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Interesse geral

Prescrição de benzodiazepínicos
por clínicos gerais
David Gonçalves Nordon1
Carlos von Krakauer Hübner2

Centro de Ciências Médicas de Biológicas de Sorocaba

INTRODUÇÃO MÉTODOS
Os benzodiazepínicos se tornaram disponíveis a partir da Foi feita uma revisão da literatura, por meio do portal da
década de 1960 e, desde então, estão entre os psicofármacos Bireme (Biblioteca Regional de Medicina, www.bireme.br),
mais prescritos.1 No Brasil, é a terceira classe de drogas mais pesquisando nas seguintes bases de dados: Medline (Medical
prescrita,2 e 5,6% da população já os usou na vida (contra 8,3% Literature Analysis and Retrieval System Online), Lilacs (Li-
nos Estados Unidos).3 Entre as décadas de 70-80, seu potencial teratura Latino-Americana e do Caribe em Ciências da Saúde)
de criação de dependência e seus efeitos colaterais passaram a e Biblioteca Cochrane de acordo com a estratégia descrita na
ser mais estudados, e no mundo todo se iniciou uma política de Tabela 1.
contenção de seu uso, visível, no Brasil, com o formulário azul.
Devido a isso, a prescrição de benzodiazepínicos, antes uma pa- RESULTADOS E DISCUSSÃO
naceia a todos os problemas relacionados à ansiedade e insônia, A quantidade de artigos encontrados de acordo com o
ficou restrita a tratamento de quadros agudos de ansiedade, cri- tipo, a sua estratégia de busca e a base de dados utilizada estão
ses convulsivas e como sedativo para cirurgias, de caráter breve descritos na Tabela 1. Na base de dados Medline, foram en-
e com a menor quantidade possível.4 contrados 336 artigos (alguns encaixados pela base de dados
É consenso, atualmente, que benzodiazepínicos causam to- como mais de um tipo de publicação); na Lilacs, 11 artigos,
lerância e dependência com o uso prolongado (segundo alguns e na Biblioteca Cochrane, foram encontrados 211 artigos.
autores, mais que quatro semanas). Ademais, seu uso contínuo Dentre todos estes, foram selecionados os artigos relacionados
provoca efeitos colaterais mais graves do que a simples sono- exclusivamente à prescrição de benzodiazepínicos por clíni-
lência diurna, como perda de memória, de função cognitiva, cos gerais ou no atendimento primário, nas línguas inglesa,
e desequilíbrio, levando a uma maior incidência de quedas em espanhola, portuguesa e francesa, totalizando 10 artigos; ne-
idosos.5-8 Entretanto, tendo em vista a sua perda de eficácia nhum deles, infelizmente, é brasileiro ou sequer da América
dentro de quatro meses, acredita-se atualmente que a depen- Latina, mostrando o quão escassa é a pesquisa a respeito em
dência de benzodiazepínicos possa ter ultrapassado o fisiológico nosso país.
para se tornar algo comportamental, ou seja, a pessoa se torna
dependente da função do que acha que o medicamento executa Características dos pacientes
e do hábito de tomá-lo.9,10 O uso de benzodiazepínicos é mais comum em mulheres,
A maioria dos problemas de origem psicológica ou psicos- de duas a três vezes mais do que em homens, e aumenta con-
social é vista primariamente pelo clínico geral, no atendimen- forme a idade.11-14 Um estudo espanhol11 classificou o usuário
to primário. Se a prescrição de benzodiazepínicos é iniciada mais comum como uma mulher de 38 a 70 anos, com estudos
neste momento, e erroneamente, pode conduzir a um círculo primários ou nenhum estudo, casada ou com parceiro. Já outro
vicioso que dura, muitas vezes, vários anos. Sendo assim, o estudo13 relacionou o uso de benzodiazepínicos como três vezes
conhecimento a respeito dos benzodiazepínicos e a sua pres- mais provável por pacientes com transtornos psiquiátricos. Um
crição correta por clínicos gerais são de suma importância. Por estudo escandinavo14 identificou que, dentre as prescrições de
isso, este trabalho tem como objetivo revisar artigos sobre a benzodiazepínicos, 52,7% eram direcionadas para pacientes de
prescrição de benzodiazepínicos por clínicos gerais, na aten- 65 anos ou mais e de quantidades duas vezes maiores de medi-
ção primária. camento que para adultos de 20 a 29 anos. 80% das prescrições

1
Acadêmico do quarto ano de Medicina da Pontifícia Universidade Católica de São Paulo, Sorocaba, São Paulo.
2
Doutor em Psiquiatria pela Heidelberg Universität e professor da Faculdade de Ciências Médicas da Pontifícia Universidade Católica de São Paulo, Sorocaba, São Paulo.

Diagn Tratamento. 2009;14(2):66-9.


David Gonçalves Nordon | Carlos von Krakauer Hübner
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Tabela 1. Base de dados, estratégia de busca e resultados dos artigos levantados


Base de dados Estratégia de busca Resultados
Medline (Medical Literarure Analysis “benzodiazepinas” [descritor de 194 estudos controlados aleatórios
and Retrieval System Online) assunto] AND “prescrição de 16 estudos de coorte
medicamentos” [descritor de assunto]
15 revisões sistemáticas
45 revisões narrativas
10 relatos de casos
10 editoriais
46 cartas
Lilacs (Literatura Latino-Americana “benzodiazepinas” [descritor de 6 estudos controlados e aleatórios
e do Caribe em Ciências da Saúde) assunto] AND “prescrição de 1 revisão sistemática
medicamentos” [descritor de assunto]
1 revisão narrativa
2 cartas
1 relato de caso
Biblioteca Cochrane “benzodiazepines and prescription” Revisões sistemáticas da Cochrane: 55 (Revisões completas:
48, protocolos: 7)
Resumos de revisões sistemáticas com qualidade avaliada: 3
Registro Cochrane de Ensaios Controlados: 138
Sobre a Colaboração Cochrane: 4
Outras Revisões Publicadas: 1
Avaliações Econômicas do National Health Services (NHS): 10

eram repetidas, em média, sendo de 86,9% em pacientes com demonstrou que o maior motivo de prescrição de benzodia-
65 anos ou mais. zepínicos era a queda do limiar de tolerância da população
ao mal-estar emocional causado pela vida atual.16 Ademais, a
Características dos clínicos gerais prescrição pode ser vista, também, como uma forma de ajudar
Um estudo sueco12 demonstra que, na prescrição geral de o paciente e se sentir útil.18 Um estudo escandinavo18 mostrou
psicotrópicos, as médicas mais novas têm certa tendência a que os clínicos gerais iniciavam a prescrição para permitir que
prescrever mais para mulheres e com maior frequência em geral o paciente funcionasse propriamente em sua vida social ou
do que homens e médicos (homens ou mulheres) mais velhos. profissional, para descansar de seus problemas ou reduzir o
Por outro lado, um estudo canadense15 específico para benzo- sofrimento. Por fim, a prescrição poderia ser feita como um
diazepínicos de longa duração relata que as chances de pres- modo de manter bom relacionamento com o paciente, tendo
crição aumentavam se o médico era homem, formado como em vista que os médicos tinham medo das consequências da
generalista e antes de 1959. Ademais, os que prescreviam com negação da prescrição da receita, em especial para pacientes já
maior frequência tendiam a ter mais pacientes mulheres e me- bem conhecidos.12,18
nos pacientes de quadros agudos em seus consultórios.
Adequabilidade da prescrição
Motivos da prescrição Não há nenhum estudo que se dedique exclusivamente a
O motivo mais citado e comum em todos os artigos revisa- avaliar a adequabilidade das prescrições de acordo com o trans-
dos foi a falta de tempo,12,16-18 o que impediria outras orienta- torno psiquiátrico. Contudo, tendo em vista os dados obtidos
ções, também importantes, para as queixas de insônia e ansie- sobre a incidência, os motivos e a duração das prescrições, ficou
dade. Outro motivo foi a falta de pagamento por diagnósticos evidenciado por um ou outro aspecto que a maioria das prescri-
psiquiátricos.16,17 Outros motivos podem ser o fato de clínicos ções é inadequada em diversos estudos.12,14,16,17,19
gerais geralmente subestimarem a quantidade de seus pacien- Um estudo holandês19 demonstrou que clínicos gerais diag-
tes que fazem uso de benzodiazepínicos ou a gravidade deste nosticaram um problema de saúde mental em 13,2% dos par-
uso, subestimarem os efeitos colaterais das drogas,16-18 ou até ticipantes do estudo, sendo um terço psicossocial e um quarto
mesmo verem as guidelines como inadequadas à realidade.17 Já de alterações de humor. Eles próprios trataram 86% destes e
a superprescrição para idosos pode se dever não só aos fatos prescreveram um psicotrópico (em maioria antidepressivos e
citados, como também à avaliação de que os benefícios do uso benzodiazepínicos) para 52%. Já um estudo escandinavo14 de-
eram maiores que o risco,14,17 e que o uso não era tão perigo- monstrou que, de 3.452 prescrições avaliadas, apenas uma in-
so por idosos quanto por mais jovens.14 Um estudo espanhol cluía informações sobre a duração do tratamento.

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CONSIDERAÇÕES FINAIS 2001;36(8):1053-69.


Atualmente, estamos conduzindo um trabalho sobre pres- 3. Centro Brasileiro de Informações sobre Drogas Psicotrópicas (CEBRID). II
levantamento domiciliar sobre o uso de drogas psicotrópicas no Brasil: estudo
crição de benzodiazepínicos em uma Unidade Básica de Saúde
envolvendo as 108 maiores cidades do Pais. 2005. CEBRID: São Paulo; 2005.
(UBS) de Sorocaba, São Paulo, através do qual pretendemos Disponível em: http://www.unodc.org/pdf/brazil/II%20Levantamento%20
quantificar a porcentagem de pacientes atendidos que fazem Domiciliar%20Dr%20Elisaldo%20Carlini_alterado2.pdf. Acessado em 2009
uso de benzodiazepínicos, há quanto tempo e por qual razão. (05 fev).
Em resultados preliminares, já podemos observar que 10% dos 4. American Psychiatric Association. Benzodiazepine dependence, toxicity,
and abuse: a task force report of the American Psychiatric Association.
frequentadores da UBS utilizam tais medicamentos, a maioria
Washington: American Psychiatric Association; 1990.
(75%) há mais de três anos, e a grande maioria para queixas de 5. O’Brien CP. Benzodiazepine use, abuse, and dependence. J Clin Psychiatry.
insônia e ansiedade (50% e 34,7%). 2005;66(Suppl 2):28:33.
6. Bernik MA. Conseqüências adversas do uso continuado de tranqüilizantes
CONCLUSÕES benzodiazepínicos: tolerância, dependência e prejuízos nos desempenhos
Não há trabalhos brasileiros avaliando a prescrição de benzo- individuais. Rev Psiquiatr Clín (São Paulo). 1996;23/24(4/3):36-8.
7. Balestrieri M, Marcon G, Samani F, et al. Mental disorders associated with
diazepínicos na atenção primária, o que não deveria ocorrer em
benzodiazepine use among older primary care attenders--a regional survey.
um sistema tão completo e complexo como o Sistema Único de Soc Psychiatry Psychiatr Epidemiol. 2005;40(4):308-15.
Saúde (SUS). A bibliografia é escassa e restrita a países de primei- 8. Sim MG, Khong E, Wain TD. The prescribing dilemma of benzodiazepines.
ro mundo, o que limita e pode alterar a amostra. O maior foco Aust Fam Physician. 2007;36(11):923-6.
dos trabalhos é sobre a prescrição para pacientes idosos e não há 9. Voyer P, McCubbin M, Cohen D, Lauzon S, Collin J, Boivin C. Unconventional
indicators of drug dependence among elderly long-term users of
estudos sobre a prescrição para pacientes jovens, exclusivamente.
benzodiazepines. Issues Ment Health Nurs. 2004;25(6):603-28.
A análise dos artigos pôde demonstrar que os benzodiazepínicos 10. de las Cuevas C, Sanz E, de la Fuente J. Benzodiazepines: more “behavioural”
são mais prescritos para mulheres (de duas a três vezes mais que addiction than dependence. Psychopharmacology (Berl). 2003;167(3):297-303.
para homens) e idosos, aumentando conforme a idade. Os que 11. Escrivá Ferrairó R, Pérez Díez A, Lumbreras García C, Molina París J, Sanz
mais prescrevem são homens de formação mais antiga e gene- Cuesta T, Corral Sánchez MA. Prescripción de benzodiacepinas en un centro
ralistas. O principal motivo para a prescrição é o tempo escasso de salud: prevalencia, cómo es su consumo y características del consumidor.
[Benzodiazepine prescription at a health center: prevalence, its use and user
da consulta, que impede que outras técnicas sejam utilizadas;
characteristics]. Aten Primaria. 2000;25(2):107-10.
além disso, é importante notar que a necessidade de o médico ser 12. Bendtsen P, Hensing G, McKenzie L, Stridsman AK. Prescribing
aceito pelo paciente e a sua empatia por ele faz com que o ben- benzodiazepines--a critical incident study of a physician dilemma. Soc Sci
zodiazepínico seja mais facilmente prescrito. A superprescrição Med. 1999;49(4):459-67.
também pode ocorrer ao se subestimarem os efeitos colaterais 13. González Rubio MI, Rojas Castillo G, Díaz Vargas B. Uso de psicofármacos por
consultantes al nivel primario. [Use of psychoactive drugs by outpatients at
das drogas. Todos os estudos que falaram a respeito citaram que
the primary care level]. Rev Psiquiatr (Santiago de Chile). 1995;12(3/4):186-9.
as prescrições são inadequadas, por um ou outro motivo. Tam- 14. Straand J, Rokstad K. General practitioners’ prescribing patterns of
bém é notável que as prescrições raramente vêm acompanhadas benzodiazepine hypnotics: are elderly patients at particular risk for
de instruções com relação à duração do tratamento. Assim, re- overprescribing? A report from the Møre & Romsdal Prescription Study.
comenda-se que todos estes fatores sejam levados em conta e, na Scand J Prim Health Care. 1997;15(1):16-21.
prescrição de um benzodiazepínico, siga-se o guideline para tal. 15. Monette J, Tamblyn RM, McLeod PJ, Gayton DC. Characteristics of physicians
who frequently prescribe long-acting benzodiazepines for the elderly. Eval
Health Prof. 1997;20(2):115-30.
INFORMAÇÕES 16. Fernández Alvarez T, Gómez Castro MJ, Baides Morente C, Martínez Fernández
Endereço para correspondência: J. Factores que influyen en la prescripción de benzodiacepinas y acciones
Faculdade de Ciências Médicas da Pontifícia Universidade Católica de São para mejorar su uso: un estudio Delphi en médicos de atención primaria.
Paulo — Campus Sorocaba [Factors that affect the prescription of benzodiazepines and actions to
Praça Dr. José Ermírio de Moraes, 290 improve their use: a Delphi study of primary care doctors]. Aten Primaria.
Jardim Faculdade 2002;30(5):297-303.
Sorocaba (SP) — CEP 18030-095 17. Cook JM, Marshall R, Masci C, Coyne JC. Physicians’ perspectives on
Tel. (15) 3211-0212 prescribing benzodiazepines for older adults: a qualitative study. J Gen
Fax. (15) 3211-0212 Intern Med. 2007;22(3):303-7.
E-mail: medi.david@hotmail.com 18. Anthierens S, Habraken H, Petrovic M., Christiaens T. The lesser evil?
Initiating a benzodiazepine prescription in general practice: a qualitative
Fontes de fomento: nenhuma study on GPs’ perspectives. Scand J Prim Health Care. 2007;25(4):214-9.
Conflito de interesse: nenhum 19. van Rijswijk E, Borghuis M, van de Lisdonk E, Zitman F, van Weel C. Treatment of
mental health problems in general practice: a survey of psychotropics prescribed
REFERÊNCIAS and other treatments provided. Int J Clin Pharmacol Ther. 2007;45(1):23-9.
1. Rosenbaum JF. Attitudes toward benzodiazepines over the years. J Clin
Psychiatry. 2005;66(Suppl 2):4-8. Data de entrada: 11/8/2008
2. Kapczinski F, Amaral OB, Madruga M, Quevedo J, Busnello JV, de Lima MS. Data da ultima modificação: 19/03/2009
Use and misuse of benzodiazepines in Brazil: a review. Subst Use Misuse. Data de aceitação: 23/3/2009

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RESUMO DIDÁTICO
1. No Brasil, benzodiazepínicos são a terceira classe de drogas mais prescrita, e 5,6% da população já os usou na vida.
Não há trabalhos brasileiros avaliando a prescrição de benzodiazepínicos na atenção primária, o que não deveria
ocorrer em um sistema tão completo e complexo como o Sistema Único de Saúde.
2. O uso de benzodiazepínicos é mais comum em mulheres, de duas a três vezes mais do que em homens, e aumenta
conforme a idade.
3. Dentre as prescrições de benzodiazepínicos, 52,7% eram direcionadas para pacientes de 65 anos ou mais e de
quantidades duas vezes maiores de medicamento que para adultos de 20 a 29 anos.
4. As chances de prescrição aumentam se o médico é homem, formado como generalista e antes de 1959.
5. O motivo mais citado e comum para a prescrição de benzodiazepínicos em todos os artigos revisados é a falta de
tempo, que impediria outras orientações, também importantes, para as queixas de ansiedade e insônia.
6. Clínicos gerais geralmente subestimam a quantidade de seus pacientes que fazem uso de benzodiazepínicos
ou a gravidade deste uso, os efeitos colaterais das drogas, ou até mesmo veem a guideline como inadequado à
realidade.

Diagn Tratamento. 2009;14(2):66-9.

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