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“lracema:” uma arqueografia de vanguarda* Haroldo de Campos “Porventura néo haverd no caos incrlado do pensamento humano uma nova forma de poesia, um novo metro de verso?” ‘(José de Alencar, 11 de junho de 1856) Se fizermos uma letura do espace romanesce brasilsiro que ndo seja predeterminada por uma escatologia hegelo-lukecsiana do romance como forme “aghnica” (em vias de desaparigho: ‘em Hegel, @ transcendéncia de arte se dé na filosofie, com a morte do epos ciéssico © a desloca- ‘glo do interesse mademo da obra de arte para a reflex8o sobre @ mesma obra de arte; em Lu- cs, no Lukiics de 1935, que revd em clave otimista 0 pessimismo da Teoria do romance, de 1914-1915, a reconciiac&o do mundo com o sentido aponta para uma nova pica, a da sociedade ‘sem classes, supostamente j4 em vias de materiatzaclo no “realismo socialsta" prenunciado polo horofsmo positive de A mée, de Gérki); se 0 fizermos, ou seja, se adotarmos um entoque dialégico-bekhtiriano, que reconhega “a cooxist8ncia, na literature, de fenémenos profundamente anacrénicos, o que complica a0 extremo © proceso hisibrico~iterério™ (“Formas do tempo © do ‘cronatopo no romance”), ento iracema (1865), de José de Alencar, surgité como uma opc8o ne série Hteréria no-preexcluféa (nem sanciondvel pejprativamente) pelo fatalismo linear-evolutvo ‘daquela primeira letura escatologica. Rocop¢ao constolar Alencar recebeu (“recepcionou”) a série lterdria, representada pela “escola francesa”, de ‘maneira global: consielar como ocorre na contemplago do céu homogéneo, feito na realidade de dtorertes aisténcias astronomico-estelares (vaino-me aqui da metifora de Jauss, que rotoma @ idéia de Kracauer, da impossibiidade de uma “historia geval” capaz de reintegrar unitaria @ coe- fentemente a “histéria evéntica’, donde decorre a “coexisténcia do simulténeo @ do néo-simuité- ‘neq" no horizonte de recepco). Leitor “promscuo” (a expresso & de Aratipe vr), Alencar leu Balzac antes de Chateaubriand ¢ de Victor Hugo, nos seus tentames de passar des textos do Fé- rnelon © Volisire acs dos “modemos”, segundo ele préprio relata do maneira esponiines, recapitu- lendo seus anos de lormag&o, seu aprendizado naif de escriter, em Come e por que sou raman- la (1873). Se nko Ihe era possfvel responder & “voa forma” do romance realista balzaquiano, aquilo que Lukécs chamou “a forma da virlidade amadureciéa”; se ndo Ine era dado encontrar uma forma brasileira para 0 romance da “desiiusto” enquanto epopéia burguesa do mundo des- provido de sentido (Lucila e Senhora séo suas tentativas mais bem-sucedidas para enfreniar as ‘elacBos existenciais reficadas pelo dinbelro, encontrando na mulher chjetiicada o pharmakés por exceléncia: a prostituta foreada, cuja vindita é © desenireio de Eros; ¢ mulher financista, que ver ce © homem com seus prbprios meios @ o prende numa rede embfqua de poder 9 seduzéo deans tica), outro foi o seu movimento mais consegdente (como resultado esteticamente ponderével) No tabulero da série iterdria; seu espaco mais coerente de liberdade abriu~se segundo a linha de me nor resisténcia do ideoiégico, aquela que melhor he permita exercer sua factividade romanesca HAFIOLDO DE CAMPOS 6 posta, traguir 9 ensaisia. Sous ivros de poesia mats recertes so Galdaias (Esitora Ex- Libris) 8A eciocardo 0s cinco sonties (Edtora Brasiionso). * Feta texto, concluido om dezemtra {de 196}, tove sua rtlexto nica ‘na Universidade do Texas om ‘Aste, uma primeira versio do ‘masmo, sam as notas, fl ‘extampada no Joma! ca Tarde, S80 Paulo, a 2d janeiro 0 1962, ‘Marco/Abdl. e Maio/1990 Revisia [ESP - 67° 10), Trawom de exeart do {am age 3oAlener seats 0 haman Bréehisbrco, pubtcada poueo antes fi mone 0 forancia Dosorverse ‘notions mverowgine timo ‘ie onorta og Fobra, soma ance ‘Mian signi “omer fate ge bao Segundo «iia, agar, “er ‘bm. coraintiant, weve’ ier SJomat Sor de tra". Ver Theo. ‘glans onerouen aur At Fea ‘nor. eientzae per. Boner i Fingoren,. Situ. Verlag W Fotinanene, 1973, vl 1, p. 2 es ‘tacoma, do 8038 com sna! wocae, 2 rgem 40 Tupd sole @ tarsi Se ‘abo a dabea post por Mart foestttando. gua te the ate daniiadoia, « Wgem- do sortior 6 ‘coparave ta expresso "08 Pronnea, ‘lana que te aesce, frdtca@ ameyoss, no Fonz ataoltg {ue @ are &Scondgho sekyont™ (to fecunda em obras, tio parca em realizacSes efetivamente duradouras): 0 recuo arqueogréfico para a pré-histéria co romance burgu8s, para aquém da épica, para 0 fundo ritual do mito © da ion- a, a pré-hist6ria foleibrica do romanesco, 0 UR-EPOS, Utopia regressive ou revolucso Miolégica? Nao se tratava de uma mera “utopia regressiva”, porque nesse arco de retorno, nessa volta imaginégria &s origens, havia um contedido concreto, travado, em termos da préxis literéria do tem- po: desde logo, © problema de fundar uma fingua iteréria nacional, ‘pico particular de uma de- ‘manda mais ampla, a pesquisa da “iorma do expressic", quo tio importante o persistonto soria para 0 escritor brasileiro (come Antonio Candido o sustenta om seu estudo de 1949 sobre o “raiar de Clarice Lispector, trabalho polémico, onde @ alualidade da questo se repropte em pleno mo- ‘merito do romance pOs-modemista, contra 0 bastidor dos regionaiistas da década de 30). Criar uma nova expresso era ofiarliberdade, e a baliza negativa dessa liberdace estava justamente no purismo vernacular portugués. Se alguma vez 0 poffico conservador e ex-ministro da Justice do Iimpétio (1868-70) se prociama subversivo é quando assume a acusacdo, que Ihe 6 movida por Pinheiro Chages, de “insurreicSo contra a gramética de nossa thgua comum", quando considera ‘que a “revolucdo filokégica” que the atrbul o crfico luso & “iresistivel o fatal" hinda-se no “espltte popula” e “hé de ser larga @ protunda, como a imensidade dos mares que separa os dois mundos ‘2 que pertencemos", Seu pos-escrito & 2° ed. de Iracema (outubro de 1870), como, antes, 2 “Carta ao Dr, Jaguaribe”, que serve de postin 2 1! ed., 6, quase lanto como os “Marefestos mo- demistas” de Oswald, uma peca aguertida de combate poético e de reivindicagéo de fierdade de invencio, Alencar verbera o “terror pAnico do galiclsmo", a “tacanha avareza” daqueles puristas, lus6flos que “defendem o seu portugués quinhentista, ais a adolesc8ncia, como um jardim das Hespérides, onde no pode penetrar um termo ou frase profana” (Assim, reida a distincia, alencariana tem um matiz pré-treudiano, quando surpreende, na represt&o ao “estranho' esto pubertirio ~ de puberté diffcile ~, de defesa adolescents contra a mAcula prazerasa no texto..). © autor de ‘racema proctama @ inluéncia dos escritores na transformagéo do obdigo da lingua, recusando-se @ ver na gramética um cénon imutével, “padrao inalterével, a que 0 escritor se hé de submeter rigorosamente”. Argumenta: “Cotejer-se as regras atuais das lnguas moder- has com as regres que predomingvem no perlodo da formacao dessas thguas, ¢ se conhecer& a transformaco por que passaram todas sob a aco dos poetas @ prosadores™. Detende o cab deamento poilingie como forma de vivificago do portuguds do Brasit: “Cumpre nfo esquecer que ‘0 filto do Novo Mundo recete as tradig6es das racas indigenas e vive ao contacto de quase todas as ragas civiizadas que aportam @ suas plagas trazidas pela iigragéo. Em Portugal, o estranget "0 perdido no meio de uma popuiaco condensada pouce influbncia exe: ovo: no Brasil, ao contréro, o estrangeito @ um velcuo de novas idéias e um elemento da ciile ago nacional, Os operdrios da transformago de nossas lnguas so esses representantes de tantas racas, desde a sax6nie aié 2 africana, que fazem neste solo exuberante amélgama do san- gue, das tradcbes e das nguas”. © hibridiamo e a operagse tradutora Estudando as origens do romance como um “hifrido” de linguagem, M, Bakitin escreve: “A rosa romanesca européia nasce © se elabora num proceso de treduao livre (transformac&a) das obras de outrem” (processe que, segundo esclarece, pode incluir a “translag8o” de verso3 épicos em prosa). E acrescenta: “Os embrides da prosa romanesca aparecern num mundo plut lingie @ poliffnico, na Spoca helenistica, aa Roma imperial @ na ocasiéo da desintegrarfo © da queda’ ca centralizaco ideokSgica da loreja medieval. Do mesmo modo, nos tempos novos, a flo- ago do romance esth sempre relacionada com a decomposicéo dos sistemas verbeis ideoligr co8 esthveis @, em contraparte, telaciona-se com 0 retorg® e a intencionalizagéo do plurlingdismno, tanto nos limites do préjro dialeto iterério como fora dele” (“Sobre o d'scurso no romance"). Elegendo 0 “cronotopo” fabular de raiz folcibrica, racema recua para a pré-hisi6ria do epos: ‘arficula-se corro um “mito de origem”, exposto, do ponto de vista estrutural, em termos de raconto simbélico de aventuras @ matizado de momentos idfico-pastorais (Brito Broca falou em “verdade> ras pastorais, em que h& muito de conto de fada”, refefindo-se a essa fase da produco alencaris- ‘na, na qual Iracema, a meu ver, &’o Cnico texto verdadeiramente exponencial). Nesse sentido, po- de ser desctita como uma obra “monoiégica” (pr6xima do “monologisme &pico"), eleborada em mado “sétio-estélico” (a “carnavalizegao” desse paradigma se dé em Macunaima, onde a fébula se deixa transvestr de farsa, assumindo 0 “modo parédico”). Todavia, 6 no piano do signiicante ~ 66 - Revista SSP MarcoiAbrit e Maio/1990 plano que, segundo penso, vendo-o da perspectiva operacional da “iunc8o postica’, deve ser en- {endido de modo abrangente, envolvendo tanto a “forma da expresso" como a “iormna do conted- do” ~, 6 nesse plano do significante, justamente, que o texto da “ienda” alencariana se delxa atra= vessar de "polfonismo”, na acepc&o bakhtiniana. A intervenco da inguagem “em estado selva- gem", apresentada como programa para uma tomada de consciBncia etfica do fazer podtico bra- Siliro, rompe 0 estatuto do “monologismo épico”. Marca-se também aqui um momento de “roman tizago do epos" "Via" linguagem, enquanto reeducagsg do poeta brasitelro através do aprendiza- do do “estado da natureza” “via” escriura tupinizada, E este o momento de “provocagao experi- mental” (Bakhtin) em Iracema, que @ reprojeta no futuro, resgatando-a dos arcanos do “distancla- ‘mento 6pico" onde a inscrevera Alencar com traco augural, fascinado pela recuperac&o da “intan- Cla hisi6rica” do brasileiro (um tema capaz de provocar “uma etema instigacSo", como o priprio ‘Marx 0 reconhece relerindo-se Aquelas “criancas normals" que os gregos teria sido...). Nesse plano, Alencar se comporta como um tradutor quo aspirasse & radicalidade, “eetranhando” 0 por- tugubs cantnico © “veroc&nttico” — tngua da dominaco da ex-metrépole — ao influxo do peradig- ‘ma typi, por ele idealizado como'uma lingua edénica, de nomeagdo.adamica, em estado de prinel- tidade iconica, auroral, © autor de Jracema, allés, acabarf por exprimi que v8 em Adio, “homem vvermetho", de argil, o pai da “raga americana”, E opidprio Alencar quem se presenta como tradutor virtual, 20 expor 0 seu projeto de “ex- periéncia em prosa” (também definico, enquanto ivro, como “ensaio” ou “mostra”, onde s@ acharé “poesia inteiramente brasileira, haurida na lingua dos selvagens”). Diz 0 romancista, enunciando o ‘s0u programa: “Sem dévida que 0 poeta brasilvire tom de traduzir em ova lingua ae idéias, embore rudes e grosseiras, dos fndios; mas nessa tradupBo esti a grande dliculdade; & preciso que a lin gua civilizada se moke quanto possa & singeleza primitiva da lingua barbara; e no represente as Imagens © pensamentos indigenas sendo por termos e frases que ao leltor parecam naturals na boca dos selvagens, O conhecimento da lingua indigena ¢ 0 melhor cfitério para a nacionalidade da literatura. Ele nos d& néo sé 0 verdadeiro estilo, como as Imagens podtices do selvagem, os modos de seu pensamento, as tendéncias de seu espiito, @ até as menores peculiaridades de sua vida. E nessa fonte que dave deber 0 poeta brasileiro; 6 dela que hé de sair 0 vordadoro oema nacional, tal como eu 0 imagino” (“Carta ao Dr. Jaguaribe", op. ot), ‘Nessa linha do concepeéo, a operagiio tradutora acaba sendo, Iresistvelmerte, uma razzia “parbarizente”, que arrulna a pureza do idioma dominante, civilzado, dobrando-o & “tantasia etl- moigica” (a formula 6 de Cavalcanti Proenga) da “expresso setvagem”. Alencar atasta-se de ‘Chateaubriand, que, em Alala, professara user com parciménia 0 style indien, temeroso de que ‘seu relato virasse algo t8o incompreens{vel para o leltor como 0 “hebreu™?. Ao invés, 0 autor de lracera, intutivamente, por uma thtica de “nativismo” de combate em que 0 “verossimif” 6 um ou tro nome para o “realismo" edBnico da linguagem entendida como *vera-ellgi” do homom no “es ‘ado da naturezs", aproxima-se, antecipsdoramento, de uma idéia do traducfo como “estranha- ‘mento do idioma vernéculo, uma idéia que implica a exposicfio da lingua do tradutor “ao impulso violento que ver da thgua estrangeira” (este 0 precelto da traducéo “coro forma’, defendido mo- ‘demamente por Walter Benjamin, como apoio em Rudoit Pannwitz). Seu tupl até certo ponto “n= verttad” (pelo menos tendo em conta o que iz Mattoso Cémera Jr. sobre a estrutura dessa th- ‘9u2, cientficamente descrita e “desromantizada’)®) resulta numa enxertia heterogiéssica sobre o Portugués: prolifera em metdtoras desencapsuladas a partir de semantemas aglutinados; desdo- bra-se em shrles que reproduzem, icasticamente, a pressuposta concrep do mundo primtivo. Na “ficg8o" historlogrifica de nosso romantiemo indfanista, pode-se dizer que o tupi alencariano ropresentou, & maneira de maginesa “contrafac&o" escritural, o “Poem ossidnico” que nos falta- va, @ indicier, como “suplemento" estranhante (extra-vagante) a rasura da “origem” promovida pela repressiviade da cutture colonizadora (lemibre-se, neste passo, a tese de Joaquim Norberto, sublnhada como sintoma de radicalidade por Antonio Candido, da presumida “exist@ncia de uma literatura indgene, autenticamente nossa, que, a n&o ter sido sufocada maliciosamente pelo colo~ nizador, teria desempenhado 0 papel formador que coube & portuguesa...”). Da metétore fénica ao estilo de poriodos destacados: ‘Ao Inventar 0 seu tupi como dispositive estético, Alencar constituiu uma imagem da sua prosédia, do seu ritmo, da sua fonia. isto tem sido abjeto de mulios estudos, @ desde logo acha-se ‘assinalado em Cavalcanti Proenca: “€ ciaro, pois, que Alencar encontrou no tupi, néo s6 a sonor- dade vocitica de sua prediecdo, mas a lingua pldstica e sensorial, rica de cnomatonéias.... Mais adiante, 0 mesmo aulor registra: “E algumas das virtudes da lingua tupi se transmitem a0 idioma os civlizados, principamenta a suavidade prosédica, com vogais descansadas e lertae, alholas Margo/Abeile Maie/1900 Revita (SSP - 69 Esta cariostura de Joodde 408 empuriBes das consoantes”. E conclul por frisar a “influBncia da lingua indigena no ritmo de AAloncgr saluem Mechisiopheles Alencar", falande da “mtisica de Alencai” como de ume expresséo "jé tornada lugar comum lterd- nt Aliment étatadealcome igs” © que 6 menos dbvio, © nfo tem sido anlsado, 6 o quarto esse paula sonora idoiizada eee (que se transtorma em programa de revilalzacdo dlerencladora do portugues no Brasil: “Todos 03 povos de génio musical possuem urna lingua sonora @ ebundante, O Brasil esté nestas condicdes; a influéncia nacional jd se faz sentir na prondnoia muito mais suave do nosso dialeto”,) acabou por influenciar a tassitura “microtona!” (por assim sizer) de Iracema. Das equacbes de simiitude no plano da “forma do conteddo" (metiforas em te:mos genéricos, ou mais especticadamente “sim es" comparatives), 0 passo imediaio 80 as “motdforas fnicas” ou “parafonias* (os “anagramas’ na acepeéo saussuriana do terra) que equacionam @ magnetizam semanticamente figuras fon= cas dispersas @ redistrbuidas no “piano da expresso”. Se rouita gente observou que a chave do romance-lenda 6 “criptogrdfica” (de Araripe Jr. a Wilson Martins @ Stviano Santiago), seré neces sro ir mais longe, para perceber que Iracema no & apenas 0 criptograma "idbios de met’, ver- betado no glossério alencariano de tupinismos, mas, ainda, que se deixa recontigurar no texto em “criptofonia” sublirinar (assim, pbr exemplo, o sintagma comparativo: “Mais répida que a ema sel- ager, dé © nome da virgem morena, quando Ihe introcuz a corrida gil, A maneira de uma “me- tdfora fixa” homérice; ouga-ce: RApIDA EMA / IRACEMA, A 98se trabalho fOnico, sempre dentro do paradigma tupinizante, corresponde a idéia do 70-Review (TSP Mero/Abele Maio't990. “esto” como “aite plastica” (ainda a propésto da influéncia da lingua tupi sobre a imaginago alencariana, observa C. Proenga: "Nela, a Imaginacéo de Alencar acharia largos horizontes onde ‘espralai-se; @ 0 trago visual de seu espftto S6 poderia estimular-se ao contato de uma linguagem us, por sar primitiva, era concreta por exceléncie.”). Daf decorre a oposic&o de Alencar a0 “estilo conjuntivo”, na polémica travada com Pineiro Chagas (°No conceito do distints iterato, os nervos do estilo so as particuias, especiaimente as conjungSes, que tociam a frase dos autores clissicos, o serviam do olos & longa sirio de oragbes amortoadas em um 36 periodo, Para o mou gosto, porém, ent vez de robustecer 0 estilo e dav-the vigor, essa acumulagao de oraches ligadas entre si por conjungies relaxa a frase, tornando 0 Pensamento dituso © languids.”). Ao estio copulatvo, que considera “abusivo” ("o emprego da Copulativa para uniridéias distnias e oracées completas 6 um abuso’). O autor de lracema ope 0 estio de "perfodos destacados”, propondo a substiui¢do daouele estilo coniuntivo ("t&o alinhava~ do de conjunebes”) por uma “frase mais simples e concisa”: a “separaco dos perfodos denota a sucesso e contrasto” das “mpressbes vérias”, ao invés de tender para a “acumulagto de co- 08", para o “pastiche grosseiro”, © oxomplo que Alencar oxibe no “Pés-escrito & sogunda odi- ‘g8o" de Ikacema, da aconéncia desse “estilo de perlodos destacedes” nos priprios cldssicos (descrig&o da tha do Cello por Lucena), & um paradigma ready-made de “poesia pau-brasil, tal ‘como Oswaid a ira sistematzer nos seus recortes em “esto montagem” dos anos herdicos do ‘modernismo, Reescrevo-0 parciaimente aqui, com as Ypicas “pausas” oswakiianas: ‘As pedrelras criam os mais finos rubis, safiras, ofnos-de-gato e outra muita sorte de pedrarias, (Omar, além de muito pescado, &, como [4 dissemos, um dos trés tesouros das péroles e aljotras do Oriente, € a delese da esciitura assindética, principio da sublevaco da paratéxis contra a hipotéxis, no: plano da informago estética, que comeca a esbocar-se com o Alencar “tupinista”. Essa dofesa 6 apoiada por um argumento extraido da operagdo tradutora, Alencar, no mesmo “Pés-esczito”, ‘agindo como tradutor intertextual (intralingual), mostra como fazer para trasladar o estilo “antigo” no modemo. Apresenta um trecho da prosa cléssica de Fr. Luls de Sousa, “vestido & moderna”: ‘em seguida, trae “A antiga” (& moda cldssica) um fragmento d'O Guarani. Ness2 operagSo de re- escrtute entendie, multo a propésito, como “tansvestimento” (vestr, trajar), o que releva, na primeira demonstragBo, & a compactag&o do texto em menos oragées (de otto para seis), a fm de tomé-lo mais “conciso” e “terso™; na seguncia, 8 0 proprio “esto de perfodos cestacados” (am- brio da prosa sincopada modernista”) que se deixa manitstar. Tudo isto convergindo para o programa da “barbarizacko” estranhante: "6 preciso que a Ingua civiizada se moide quanto possa 2 singeleza primtiva da lingua bérbara”. Um programa fundamentalmente de “traducSo", como 0 soube ver bem Soares Amora: “Alencar nfo hesitou em tirar todo 0 partido das palavras indfge~ nas, jogando com seus valores sonoros © seu contetido metalbrico @ simbdlco, © om procurar, ‘numa estrutura fraseciégica portuguesa, com todos os seus recursos de eulonia, expressividade © impressividade, uma ‘radugfo’, o mais fie! possivel (do ponte de vista lterério, bem entendico) o espitito da lingua tupl, Nao importa que as solugbes encontradas por Alencar sejam véiidas ‘mais a luz da esiétca iterdria que da ingUistica ~ 0 que importa é que seus achados resultaram Perfeitos © responderam integralmente ao esplito, 20 carditer@ as intenc6es poéticas da obra". Sé Que a id6ia de “fideidade”, requladora na citaco, pode ser agora renensada em termos benjami- nianos de “fdelidade & redoacao de uma forma”: a forma semitica do tupl esteticamente idecliza- do como lingua adimica, que kevaria o autor de Iracema a trenegross8o hibridizanto do portugubs canénico, A etapa mais radical desse projeto heterogiéssico serS levada e cabo por Guimerties Rosa, em “Meu fo, o lauarst8", verdadeira ultimago de “revoluggo Mokigica” de Iacerna, onde @ Virgem selvagem que corria Agi nas matas do Ipu, e depois amamenta seu fiho com o leite dos selos sangrados pelos fihotes da irara, reencama-se numa “tgresa” real, a cangugu-f8mea Maria~ Maria, cobicada com zelos de macho pelo onceiro-onca Tonho Tigreiro, que ruge @ esturra em tu- pl... Um oho lexicogrdfico poderd descobrir o nome “\laguarets", verbetado como “o grande devo- fador", numa nota alencariana: um amador de consondincias fnicas podaré encontrar um eco de “Moacit", 0 “fiho do sofimento” — numa cea linha posstvel de intorpretactio, 0 proprio toxio hibri- de engendrado © “doado” por Alencar, na sua tontatve, enfatizada por Araripe ur, de decitrar o enigma da origem (".. deciré-l, dar-he forma, ©, de vago, reduztto a concreto..")~ no apelo fr nial, “Rerruact” (amigo, meio imméic), do indio-onga estertoranta... Arecusa& forma epigonal da épica Na concepgéo de André Jolles, Mythos © Logos coexistem “oximorescamente”. A vontade de conhecer por “esclarecimento”, orientada para 0 objeto ¢ sues relagbes, que aspira a juige- Margo/Abrile Maio’1990 Revista (SSP - 71 Conese SBOteras S60 rumerosas as caricaturas de ‘Alencar no seu periodo de ‘atuacao politica, pariamentare ‘ministerial, que foi de 1860: 1870; esta apareceu no Mequetrate, de 3 de outubro 60 1874, arespeo da “Questan Guarany’ mentos universaimente validos, se desdotra numa outra “disposic&o mental", da qual resulta o “mito”: forma. capaz de criar 0 universo. as coisas e suas relagtes, através de uma interrogacéo © de uma resposta, ¢ que se basela nBo no contetido de verdade, mas na “profecia verldica” (Joles sublinha quo, em aloo, fragen, perguntar, vem da raiz freh, ervolvendo ainda es acepodes de forschen, desejar, buscar, ¢ fordern, exigir). A esse questionar humano, que se traduz num desejo © numa demanda, 0 universo, segundo Jolles, responde como uma “forma”, o mito, cujo portador & o"stnbobo”, (© gesto alenceriano de retro ao UR+EPOS (8 retomada do epos impossivel na era bur- ‘qvesa, por um romancista brasileiro incapaz, por seu tumo, de escraver com coeréncia a “prosa ‘do mundo” moldada na forma “torte” e no paradigma de “verdade" do realismo. balzaauiano) se dew por esse modo pararmitolégico de “decitraco verdica”, através do recurso & estrutura fabular, haurida pola mediagBo do folclore © da tradigo oral, Lombre-se quo Alencar, ao tratar do argu mento histérico de.Iracerna ~ a que chama “lenda", ¢ nfo “romance histérico" quando sistornaliza © conjunto de sua obra ~ aponta a “tradigao ora!” como “Tore importante da bisi6ria, € 4s vezes @ mais pura @ verdadelra.” C. Proenca assinala: “A obra de Alencar tem raizes embebldas no folclo- re; caf a estrutura dos contos populares se projeta fortemente em sua efabulacéo. Alguns de seus ppersonagens podem receber, como nas histérias do Trancoso, vaoas denominacbes ~ urn moco ‘muito pobre, um rei, 0 Indio, a bruxa” (Daf 0 equiveco dos que buscam uma indagaco psicolégica ‘em lracema: seria como que petguntar pelo aprofundamentto psicciégico da Helena homérica ou dds herdina de um “conto maravilhoso"..). Fazendo a sua opcio “regtessiva” na série literéria disponivel (0 exemple do Atala & vista, cconwvivendo, no esparo Iiterdrio dialSgico da coexistBncia do néic-simultineo, com a obra de Bak 26, folecido om 1850, © cuja desaparicfio deixou um vazio de expectativa quanto ao futuro da forma do romance junto ao pblica francs, segundo observa Jauss, louvando-se no testermunho de Baudelaire), Alencar, no espaco terario brasileiro, provocou, ao mesrTo lempo, um momento antecipador e produtivo. Seu movimento foi regressivo/progressivo, se considerainos o que ver depois (a *prosa do ‘como™, de Pompéia e Clarice Lispector, por um lado; a “carnavalizacdo” ma- ‘cunalimica, em modo parédico-antropotégico, por outro; a racicalizacao “wpinizante”, deniro da vertenie “sériowestética", no “lauaret8" de Rosa, num terceiro tempo). © poara épico de molde camoniano, gasto por sucessivas dlluigbes epigonsia, da Proso- popéia de curto fblego ao Caramuru @ & A Contederacéo dos tamoios (para nos lim tarmos ao Ambto brasileiro), havia-se exaurdo na série lterdria, como padrfio intertextual dotado de eficcia, som que disio se dessem conta, entre nés, 09 pré- prios poetas. Alexandre Herculano, de- ondo sobre a recém-publicada A confede- ragao dos tamoios (1856), @ pedido de D. Pedro Il, mecenas do autor, i indicita essa caducidade da epopéia como forma: "Ne~ nhum dos sumos poetas contemporaneos, Goothe, Byron, Manzoni, Hugo, Larartine, Gaocret, tentou, que eu saiba, a epoptio. € que 08 seus altissimos instintos posticos thes revelaram que 0 cometimento seria mais que atduo, seria impossivel. A epo- péia humana, que jd nfo era do século passado (deu-nos tristes documentos dis- 50.0 génio de Voltaire), menos deste s&- cub. O passado ainda tinha as céleras do flosolismo: este olha para tudo o que & he- rico e soberano com o trio desdém da in- aiferenga ¢ do ceticismo”, Alencar, intultvemante, caminha pa- 1a rejelgdo da forma epigonal, neoclasst ca, do 2p0s em poesia, fevedo pelo mesmo impulso de recusa 0 “portugués de Corte", om que, Seguiido objeta, fora escrito o pooma de Magalhées (“um belo assunto que, reaigado pola grande- 2a 08 uma raga intellz, 6 pelas cenes da natureza espléndida de nossa terra, dava tema para uma Hai do: eavehio pus oe ia 72+ Revista (TSSP Marco/Abri e Maio/1990. divina epoptia’ se fosse escrito pot Dante”). Afrrma na polémica movida contra a camoniada do vate Sulico: “Se algum da losse poeta e quisesse cantar a minha terra e as suas belezas, se qui- ‘sesse compor um poema nacional, pediria a Deus que me fizesse esquecer por um momento as mminhas idéias de homem civiizado". Esse “esquacimento", embora ainda nutrido no sonho de es ‘crever “um poema", dau /racema. Al, para captar opensamento selvagem" (esta expressio, que hoe nos soa & LéviStrauss, esté na “Carte a0 Dr, Jaguaribe”), 0 escritor se decide por uma “ex pedéncia em prosa”. Alericar parece estar reunindo, num mesmo propésito programético, os dois ‘vols (Ou as duas pontas) de sua polémica: por um lado, a necessidade de “barbarizar”(Iela-se “tupinizar’) 0 portugués para submelé-o aos “mados do pensamento” indigena, e assim, gragas a uma operagSo tradutora conduzida no plano do significante, chegar &s fontes lingilsticas de que sairia 0 “verdadeiro poema nacional’: por outro, aquele sentimento, no completamente formulado ‘om termos de programa, mas percebido fortemento om termos de rejalcSo de uma forna gasta, que © faz, primero, investir contra a A Confederag:So, 0 rmais tardo, no “postiicio” a acerna, ros- salvar 0 que enlende por grandeza de Goncalves Dias, mediante uma crttica & “inguagem ciéssi- ca” da tentetiva goncalvina (outra mais!) de “epopéia brasileira” (Os tinbiras, 1857): “Goncalves Dias 6 0 posta nacional por excel8ncia: ninguém Ihe disputa na opuiéncla da imagina¢ao, no fino lavor do verso, no conhecimento da natureza brasileima @ dos costumes selvagens, Em suias poe- sias americanes, aprovetou muito das mais lindas tredicdes indigenas; 6 em seu poem nBo con- cluldo ¢Os timbiras, propbe-se a descrever 9 epopéia brasileira, Entretanto, os selvagens de 6ou poema falam uma linguager ciéssica (..); eles exprimem idles préprias co homem civilizado, © {que no é verossimiltivessem no estado da natureza”. A inadequagéo da linguagem gongalvina, ‘esolvida por Alencar, no plano expressions, por um dispositive de traducéo radical, estraniante (nao importa se filologicamente “falso”, idealizado, quanto & sua concepséo do tupi), deu lugar @ uma outra solug&o formal, complementar, esta para solucionar um impasse tipoi6gico: aceder ao poema pelo caminto da prosa. Ditou-a 0 fracasso da ratomada do epos em forma versificada (e modelada inevitavemenie om Cambes, sinda quando em versos brancos), seja nos inconclusos Timbiras de Gongaives Dias, “o posia nacional por excoléncia”, caja no vbo canhestro da Con- federago dos tamoios, balejada pelo rentente favor imperial, Reconfirmou-a a prdvis escrtural do proprio Alencar: 0 tracasso de seu projeto pessoal de épica, intentado em 186%: “Comet a kmpru- déncia quando escrevia aigumas caftas sobre A confederagao dos tamoios de dizer: ‘as tradicoes dos inclgenas déo matéria para um grande poema que talvez algum dia alguém apresente sem ruddo nem aparato, como modesto fruto de suas vigfias.” Tanto bastou para que supusessem que 6 sector se raferia 2 si, @ titha j& em mo 0 pooma: varies pessoas perguntaram-me por ele, Metou-me isto om brios iterdrios; sem calcular das forcas mihimas para emptesa to grande, que ‘assoberbou dois ilustes pootas, traco! o plano da obra e a comacei corn tal vigor que a level qua- se de um f6lego a0 quarto canto, Esse fdlego susteve-se cerca de cinco meses, mas amorte- ae 'Nem tudo isto se deu sem profundas vaciagbes. A idéla da passagem do verso pata a pro- 's@ envolve, para Alencar, como para o Chateaubriand de Atala, que o inspira em certa medida, um traco de “rebaixamento”, de “degradacsio" (No prefdcio & 1? ed. de Alala, depois de definir 0 seu livro: C'est une sorte de poéme, Chateaubriand se apressa em esclarecer, através de uma nota: “Num tempo em que tudo esté pervertide em matiéria de literatura, sinto-me obrigado a advertir ‘que, se me sirvo aqui da palavra Poema, & porque no sei como tazer-me entender de outro mo- do, Nao sou un desses barvaros, que confundem a prosa eo verso, O poeta, digam o que quise- rem, 6 sempre o homem por exceléncia; volumes inteiros de prosa descritva nao valem cingDenta bbelos versos de Homero, Virgflo ou Racine.”). Alencar, por seu turmo, ao renunclar 8 épica inicla- da @ em plena exoanséo (“ivro, onde estéo ainda incubados ¢ estarko cerca de dois mil versos her6icos”), 0 faz mediante um “Alib”, uma astticia da refiexBo tebrica, que invoca a possfvel re- ‘cepefio incompreensiva do poema em elaboracio corro arqumento decisivo para o abandono da ‘empreitada: 0 verso scresceria a dificuldade do projeto, tornando mais cemploxe a tarola de amol- damenio do portugués ao “pensemenio selvagent", A “experiéncia em prosa” funcionaria como lum primetro passo, um “teste” para a obra comecada em versos (“Por outro lado conhecer-se~ia 0 feito que havia de ter 0 verso pelo efelto que tivesse a prosa.”). A consolago da poesia percica {e Invia) pela prosa vidvel se consuma nessa deciaracko de intenbes: “Se 0 pibico ledor gostar dessa forme literfiria, que me parece ter algum atrativo, entéo se faré um esforco para levar a cabo © comecade poema, embora o verso tanh perdido muito de seu priritivo encanto” (Caso contré- rio — acrescenta 0 posta irredento — 80 versos inacabados seriam retegados & “gavela dos papbis velhos", como “reliquias auloblogréticas”; isto 6, se a incompreens&o do pablico fizesse 0 autor se desenganar de mais esse “género de fiératura.”). Ocorre que, embora no tenha econtrado desde ogo sucesso junto ao pabiico (ver nesse sentido 0 testemunto de Machado de Assis, em 1866, Marpo/Abril e Maio!1990 Revista (TSSP - 73. retenido-se a iracema como “obra do futuro"), a “experiéncia em prose”, o poema vicdrio (“en- sai0" ou “mostra”) de Alencar suplementou e rasurou ao mesmo tempo, no Animno do escrior, sua inaptdéo vocacional para a épica versificada. Esta ihe delxa um penoso salio de “dois mil versos, herdicos”, que the parece, nos intervalos de lucidez autocrttca, inferior, pela vulgaridade e rrono- tonia, a “quanta prosa charra” tonha ole “estendido sobre 0 papel”; em momentos de menos rigor, © “lib ardiioso recrudescs, tingindo de contrafeita soberbia, @ ole o formula eno como receio de perder inutimente o tempo “a fazer versos pera cabocios", variante daquela mesma justiicativa, ‘conforme @ qual urgia abandonar 0 projeto de “escrever um poema que devia alongar-se”, para assim evita “o tisco de no ser entendido". Nesta segunda linha de auto-expicacao, 0 projeto “selvagem" & puniio pela “m&-consciéncia” civilzada..O respiro pico do poema (0 mode camo- niano esth implfcto) n&o se coaduna com o “pensamento selvagem": os “versos pata caboctes” ‘ariscariam no encontrar audiéncia suficientemente solette para discerit 0 “escrépulo douro fr no" () “desentranhado da profunda camada, onde domme uma raga oxtinta™; uma audiéncia ca- paz de proferir, “As imagens om voge", as “foros agrestos da poesia brasiteira”, “a imagem ou pensamento” to faigosamente “esmerinacos” pelo autor; enfim, de reconhecer a valdade estét a da operacéo tradutora, hibridizante, da lingua civitzada nos moldes da tngua barbara, ousada pelo poeta-prosador no momento de radicalidade que govema esse mesmo projeto. (Araxipe J, ‘em seu livro de 1882 sobre Alencar, capiou bem a “sensacéo estranha” que Iracema despertava, ddanco-the um “tom inimitéver: "No 6 um canto aborigene; mas também um europou néo seria capaz de escrové-lo. € um produto inteiramente crioulo", E ressalta o “lato da intraduzibiidade” uma caracterfstica geralments atribulda & poesia = como a “prova mais evidente” do "cardter or ginal” dessa prosa, resuitante, por sua vez, como vimos, de uma operagso de traduco, NO sent do lato do termo...). ‘O maior poeta indianista Quaisquer que sejam as fraturas post-lestum em que se divida o romancista Alencar, en- ‘quanto sujeto reflexionante, confrontando-se com a experiéncia de /racema, a verdade 6 que a deslocaco do projeto pico, do verso epigonal para a prosa “himitével", resolveu o acaso voca- Clonal em necessidace morfokégica (e © movimento regressivo em progressivo): da inibicB0 ou in- ‘compet8ngia versejatéria nasce a proposta de uma nove “forma iteréria”, erigida sobre 8 exausiso de um modelo obsoleto ("O verso pela sua dignidade ¢ nobreza nfo comporta certa flexbidade de expresso, que entretanto no vai mal A prosa a mais elevads. A elasticidade da frase perriti- ria onto que so ompregassem com mais clareza as imagens indlgenas, de modo a nfo passarem despercebidas.”). Iiacema, 0 poema-substitutve, 0 “canto sem metro™ na “rude toada* do “pen- samenio seivagem” (“Quem ngo pode llustrar a terra natal, canta as sues lendas, sem metro, na rude toada de seus antigos fihos”), corrdi e erode a “nobreza” da épica em versos propriamente dita, que 86 sair& do limbo autobiogréfico para a museografia péstuma das paginas especializa- das. Os fihos de Tupa (1863), em versos decassidbicos, planejados para XI Cantos, S80 0 bor- rador sem lustre dessa apetincia frustrada para 0 pico “dignficado”, ern moldes tradicionais. O estado diamantéio dessa pulsso (a metéfora aqui nfo $ mallarmaica, mas aloncariana: “A nature- Ze softe @ infubncin da poderosa irradiagBo tropical, que produz o diamante © 0 gBrio"), agora ret ficada em seu curso ou inflexdo, se manifesta em raceme (1895). Gracas a uma espécie de mu- tapAo cristalogréfica, que resulta da tore80 do poema trusiro na prosa surpreendente. Oa crisdkda ‘minaz onde larvam dois mihneiros de decassllabos em estado potencial de profferagae épica, ‘emerge um livrinho de 33 capftules sintéticos, uma prosa de metiforas “desaglutinadas” ¢ “perto- ‘dos destacados”, em ritmo de tupi imagingrfo. Aqui Alencar, 0 prosador de destinaco, supera os pootas de eleico, a comecar do préprio Goncalves Dias. Paratraseando 0 que disse Walter Benjamin sobre o Romantismo Alemfo ("Die dee der Poosie ist die Prosa”), poderia ou dizer que a idbia de poesia do Romantismo Indianista brasileiro {oi a prosa. Numa Escola em que a poesia dava o tom, a prosa deu a forma (o “Método”, explicita Genjamnin). Jakodson reparou, ‘alando de Pichkin e Liérmontoy, de Malakdvski e Pasternak, nos ‘momentos respectives da iteratura russa, que em perfodos de epigonismo prosaico, de repeticao de models cléssicos, 0 sopro renovador, precursor de rumos insuspeitados, costume vir da pro- ‘sa de excegdo dos poetas. Talvez, neste nosso caso brasilero, estejamos diante de uma hinStese simetricamenta oposta. O maior poeta indienista (o Gnico olenamente legfvel hoje, se no pensar- ‘mos no Indianismd &s evessas de Soustndrade) fol um prosador José de Alencar, Ndo 6 novida- de. Augusto Meyer (num ensaio pioneito, em que se rebela contra a leitura empobrecedora de ‘Atencar pelo padréo estito co realismo) jé havia observaco: “Bastar racema para consagré-0 0 ‘maior criador da prosa romantica, na Iinqua portuguesa, e 0 maior poeta indlanista”. 74- Revista (TSP Margo/Abril e Maio’1990.

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