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Alicia Fernandez DM aa crore lo] i eerie] el ocrolels\ore lee Ke oa poralidade e da aprendizagem Bhd Alicia Fernandez A Mulher Escond na Professora foley] =P Sere se Rene os a fee dBi Ferninder, Alicia ‘A mulher escondda na professora: uma letura psicopedagigica do ser ‘mulher, da corporalidade ¢ da aprendizagem / Alicia Fernandez ; trad: ‘Neusa Kern Hlckel. — Porto Alegre: Artes Médicas 1, Paleopedagogia—Mulher 2. Pleandlise—Mulher I. Titulo Alicia Fernandez A Mulher Escondida na Professora Uma leitura psicopedagégica do ser mulher, da corporalidade e da aprendizagem Traducdo: NEUSA KERN HICKEL Psiodioga, psiconedagoga. Docente @ pesquisadora no GEEMPA-POA (Grupo 0 Estudos em Eaucaeti, Mefodoiogla, Pesquisa e Agéo) ‘Supenisdo Técnica: "YER LUCIA MARTINS DE MOURA Pric6loga, psicopectagoga. Docente na UNIINOS @ no GEEMPAPOA, Revisdo, Coordenagdo » Supervisao desta Edicco: jem exerciciono Centro de Adminkiraedo @ Desenvol ‘om Said (Secretar Municipal de Saude POA) CAPITULO A queixa da professora A queixa como lubrificante da maquina inibit6ria do pensamento és, os seres humanos, recorremos muitas vezes A queixa, esse lamento impotente que confirma e reproduz um lugar de dependéncia. Traba- Ihando em escolas em diferentes lugares e espacos,(!) tenho observado ‘como muftas professoras usam a queixa para descrever ou para fazer uma suposta analise de sua realidade. Neste capitulo nos perguntamos sobre a funcao da queixa na boca das professoras ¢ 0 uso que o sistema educativo faz da mesma. Seria interessante também pensar que lugar ocupa “o queixar-se” na consti- tuicdo da subjetividade feminina em nossa cultura e por que as profes- soras caem tao facilmente na armadilha. A armadilha consiste na crenga equivocada de que se esta usando 0 juizo critico, de que se esté pensan- do ou analisando uma situagao, quando somente se est convalid: O juizo critico, o pensar implicam, necessariamente, uma transfor no mundo interno que, segundo como se operacionalize, pode uma transformagao maior ou menor no mundo externo. A qq contrario, imobiliza. Em meu trabalho como psicopedagoga com familias de: dia e alta, tenho observado também que a queixa 6 comm 108 / Alicia Fernéndez gada pelas maes das criangas que chegam 4 consulta e que, 20 contrario, nao é um modo prioritariamente utilizado pelos pais ou os filhos. Os pais usam, com mais freqiiéncia, o siléncio, a acusagao (dirigida aos seus filhos, a sua esposa, ao colégio), ou um discurso supostamente vvalido, que dé conta de uma explicacao dos problemas. Os filhos adolescentes, sejam homens ou mulheres, também nao ecorrem a queixa; a maioria acusa ou questiona. Além disso, observo uma diferenca entre 0 uso que fazem da queixa as mulheres da classe média e alta, e as mulheres (também maes de filhos om problemas de aprendizagem) atendidas em hospitais publicos@) e que participam em grupos quinzenais de maes.(3} No primeiro caso, ha 0 que chamo de “queixa-lamento”, enquanto que, no segundo, trata-se de uma “queixa-reclamo", A queixa-lamento pode construir-se com fases similares as da queixa-reclamo, A diferenca esta no tom e na resposta que demandam e/ou esperam daquele que escuta. Quem escuta uma queixa-lamento € chamado somente a con- doer-se ¢ é dificil que, a partir do enunciado, possa pensar. Isto 6, a queixa -lamento inibe o pensar. A carga saudavel de agressividade (ne- cesséria para pensar) degrada-se e aparece como lament, Na queixa-reclamagao jé ha um manejo diferente. Refiro-me ao que Mabel Burin chama de “desejo hostil’,!) pois tanto quem a enuncla quanto quem a escuta pode chegar mais facilmente a uma reflexio critica. Nas mulheres integrantes dos grupos de maes mencionados, a quel xa funciona como uma acusacao dirigida a alguém e como uma reclama- Gao que espera daquele que escuta a entrega de uma solugéo, mais do Que compartilhar 0 entendimento do problema. As queixas estao dirigi- das, principalmente, aos seus maridos ou aos seus filhos com proble- mas. A partir deste tipo de queixa, pode-se trabalhar e conseguir a emer- gencia do “desejo diferenciador,) cuja constituigao facilita a producao Ge novos desejos, Assim, em tais grupos, as maes, nos primeiros dias, apresentam-se m “a mde de...”, nomeando-se, entre si, da mesma maneira. Em um segundo e breve momento passam a ser a “Senhora de...” até chegarem. aser “Teresa”, “Susana” ou “Matilde”, A queixa-lamento somente aparecia na primeira fase, Na segunda, ‘surgiam queixas-reclamo e, na terceira, a queixa tendia a desaparecer Para dar lugar ao juizo critico, proprio da autonomia, Aqqueixa-lamento funciona como lubrificante da maquina inibidora do pensamento. & légico, entao, que na medida em que as mulheres se reconhepam somente em funcao de outros (seus filhos ou seus maridos), thes seja dificil chegar a critica, capaz de posicioné-las no lugar de trans” formadoras de si mesmas e das coisas que as rodeiam. A mulher escondida na professora | 109 Neste sentido, temos que levar em conta o valor do grupo de pares como possibilitador.) © isolamento da mulher no ambito doméstico, incluida em um sistema que a obriga a considerar o trabalho doméstico ‘como nao produtivo,(?) favorece a autodesvalorizacao e a necessidade de condoer-se de sua ma-sorte” e de sua “incapacidade”. O grupo de pares permite esta safda da solidao patogenizante. Quero mencionar aqui — 0 que seré motivo de andlise em um texto posterior — como as psicopedagogas utilizam a queixa, em grupos de tratamento psicopedagégico. Nelas, a queixa-lamento, na maioria dos casos, dirige-se as oportunidades profissionats e, As vezes, & profissdo psicopedagogica, em particular. Quando as escuto falar da psicopedago- gia, muitas vezes penso que esto referindo-se a sua imagem interna do que é uma mulher, "género-desvalorizado”. As vezes, também dirigem este tipo de queixa ao marido. E, em relacdo as suas proprias maes ¢ irmas maiores, utilizam mais a queixa-reclamo ou a “hostilidade” (Mabel Burin).(8} Os pais, em geral, estdo idealizados ou indiferenciados de suas esposas € apresentados como um bloco; “meus pais". Nunca escutei de minhas pacientes psicopedagogas queixas dirigidas aos seus filhos ou filhas enquanto criangas, mas as ougo em relaeao aos seus filhos ¢ filhas adolescentes, Coineido com Esther Moncarz que analisa a queixa como “uma forma de contravioléncia que algumas mulheres exercem cotidianamen- te, frente A dificuldade de achar modos alternativos que Ihes permitam modificar condigses de vida opressivas.”®) Por que € para que as professoras se queixam? Creio que a queixa das professoras, enquanto funciona como lubrificante da maquina inibitéria do pensamento, é favorecida e, as vezes, até pro- movida, pela propria instituicao educativa. Na medida em que, como mulheres ensinantes, conseguirmos reco- nhecer e analisar este “sintoma”, poderemos encontrar solugdes alterna- tivas. No trabalho de Esther Monearz, achei interessante 0 fato de que, para considerar a fungao da queixa na mulher, imediatamente ela a relaciona com 0 trabalho doméstico. Pretendo, entao, a fim de analisar a queixa das professoras, pensar na similitude entre o trabalho doméstico e o trabalho docente feita pela ideologia tradicional. trabalho doméstico é visto como inerente natureza das mulhe- res; as mulheres est4o naturalmente destinadas ao “cuidado” das erian- as, e dentro deste cuidado entraria a tarefa de educé-las. Ao considera- 110 / Alicia Fernéndez lo de tal modo, Ihe € tirado o valor de trabalho produtivo, desvalorizando a tarefa em si, e a quem a exerce. Por sua vez, as professoras trabalham com criancas e, assim, como desqualifica-se a crianga (ou se a endeusa, como outra forma de desqua- lificag4o) também desvaloriza-se quem trabalha com elas. (© mesmo ocorre com os pediatras em relagao aos médicos, com os psicanalistas infantis em relagao aos psicanalistas de adultos, sendo que € mais dificil e complexo, ¢ requer maior preparacao tedrico-pratica, trabalhar com criangas do que com adultos. Inclusive transferencial- mente é mais complexo. Por essa razo, Francoise Dolto diz que s6 deve- ria trabalhar analiticamente com criangas quem ja trabalhou com adultos. A tarefa docente suporta uma sobrecarga depreciativa. Por um lado, por ser uma tarefa considerada dirigida principalmente as criangas, des- qualifica-se a quem a exerce. Deleuze(!0) diz que “nao 6 os prisioneiros so tratados como criancas, mas as criancas sao tratadas como prisio- neiras. As criangas sofrem uma infantilizacao que nao é sua. Neste sen- tido, € que as escolas sao um pouco prisées...” Penso que ndo s6 as criancas sofrem a infantilizacao, também os professores a padecem, pols sao usados pelo sistema como agentes man- tenedores da infantilizagao do espaco educative. Por outro lado, ao considerar 0 “cuidado” das eriangas e sua educa- ‘edo como inerentes a “natureza” feminina, o trabalho docente passa por um esvaziamento. Tal situacao o transforma em uma atividade nao me- diatizada, nao criativa, nao rentavel, nao produtiva e até invisivel, como uma extensao do trabalho doméstico. Sem duvida, conhecer os atravessamentos ideolégicos que supor- tam nossa tarefa nos da a possibilidade de nos autorizarmos a mudar nossa realidade e de nos atrevermos a mudar nossa maneira de nos inserir na mesma, isto é, a pensar com autonomia, Diz respeito a nao continuar contando a histéria a partir do lugar de outro — trata-se de comegar a escrever nossa prépria histéria. problema nao esta no que os outros fizeram de mim, mas sim no que eu faco com que os outros fizeram de mim. Creio que Sartre diz algo parecido. Para muitos professores, “a queixa constitul uma transagao, atra- vés da qual denunciam seu mal-estar. Ao mesmo tempo, confirmam 0 status quo com suas posturas resignadas, assegurando, assim, que nada mude,(11) E interessante assinalar a forma com que os grupos de trabalho com professoras que venho coordenando em Buenos Aires e Porto Ale- ge, ao sair da queixa inicial, podem comegar a exercer um juizo critico, podem comecar a pensar, a refletir, a dar espaco 8s pergunias, a supor- far o vazio momentaneo da auséncia de respostas, sem cair na facilidade A mulher escondida na professora | 111 das supostas explicagdes rapidas que as queixas implicam. Por exemplo, uma das queixas pode ser: "Os governos nd se interessam pela Educa- Go". Esta frase, como qualquer queixa, com uma mascara de aparente questionamento, esta convalidando a situacao, ao tomé-la como irrever- sivel. Do mesmo modo que se diria “depois do dia vem a noite”, ndo ha mais remédio. Nos grupos citados, a partir de jogos e cenas psicodramaticas, as professoras podem mediatizar e analisar sua participagao na tarefa des- de um lugar de terceiro. A grande maioria expressa, entéo, um fato que, inicialmente, pode parecer doloroso, mas cujo descobrimento é, por si, mola para a mudanga. Este fato refere-se a tarefa da reprodugio ideol6- gica que realizam (4s vezes, sem se darem conta) em stia atividade do- cente diaria, na qual, simultaneamente, padecem uma submissdo ¢ des- valorizagao, a legalizam e a reproduzem em si mesmas e em seus alunos. Aburrirse* e queixar-se Poderta aborrecer-se quem tem acesa a imaginacao endo deixa que nenhum vento a apague? £ interessante observar que os professores se queixam ¢ os alunos se aborrecem, Se observassemos esta cena por um outro angulo, pode- riamos dizer que os alunos se queixam e os professores se aborrecem? ‘A queixa e 0 aborrecimento que funcionam com lubrificantes para manter a maquina paralisante geram inibigao cognitiva reativa ¢ man- tem a inibicdo reativa estrutural.(12) ‘Aburrir é um verbo da lingua castelhana, cuja forma pronominal (aburrirse) é de dificil tradugao para outros diomas.(18} Aburrimiento tem ‘aver com apatia, indiferenca, mas € pior que isso. A indiferenga implica baixar a cortina, fechar-se frente a algo que nao interessa, mas 0 aburri- miento é o fechar-se para nossa propria maquina desejante. E ignorar a possibilidade “de estar a sés” e de comecar a imaginar ¢ a pensar nesse estar a sos, Aburrirse é acreditar-se vazio, ¢ negar-se a imaginar e come- ar a pensar a partir dai. Aburrirse, jogando com o castelhano, eu diria que € “fazer-se burro". Aborrecer seria, em portu- ‘Mantivemos o titulo no original para evidenciar o que a autora diz a seguir Sobre a dificuldade de tradupdo, No texto, usamos o term aborrecer-se, aborrecimentio, N verdade, o sentido dado pela autora é mais um neologlsmo. Em nossa lingu. pode se também buscar uma aproximagio com o termo amuar, cujo significado é 2 gue: Seafasta, desgostoso: guardar-se, entesourar-se, enfastiar-se, Ou, ainda," is 112 J Alicia Ferméndez gués, depreciar-se, cansar-se de si mesmo. Apagar a “maquina desejan- te-pensante”. Eduardo Pavlovsky disse que, na época de Freud, o que estava mais reprimido era a sexualidade, e em nossa época o que mais se reprime é a Imaginacao. A imaginacao é subversiva. Poderia aborrecer-se quem tem acesa a imaginagdo e culda para que nenhum vento a apague? “A fadiga entontece”, diz Raul Cela, ¢ eu penso que é 0 aburrimiento que entontece. E segue Cela: “Os saberes abandonam 0 movimento de aprender, este caminho é igual ao anterior. Aquilo que foi transitado, a sola que se gasta em lugar de ser referencia, marca, converte-se em caminho. Comeca-se a caminhar no fio do auto-engano. As marcas do passado transitam-se como o verdadeiro caminho".(14) Enrique Mariscal(!5) diz que 0 aborrecimento ¢ uma das “expres- sdes de mau trato; como vivemios numa cultura do mau trato, pareceria que 0 aborrecer-se ¢ normal, e onde ha aborrecimento ha uma sensagao de desconexo, de um vazio, de buraco, e, como este buraco se faz intoleravel, chega alguém com algum produto da industria do entreten- mento montada justamente para escapar do vazio”. As vezes, alio similar ao citado acontece aos bons professores, quan- do, procurando formas com que seus alunos ndo se aborrecam, buscam “motivar’, entreté-los com algum elemento técnico. No entanto, o entu- siasmo por aprender nao tem a ver com estas artimanhas, mas sim com poder despertar a capacidade de assombro, enferrujada pelo aborreci- mento ¢ interditada pela queixa. Quando a crianca termina esta tarefa, organizada para que nao se aborreca, voltara com a sensacao de vazio ¢ a queixar-se de aborrecimento, assim como seu professor voltara a abor- recer-se de queixar-se. A queixa promave, em quem a faz, a permanéncia, e até o fortaleci- mento, da situacao que a origina, De qualquer maneira, 0 aborrecimento gera mais aborrecimento. Assim, por exemplo, para ensinar a uma crianga por que a lua nao cai, nada se consegue montando um fantéstico espetaculo se nao se indaga quais so suas teorias a respeito. ai onde est a usina que permite & crianca continuar perguntando mais além de minha presenca ¢ de minha demanda. Além do mais, com poderia 0 ensinante conectar- se com o aprendente, com sua capacidade de assombro e de perguntas, se ele mesmo tem essas potencialidades adormecidas? Como meus alu nos poderiam aprender se eu ja deixei de perguntar-me por que a lua nao aie, o que é plor ainda, se ja detxel de assombrar-me e de investigar? A muller escondida na professora | 113 A queixa como vomito Virginta, minha pactente bulimic, expulsava a comida ingerlda por nao autorizar-se a apropriar-se prazerosamente. Por meio de set corpo (prol- bidamente sexuado), do alimento que a embelezaria, denunciou drama- ticamente uma modalidade que muitos ensinantes € muitas mulheres utilizamos também, mesmo que de maneira diferente, atraves do uso da queixa, Penso que a queixa é uma maneira de expulsar a violéncia que néo se pode engolir. Virginia escolheu-me como terapeuta por conhecer-me como estu- diosa e participante dos movimentos chamados, naquela época, de libe- ragdo da mulher. Este tipo de escolha foi adequado, ja que o trabalho realizado através da minha escuta nao-sexista(!6) permitiu-lhe “expul- ar" o que Ihe haviam ensinado a atribuir como inferioridade inerente & mulher. Virginia pode expulsar de um modo diferente 0 vomito bulimico; aprendeu a usar sua “capacidade expulsante” e a investir prazerosa- mente no ato de “desatribuir’, criando um juizo ativo, jé nao necessitan- do expulsar sintomaticamente através do vomito. Para deixar de vomitar, teve que conectar-se com seu direito de possuir, de apropriar-se do alimento, mas, a0 mesmo tempo, péde rela~ cionar-se com a possibilidade de eleger os alimentos de que gostava ou no; a partir dai pode comecar a prepard-los e a nao comé-Ios tal qual se apresentavam, Assim, as professoras nao conseguirao deixar de queixar-se, anu- Jando a queixa, se nao conectarem-se com seu direito de eleger, com seu desejo hostil, buscando um caminho diferente ao da hostilidade. Desativar a queixa e o aborrecimento para ativar a capacidade de perguntar Se as eriancas conseguiscem fazer ouvir seus protestos em uma escola de pérvulos, ou inclusive simplesmente suas perguntas, isso bastaria para pro ‘vocar uma explosio no conjunte do sistema de ensino.. Deleuze ‘Se as professoras escutassem seus proprios protestos, ou inclusive simples- ‘mente deixassem espago e valorizassem suas préprias perguntas, isso bas- ‘aria para provocar um estalo na armadura do sistema educativo. ‘Alicia Femandez 114 / Alicia Fernéndez ‘A queixa-lamento da dona-de-casa é uma transacdo através da qual, por um lado, denuncia um mal-estar e, por outro, confirma, através de uma postura resignada, que nada mude. Do mesmo modo, a queixa da professora pode ser uma transacdo, isto é, um sintoma que denuncia um aborrecimento e que, ao mesmo tempo, assegura que tudo siga tal como esta. A queixa enuncia uma injustiga, mas ao apagar a maquina dese- jante-imaginativa-pensante, abona a continuidade da injustiga, seja con- siderando-a propria da natureza da situagao ou fora do aleance de nossa intervencao. “A partir de nossa perspectiva, existem dots destinos possiveis para ‘as queixas das mulheres: a) utilizar a queixa para estereotipar-se nesta expressio de hosti- lidade, oscilando entre a reivindicagao parandide e a auto-re- provacao melancélica, como duas caras da mesma moeda |. b) a queixa pode dar possibilidade a [...] constituiggo do Juizo cri- tico. Mediante este pensamento, é possivel, para as mulheres, transformar estes juizos pré-reflexivos, pré-criticos, identifica térios, em forma de juizos reflexivos, criticos, diferenciadores, que possibilitem o questionamento e a redefinigdo de sua iden: tidade. Isto favorece a constitui¢ao de outros ‘ideais pés-con- vencionais’, alternativos aos que a cultura oferece”.(17) A partir da minha experiéncia como psicopedagoga, penso e digo que, para dar lugar ao chamado juizo critico, é necessario abrir o espaco da pergunta. Inclusive as ciéncias chamadas exatas ja estdo saindo do engano da certeza ¢ valorizando o lugar da pergunta na construcao do conhecimento. Quanto ainda devemos valorizar este espago de aprendi- zagem que nao € outra coisa que incorporar, transformando 0 conheci- mento construido ao saber pessoal! 0 fisico Jorge Wagenberg(!8) diz que “a historia das ciéncias ¢ a historia das perguntas ¢ nao das respostas. O que importa sao as per- guntas, ¢ nao as respostas, o perigo est em pensar que ha uma teoria © que vou enchendo os buracos, Faco uma pergunta e até que a responda, © que faco é pura rotina.” Como se abre o espaco de onde surgem as perguntas? Acho que esse terreno fértil para que as perguntas aparecam, pode ser encontrado desativando 0 aborrecimento e a queixa: ¢ este trabalho 86 pode ser feito simultaneamente com outro, que consiste em aprender evalorizar o delicioso e perigoso gosto da cuivida, correndo o risco de salr da certeza e utilizando 2 maquina desejante-imaginativa-pensante que também nos permite selecionar e eleger. A mulher escongida na protessora / 115, Notas de referéncia 1. Os lugares a que faco referéncia sto: eidade de Buenos Aires ¢ Grande Buenos Alres| (Argentina) e Porto Alegre (Brasil. As circunstincias em que recebl as queixas so: ‘no marco do Diagnostica Interdisciplinar Familiar de Aprendizagem em uma Jorna- da (DIFAJ), em hospitals pablicos, e na clinica privada, em oftcinas com professares, fem grupos de mies de criangas com problemas de aprendizagem, em grupos de tatamento psicopedagégico para psicopedagogos, 2, Em relagio ao uso da queixa, pode intervir pelo menos duas variavels: a) pertencer ‘a.um selor carente ou nao earente do ponto de vista sdcio-econdmico. b) 0 falo de pertencer ou nao a um grupo de mulheres, 3, Em nossa modalidade de abordagem psicopedagogica implementada em varios hos- pitals publicos que atendem a uma populacio carente incluimos os grupos de maes. Depois de varias tentativas de reunir os casais de pais e frente s reiteradas ausén- clas dos genitores homens, nos vimos obrigados a reunir somente as maes. Esta situagao de desigualdade, que tem a ver com a ideologia patriarcal, nos levou a uma situagdo da qual deviamos dar conta, Explieitamente convidamos a partir dai so- mente as maes, mas para trabalhar com uma modalidade similar a ulilizada nos “grupos de reflexio de mulheres’: trabalhar para que as integrantes se assumam. ‘como sujeitos autondmos e, saindo da dependéneia, possam transformar o grupo familiar gestador de problemas de aprendizagem estruturados e visiveis nos filhos € reativos € invisivels nas mies. Colneido com os resultados das “Sextas Jomadas Multidisciplinares: Mulher e Satide" de Centro de Estudos da Mulher, Buenos Aires. 1984, que afiema: "Os programas de prevencdo e promacao da satide mental das mulheres devem ineluir ages ¢ estratégias para que estas desenvolvam sua cons- ‘iéncia de genero e analisem os determinants sociais e cullurals que condicionam sta situagia na sociedad.” 4, "Mabel Burin diferencia a “hostiidade"— caminho patogénico de um desejo host abortado — da emergéncia de um "desejo host” necessario para expressar um desejo critic e para a atividade de um desejo autGnomo. (Ver também nota 8) ‘Ver capitulo 8. [No grupo, ao encontrar-se pela primeira vez entre pares que a escutam (e segundo (6 tipo de coordenacao), eada mulher vé-se refletida na outra, e pode debrar de ‘considerar-se a si mesma samente como mie ou como o produto de fatores intra ‘psiquicas ou do destino, para encontrar outras determinagses socials que dao conta ‘da condigso ferninina, 7. No Censo Nacional de Populaeio ¢ Moradia (1960) do Instituto Nactonal de Estatis- ticas e Censos, considera-se que, na Argentina, sobre um total de 10.228.771 mu- Theres maiores de 14 anos, 7.437.007 séo economicamente néo-ativas, de acordo com a seguinte distribuigao: on Aposentadasepensionistas 852.623 Estudantes _ 799.475 Donas-de-casa 5.401.821 0) Outras situagies 491.088 8 Utizo o termo “hostilidade” no sentido explicitado por Mabel Burin: “Um aspecto ‘complexo resultante de um estado de frustracao a uma necessidade, que provoca ‘movimentos de descarga para a tensdo insatisfeta, sob a forma de expressdes emo- cionais (célera ou ressentimento, por exemplo). [| ou de sua busca de descarga ‘mediante representagdes no corpo (por exemplo, fazer uma investiduta de Orgio) [1 ‘a hostilidade busca sua descarga de diferentes formas: 0 desejo hostil, pelo contra- 16 | Alicia Feméndez oo Ho, provoca novas cargas libidinais, reinveste em representacdes e promove novas Duseas de abjetos lbidinals ao aparelho psiquico” 9. Mabel Burin, ob.cit. 10, Michel Foueault, Un didiogo sobre el poder. Buenos Aires, Aliansa Editorial 1990. 11. Esther Moncarz reere-se com estas palavras as mulheres em geral 12. Por “inibigao reativa” entendo uma modalidade que se earaeteriza por evitar pensar. Esta evitagdo pode ser reativa. como defesa momentanea, au seleiva, frente & deter ‘minados fatos ou circunstancias angustiantes. Também pode ser estrutural, qua- doa modalidade de aprendizagem hipoassimilativa-hipoacemodativaé est instalada. 18, Aburit, etimologicamente, significa “horrorizar” e equivale a "molestar", incomo. dar’, “fastidiar’, “cansar”. Em portugués, assemelha-se a “aborrecer’. Em inglés, “detestar’ ou “abandonar” (to detest ou to abandon). Em francés, a “endurecer a expresso” (defacer). Em italiano, a“odlar” fodiare). 14. Raul Cela, Et espacio institucional Buenos Aires, Lugar Editorial, 1991, preémbulo. 15. Mariscal é consultor da Organizagéo Mundial da Satie. A cltapdo foi retirada de ‘uma entrevista eoletiva, publicada no jornal argentino Clarin, em janeiro de 1992. 16. As terapeutas mulheres sfo, as vezes, as mais ardentes proporeionadoras do sub- metimento de um género sexual por outro. Varias psleanalistas mulheres (Ana Maria Femandez, Gloria Bonder, Mabel Burin, Eva Gibert, Lucy Irigaray) tem esti ‘dado a importancia da ideologia sexista da terapeuta, assim como 0 pertencimento ‘a0 genero feminino, Burin assinala que a terapeuta pode configurar-se como objeto transicional e servir a paciente de suporte da identidade de genero, no difiell proces s0 de discriminar-se e confrontar-se com sua mae e de elaborar seu proprio modelo de mulher. 17. Mabel Burin, ob. ett 18. Entrevista com Ricardo Kiris, jamal argentino Clarin, 17-05-90. [..] permitirao esta simplificacdo exagerada, se fag referéncia a dois mundos ‘que aguarcam cada crianea... Um 0 bebe bate no seio de sua mae: e ela, complacente, constata que seit Dobe est vivo e batendo, por mais que the doa, e nao permita que a machuque por gost. Dols: o bebe bate no selo de sua mae, mas esta mde tem a idéta fixa de que tum golpe no seto produz cancer: reage desaprovanda a batida, com 0 qual ‘anula tudo o que ela possa signjicar para o bebe. Bste se encontrou com uma atitucle maralista, ¢ nao poderd expiorar 0 bater ‘came modo de colocar 0 mundo onde deve estar, ou seja, fora. Winnicott 117

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