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1. Antecedentes ibéricos! Tomando-se a Europa Medieval como ponto de partida para a andlise do desenvolvimento das cidades da América Latina, podemos estabelecer um contraste interessante entre a influente cidade comercial do Noroeste europeu e a tipica cidade “patrimonial’’da Peninsula Ibérica. Lidamos aqui com tipos ideais, mas estes podem nos fornecer um quadro de referéncia til para generalizagSes preliminares sobre as cidades ibero-americanas. Comecamos com a proposicao de Pirenne, de que 0s burgueses europeus se tornaram um grupo legal quando, ao conquistarem a liberdade pessoal, criaram uma ordem legal uniforme e um regime de seguranca ou “paz urbana” (veja Pirenne 1939). Esta pax villae transformou a cidade numa ‘comuna”” baseada numa conjuratio, isto é, uma confederacdo ligada por juramento. Esta ‘ conjuratio’ era uma "conspiratio” permanente contra os lagos senhoriais, j que 0 “feudalismo, ‘como 0 estado antigo e como a organizagao eclesidstica, representa a hierarquia, ao passo que a “conjuratio” 6 destruidora de toda hierarquia” (BouletSautel 1954:379). Na interpretacdo de Pirenne, a cidade do Noroeste europeu estava legalmente separada do campo que a rodeava. O homem do campo e o da cidade nao compartilhavam interesses comuns, no possuiam o mesmo status nem uma magistratura comum. A cidade configurava uma ilha de imunidade legal. Segundo a defini¢go de Pirenne, “a cidade medieval é uma comunidade ao abrigo de um santuério fortificado, vivendo do comércio e da industria, desfrutando de leis, administracdo e jurisdigzo préprias e, por isto, um organismo privilegiado”. Quem ndo mora na cidade, a ela nao pertence. Embora suas obras mais conhecidas possam sugerir que Pirenne generalizou demasiadamente seu “modelo”, ele foi bastante claro quanto @ sua complexidade. Afirma que a evolucdo urbana foi afetada pelo cardter da luta da cidade contra os principes — se esta luta existia —, pela natureza de seu comércio e pelo grau de compatibilidade entre as instituigdes dos territorios vizinhos e as suas necessidades. Geralmente, chegava-se a um acordo entre os direitos dos principes e a lei municipal, acordo este desenvolvido a partir da intima dialética entre a organizacdo feudal e comunal. Os principes eclesidsticos, por outro lado, tinham residéncias urbanas, lutavam mais assiduamente com os burgueses, tentando impor seus ideais de organizacao politica e social. Assim, nas cidades episcopais os burgueses eram mais dados a conjuragdes “revoluciondrias”, que resultavam em poderosas comunas livres do poder publico preexistente. Pirenne também distingue as cidades que desenvolveram organizagdo comunal internamente das villes neuves que, depois do século XII, poderiam receber uma carta franca de um principe ou senhor. A significagdo critica que muitos estudiosos atribuem a comuna do noroeste da Europa no se deve ao fato de a classe burguesa ser de origem exclusivamente comercial nem ao éxito amplamente difundido da organizagdo explicitamente comunal. Pizzorno (1962) classifica os historiadores em trés grupos: 1) os que insistem nas origens mercantis dos novos Ifderes urbanos (Pirenne, Bloch); 2) 0s que os consideram um ramo da classe feudal dominante (Sombart); e 3) os que Ihes atribuem origem mista (Sapori, Lestecquey). Nenhuma destas posigdes € incompativel com a afirmagao do aparecimento de um novo tipo de cidade, dominada pela func comercial e 5 por uma classe cujo poder se baseava nesta fungao. Entretanto, as diferencas de opinido entre os historiadores indicam que quanto maior o papel da nobreza rural na organizago da comuna, mais fortes se tornavam os lacos entre a cidade e os territorios circundantes. Nos lugares em que essa nobreza no existia, a influéncia regional da cidade era mais fraca, e seus conflitos com 0 poder central eram maiores. “Por se encontrar neste segundo caso, a originalidade da cidade do oeste 6 mais evidente, no sentido de que revela mais claramente os primeiros sinais de desenvolvimento econdmico ‘cumulativo. No caso das cidades italianas e do sul da Europa, o desenvolvimento econdmico seré interrompido num determinado momento. A oposi¢go — e ndo a assimilagdo — engendrou © desenvolvimento.” (Pizzorno 1962:105) Em sua conhecida anélise, Weber (1958) salientou 0 rompimento das conexdes de status entre 0s citadinos e a nobreza rural; a substituiggo de grupos de cla por associagSes protetoras néo-familiares e pela organizacéo territorial; a tendéncia a0 nivelamento social, a perda de privilégios da parte dos burgueses © a participagio civica de pessoas como individuos. Por fim, a nagdo-estado invadiv essas ilhas de autonomia municipal (Petit Dutaillis 1947:246-367; Romero 1967) para produzir a “‘doenca”’ da centralizacdo deplorada por Tocqueville (1955). Entretanto, se este processo refletia decadéncia ou capitulago municipal, também serviu para universalizar a ordem legal “‘racional” do terceiro estado urbano. "A lei burguesa”, escreveu Weber (1958:112), “fica a meio caminho entre a velha lei feudal e a das ut des territori '. Em outra parte liscutindo as fontes legais da nagao-estado européia, afirma o seguinte (1967:275): “Os ‘modernos’ — os grupos burgueses — ndo estavam nem um pouco interessados em receber o direito romano substantivo; suas necessidades eram muito melhor satisfeitas pelas instituiges da lei mercantil medieval e pelo estatuto real das cidades. Foram apenas as qualidades formais gerais do direito romano — com o inevitdvel crescimento da pratica do direito como profissio — que o levaram & supremacia”. Para se encontrar uma cidade espanhola correspondente 20 prototipo da cidade européia de Pirenne e Weber, 6 necessério tomar a rota norte dos peregrinos, dos Pireneus a Santiago de Compostela, muito utilizada nos fins do século XI por viajantes da Franca e de terras mais distantes (Vésquez de Parga 1948:49; Defourneaux 1949). Muitos se estabeleceram permanentemente nas cidades ao longo da estrada, como mercadores e artesdos, em geral em zonas comerciais fora da cidade, sendo conhecidos como francos, termo que implica origem transpireneana e estatuto juridico livre. Possivelmente os francos foram encorajados a se estabelecer por principes que se esforgavam em estimular a atividade econdmica; e podiam receber os privilégios estatutérios de burgueses. Quando os privilégios nao eram proporcionais as suas necessidades, podiam surgir conflitos. Houve rebelides de burgueses em Sahagiin, Lugo, Tui, Orense e Oviedo, do século XI a0 XIV. Uma das mais famosas foi o “juramento de ajuda e defesa mutua’’, ou conjuratio, contra o bispo de Santiago em 1116-17. Em certas cidades do norte da Espanha ocorreram revoltas contra a jurisdigdo senhorial, semelhantes as que ocorreram nas comunas de Flandres, a0 norte da Franca, e nas cidades episcopais do Reno (Valdeavellano 1960:142-55; Vasquez de Parga 1945; ibéricas que iriam orientar os padrdes de colonizagéo do Novo Mundo foram forjadas na Reconquista, ndo sofrendo a influéncia vinda através dos Pireneus. A recolonizacao da Espanha central pelos cristdos do Norte e emigrantes mocarébicos do Sul ocorreu sob 0s auspicios reais, embora freqiientemente por intermédio de magnatas seculares ou eclesidsticos. A reconstrugdo de fortes e muralhas urbanas possibilitou posigdes de defesa para as terras rurais e aldeias ocupadas por presura (direito de posse por usucapiso (Concha 1946). As cidades leonesas castelhanas do século X ao século XII eram, caracteristicamente, centros militares e eclesidsticos com poucas atividades comerciais e manufatureiras. Administrativamente, 0 niicleo e 0 territorio agr{cola circunvizinho (alfoz) constitufam um todo, e as diferencas entre aldeia, vila e cidade se baseavam essencialmente no tamanho. A escassez do trabalho e 0 sistema de presura produziram um campesinato relativamente livre e agiam contra um regime senhorial j4 amadurecido. O poder 6 da coroa cresceu durante a Reconquista, constituindo a fonte de privilégios que legitimou os governos municipais. A centralizagao real no século XIV provocou a supresséo geral do governo representativo local. ‘Jé no século XI, 0 comércio e as indistrias manufatureiras das cidades leonesas @ castelhanas aceleraram 0 contato com os centros posteriormente tomados aos drabes; apesar disto, as atividades dominantes da vida urbana continuaram a ser militares, eclesidsticas, agricolas e pastoris. Os novos mercados freqdentemente se instalavam em rém mesmo nos agrupamentos urbanos 2 “paz de mercado” ndo deu origem a uma (pax civitatis) plenamente caracterizada. “Social e economicamente, nossas cidades medievais deve ter sido consideravelmente diferentes das cidades alemas ou ita Pelo que se pode observar através de suas caracter(sticas mais freqiientes, a nossa cidade nunca perde certo cardter rural. Em geral sua economia nio se assemelha a uma economia urbana completamente desenvolvida (Valdeavellano 1931:397).”" termo burgues raramente penetrava ao sul da rota dos peregrinos; as designagBes mais comuns eram: civis, cibdadano, vecino ou omo bueno. 0 governo local das cidades castelhanas estava nas méos de nobres ou hidalgos, fazendeiros, proprietérios de terras e advogados (/etrados), mas raramente nas de grandes mercadores, naturalmente devido a seem pouco numerosos e néo a uma eliminaggo sistemética.” (Carande 1965:154). O fato de a coroa confiar a cidadéos e futuros pequenos proprietérios o trabalho de recolonizago tinha dado origem a uma grande classe de caballeros de las villas, ou caballeros villanos, que desfrutavam de relativa liberdade jur(dica, m: concedida do que ganha em aco comunal decorrente de interesses econdmicos. Portanto, “a residéncia num centro urbano e a aquisiczo da condi¢do de ‘burgues’ de cidade no eram as dnicas circunsténcias que determinavam pelo menos uma liberagdo parcial dos vinculos de sujei¢do aos potentados nobres” (Valdeavellano 1960:55). Em particular, as cidades leonesas e castelhanas desfru na Espanha medieval. Entretanto, os governos municipais faziam parte da estrutura politica e administrativa do Estado, e quanto & organizago, um centro “urbano” diferia pouco de um centro tural. A organizago municipal era aprovada por fueros, que eram contratuais em Castela mas que adquiriam caréter de privilégio concedido ou estatuto legal, 4 medida que a conquista avancava em diregdo ao sul, para a regio de Andaluzia, durante 0 periodo em que ressurge 0 direito romano e a monarquia se centraliza. Na Espanha central, “como em nenhum outro lugar da Europa, ndo houve movimentos comunais com convulsdes ¢ lutas para estabelecer institui¢des urbanas” (Font y Rius, 1954:271). Os séculos XIII e XIV foram palco de revoltas urbanas em Castela e Ledo. Estas revoltas, porém, ndo foram movimentos de burgueses ou de artesos, mas aces de caballeros para suprimir as classes agro-urbanas populares (imprecisamente 0 pueblo), ou levantes do pueblo (o qual poderia até mesmo proclamar uma comuna) contra os caballeros. (Carlé 1965). Em geral, supde-se que a histria urbana de Portugal tenha sido diferente da espanhola, porque na Espanha a reconquista teve papel menos importante e a vida urbana floresceu no litoral, dadas as possibilidades maritimas de pesca e comércio. As instituicSes municipais portuguesas, porém, evolu(ram sob auspicios patrimoniais semelhantes aos espanhdis, e as povoacBes costeiras s6 apareceram nos fins do século XII. Um observador, que viajou pela costa norte em 1147, praticamente nao encontrou aglomerados urbanos (Sampaio 1923:!, 163-66; Soares 1941-43 e 1943; Meréa e Girdo 1943; Marques 1965). Em seu periodo inicial 0 reino portugués era “uma federacdo de feudos (senhorios) e cidades presidida pelo rei e simbolizada na coroa; com o poder militar & sua disposi¢ao, o rei era mediador entre as partes e impedia a dissolugdo, preservando assim 0 Estado” (Vasconcellos 1916:288). Como em Ledo e Castela, as feiras e os mercados tiveram pouca influ€ncia nas origens ou instituicées das cidades portuguesas (Rau 1943). Com relagdo a Portugal e a Espanha, o exemplo contrastante da cidade de peregrinaco torna claro 0 desenvolvimento institucional central. Nas cidades da Galicia e do norte de Portugal — especificamente Santiago, Guimaraes e Porto —, um grupo de mercadores e artesdos criou um Tegime municipal independente (burgo) paralelamente as instituicdes que controlavam o territério agro-urbano a que pertenciam. O caso de Coimbra, cujo foral de 1179 parece ter fornecido o 7 modelo para Lisboa e Santarém, é muito diferente. Neste ponto, Cortesfo (1964:94-100) aparentemente enganou'se, ao interpretar a revolta do século XII contra o Conde Dom Henrique como originério de uma burguesia nascente. A cidade néo constituia centro comercial ou manufatureito, e os optimates populi, que em Santiago em geral eram mercadores imigrantes ricos, eram nobres proprietérios de terra, com antigas raizes na cidade, que protestavam contra a indicago de magistrados estrangeiros. O movimento objetivava manter os privilégios tradicionais, € nao reformar a administragao. O foral que vigorou acentuava a casta aristocrética da sociedade de Coimbra e preservava 0 cardter agro-urbano da jurisdic municipal. Estabelecia que 0 index deveria ser nativo de Coimbra, mas 20 mesmo tempo perpetuava a posiggo da cidade na estrutura de administracéo do Estado. No caso de Lisboa, localizada na rota maritima entre a Itélia e Flandres, as presses geradas por seu comércio e sua manufatura crescentes provocaram, em 1383-85, a substitui¢do do foral de 1179 por um estatuto que concedia certos privilégios a0 povo meudo — notadamente a criacZo de um organismo administrative de vinte e quatro trabalhadores de doze categorias do comércio. Anteriormente, porém, 0 comércio ndo possuira uma estrutura corporativa, e os novos privilégios nao uniram os trabalhadores aos lideres do conselho da cidade (Soares 1943, 1951, 1960; Meréa 1941; Caetano 1953). € tentador atribuir as caracter(sticas patrimoniais das cidades ibéricas a influéncia islimica; por isto, cabe diferenciar aqui as tradigées islémicas das européias cristds. Nenhum desses casos apresenta continuidade institucional desde as cidades antigas. No Leste mediterréneo, porém, 08 arabes de fato herdaram as burocracias centralizadas e a ativa vida industrial e urbana da Antiguidade. Estava ausente a forte tradi¢go da vida corporativa, feudal e eclesiéstica que floresceu na Europa cristé e deu forma e coeséo aos movimentos comunais do século XII. Entre os arabes houve tanto levantes ““burgueses” quanto tumultos populistas contra governadores, como na Sfria e Mesopotamia do século VIII ao século X, mas o Estado burocrético os impedia de atingir autonomia organizacional. Ascendendo por volta do ano 1000, a burguesia islémica antecipou as atitudes econdmicas do Oeste, mas nunca se tornou um grupo corporativo ou obteve poder politico, embora seus membros individualmente pudessem tornar-se altos funcionérios do Estado. Comentando 0 perfodo Manluke (1250-1517), Lapidus adverte que nao ¢ possivel comparar as vigorosas comunas democréticas da Europa com as abjetas cidades maometanas, sufocadas pelas burocracias do Estado. A vida urbana muculmana mostrava muitas formas de forte solidariedade grupal: lagos de familia e vizinhanga, lacos informais de mercado, ligago dos trabalhadores com as mesquitas locais, organizagées de aprendizes e — 8 margem da sociedade — fraternidades de dervixes, bandos de criminosos e até mesmo raros casos de conjuragdes de emires rebeldes. Faltavam, no entanto, guildas voluntérias e autogovernadas de profissionais mercadores e artesdos, criadas pelos membros em seu proprio interesse. Alojamentos urbanos ou vizinhangas bem integradas eram como comunidades de aldeia dentro do aglomerado urbano. A coesio da cidade ndo dependia de organizagSes corporativas, mas das atividades de uma elite religiosa; a u/ama, que, além das fungées religiosas, desempenhava fungdes sociais, administrativas e comerciais, ¢ cujos membros pertenciam a varias divis6es sociais e se ligavam a classe burocratica. O papel penetrante desta elite indiferenciada inibia a necessidade de instituigSes mais formais de representacdo ou controle. Para perceber que a cidade muculmana encerrava uma sociedade descompartimentalizada, na qual as fungées eram misturadas e 0 fluxo da vida se deslocava sem cessar e facilmente entre as diferentes atividades, basta comparar o tracado amorfo, fluido, parecendo um bazar, destas cidades com a forma fisica especializada das cidades européias (Chen 1958-59; Goitein 1957, Stern 1970; Lapidus 1967). Sob certos aspectos, as cidades crists ibéricas se assemethavam as islamicas: autonomia limitada em relagdo ao Estado, limites indefinidos entre o rural e 0 urbano, auséncia de uma burguesia auténoma, predominancia das relagdes protetor-protegido, Ainda assim, como a forma urbana sugere, é evidente que Espanha e Portugal apresentavam, como o resto da Europa, fortes tendéncias corporativas. As caracterfsticas patrimoniais mencionadas, portanto, devem ser explicadas pelo proceso de reconquista, que defasou o desenvolvimento corporativo em rela¢go ao poder do Estado centralizado. A fregiiente origem arabe de termos espanhdis e portugueses para designar autoridades municipais data do éxodo dos mogérabes para Leo durante as conquistas de fins do século XI e século XII. A adogdo desses termos constituia homenagem lingiiistica a brilhante 8 civilizago urbana de Toledo, Cérdoba e Sevilha, mas no significava mudanca estrutural numa ordem municipal jé estabelecida (Sanchez-Albornoz 1943:126-29, 142-45). 0 fato de o poder municipal nos paises ibéricos ser mais centralizado e burocrético nas vésperas da expansio ultramarina tornou inevitavel que as novas cidades americanas fossem concebidas como unidades territoriais e judiciais inserides numa estrutura de Estado patrimonial. A politica espanhola de reunir os colonos nas cidades para impedir a disperséo rural mostra que todo 0 sistema de justica, administragdo, defesa e igreja possu/a uma base urbana. O Estado espanhol e 0 das Indias foram concebidos como entidades orgénicas resultantes de comunidades naturais e néo meramente econdmicas ou utilitérias — e nem mesmo religiosas. Como disse 0 jurista Francisco de Vitoria (1480?—1546) “a fonte e origem de cidades e republicas nao é uma inven¢éo do homem, nem pode ser classificada como coisa artificial, surge da natureza”. O corolario de principio organico era a irrefutabilidade do poder politico e da necessidade de a comunidade existir dentro da Estrutura do Estado que o exercia. Tal poder no é criagdo arbitraria da multidéo, mas é legitimado pela lei natural e sendo irrevogavel até mesmo pelo consenso universal (Géngora, 1951:69-90). © uso da cidade como agente colonizador e “civilizador”’ nas Indias espanholas tinha explicitos precedentes tomistas e romanos. Em sua Politica indiana (1648) o jurista Juan de Solérzano descreveu as “‘republicas” dos espanhdis e (ndicos como formadoras de um dnico corpo mistico, cujos membros seriam dirigentes e dirigidos conforme sua capacidade, sendo orientados para profissdes e ocupacdes em agricultura, comércio, artes mecanicas, vocagées liberais e magistério. Santo Tomas de Aquino é citado como defensor do ideal de que “uma cidade seré perfeita bem administrada quando os cidadaos estiverem dispostos a se ajudar mutuamente, e cada um cumprir pontual e conscientemente com o seu dever”. Os principios morais para a “‘ciudad perfecta’’ eram reforcados por razdes ecolégicas. Solérzano percebeu que a cidade possuia a funcéo civilizadora de “converter grupos némades selvagens, que néo tinham leis nem reis, para uma vida comunitéria baseada na defesa e auxilio mituo. Da mesma forma que 0s romanos tinham fixado ovos errantes em comunidades agricolas diligentes, controladas pelas grandes cidades-maes (metrocomias), também os espanhdis agiam corretamente ao juntar os indios em reducciones ou agregaciones, colocando seus lideres nas cabeceras maiores de cada provincia. Esta politica decorria da idéia de que o mundo inteiro constitui “uma grande Cidade onde vivem todos os homens, dividida em cidades menores compostas de diferentes nacdes” ‘A municipalidade do Brasil coldnia era mais livre em rela¢éo ao Estado do que a da América espanhola, mas, formalmente falando, era até menos inovadora em relacdo ao prototipo oferecido pela metrépole. Até o fim do periodo colonial, a coroa nunca expediu uma ordem especialmente concernente & administraggo municipal do Brasil, nem na propria colonia aparecera uma mutacdo distintiva qualquer. Os tnicos sinais de um reconhecimento especial em relacdo as cidades brasileiras foram a concesséo dos privilégios da municipalidade do Porto a meia duzia de cémaras e, ocasionalmente, a concess#o do direito de reservar alguns postos na cdmara para os nascidos na coldnia, ou permissdo para que a propria cémara indicasse governadores interinos. Fora disto, a vida municipal era governada por cédigos promulgados para todo o reino portugués (Vasconcellos 1916; Mourgo 1916) A anilise das cidades dentro de uma ordem politico-legal vertical nos leva a suas relagdes “horizontais” ou intermunicipais. No norte da Europa, 0 prototipo do sistema interurbano era @ hansa, e no mundo hispanico, a hermandad. A associacdo hanseatica era uma resposta a um poder politico central e fraco ou ao conflito entre cidades e principes territoriais. A Liga Hanseatica era uma associacéo comercial mal estruturada, sem organizacdo administrativa regular, judiciario independente ou base de impostos permanente. As cidades-membros aceitavam a lideranga de Libeck, mas 2 autoridade central se apoiava em sua base moral; a tinica coercao possivel de ser usada contra outra cidade era negar-lhe privilégios comerciais. O motivo do declinio da Liga no século XV foi o ndo-surgimento de um governo nacional forte, como aconteceu na Franca e na Inglaterra centralizadas, para consolidar e estender o regime comercial “racional”” desta associacdo interurbana (Rérig 1971; Dollinger 1970). ‘As irmandades castelhanas eram muito diferentes. Durante sua primeira fase, nos séculos XIII e XIV, funcionavam para apoiar e proteger 0 poder real legitimo (embora também para defender 9 seus membros contra usurpacdo real ¢ agressio dos magnatas). Revivida no século XV, quando a autoridade real se tornou mais centralizada, a Santa Irmandade se subordinava a. um conselho presidido por um representante da coroa. Recebia instrugdes reais, desempenhava fungées policiais e judiciais e fornecia tropas ao rei. Em ambos os periodos, as irmandades se relacionavam diretamente com 0 poder real e ligavam suas cidades constituintes a estrutura politica do Estado, (Puyol y Alonso 1913; Suérez Fernéndez 1951). Pode-se dizer que 0 equivalente da irmandade no Novo Mundo foi a assembiéia procuratéria, Moore (1954:121) estima, indubitavelmente de maneira conservadora, que existiam cerca de quarenta na América colonial espanhola, a maioria delas na primeira metade do século XVI. (Ver também Bayle 1952:238-44). Os delegados as assembléias procuratorias em Cuba, realizadas de 1515 a 1550, foram eleitos pelos vecinos ao invés de serem indicados pelos conselhos da cidade. Suas reunides, portanto, tinham caréter “popular” e davam “representaco legitima a toda a populaggo da ilha”; suas peticdes ao rei podiam ser desvinculadas das decisbes dos conselhos individuais da cidade. Guerra (1921-25:1, 307) sugeriv que 0 prototipo espanhol para a junta era a irmandade medieval, e ndo as Cortes parlamentares. No continente, organizavam-se juntas na Nova Espanha, Peru, Nova Granada, Venezuela, Chile € outros lugares. A junta de 1560 da Nova Espanha incluia representantes de determinados grupos (conquistadores, colonizadores e mercadores) e também das cidades. O cabildo da Cidade do México convocava as reunides, e se a pauta no era de urgente interesse geral, podia formular petigdes em favor de todas as cidades na qualidade de “representante de todo o dominio, jé que era seu chefe”. (Miranda 1952:127-41). No caso chileno, Meza (1958:37-37) salienta que o di de representacao através dos conselhos municipais era uma concesséo da coroa; a vontade real e 0 bem+estar dos vassalos estavam misturados num sistema unitério de poder. “A unidade superurbana constituida para propésitos de administracdo era... um conjunto de cidades e, de acordo com esta idéia, a representacao total dos vassalos do dom{nio igualava-se 4 soma das representacdes. urbanas”. As cidades mais fracas e as vezes abandonadas enviavam representantes a Santiago como “sede do governo”, embora sem renunciar a seu direito de peti¢go individual. O cabildo de Santiago as representava perante o rei ou seus agentes e, em nome do rei, até providenciava 0 juramento de posse no cargo dos governadores nomeados pela coroa. ‘No Brasil, a autoridade de convocar assembléias era reservada aos governadores e, originalmente, participavam as principais autoridades ligadas a coroa e eclesiésticas. Entretanto, as cdmaras usurparam este poder, organizando juntas para cobrar impostos das cidades, assumir poderes interinos na auséncia de um governador e mesmo para estabelecer ligas e aliangas (Zenha 1948:108, 111, 128). As cidades ibéricas e mais tarde as ibero-americanas inseriam-se, pois, numa estrutura de império®, enquanto as cidades do norte da Europa eram palco de inovacdes legais, que assinalavam a transigo do feudalismo para “a lei das unidades territoriais”. Na tradi¢ao posterior, a vida urbana se identificou com mudanga social, oportunidade econdmica, liberdades pessoais e radicalismo politico — e, subseqiientemente, com anomia e decomposi¢ao social. Esses fendmenos também aconteceram nas cidades latino-americanas. Entretanto, as tradigdes patrimoniais de governo e de sociedade, dentro das quais eles se desenvolveram, condicionam os modos pelos quais a inovagdo se produz ou se acomoda nos nicleos urbanos. A organizagdo social latino-americana, as atitudes em relagdo as autoridades, os padrdes de mobilidade social, os empreendimentos e a motivacdo para certas realizages e as relagdes de dependéncia urbano-rural séo moldadas por tradi¢&es que as presses do comercialismo e do industrialismo podem modificar mas nao apagar. E precisamente esta combinacao de compromissos culturais e necessidades de mudanca que merece a atencdo prioritéria na pesquisa urbana da América Latina contempordnea. 2. Caracteristicas dos Nicleos Urbanos Coloniais? Na medida em que atentamos para o proceso de colonizago do Novo Mundo, também deslocamos 0 foco principal de atenco da heranga institucional e cultural ib que as condigdes de vida na América fizeram sobre aquela heranca. Nossa énfase torna-se mai 10

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