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WMTTIEURD ([Fa4 102 Histéria das teorias da comunicagao tico sob 0 controle de uma totalidade estatal, da qual a sociedade civil estaria exclufda. O aparelho é defi- nido de uma vez por todas. Esteja ele sob o regime do servigo ptiblico ou derive da légica comercial, por exemplo, pouco importa. A estrutura aparece como congelada, fora do tempo e do espaco. Os termos utilizados pelo filésofo para caracterizar essa missiio organica evocam a tese de manipulagao vertical, A crise que atinge, no final dos anos 70, a teoria estrutural das relagdes sociais, como o conjunto dos grandes sistemas explicativos, gira precisamente em torno da questo das mediagdes e do lugar do sujeito, do ator iéneie 3. Cultural Studies Aciltura do pobre O surgimento de uma hicrarquizagao das formas culturais néo demorou a preocupar os intelectuais britanicos. A divisio tripartite da cultura (refinada, medfocre e brutal) aparece, na verdade, nos escritos do inglés Matthew Arnold (1822-1888) em seu livro Culture and Anarchy, publicado em 1869 e reeditado Pela Universidade de Cambridge em 1935, data sig- nificativa, A corrente que ir se desenvolver nos anos 60 ¢ 70 sob 9.nome de Cultural Studies tem sua origem distante nos estudos de critica literaria de Frank Raymond Leavis (1895-1978), publicados nos anos 30. Mass Civilisation) and Minority Culture (1930) pre- — 102-0 TE Indtistria cultural, ideologia e poder 103 tende servir de guia para ajudar os alunos na defesa contra a cultura comercial. A idéia de Leavis 6 a de que 0 desenvolvimento do capitalismo industrial e suas expressdes culturais (nessa época, trata-se so- bretudo do cinema) tem efeito pernicioso sobre as diversas formas da cultura tradicional, tanto do povo como da clite. Leavis ¢ o grupo reunido em torno d revist fundada em 1932, pretendem ut zar a escola para difundir 0 conhecimento dos valo- liter: Mesmo habitado pela nostalgia da alta cultura ¢ da grande tradigao literéria que suposta- mente contém os valores “superiores” da era pré-in- dustrial, Leavis rompe com a posi¢&o conservador: que caracteriza a critica literaéria da época. ‘De ori- gem modesta, é 0 primeiro tedrico da literatura in- glesa a penetrar nos bastides da aristocracia que sio Oxford e Cambridge. Opde-se francamente ao capi- talismo industrial como sistema e ao lugar que nele assumem os meios de comunicagdo de massa em seu desenvolvimento na Gra-Bretanha. Como nota ‘Terry Eagleton, especialista em teoria literdria, “Scrutiny ndo é somente uma revista, é 0 centro de uma cruza- da moral ¢ cultural: 0 que se espera de seus p: ios 6 que se dirijam as escolas e universidades para lutar e oferecer, mediante o estudo da literatura, as respostas complexas, maduras, sensatas ¢ mo- Ss (Lermos-chave da Scrutiny) que per- duos sobreviver na sociedade me- canizada dos ‘romances-sabonete’, do trabalho alienante, das propagandas estipidas e dos meios de comunicagio de massa embrutecedores” (Eagleton, 1983] 104 Historia das teorias da comunicagao Com preocupagao educativa, a tradicio leavisiana lega, sobretudo, uma abordagem das diferentes for- mas de produgao literdria baseada na andlise textual, na pesquisa do sentido e dos valores socioculturais no que ela se opée aos métodos da escola funcionalista. Essa tradigdo € assumida nos anos 50, que véem a expansio do sistema escolar por meio de um movi- mento pedagégico no qual se engaja uma geragao de professores do secundério que, também eles prove- nientes de meios modestos, valorizam, diferentemen- te da teoria elitista de Leavis, os gostos dos alunos da classe operdria, Em 1957, Richard Hoggart (nascido em 1918), professor de literatura inglesa moderna, publica The Uses of Literacy (traduzido para o francés em 1970 sob 0 tftulo algo enganador de La Culture du pauvre). Descreve as transformagées do modo de vida e das praticas (the whole way of life) da classe operaria (0 trabalho, a vida sexual, a familia, o lazer). Publicado no ano em que é inaugurada a televisio comercial, portanto antes de sua introdugao entre as classes Populares, a obra de Hoggart ¢ a0 mesmo tempo um elogio das formas de vida tradicionais das comunida- des da classe operdria de onde ele saiu, que resistem a cultura comercial, e uma critica severa as expres- soes dessa cultura. No ano seguinte, Raymond Wil- liams (1921-1988), entéo ensinando em uma insti- tuigdo de formagao dos trabalhadores, publica Culture and Society (1780-1950}, onde critica a dissociagdo muito freqiientemente praticada entre cultura e sociedade. Indiistria cultural, ideologia e poder 105 Em 1964, a obra de Stuart Hall e Paddy Whannel, The Popular Arts, encerra esse periodo que viu as andlises desses diferentes autores atendendo a uma demanda proveniente da escola O Centro de Birmigham Ainda em 1964 6 fundado, na Universidade de Birmingham, o Centre of Contemporary Cultural Studies (CCCS), centro de estudos em nfvel de dou- torado sobre as “formas, praticas ¢ instituigdes cul- turais ¢ suas relagdes com a sociedade ¢ a transfor- magao social”. Richard Hoggart é seu primeiro dire- tor, Em 1968, quando se torna diretor-geral adjunto da UNESCO, Stuart Hall (nascido em 1932), de ori- gem jamaicana, assume seu lugar, até 1979. O centro conhece seu auge durante esse perfodo, que coincide com 0 perfodo de ouro da New Left. Em 1972 cria a revista Working Papers in Cultural Studies (WPCS). O Centro de Birmingham reconhece sua idéia fun- dadora nas obras de Hoggart, de Williams e do his- toriador Edward P. Thompson (1924-1993). A obra de R. Williams, The Long Revolution (1965), marea uma dupla ruptura. Em primeiro lugar, com a tradigdo literdria que situa a cultura fora da sociedade, pondo em seu lugar uma definigao antro- poldgica: a cultura é 0 processo global por meio do qual as significagdes sao social e historicamente construfdas; a literatura e a arte so apenas uma parte da comunicagio social. Ruptura, em segundo lugar, com um marxismo redutor: Williams posiciona-se em 106 Histéria das teorias da comunicagao 106 _Histéria das teorias da 6 favor de um marxismo complexo,.que permite estu- dar a relagéo entre a cultura e as outras praticas Sociais; ele debate o primado da base sobre a supe- restrutura, que reduz a cultura submetendo-a a de- terminagao social e econémica. Nisso, esté em unfs- Sono com um movimento de idéias trabalhado pela intelligentsia de esquerda na Europa como um todo, movimento que teve como precursores os filésofos da escola de Frankfurt. Desde os seus primeiros traba- thos sobre a mfdia, Williams critica ‘0 determinismo tecnol6gico. Em cada uma de suas intervengées nessa rea, ele estuda as formas histéricas assumidas em cada realidade pelas instituigdes mididticas, a televi- sao, a imprensa, a publicidade (Williams, 1960, 1974, 1981) Em The Making of the English Working Class, (1968), E. P. Thompson inicia uma polémica com R. Williams a respeito de The Long Revolution: acusa- -0 de permanecer excessivamente tributdrio de uma tradigao literdria evolucionista, que sempre se refere a cultura do singular, ao passo que o trabalho dos historiadores revela tratar-se de culturas no plural, ¢ que a histéria é feita de lutas, tensdes e conflitos entre, culturas e modos de vida, conflitos intimamen_. te ligados as culturas e formagées de classe. Multiplas influéncias enriquecem essa matriz conceitual. Em primeiro lugar, o interacionismo social da escola de Chicago, que vai ao encontro da preo- cupagio de certos pesquisadores do Centro de traba- lhar numa dimensao etnogrifica e analisar valores ¢ Significagées vividas, maneiras pelas quais as cultu- Industria cultural, ideologia ¢ poder 107 ras dos diferentes grupos se comportam diante da cultura dominante, “definigdes” que dao os atores sociais sobre sua prépria “situagao”, condigdes em que vivem. Essa tradigao de interacionismo cruza-s com uma tradicao etnografica britanica que renovou a maneira de fazer historia social, a saber, a partir das mulheres, Em busca de um marxismo heterodoxo, reléem os estudos de histéria literaria do filésofo htingaro Georg Lukacs, especialmente em Histéria e conscién- cia de classe (1923), e os trabalhos do filésofo e téorico da literatura russa, Mikhail Bakhtin, sobre o Marais- mo ¢ a filosofia da lingyagem (1929), assim como suas andlises historicas das expressdes da cultura popu- lar; traduzem Walter Benjamin; descobrem Le Dieu caché: étude sur la vision tragique dans les “Pensées” de Pascal et dans le thédtre de Racine (1959), do socidlogo da literatura Lucien Goldmannm e Ques- tées de método (escrito em 1957 e publicado em 1960), de Jean-Paul Sartre. Com Louis Althusser, partilham as questoes ligadas 4 natureza da ideologia, que nao pode mais ser vista como mero “reflexo” da base material, mas assume papel ativo na reprodugdo so- cial. Com Roland Barthes, interessam-se pela espe- cificidade do “cultural” ¢ adotam uma metodologia que se apdia na teoria lingitistica para abordar uma questo fundamental na époea, a das “leituras ideo- lgicas”, A analise das revistas femininas, dos pro- gramas cle fiegao ¢ de informago da televisao, dos 108 Historia das teorias da comunicagéo discursos da imprensa, constitui o nucleo das pesqui- sas do Centro. A obra do filésofo marxista italiano Antonio Gramsci, morto em 1937 nas prisdes fascistas, teve sobre o Centro uma influéncia maior do que na Fran- ga_em meios similares. A contribuigao de Gramsci Tepousa sobretudo em sua concepgaio de hegemonia: a hegemonia ¢ a capacidade de um grupo social de assumir a diregdo intelectual e moral sobre a socie- dade, sua capacidade de construir em torno de seu projeto um novo sistema de aliangas sociais, um novo “bloco histérico”, A nogdo de hegemonia desloca a de classe dominante, eujo poder residiria inteiramen- te em sua capacidade de controlar as fontes do poder econémico. Na anélise do poder, introduz a necessi- dade de considerar negociagdes, compromissos ¢ mediagées. A nogdo gramsciana ilustrava, precoce- mente, a recusa em alinhar de modo mecanico as questoes culturais e ideolégicas as da classe e da base econémica, trazendo ao primeiro plano a questo da sociedade civil como distinta do Estado. Todas essas influéncias sero objeto de uma apro- priagao critica. A originalidade do centro e da pro- blematica dos Cultural Studies na época consiste em conseguir reunir grupos de trabalho em torno de di- ferentes dreas de pesquisa (etnografia, media studies, teorias da linguagem e subjetividade, literatura ¢ sociedade, por exemplo) e vincular scus trabalhos a questées suscitadas por movimentos sociais, em es- Pecial o feminismo. Rapidamente, 0 Centro promove estudos sobre as representagdes da mulher e a ideo- Industria cultural, ideologia e poder 109 logia da feminilidade. Essas pesquisas, efetuadas em 1968 ¢ 1969, mostram seu interesse pelos estudos sobr © mito levados a cabo por Lévi-Strauss e pelos pri- meiros trabalhos de Barthes. A despeito da grande influéncia dos pensadores franceses sobre as metodo- logias ¢ problemdticas dos Cultural Studies, nao se estabelece entao qualquer vinculo organico, entre os dois lados do Canal da Mancha. Rumo ao estudo da recepgdo 0 trabalho de Stuart Hall sobre 0 papel ideol6gi- co da midia ¢ a natureza da ideologia representa um momento importante na constituigaio de uma teoria capaz de refutar os postulados da andlise funcionalista americana e de fundar uma forma diferente de pesqui- ritica sobre os meios de comunicagio de massa. Seu artigo “Encoding/Decoding”, redigido po volta de 1973, examina o processo de comunic Gao televisiva segundo quatro momentos distintos — pro- dugao; circulagdo; distribuigdo/consumo; reprodugao — que apresentam suas préprias modalidades e suas préprias formas e condigdes de existéncia, mas arti- culam-se entre si e sio determinadas por relagdes de poder institucionais. A audiéncia é ao mesmo tempo 0 receptor ¢ a fonte da mensagem, pois os esquemas de produgio — momento de codificagio — respon- dem as imagens que a instituigdo t éncia © a eédigos profissionais. Do lado Lipos de decodifi- © negociada. O primei- de ver hegeménicos, que cacao: dominante, oposi ro co ponde aos modos 10 Histéria das teorias da comunicagéo aparecem como naturais, legitimos, inevitaveis, 0 sen- so comum de uma ordem social e de um universo profissional. O segundo interpreta a mensagem a partir de um outro quadro de referéncia, de uma vi- sdo de mundo contréria (por exemplo, traduzindo o “interesse nacional” por “interesse de classe”). O cédigo negociado é uma mescla de elementos de opo- sigio e de adaptago, um misto de légicas contradi- \6rias que subscreve em parte as significagdes ¢ va- lores dominantes, mas busca numa situagao vivida, em interesses categoriais por exemplo, argumentos de refutagiio de definigdes geralmente aceitas. Esse artigo orientou varias pesquisas do Centro sobre a televisao. Everyday Television, Nationwide (1978), de Char- lotte Brunsdon e David Morley, resultado de uma pes- quisa financiada pelo British Film Institut (BF), mar- ca uma virada na produgao desses media studies. Apés a andlise dos programas de informagéo geral, das revistas politicas sobre grandes questdes da socieda- de, os current affairs, que se dirigem a um ptblico de clite, a atengao se volta para as emissées igualmente chamadas de “comunicagao politica”, porém desti- nadas.a um ptiblico aais vasto e heterogéneo em termos de classe e sexo, como o programa Nationwide. E © ponto de partida de uma investigagio sobre os géneros populares (situation comedies, esportes, va- riedades, soap operas, séries policiais), Everyday Television poe em cena a vontade de explorar a ma- neira pela qual esses programas de diversdo de massa tratam as contradigdes da vida e da experiéncia de indistria cultural, ideologia ¢ poder uu homens e mulheres de vastas camadas sociais, e par- ticipam da construgao de um senso comum popular. No centro dessa linha de pesquisa, estao o estudo das representagdes de género feminino/masculino, de clas- se social, de grupos étnicos. A etapa seguinte vé se acentuar o deslocamento do estudo dos textos para o das audiéncias (ver capi- tulo VI, 2).

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