que decorrem da organizacéo do sistema produtivo. O lugar dos individuos no sistema de emprego nfo é um dado isolado, constitui uma das vertentes da situacio que tém na sociedade, decorrente também da idade, do sexo, dos valores culturais, dos niveis e padrdées de consumo, das atitudes politicas... Nos varios dominios cientificos, e também na Geografia, alguns desses aspectos tém sido valorizados relativamente a outros: os comportamentos culturais e politicos ou as questdes relacionadas com o acesso ao consumo de bens e servicos foram alvo de especial atengio nos Ultimos anos. Apesar da diversidade tematica, manteve-se, até ha poucos anos, uma condicéo mais ou menos explicita sobre os limites de intervencéo da Geografia: as «paisagens», tradicionais, modelizadas ou sociais, s6 abrangiam o dominio ptblico, ou seja, a «intimidade» estava, de alguma forma, exclufda das preocupacées geograficas. 334 1. A EMERGENCIA DA PROBLEMATICA DO GENERO EM GEOGRAFIA A partir de meados da década de 80, alguns gedgrafos (gedgrafas, na quase totalidade dos casos) alertam para a necessidade de incorporar na Geografia Humana a componente género, procurando evidenciar que a organizacfo social e terri- torial engloba diferencas consideraveis entre homens e mulheres e que as relagdes entre ambos séo um elemento estruturador importante da sociedade, nao devendo ser entendidos apenas nas vertentes da privacidade, da intimidade ou da afectividade. Esta nova tematica tem suscitado varias criticas e apreensdes. Algumas séo comuns 4 maioria dos novos temas que se introduzem na disciplina e centram-se, em particular, na perda de identidade da Geografia. Outras, especificas 4 problematica do género, dizem respeito a eventuais efeitos nocivos de uma indisting&o entre preocupagdes pessoais e cientificas (também aqui se manifesta claramente a fronteira entre o que se considera privado e piblico), o que induziria uma utilizacaéo abusiva e ilicita da investigacéo cientifica. Embora n&o se considere pertinente o segundo tipo de criticas, importa ter presente situagdes andlogas: os estudos da segregacao racial do territério nao teraéo também implicitas, na maioria dos casos, intengdes pessoais de intervengéo no sentido de erradicar situagdes sociais que se consideram injustas? Entre as miltiplas divisdes da disciplina, existira também uma Geografia Humana «comprometida» (GARCIA- -RaMon, 1989), comprometida com a mudang¢a social, e uma outra descomprometida? As apreensées relacionadas com a identidade da Geografia merecem maior atengéo, mas remetem para um balanco critico da disciplina que, embora se considere necessério e urgente, ultrapassa largamente o Ambito deste trabalho. Contudo, convém explicitar aqui, de forma sintética, a concepeio de Geografia subjacente ao estudo a desenvolver e 0 modo como a questdo do género tem lugar nessa perspectiva. A Geografia Humana ou Social tem procurado compreender em que medida as caracteristicas intrinsecas ao territério, de ordem natural ou resultantes de transformacées tecnoldgicas, influenciam ou determinam os comportamentos dos individuos, dos grupos ou dos agentes sociais, culturais, econédmicos ou 335 politicos. Alguns desses comportamentos tém sido apresentados como eminentemente geograficos, pressupondo-se que as dis- tancias/acessibilidades séo a chave da sua explicacio. Assim sendo, determinado tipo de comportamentos, indi- viduais ou colectivos, deveriam ser privilegiados como objectos de estudo da Geografia e outros abandonados, por serem do ambito de outras ciéncias sociais. Contudo, a economia, o direito ou a sociologia focam diferentes especificidades dos comportamentos sociais. A sua complexidade, decorrente da multiplicidade de aspectos que os justificam, parece impedir, na maioria dos casos, uma compreensao global. O territério, como ponto de partida para o estudo dos fenémenos sociais, pode ser, em muitas situagdes, a melhor via para um conhecimento descompartimentado. Condigdes de varia ordem, cujo estudo compete a diversos dominios cienti- ficos, conjugam-se de miultiplas formas na defini¢io das manifestagées sociais e essa articulagio concretiza-se no territério. A Geografia pode ser entendida, assim, como a disciplina da confluéncia de muitas outras que permite, através de uma metodologia propria, a compreenséo integrada das realidades sociais. E nesta perspectiva que a questio do género se enquadra na investigagéo geografica. «Se n&o conhecermos os papéis desempenhados por cada um dos géneros (‘gender roles’) no funcionamento da sociedade, néo podemos esperar apresentar uma analise razoavel do comportamento espacial das mulheres e dos homens, nem das instituigdes que, por um lado, dependem desses comportamentos e, por outro, os influenciam». (Women and Geography Study Group of the Institute of British Geographers, 1984). 2. Campos ANALITICOS E PERSPECTIVAS A partir do final dos anos setenta, a questéo do género comegou a ganhar relevo na investigagéo geografica, em par- ticular no Reino Unido. Esse interesse relaciona-se claramente com a importancia que tem sido atribuida 4 situac&o desfa- 336 vorecida das mulheres por parte das instituigdes internacio- nais e, designadamente, da ONU: em 1795, realizou-se, na Cidade do México, a Conferéncia Mundial do Ano Internacional da Mulher, onde nao sé se manifestou o alerta para determi- nadas situagdes sociais consideradas inaceitaveis como ficou também esbocado um conjunto de medidas e intervengdes a desenvolver pelas Nagdes Unidas; em 1979, a Assembleia Geral aprovou a Resolugao 34/180, que deu origem & Convengiio para a Eliminacdo de Todas as Formas de Discriminagao contra as Mulheres; em 1980 e em 1985, realizaram-se, respectivamente, as conferéncias Mundiais de Copenhaga e de Nairobi, onde se concretizou e desenvolveu o empenhamento internacional no sentido de combater a exclusdéo social das mulheres (ONU, 1989). Questées como a contracepgio, o divércio, as novas formas de familia ou a excluséo das mulheres das principais decisdes politicas e dos cargos superiores das administracdes piblicas e das empresas tém emergido como problemas sociais preo- cupantes nos paises mais desenvolvidos. Paralelamente, as situagdes de profunda injustica, em muitos casos instituciona- lizada, que atingem as mulheres num grande numero de paises do Terceiro Mundo tém sido progressivamente denunciadas. A Geografia nao foi alheia a tais preocupagées e, no inicio dos anos oitenta, surgiu uma Geografia Feminista. & discutivel ou mesmo incorrecta, na nossa opiniao, tal adjectivagio da disciplina, utilizada, por exemplo, pelo Women and Geography Study Group of the Institute of British Geographers (WGSG/ /IBG), no trabalho publicado em 1984 e intitulado «Geography and Gender. An introduction to feminist geography». Importa, no entanto, salientar o caracter inovador dessas pesquisas e as suas principais linhas de orientacio. Estavam sobretudo em foco, nesses estudos, as diferencas e desigualdades sociais entre homens e mulheres e as suas consequéncias na organizacéo e utilizagdo do espaco. Embora excessivamente descritivas e limitadas a uma visio da socie- dade onde a diferenciagéo com base no género é nitidamente sobrevalorizada, essas andlises contribufram para uma refor- mulagaéo conceptual da Geografia Humana. Dicotomias como as que geralmente se estabelecem entre produg&o e reprodugio social, esfera da producdo e esfera 337 do consumo, trabalho e lazer ou entre trabalho formal e informal e outras com um caracter mais institucional, como a divisio entre Geografia Econémica e Geografia Social, so inoperativas e tém pouco significado quando se introduz a questo do género na anilise social (WGSG/IBG, 1984; Rose, 1987; PELLETIER, 1987; Gancta-RAMON, 1989). ‘A inclusio da vertente género no estudo do sistema de ‘emprego permite verificar que os valores «médios» tém pouco significado. As taxas de actividade, a estrutura por activi- dades e por profissdes, os niveis de qualificagio, as relacées contratuais ou o grau de sindicalizagdo sio profundamente diferenciados entre homens e mulheres. As interpretagdes das diferengas podem centrar-se mais no funcionamento do mereado de emprego ou na organizacao da instituigao familiar (WALBY, 1985), mas os dois factores explicativos tém, forcosamente, que surgir articulados. Muitos estudos tém defendido que o desenvolvimento econémico das tiltimas décadas aponta para uma situagio de crescente igualdade entre homens e mulheres: a participagéo das mulheres no mercado de emprego tem aumentado consi- deravelmente, as tarefas femininas tém-se diversificado, a discriminaco salarial tende a reduzir-se, ete. Algumas dessas tendéneias sao, de facto, facilmente comprovaveis; contudo, atendendo aos contextos sociais, aparentemente favordveis, onde se verificam (paises mais desenvolvidos), é problematico justificar o ritmo lento que apresentam; por outro lado, essa visdo da igualdade é parcial, ou seja, foca apenas o lado mais visivel da realidade, 0 que se observa no dominio piiblico. Se é verdade que a participagio social das mulheres aumentou na economia formal, na politiea, na cultura e noutras instincias da sociedade, é também verdade que as mulheres continuam a assegurar o trabalho doméstico, a assisténcia familiar e a educagio das criancas. Publico e privado, produgéo € reproducio, trabalho e lazer, trabalho formal e informal sio conceitos indissociaveis quando a problematica do género esté presente na andlise geogrdfica. «O desenvolvimento capitalista conseguin transmitir a ideia que a produgdo pode ser independente da sua con- digo basica, a reprodugdo da vida. Dois processos para- 338, lelos estéo na base desta falsa impressio de indepen- déncia: primeiro, a subordinagio da producao de subsis- téncia @ produgio de mercadorias; segundo, a privatizacao da reprodugdo, que a remete para a invisibilidade social». (BeNNuoLpr-THomsEN, 1984, p, 262). «...desde 0 inicio dos processos de suburbanizagéo, a estrutura urbana é 0 lugar de inscrigao de uma segregacio espacial entre o trabalho remunerado —esfera da pro- dugéo — e 0 trabalho doméstico—esfera do consumo e da reprodugdo social» (Rose, 1987, p. 207). Até meados da década de oitenta, as anilises geogréficas que contemplavam a vertente género focavam essencialmente as diferentes caracteristicas e papéis sociais dos homens e das mulheres tendo sido subestimados os processos que defi- nem as relagées sociais entre ambos, o funcionamento da instituigéo familiar ¢ a articulacio, regionalmente bem dife- renciada, entre a familia ¢ as outras organizagées da socie- dade, por um lado, ¢ entre as atribuigdes dos varios individuos no agregado ¢ o lugar que ocupam na comunidade, por outro. «Nas anilises regionais e urbanas, 0 papel dos géneros tem sido excessivamente enfatizado e, paralelamente, tem-se limitado a investiga¢éo ao Ambito das relacdes econémicas e dos locais de trabalho. A esfera doméstica & examinada apenas em fungio do emprego. De facto, tem sido prestada pouca atengao & articulagdo entre o mercado de trabalho, a familia e a comunidade no que respeita As desiguais relagdes de poder entre homens e mulheres» (BoWLBY et al., 1986, p. 328). +A perspectiva funcionalista do género sugere que as desi- gualdades entre homens e mulheres sio 0 resultado dos estereotipos sociais. Essa leitura néo questiona a origem desses estereotipos ¢ por isso nfio pode avaliar em que medida os géneros séo diferentes e desiguais...» (FOORD e Grecsow et al., 1986, p. 192). 339 3. Dots ExewpLos pe TemAticas INTEGRADORAS Entre as varias linhas de investigacéo que se tém vindo a delinear e cuja ligacéo se afigura, em muitos casos, incipiente, salientam-se duas pelo cardcter integrador que podem impri- mir ao estudo do género em geografia—a problemitica do trabalho doméstico ¢ a articulagéo entre patriarcado, capita- lismo e territério 3.1. A problemdtica do trabalho doméstico Como jé antes se referiu, no & possivel explicar a situa- cao das mulheres nos dominios piiblicos sem atender & orga- nizag&o do dominio privado, ou seja, ao processo de trabalho doméstico, entendido este em sentido amplo e incluindo néo s6 as tarefas de manutencio da habitagio e do agregado familiar, como a educagdo, a assisténcia, as redes de relagbes familiares e de vizinhanga e a aquisicao de bens e servicos. ‘As Ultimas décadas foram marcadas, nos paises desen- volvidos, pela emergéncia de dois processos aparentemente contraditérios: por um lado, assistiu-se & progressiva socia- lizagaio de alguns segmentos da reprodugéo social, em parti- cular no ambito da educagio e da satide, e, por outro, o tra- batho doméstico (e o lazer) adquiriu um carécter cada vez mais «privado», circunscrito ao espaco do agregado familiar e as relagdes entre os membros de um mticleo restrito, com- posto, na maioria dos casos, pelo casal e as criancas. © desenvolvimento capitalista, ao instaurar a total auto- nomizagio da produgao relativamente 4 reprodugio social, originou, consequentemente, a segregacéo geografica dos dois processos ¢ a divisdo rigida do tempo, ao longo do dia, do més (semana e fim de semana), do ano (trabalho e férias) e da vida (activa e inactiva) (CHABAUD-RYCHTER et ai., 1985). Neste processo, a instituicio familiar sofre grandes trans- formagées: ¢ nuclearizada, quebrando-se, assim, as antigas redes de solidariedade familiar; as tarefas domésticas alte- ram-se, registando-se uma creseente terciarizagio do tra- balho doméstico, ou seja, a produgio de servigos suplanta, progressivamente, a produgio de bens; a reprodugo social 6 partilhada entre o agregado ¢ as outras instituigdes sociais 340 ¢ a definigéo das normas por que se rege escapam cada vez mais ao dominio familiar (ARCHAMBAULT, 1985). Essas transformagées justificam a subvalorizagéo do trabalho doméstico na economia oficial, ignorando-o ou atri- buindo-Ihe um estatuto marginal, das mulheres, na medida em que permite a independéncia financeira) nio ori- ginou, tanto quanto se poderia esperar, uma situacéo de igualdade social. A maioria das mulheres continua a assegurar grande parte das tarefas de reprodugio social. No mereado de emprego, a populacdo feminina encontra-se especialmente nas tarefas menos qualificadas, mais repetitivas e pior remu- neradas; a sua progressio e mobilidade nas carreiras pro- fissionais é significativamente inferior & dos homens. Nas institutigées politicas, a participagéo das mulheres é franca- mente reduzida —nos parlamentos nacionais dos paises das Comunidades Europeias as mulheres representavam, nos mea- dos dos anos 80, 15% dos deputados. A articulacéo entre capitalismo e patriareado tem sido interpretada de modos diversos. Com base na sistematizagio claborada por SvLVIA WALBY (1986), podem resumir-se assim as varias concepgdes: a) A desigualdade entre géneros é teoricamente insigni- ficante face as relagdes de classe (a familia 6 entendida, nesta, eoncepedo, como uma unidade bisica na anélise da estrati- ficagio social). b) Concepedo funcionalista: as relagdes entre géneros, em termos de papéis sociais, sio consideradas diferentes mas igualitdrias, 343 c) As relagdes (de subordinacéo) entre géneros derivam das relagdes sociais capitalistas. Inclui-se nesta perspectiva grande parte do debate sobre a subalternizacao do trabalho doméstico. d) O patriarcado é um sistema de desigualdade social auténomo de qualquer outro. A sexualidade e a reproducaio sao a base desse sistema. «Capitalismo e patriarcado so estruturas relacionadas de forma contingente que, contudo, se interligam na especi- ficidade de periodos e lugares particulares. (...) As socie- dades ocidentais ‘sugerem’, pelo menos, quatro formas de relagdes necessérias entre homens e mulheres. Duas sao trans-historicas: a reprodugao biolégica e a heterossexua- lidade. As outras sao histérica e geograficamente especi- ficas: o casamento e a familia nuclear» (FOORD e GREGSON, 1986, p. 200 e 202). e) As relagdes sociais patriarcais e capitalistas estio de tal forma interligadas que se pode considerar a existéncia de um tnico sistema — patriarcal capitalista. «O desenvolvimento das relacdes de producio capitalistas foi acompanhado por mudancas noutros dominios. Em particular, deram-se rupturas nas relacdes existentes entre homens e mulheres. A antiga forma patriarcal da producio doméstica foi abandonada, os padrées estabelecidos para as relagdes entre os dois sexos foram postos em causa. Este processo foi desigual, tanto em extensio como em natureza, nas diferentes partes do Pais, sendo sobretudo influenciado pelas caracteristicas das estruturas econé- micas emergentes. Em cada area, capitalismo e patriar- cado articulam-se e acomodam-se um ao outro de formas diferentes» (MCDOWELL e Massry, 1986, p. 128). Independentemente da medida em que se sobrevalorizam ou se subestimam, na analise social, as relagdes entre homens e mulheres, os argumentos utilizados para justificar as difc- rentes concepgdes antes referidas podem dar um contributo imprescindivel para compreender um aspecto que se julga 344 essencial: a articulacao entre classe e género e a sua expressdo territorial. «...as relagdes sociais de patriarcado mantém-se no e através do territério e qualquer modificagaéo dessas rela- gdes implica alteragdes de ordem espacial no quadro de vida. Assim, as reconfiguracdes espaciais que atingem a esfera dita privada sio susceptiveis de provocar mudangas no quadro construido que, por sua vez, podem modificar as condigées de produgao econémicas» (SHGUIN e VILLENEUVE, 1987, p. 190). A desigualdade social entre homens e mulheres e as rela- gdes que se estabelecem entre ambos tém amplitudes e formas diferenciadas nos varios grupos sociais e sao condicionadas pelo tipo de desenvolvimento social e econdmico que marca os diferentes territérios. A maior parte das analises de estratificacdo social baseia- -se no lugar ocupado pelo individuo no sistema de emprego. Nessa perspectiva, 6 complexo atribuir um estatuto social ao agregado familiar, na medida em que se cruzam situacdes individuais com estratégias de grupo: na realidade, os varios membros do agregado sido entendidos individualmente na esfera da producaéo e comportam-se como uma unidade no campo da reprodugao social. Assim sendo, torna-se necessdrio integrar os dois dominios para compreender a articulagao entre classe e género (WALBY, 1986-B; MANN, 1986). A andlise das dife- rentes manifestagées territoriais dessa interacgio pode con- tribuir bastante para o seu conhecimento. Os processos ligados & suburbanizagéo, por exemplo, apontam algumas linhas de investigagdo interessantes, designadamente porque evidenciam um aspecto relevante: as restrigdes 4 mobilidade geografica associadas ao tipo de insercéo no mercado de emprego (CouTras, 1987). Embora nao se conhegam estudos conclusivos sobre a articulagéo entre classe e género, podem contudo adiantar-se algumas pistas de analise. Se forem tidos em conta os diversos factores que con- tribuem para a realizagio pessoal das mulheres (SIMONSEN, 1991), pode-se delinear o esboco de uma tipologia que conjuga 345 género e estatuto social. Esses factores sao susceptiveis de serem agrupados nas seguintes categorias: a) familia — filhos; b) familia —marido—prestigio social; c) carreira profissional. O grupo que se enquadra na tiltima categoria parece ser aquele onde a igualdade entre géneros é maior. A coexisténcia, no mesmo agregado, de dois individuos cuja afirmagio pessoal passa por parametros idénticos (*) coloca-os num plano mais igualitario que permite e obriga a uma partilha das tarefas familiares. Por outro lado, é neste grupo que se registam os graus de instrugéo mais elevados da populacao feminina, o © que origina a adopeao de padrées culturais que rejeitam situagdes de subordinac&o. Paralelamente, o nivel de rendi- mentos permite que uma parcela significativa do trabalho doméstico seja exteriorizada. Esta situacio caracteriza um determinado grupo social com particular expresséo nas areas urbanas, onde a mobilidade e o acesso aos servicos estatais ou mercantis de reproducio social é mais facil. & também neste grupo que a familia assume um caracter menos definitivo e onde o recurso ao divércio é frequente. As mulheres, empregadas ou nio, cuja realizagio pessoal passa prioritariamente pela familia, seja pelos filhos ou pelo prestigio social induzido pela carreira do marido, integram-se em estratos sociais distintos, situados mesmo em extremos opostos da hierarquia, mas tém em comum um estatuto de subordinagio e dependéncia. Neste conjunto, podem distinguir-se, contudo, situacdes distintas. Nos grupos sociais mais desfavorecidos, sio comuns dois tipos de situagao: os casos em que o emprego da mulher nio se justifica dada a impossibilidade de fazer face As despesas com a reproducdo social exteriorizada dai decorrentes; as mulheres cujo emprego significa apenas um rendimento impres- cindivel ao agregado familiar, mas que é vulgarmente entendido como uma receita familiar complementar e secundaria e, (?) A reflexdéo sobre os objectivos de realizagio pessoal dos homens n&o esté ainda suficientemente elaborada; no entanto, as leituras do quotidiano sugerem que esses objectivos incidem sobretudo na carreira profissional e no lazer, sendo a familia entendida, na maioria dos casos, como um factor de realizagio complementar e relativamente marginal. 346 nalguns casos, transitéria. Nestas situagdes, 0 trabalho domés- tico assume um papel central e limita fortemente a progressio profissional. As duas situagdes parecem ter expressées territoriais distintas: a primeira deve ocorrer sobretudo nas 4reas rurais e/ou industriais e a segunda nas areas urbanas e suburbanas o que se liga nao sé com diferentes valores culturais mas, sobretudo, com as oportunidades de emprego para as mulheres e com a localizacéo dos equipamentos sociais. Numa situagio bem diferente e no topo da hierarquia social, encontra-se o grupo de mulheres cuja realizagéo passa pelo prestigio social que se associa 4 carreira profissional do marido. Neste caso, pode-se admitir que a subordinagao decorre também das tarefas familiares, mas o trabalho doméstico é substituido pelas fungdes de representagao social. Este grupo & pouco homogéneo, englobando mulheres para quem o casa- mento constitui um veiculo privilegiado de ascensdo social e outras para quem representa apenas a manutengéo do quadro de vida existente na familia de origem. Até ha pouco tempo, estas mulheres nao integravam, na sua maioria, o mercado de emprego, mas com a crescente difusio de modelos culturais que incitam a valorizagéo pessoal, tém vindo a participar cada vez mais em actividades profissionais, adequadas, tanto quanto possivel, ao seu estatuto social, nomeadamente no 4mbito da assisténcia social ou da cultura. O nivel de instrucio é também muito diferenciado neste grupo, na medida em que n4o cons- titui um factor decisivo para a afirmagao individual. NOTA FINAL Sendo bastante recente o desenvolvimento da problematica do género na investigagéo geografica, os estudos sobre este tema, cujo n&mero aumentou consideravelmente a partir dos Ultimos anos da década de oitenta, reflectem sobretudo a ten- tativa de um enquadramento teérico consistente, procurando pontos de referéncia em dominios variados das ciéncias sociais. O campo analitico é também diversificado e definido em torno de varias tematicas cuja articulagéo nem sempre se apresenta de forma clara. 347 Procurou-se, neste artigo, evidenciar as principais linhas de investigacéo e focar mais pormenorizadamente os aspectos que surgem com um cardcter mais integrador das inimeras questdes que emergem na problematica do género em geografia. REFERENCIAS BIBLIOGRAFICAS ARCHAMBAULT, E. (1985) — «Travail domestique et emploi tertiaire subs- titution ou complémentarité?», em VERNIGRES, M. (coord.) — L’em- ploi du tertiaire, Ed. Economica, Paris. BENNHOLDT-THOMSEN, V. (1984)— «Towards a theory of the sexual division of labor», SMITH, J. et al. (ed.)— Households and the world-economy, Explorations in the world — economy, vol. 3, Beverly Hills, p. 252-271. BoWLBY, S.; FoorpD, J.; McDOWELL, L. (1986) — «The place of gender in locality studies», Area 18(4), p. 327-331. CHABAUD-RYCHTER, D. et al, (1985) — Espace et Temps du Travail Domes- tique. Librairie des Méridiens, Paris. CouTRAS, J. (1987) — Des villes traditionnelles aux nowvelles banlieues, Pespace public au féminin. Ed. Sedes, Paris. FoorD, J.; GREGSON, N. (1986) — «Patriarchy: towards a reconceptua- lisation», Antipode 18: 2, p. 186-211. GARCIA-RAMON, M. D. (1989) —«Género, espacio y retorno: hacia una renovaci6n conceptual de la geografia? una introduccién», Documents WAnilisi Geogrdéfica, Barcelona. MANN, M. (1986) —

Você também pode gostar