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JURL LOTMAN A ESTRUTURA DO TEXTO ARTISTICO INTRODUGAO CAPITULO 1 A ARTE COMO LINGUAGEM 1978 EDITORIAL ESTAMPA LISBOA INTRODUCAO Ao longo de toda a existéncia historicamente estabele- cida da humanidade, a arte é o seu companheiro de viagem. Ocupade em produzir, em luta pela conservacio da sua vida, quase sempre privado do estritamente necessério, 0 homem encontra sempre tempo para a actividade artistica, sente essa necessidade. Em diferentes etapas da histéria, ouviu-se perio- dicamente levantarem-se vozes contra a inutilidade da arte, mesmo contra a sua nocividade. Elas vinham da Igreja da Alta Idade Média que lutava contra o folclore pagdo, contra as tradigdes da arte antiga, de iconoclastas que se levantavam contra a Igreja e de muitos outros movimentos sociais em diferentes épocas. A luta contra este ou aquele aspecto da criagdo artistica, ou contra a arte no seu conjunto, desenvol- via-se por vezes largamente e apoiava-se em poderosas insti- tuigdes politicas. No entanto, nesta luta, todas as vitérias se mostravam quiméricas: a arte renascia invariavelmente so- brevivendo aos seus detractores. Esta constancia inabitual, se reflectirmos bem, suscita a admiragio, visto que as concep- gdes estéticas existentes explicam diferentemente em que con- siste a necessidade da arte. Ela nao representa uma parte da produgo e a sua existéncia nao é condicionada pela exigéncia do homem de renovar incessantemente os meios de satisfazer as suas necessidades materiais, Ao longo do seu desenvolvimento historico, cada sociedade elabora as formas determinadas de uma organizagao sociopo- 25 TURI LOTMAN litica que Ihe é propria. E se esta inevitabilidade histérica nos € perfeitamente clara, se podemos explicar por que razio n&o poderia existar uma sociedade sem qualquer forma de orga- nizac&o interna, € bem mais dificil explicar porque é que ndo pode existir uma sociedade sem arte. Neste caso, a expli- cacdo é habitualmente substituida por uma nota, uma -refe- réncia ao facto de nao se conhecerem, na histéria da humanidade, sociedades que ndo possuem a sua arte (ou en- to, elas sAo conhecidas como raras anomalias, como os dados de uma espécie de teratologia social, que nfo fazem senio confirmar, pelo seu caracter excepcional, a regra geral). Além disso, também convém considerar aquilo que, sob este aspecto, diferencia as artes dos outros aspectos das estruturas ideologicas, Organizando a’ sociedade, esta ou aquelas estru- turas incluem inevitavelmente todos os membros: cada ho- mem, tomado separadamente, pelo simples facto de pertencer a uma colectividade histérica, é posto perante a rigorosa ne- cessidade de fazer parte deste ou daquele agrupamento, de entrar num dos subconjuntos existentes de um dado conjunto social. Assim, por exemplo, um homem da Franca pré-revo- lucionaria do século XVIMI, para ser uma personalidade poli- tica, podia fazer parte de um dos trés Estados, mas era-lhe impossivel nao pertencer a nenhum. Mas a sociedade, que impde por vezes limitagdes rigorosas A arte, nunca exige dos seus membros uma actividade artistica. Um ritual é obriga- torio, uma ronda é facultativa. Confessar esta ou aquela reli- giao, ser ateu, entrar em qualquer organizacao politica, per- tencer a um grupo juridico determinado, cada sociedade apresenta aos seus membros uma lista obrigatéria de marcas semelhantes. Produzir ou utilizar valores artisticos é sempre uma marca facultativa, «Este homem nfo acredita em nada» e «este ho- mem nao gosta de cinema (de poesia, de “ballet”)». —E claro que tratamos de uma destruicio das normas sociais a dife- tentes niveis de opressdo. Se, na Alemanha nazi, a indife- renga em relagéo a arte oficial era considerada como um A ESTRUTURA DO TEXTO ARTISTICG sinal de deslealdade, 6 evidente que néo se, tratava de modo nenhum das normas da relacdo do homem com a arte. B, todavia, sem ser obrigatoria nem do ponto de vista das necessidades vitais imediatas, nem do ponto de vista das relagSes sociais obrigatérias, a arte, por toda a sua historia, demonstra a sua necessidade essencial. Foi demenstrado j4 ha muito tempo que a necessidade da arte assemelha-se 4 necessidade do saber ¢ que a propria arte é uma das formas de conhecimento da vida, uma das formas da luta da humanidade por uma verdade que Ihe é necessaria. No entanto, uma interpretacdo linear desta propo- sigéo engendra uma série de dificuldades. Se se entender por conhecimento procurado proposigdes légicas do mesmo tipo que os resultados das pesquisas cientificas, é impossivel nao aceitar 0 facto de que a humanidade possui vias mais directas que a arte para a sua obtencdo. E se se mantém um tal ponto de vista, entao € preciso aceitar que a arte nao oferece sendo um saber de um tipo inferior. Acerca disto, como se sabe, Hegel escrevia claramente: «Por causa da sua forma, a arte € também limitada por um contetido determinado, S6 um dominio determinado ¢ um nivel determinado da verdade po- dem encontrar a sua encarnagao sob a forma de uma obra artistica.» Desta proposicao resultava inevitavelmente a dedu- ¢&o de que o espirito da cultura contemporanea «se elevou manifestamente mais alto que o nivel no qual a arte repre- senta a forma superior da tomada de consciéncia do abso- luto. O caracter préprio da criagao artistica e das suas obras j nao satisfaz plenamente a nossa exigéncia superior» (). Ainda que esta proposi¢io de Hegel tenha sido muitas vezes submetida a critica, por exemplo de Belinski, ela € tio organica para a concepcio dos objectivos da arte carac- terizada anteriormente, que renasce incessantemente na his- toria da cultura, As suas manifestacdes sao muiltiplas — desde as discuss6es periddicas sobre a inutilidade ou o caracter ul- trapassado da arte até a conviccdo de que o critico, o sibio () Hegel, Obras, vol. XIL, Moscovo, 1938, p. 10, K TURI LOTMAN ou qualquer outro individuo portador de um pensamento légico, ou pretensamente tal, possui por isso mesmo o direito de instruir e de dirigir 0 escritor. Esta mesma convic¢io transparece nos pontos fracos do método escolar de estudo da literatura que assegura instan- temente aos alunos que algumas frases de dedugio légica (suponhamos bem pensadas e sérias) constituem todo o fundo da obra artistica e que o resto se refere a «particularidades artisticas» de segundo plano. Assim, as concepgées existentes da cultura explicam-nos a necessidade da existéncia da produgdo e das formas da sua organizacao, a necessidade da ciéncia. A propria arte pode ser um elemento facultativo da cultura. Podemos determinar qual é a influéncia que a estrutura nao artistica do real exerce nela. No entanto, se a questo: «Porque é que uma sociedade sem arte € impossivel?» permanece em aberto e que a realidade dos factos histéricos nos obriga a colocar sempre de novo, uma conclusio se impée inevitavelmente sobre a insuficiéncia das nossas concep¢ées da cultura da humanidade. Sabemos que a histéria da humanidade nao péde organi- zar-se sem produ¢ao, sem conflitos sociais, sem lutas politicas, sem mitos, religido, ateismo, éxitos cientificos. Teria ela po- dido organizar-se sem arte? Conceder-se-4 & arte um papel secunddrio de instrumento auxiliar ao qual recorreram (mas podem também nao recorrer) as exigéncias mais substanciais do espirito humano? Encontramos em Puchkine a nota: «Numa das comédias de Shakespeare, a camponesa Audrey per- gunta: “O que € a poesia? 2 uma coisa verdadeira?”» ?) Como responder a esta questéo? A poesia sera de facto uma «coisa verdadeira» ou sera, segundo a expresso de Derjavine: ... atraente, Agradavel, doce, util, Como no Veraéo uma boa limonada © A. S. Pu&kin, Obras Completas, vol. XIII, Moscovo-Leninegrado, 1949, p, 178. 28 A ESTRUTURA DO TEXTO ARTISTICO Infelizmente, uma resposta puramente emocional, fundada sobre © amor da arte, sobre o habito de impressdes estéticas quotidianas, nao sera definitivamente convincente, E muito usual a ciéncia recusar convicgdes de que o hdbito e a evi- déncia do dia a dia formam a prépria esséncia da nossa experiéncia quotidiana. Como seria facil a um sabio, cuja experiéncia se limitasse ao dominio da cultura europeia, demonstrar que a musica do Extremo Oriente nao pode existir ou no pode ser considerada misica, B evidente que o julga- mento contrario é possivel. O habito ou o «natural» desta ou daquela ideia nao prova a sua verdade. © problema da necessidade da arte n&o constitui 0 objecto da presente obra e nfo pode ser estudado aqui sob todos os seus aspectos. Convira determo-nos aqui unicamente na me- dida em que ela esta ligada 4 organizagao interna do texto artistico © ao seu funcionamento social. A vida de todo o ser representa uma interaccio complexa com 0 meio que o rodeia, Um organismo, incapaz de reagir as influéncias externas, nem de ai se adaptar, pereceria inevi- tavelmente, Podemos representar a interacgdo com o meio exterior como a recepgio ¢ 6 deciframento duma informa¢ao determinada, O homem € inevitavelmente arrastado num. proceso intensivo: ele esté rodeado por uma vaga de infor- magées, a vida enyia-lhe os seus sinais, Mas estes sinais nao sdo entendidos, a informacao nao ¢ compreendida e perdem-se possibilidades importantes na luta pela sobrevivéncia, se a humanidade néo chega, por uma necessidade sempre cres- cente, a decifrar estas vagas de sinais ¢ a transformé-jlas em signos que permitam a comunicagio na sociedade humana, Alem disso, parece necessério aumentar nfo sé a quantidadé das diversas comunicagGes nas linguas j existentes (as linguas naturais, a linguagem nas diferentes ciéncias), como também a quantidade de linguagens nas quais se podem traduzir as vagas de informagio envolvente, fazendo disso um bem pro- prio dos homens. A humanidade reclama um mecanismo par- ticular — gerador de «linguagens» sempre novas que poderiam servir a sua necessidade de saber. Além disso, parece que néo 29 * TUR] LOTMAN se trata somente do facto da criacéo de uma hierarquia de linguagens ser um processo de conservagao da informa¢do mais rico do que o aumento até ao infinito das comunicagées numa Unica linguagem. Determinados aspectos da informacéio podem ser conser- vados e transmitidos unicamente com a ajuda de linguagens especialmente organizadas—assim, as informacgdes quimica ou algébrica exigem as suas préprias linguagens que devem. ser especialmente adaptadas a um dado tipo de modelizagio ¢ de comunicacao. A arte é um gerador notavelmente bem organizado de linguagens de um tipo particular, que prestam a humanidade um servico insubstituivel ao ser aplicada a um dos Jados mais complexos do saber humano e ainda nao completamente escla- recidos no seu mecanismo. A afirmagao, segundo a qual o mundo que rodeia o homem fala linguagens miiltiplas e que o apandgio da sabedoria esta em aprender a compreendé-las, nfio é nova. Assim, Baratynski ligava constantemente a compreensdo da natureza ao dominio da sua linguagem prépria, utilizando para caracterizar o conhe- cimento os verbos da relacdo linguistica (wele falavay, «ele lia»): Ele respirava duma mesma vida com a natureza, Do ribeiro apreendia o murmirio, E o falar das folhas das 4rvores compreendia, E sentia o impulso das ervas: O livro das estrelas era para ele limpido, E com ele falava a vaga marinha. A incompreensio € ou esquecimento ou uma ignorancia da linguagem. [...] O templo desmoronou-se, E das ruinas o seu descendente Nao penetrou a linguagem. 30 A ESTRUTURA DO TEXTO ARTISTICO Mais interessante ainda é 0 caso dos «Versos escritos durante uma inséniay de Puchkine, que fala ai da vida obscura ¢ va que o oprime e pede para ser modificada: Quero compreender-te, Procuro em ti um sentido. Este poema nio foi publicado em vida de Puchkine. Juko- vski publicou-o nas obras péstumas de Puchkine em 1841, apés ter substituido o tltimo verso por: Aprendo a tua obscura linguagem. Nao temos conhecimento das suas reflexdes e, nas edigdes actuais, este verso, que falta no manuscrito de Puchkine, é eliminado, No entanto, é dificil admitir que Jukovski, sem razéo nenhuma de censura externa, se ocupe a substituir os versos de Puchkine pelos seus proprios, «sem dtivida para melhorar a rima» (tal € © aviso dos comentadores da edicdo académica). B perfeitamente possivel que Jukovski — interlo- cutor permanente de Puchkine de 1830 a 1840— tenha tido razGes s6lidas, ainda que as ignoremos, para mudar este verso, sem tomar em consideracdo 0 manuscrito de que ele tinha perfeito conhecimento. Mas para nés, € outra coisa que ¢ importante: aquele que procedeu a esta transformacao — Puch- kine ou Jukovski— para ele os versos: Procuro em ti um sentido. Aprendo a tua obscura linguagem... cram semanticamente equivalentes: compreender a vida é aprender a sua obscura linguagem. E em todos estes casos, € em muitos outros, ndo se trata de metaforas poéticas mas de uma compreensio profunda da aquisi¢éo da verdade e, de forma mais lata, da vida, 3 TURI LOTMAN Para o classicismo, a poesia é a linguagem dos deuses, para © romantismo, a linguagem do coracao. A época do realismo miuda 0 contetido desta metafora, mas conserva-lhe o caracter: a arte € a linguagem da vida; gracas a ela, o real fala de si proprio. A ideia de um mundo mudo, que encontraria a sua voz na poesia, encontra-se sob diversas formas em muitos poetas. Sem poesia a rua torce-se, muda — nada tem para gritar, nada para dizer. (Maiakovski.) A constancia da confrontacao da arte e da linguagem, da voz, do discurso, testemunha que a sua liga¢do com o proceso das comunicasdes sociais —conscientemente ou néo— forma © préprid fundamento da actividade artistica. Mas.se a arte 6 um-meio de comunicagao particular, uma linguagem organizada de forma particular (metendo no con= ceito de «linguagem» o largo contetido que é recebido em semidtica— «todo © sistema organizado que. serve de meio de comunicacao e que utiliza signos»), ento as obras de arte — ou seja as comunicagées nesta linguagem — podem ser con- sideradas textos. Deste ponto de vista, pode-se formular também o objectivo da presente obra. Criando e percebendo as obras de arie, o homem trans- mite, recebe e conserva uma informagao artistica particular, insepardvel das particularidades estruturais dos textos artis- ticos, da mesma forma que o pensamento é insepardvel da estrutura material do cérebro. Apresentar um ensaio geral sobre a estrutura da linguagem artistica e das suas relagdes com a estrutura do texto artistico, as suas semelhangas e as diferencas em face das categorias linguisticas andlogas, ou seja, explicar como um texto se torna portador dum pensamento determi- nado — duma ideia —, como a estrutura de um texto se refere A estrutura desta ideia—tal é 0 objectivo geral em direce’io ao qual o autor espera dar alguns passos, 32 CAPITULO I A ARTE COMO LINGUAGEM A arte € um dos meios de comunicagao, Ela realiza incon- testavelmente uma ligacéo entre um emissor e um receptor (0 facto de em certos casos poderem unir-se os dois numa s6 Pessoa no modifica nada, porque wm individuo que fala consigo mesmo retine nele o jocutor e o auditor (*). Dar-nos-& isto 0 direito de definir a arte como linguagem organizada de modo particular? Todo o sistema que serve os fins da comunicag3o entre dois ou varios individuos pode ser definido como uma lin- guagem (como ja observamos, subentende-se no caso da auto- comunicacéo que um individuo representa dois). Falando em sentido estrito, a afirmag&o muitas vezes espalhada segundo a qual a linguagem subentende a comunicagdo na sociedade humana nao é necessdria, visto que, por um lado, a relac3o linguistica do homem 4 méquina e das méquinas entre si nio € actualmente um problema tedrico, mas uma realidade téc- nica (). Por outro lado, a existéncia de relagdes linguisticas @) Ver a classificagao dos diversas tipos de texto segundo a relagio do transmissor ¢ do receptor no artigo de A. M, Pjatigorski «Algumas observacées gerais relativas ao estudo do texto como variedade de sinal» (compilagio Strukturno-tipologicetkie issledovanija, Moscovo, 1962), @) W. Bucholtz no artigo «Escolha da linguagem das instrugdes» mostra que 0 «sistema das instrugdes 6 um estddio intermédio entre a linguagem do programador e a linguagem dos cédigos directores elemen- tares no interior da maquina (Kibernetiéeskij sbornik, 2, compilagao de tradugdes, Moscovo, 1961, p. 235). 33 JOURL LOOTMAN no mundo animal nao deixa dtivida alguma. Inversamente, os sistemas de cotnunicagéo no interior do individuo (por exemplo, os mecanismos de regulagao bioquitnica ou os sinais transmitidos pela rede dos nervos do organismo)’ nao cons- tituem linguagem (*). Neste sentido, podemos falar de lingua nfo sé a propésito do russo, do francés, do hindi e de outras, nfo sé a propé- sito dos sistemas criados artificialmente pelas diversas ciéncias utilizadas para descrever grupos determinados de fendmenos (chamam-lhes Jinguas «artificiaisy ou metalinguagens das cién- cias dadas), mas também a propésito dos costumes, dos rituais, do comércio, das ideias religiosas. Neste mesmo sentido, pode-se falar da «linguagem» do teatro, do cinema, da pintura, da musica e da‘arte no seu conjunto como de uma linguagem organizada de modo particular. No entanto, depois de ter definido a arte como uma lin- guagem, emitimos por isso determinadas ideias quanto A sua organizacao. Qualquer linguagem utiliza signos, que consti- tuem o seu «dicionario» (fala-se por vezes de «alfabeto»; para uma teoria geral dos sistemas de signos, estes conceitos sao equivalentes), qualquer ‘linguagem possui regras definidas de combinagao desses signos, qualquer linguagem representa uma determinada estrutura, ¢ essa estrutura possui a sua prépria hierarquia. A questao assim posta permite abordar a arte sob dois pontos de vista diferentes: ©) Pode-se verosimilmente ligar também a isto o facto de nos ani- mais inferiores com uma individualidade colectiva: muito mais claramente expressa, uma ligagdo de sinais extralinguisticos do tipo de estimulos no interior de um organismo, que liga individuos isolados, ocupar um lugar importante. Na medida em que a individualidade se {iga com cada org2- nismo isolado, surge 0 papel dos signos, ainda que as comunicacdes primarias ndo permanegam, provavelmente, reprimidas até ao fim, por exemple sob 0 aspecto da parapsicologia nos homens, 34 A ESTRUTURA DO TEXTO ARTISTICO —FEm primeiro lugar, extrair da arte o que a assemelha a qualquer linguagem e tentar descrever os seus aspectos por meio dos termos gerais da teoria dos sistemas de signos. —Em segundo lugar, referindo-se & primeira descrigio, extrair da arte o que Ihe é préprio enquanto linguagem particular ¢ 0 que a diferencia dos outros sistemas deste tipo. Como vamos utilizar ulteriormente o conceito de «lingua- gem» com a especifica significac&o que se Ihe atribui nos traba- Ihos de semistica, significagio que difere fundamentalmente da sua utilizacdo habitual, definimos 0 contetdo deste termo, Por linguagem entendemos todo o sistema de comunica¢ao que utiliza signos ardenados de modo particular. As linguagens assim estudadas diferenciar-se-fo: —£m primeiro lugar, dos sistemas que nfo servem de meio de comunicacao; —Fm segundo lugar, dos sistemas que servem de meio de comunicagio, mas que nfo utilizam signos; —E£m terceiro lugar, dos sistemas que servem de meio de comunicagio ¢ utilizam signos pouco ou quase nada ordenados. A primeira oposic¢éo permite diferenciar as linguagens das formas da actividade humana que nao se ligam directamente e pelo seu objectivo para a acumulacéo ¢ para a transforma- gao de uma informagdo. A segunda oposi¢ao permite fazer a seguinte distingdo: uma relacéo semiotica tem geralmente lugar entre individuos; uma relagdo extra-semistica, entre sis- temas no interior de um organismo. No entanto, seria prova- velmente mais justo estudar esta oposicao como antitese das comunicagSes ao nivel do primeiro e do segundo sistema de sinais, visto que, por um lado, sio possiveis ligacdes extra- -semidticas entre organismos (ligagées particularmente. porta- doras de significagéo nos animais primitivos, mas conservadas no homem sob aspecto de fenémenos estudados pela telepa- tia) c, por outro lado, uma relagao semidtica é também pos- sivel no interior de um organismo. Nao se considera sé a auto-organizagdo pelo homem do seu intelecto gracas a este ou aquele sistema de signos, mas também os casos em que 35 xe TURI LOTMAN os signos se inserem numa sinalizacdo primitiva (6 homem «afastay por palavras uma dor de dentes; agindo sobre ele proprio com a ajuda de palayras, ele suporta o sofrimento ou a dor fisica). Se, tomando em consideracio estas restrigdes, se aceitar a tese segundo a qual a linguagem é uma forma de comuni- cacao entre dois individuos, é preciso explicitar ainda alguns pontos. Sera mais cémodo substituir’o conceito de «individuo» por o de «transmissor da informacao» (destinador) e de «re- ceptor da informag&o» (destinatario). Isto permitira incluir no csquema os casos em que a linguagem nao une dois indi- viduos, mas dois mecanismos de transmissio (de recepgao), por exemplo um aparelho telegrafico e 0 aparelho de registo automatico ao qual est4 ligado. Mas ha coisas mais. impor- tantes: nfo é raro um tinico e mesmo individuo intervir a0 mesmo tempo como destinador e como destinatario da infor- mag&o (observagées por meméria, didrios intimos, livrinhos de anotacdes). A informagio entao nao é transmitida no espago, mas No tempo © serve de meio de anto-organizagao da personalidade. Conviria considerar este facto como um pormenor muito pouco significativo na massa geral das rela~ ges sociais, se ndo fosse a observacio: pode-se considerar como individuo um homem isolado; neste caso, o esquema de comunicagio de A —> B (do emissor para o receptor) con- duzi-lo-4 para o esquema A ~* A’ (0 emissor é 0 proprio re- ceptor, mas numa outta unidade de tempo), No entante, basta colocar sob «A», por exemplo, o conceito de «cultura nacional» para que o esquema de comunicaggo A ~> A’ re ceba uma significacdo pelo menos equivalente ao esquema A + B (ao nivel dos tipos culturais, ele sera preponderante). Mas tomemos ainda a seguinte hipdtese: coloquemos sob «A» a humanidade no seu conjunto. A autocomunicacao tornar-se-A ent&o (pelo menos nos limites da experiéncia historicamente real) 0 tinico esquema de comunicacao, A terceira oposigao distingue as linguagens dos sistemas intermediérios aos quais se aplica principalmente a paralin- guistica — mimicas, gestos, etc. 36 A ESTRUTURA DO TEXTO ARTISTICO Se se considerar a «linguagem» do modo atras proposto, este conceito abrange: a) as linguas naturais (por exemplo, o russo, o francés, ‘© estoniano, 0 checo); b) as linguas artificiais: linguagens da ciéncia (metalin- guagens das descrigdes cientificas, linguagens dos sinais con- yencionais (por exemplo, os sinais de transito), etc.; ©) as linguagens secundarias (os sistemas de modelizacio secundarios)—— as estruturas de comunicacéo que se sobre- pdem ao nivel linguistico natural (0 mito, a religido). A arte é um sistema modelizante secunddrio. Nao & preciso com- preender «secundério em relagéo A linguagemy unicamente como

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